UFF – Seleção para o Mestrado – 2002

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UFF – Seleção para o Mestrado – 2002
Candidato: Rodrigo Elias Caetano Gomes
PROJETO DE PESQUISA
O Tratado de Direito Natural de Tomás Antônio Gonzaga e o Discurso
Político no Período Pombalino: 1750 – 1777
1. Apresentação e justificativa do tema
O tema sobre o qual ora me debruço para a confecção desta intenção
de trabalho está diretamente relacionado com as preocupações surgidas
durante o período no qual fui integrante do Projeto Institucional de Bolsas de
Iniciação Científica, com trabalhos realizados acerca da temática Cultura
Política na América Portuguesa. Especificamente, a preocupação surgida é
quanto à teoria luso-americana de Estado na segunda metade do século XVIII
à luz do pensamento jurídico-político dos estudantes da Universidade de
Coimbra – em especial, através do Tratado de Direito Natural de Tomás
Antônio Gonzaga.
Desta forma, o que pretendo investigar de forma mais apurada é a
relação entre rupturas e permanências no pensamento político luso-americano
legitimador do Estado e do crescente regalismo em voga no supracitado
período. Para isto pretendo utilizar como fonte básica o Tratado de Direito
Natural de Tomás Antônio Gonzaga oferecido ao Marquês de Pombal por volta
de 1770, fonte esta que, a despeito de se tratar de uma obra do “poeta da
inconfidência”, é ainda desconsiderada na historiografia política brasileira –
talvez por destoar do tradicional caráter “revolucionário” atribuído a Gonzaga –
e, quando muito, é apenas mencionada na bibliografia do autor1.
No período considerado – a segunda metade do século XVIII – tem
grande importância, para a delimitação espacial da qual presentemente me
ocupo – Portugal e América portuguesa –, o chamado pombalismo, ou seja, a
matriz teórica reformista/centralizadora que tem lugar no Império Português e
cujo principal símbolo é, obviamente, Sebastião José de Carvalho e Mello, o
Marquês de Pombal. Persuado-me a crer, porém, que esta matriz teórica
necessitou de uma base jurídico-política que estivesse além do próprio Pombal,
que só poderia ser dada por setores intelectuais que estivessem diretamente
Ver. Maria de Fátima da S. Gouvea. “Tomás Antônio Gonzaga” in Ronaldo Vainfas (org.). Dicionário
do Brasil Colonial. Rio de Janeiro, Ed. Objetiva, 2000, pp. 550-51.
1
1
ligados à problemática da secularização ou da passagem da transcendência à
imanência em curso desde meados do século XVII no mundo europeu. Desta
forma, resulta fundamental a apreciação de documentos que versem acerca
dos papéis que a Igreja, os fiéis, a república (no sentido de res publica), o rei e
os súditos teriam que desempenhar no Imperium, misto de abstração e
realidade que está sendo construído desde finais do século XV e que, em
meados do século XVIII, é favorecido no “mundo português” pela chamada
“ditadura pombalina”.2 Creio que o Tratado de Gonzaga forneça as pistas desta
base jurídico-política.
Isto posto, cabe também ressaltar que, embora a delimitação temporal
situe o objeto na segunda metade do século XVIII, não descartarei a
possibilidade de analisar tradições na cultura política que indiquem sua gênese
ou período de maior vivacidade em momentos anteriores, uma vez que o
estudo da política enquanto aspecto cultural – no âmbito das mentalidades –
deve considerar esta como sendo fenômeno da longa duração, sobretudo
quando se considera que as linguagens políticas estão estreitamente ligadas
às tradições nas quais os grupos em questão estão inseridos.
Muito já se disse acerca da ação política no “Brasil Colonial” por alguns
dos maiores autores de nossa historiografia, valendo-se estes principalmente
da possibilidade de pesquisa documental proporcionada pelos programas de
pós-graduação, que conheceram grande crescimento sobretudo a partir dos
anos 1970 e 1980. É de considerável importância, neste contexto, a
abordagem serial dos documentos, visto que os dados quantificados permitiram
um maior conhecimento da sociedade colonial no que diz respeito aos seus
aspectos estruturais.3 Este grande avanço contribuiu grandemente para a
ampliação de um conhecimento sobre o período colonial, uma vez que os
estudos neste campo giravam até então em torno dos ensaios
–
importantíssimos – de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio
Prado Júnior.
Porém, após o início destas pesquisas com início na década de 1970,
ocorreu na historiografia brasileira colonial um grande predomínio da história
econômico-social, uma vez que a pesquisa documental com fontes seriadas
2
3
Ver. Charles Ralph Boxer. O Império Colonial Português (1415-1825). Lisboa: Edições 70, 1981.
Ver. A. J. R. Russel-Wood. Arquivos Brasileiros e a Historiografia Recente do Brasil. Mimeo, 1998.
2
favoreceu uma interpretação materialista, sob influência principalmente do
clássico trabalho de Caio Prado Júnior, Formação do Brasil Contemporâneo,
estando os estudos atinentes à superestrutura relegados ao segundo plano. É
forçoso reconhecer, contudo, que Prado Júnior não dá grande destaque, na
sua obra, aos movimentos sediciosos que tiveram como palco a América
portuguesa no final do século XVIII. Não obstante, grande parte dos
historiadores de orientação marxista que se inclinaram sobre tais movimentos
tentaram enxergar nestes a formação de uma nacionalidade ou o nascimento
de uma tradição revolucionária, em que tais movimentos apontassem para um
caráter “emancipacionista” na cultura política dos círculos culturais envolvidos
em tais conjuras.4
Por este motivo, não soa tão estranho o completo desconhecimento do
Tratado de Direito Natural pelo campo historiográfico, uma vez que o seu autor
– tomado como principal teórico de um projeto de separação entre Portugal e
“Brasil” –, ou melhor, o seu estereótipo, não pode ser associado a uma
eventual legitimação de uma escalada do poder absoluto em terras brasílicas.
Por outro lado, Kenneth Maxwell, apoiado em farta documentação serial, além
da exaustiva análise dos Autos de Devassa da Inconfidência Mineira, situou
Tomás Antônio Gonzaga – que se formou em Direito na Universidade de
Coimbra, onde estudou entre 1762 e 1768 – como um indivíduo interessado na
conjuração puramante por motivos econômicos.5 Esta concepção, ao meu ver,
desconsidera totalmente a formação intelecual de Gonzaga, uma vez que não
leva em conta as diferentes tradições culturais, intelectuais ou políticas com as
quais tomara contato na colônia e durante sua estadia no Reino, assim como a
circulação de livros e partes de obras proibidas no território colonial no final do
século XVIII.6 Não é desnecessário lembrar que, no que concerne ao
imaginário político luso-americano no período abordado, não estava morta na
4
Alguns autores que compartilham desta concepção são: Fábio Lucas. Luzes e Trevas: Minas Gerais no
Século XVIII. Belo Horizonte, Ed. UFMG, 1998; István Jancsó. Na Bahia, contra o Império: história do
ensaio de sedição de 1798. São Paulo/Salvador, HUCITEC/EDUFBA. 1996; Idem. “A sedução da
liberdade: cotidiano e contestação política no final do século XVIII”, in Laura de Mello e Souza.
Cotidiano e Vida Privada na América Portuguesa. São Paulo, Companhia das Letras, 1997. (História da
Vida Privada no Brasil, vol. 1, dir. Fernando A. Novais)
5
Ver. Kenneth Maxwell. A devassa da devassa: A Inconfidência Mineira: Brasil e Portugal, 1750-1808.
2a. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
6
Ver. Luiz Carlos Villalta. “O que se fala e o que se lê: língua, instrução e leitura”. in Laura de Mello e
Souza (org). Op. Cit.
3
memória – e nos livros, que circulavam inclusive desrespeitando a censura
régia – o debate político-filosófico ocorrido em Portugal e em terras brasílicas
por ocasião da Restauração Portuguesa de 1640, como é possível perceber
em Antônio Vieira. Como bem demonstrou Eduardo D’Oliveira França, em
estudo que permaneceu quase que de impossível acesso até 1997, os teóricos
restauracionistas elaboraram, bem antes de Rousseau, um discurso que
legitimava o “contrato” entre os “povos” em detrimento do poder régio. Para
Francisco Velasco de Gouvea, escrevendo em 1642, a verdade é que “o poder
político e civil está nos próprios povos e Repúblicas, e que os Reis não o
receberam imediatamente de Deus”.7 Os ecos de tal debate ainda podem ser
ouvidos na argumentação de Tomás Antônio Gonzaga? E, caso afirmativo,
como ressoam diante da escalada absolutista pombalina? Essas são as
questões por responder que o presente projeto propõe para uma futura
investigação.
Assim sendo, cuido que a maior justificativa para esta pesquisa é a
possibilidade de utilizar como fonte uma obra de suma importância para o
conhecimento do universo intelectual de Gonzaga, assim como para o estudo
do ambiente político-cultural no qual se conforma o Estado Moderno português
do século XVIII. Cabe também ressaltar que o único trabalho que considera
especificamente o Tratado data de 1953, além de tratá-lo unicamente através
do prisma do Direito.8
Uma outra possibilidade que se descortinou na medida em que
avançavam as sobreditas pesquisas acerca da Cultura Política na América
Portuguesa foi a de uma abordagem comparativa, uma vez que há
disponibilidade de outros escritos da mesma época que versam sobre o mesmo
tema do Tratado de Gonzaga. Portanto, acredito igualmente que o trabalho se
justifica pela consideração deste documento de autoria de Tomás Antônio
Gonzaga em meio a uma série, o que pode ajudar na compreensão de sua
importância e profundidade política em meio à corrente político-cultural
hegemônica no Império Português no período pós-1750.
Apud Eduardo D’Oliveira França. Portugal na Época da Restauração. São Paulo: HUCITEC, 1997, p.
266.
8
Ver. Lourival Gomes Machado. O tratado de direito natural de Tomás Antônio Gonzaga. Rio de
Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1953.
7
4
2. Fontes
Cabe mencionar primeiramente que as fontes pertinentes para a
pesquisa em questão encontram-se, na sua maioria, em publicações bem
conservadas do século XVIII e fazem parte dos acervos da Biblioteca Nacional
do Rio de Janeiro, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e do Real
Gabinete Português de Leitura.
O trabalho tem como fonte básica, conforme acima mencionei, o
Tratado de Direito Natural, oferecido por volta de 1770 por Tomás Antônio
Gonzaga ao Marquês de Pombal, tendo em vista a oposição que aquele fazia
às cadeiras na Faculdade de Leis na Universidade de Coimbra. A versão que
se encontra disponível é a edição crítica de M. Rodrigues Lapa, publicada em
1957.9
Este Tratado se divide em três partes, sendo a primeira a que trata dos
princípios gerais “necessários para o Direito Natural e Civil”, onde o autor
discorre sobre os principais autores clássicos, tratando de estabelecer os
parâmetros a partir dos quais tratará das duas últimas partes. A segunda, que
trata basicamente das sociedades eclesiástica e civil, é onde Gonzaga aplica
os valores construídos na primeira parte, a fim de estabelecer seus juízos
acerca dos poderes espiritual e temporal. Na terceira e última parte, o autor
trata especificamente da “natureza” da justiça e das leis. Aqui é também onde
ele transforma o arcabouço teórico estudado nas duas primeiras partes em um
discurso pragmático acerca do funcionamento do Estado Moderno.
Para uma reconstrução deste debate acerca da natureza do direito civil
– imbricado que está na esfera política – encontra-se disponível também um
considerável número de fontes impressas. Dentre as principais, podemos citar
a Dedução Cronológica e Analítica, que tem sua autoria atribuída a José de
Seabra da Silva, e que constitui um autêntico manifesto da política pombalina.10
Há também obras como a de Coelho Franco11, do ano de 1768, que
oferece a oportunidade de uma abordagem comparada, assim como o trabalho
9
Tomás Antônio Gonzaga. Tratado de Direito Natural; Carta Sobre a Usura; Minutas;
Correspondência; Documentos. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura / Instituto Nacional do
Livro, 1957. (Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga, v. II, ed. crít. de M. Rodrigues Lapa)
10
Joseph de Seabra da Silva. Deducção Chronologica e Analytica na qual se manifestão pela
Successiva... Lisboa: Officina de Francisco Borges de Sousa. 1767. Ver. Francisco J. Calazans Falcon. “O
Ideário do Pombalismo”, in Op. Cit., pp. 231-358 e 323-361.
11
M. A. Coelho C. Franco. Tratado Prático Jurídico e Cível. 1768.
5
de Burlamaqui, ainda de 1768, que dá, em algumas das suas formulações,
suporte teórico para Tomás Antônio Gonzaga. 12 Vale mencionar ainda as
fontes de caráter religioso, como os sermões, assim como panegíricos, visto
que a religiosidade e a aproximação entre as esferas religiosa e secular são
traços constituintes das formações culturais do Antigo Regime, dando também
este tipo de pensamento suporte teológico-jurídico ao Estado Moderno lusitano,
como se pode ver em Antônio Ribeiro dos Santos, estudado por José Esteves
Pereira.13
Portanto, as principais fontes até aqui levantadas dividem-se em três
grupos básicos, sendo o primeiro aquelas que tratam especificamente do
debate travado na cultura erudita acerca da competência do poder monárquico,
a saber:
Collecção dos actos dos parlamentos, e leis dos soberanos da Europa...
Lisboa: Officina de Antonio Rodrigues Galhardo, 1768.
Dialogo sobre o estado presente dos principes da Europa para o uso das
escollas da Congregaçam do Oratorio na Real Casa de N. Senhora
das Necessidades, ordenado pela mesma Congregaçam. Lisboa:
Officina de Miguel Rodrigues, 1751.
Diário dos Successos de Lisboa desde o Terremoto até o Extermínio dos
Jezuitas. Tradução de Mathias Pereira de Azevedo Pinto. Lisboa,
Officina de Francisco Borges de Sousa, 1766.
FRANCO, M. A. Coelho C. Tratado Prático Jurídico e Cível. 1768.
GONZAGA, Tomás Antônio. (1770?) Tratado de Direito Natural; Carta Sobre a
Usura; Minutas; Correspondência; Documentos. Rio de Janeiro:
Ministério da Educação e Cultura / Instituto Nacional do Livro, 1952.
(Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga, vol. III, ed. crít. M.
Rodrigues Lapa)
MORAES, Pedro J. S. Collecção Politica de Apothegmas. 2 vols. 1761.
SILVA, Joseph de Seabra da. Deducção Chronologica e Analytica na qual se
manifestão pela successiva... Lisboa, Officina de Miguel Manescal da
Costa, 1767.
12
J. Diigo Burlamaqui. Elementos do Direito Natural. 1768.
Ver. José Esteves Pereira. O Pensamento Político em Portugal no Século XVIII: António Ribeiro dos
Santos. Lisboa: Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1981.
13
6
SILVA, Joseph de Seabra da. Deducção Chronologica e Analytica; Petição de
Recurso Apresentada em Audiência Pública... Lisboa, Officina de
Miguel Manescal da Costa, 1767.
SYLVA, Joseph de Seabra da. Petição de Recurso apresentada em Audiência
Pública; Collecção das Provas que faram... Lisboa, Officina de Miguel
Manescal da Costa, 1767-68.
O segundo conjunto está constituído por aquelas que tratam da cultura
política e que fornecem as bases para tal debate, a saber:
BURLAMAQUI, J. Diigo. Elementos do Direito Natural. 1768.
CAMACHO, Guerreiro. Tractatus Diversos. 9 vols. 1759.
EÇA, M. A. Ramos da Silva de. Reflexões Sobre a Vaidade dos Homens. 1761.
FEBRONIO, Justino. Do Estado da Igreja e Poder Legítimo do Pontífice. 1770.
Index Librorum Prohibitorum. Roma, Typographia Rev. Camerae Apostolica,
1761.
Por último, o terceiro grupo, daquelas fontes que revelam a apropriação
e reelaboração dos princípios e do debate por outros setores sociais, a saber:
COSTA, Cláudio Manuel da. Obras. 1768.
FRANCISCO DA NATIVIDADE, Frei. Reflexoens moraes, e políticas sobre as
principaes obrigaçoens do homem... por seu autor o D. Fr. Francisco
da Natividade. Lisboa: Officina de Miguel Rodrigues, 1765.
GABINET, Carlos. Instrusam sobre o modo de bem Estudar. 1770.
MELO, Francisco de Pina de Sá e de. Palácio do Sol, ou Panegírico
Gratulatório, que ao muito alto, poderoso rei da Gran-Bretanha, de
Escócia, de Irlanda; etc., etc., etc., e a toda a nação britanica dedicou
Francisco de Pina, de Sá, e de Melo... pelo magnífico socorro que
derão a Lisboa na calamidade do terremoto. Lisboa: Officina de Joam
Antonio da Costa, 1765.
NIZA, Paulo Dias de. Portugal Sacro Profano ou Índice Alfabético, 1767.
OLIVEIRA, Filippe de. Sermoens panegyricos historicos e funeraes... Do M. R.
Doutor Filippe de Oliveira. Lisboa: Officina de Manoel Coelho Amado,
1762.
7
OSSORIO DE CASTRO, Jeronimo Bernardo. Parnaso real, epithalamico,
panegyrico e geographico... por Jeronimo Bernardo de Ossorio de
Castro. Lisboa: Officina de Francisco Borges de Sousa, 1764.
PORTUGAL. Junta da Inconfidência. Sentença de 12 de janeiro de 1759:
proferida no Juízo da Inconfidência, contra os reos do barbaro, e
execrando desacato, que na noute de 3 de septembro do anno
proximo passado se commeteu contra a real, sagrada, e augustissima
pessoa d’El rei Nosso Senhor. [Lisboa?, Portugal]: s.l., 1759.
SANTA ANNA, Joaquim de. Oração gratulatoria na acçam de graças... pelo
conhecido milagre com que Deos... preservou a vida do... Rey D.
Joseph I, disse-a e dedica-a... por mão do... senhor Sebastião Joseph
de Carvalho e Mello... o P. M. Fr. Joaquim de Santa Anna. Lisboa:
Officina Patriarcal de Francisco Luiz Ameno, 1759.
SANTO ESTEVÃO, Gomes de. Livro do Infante D. Pedro de Portugal, o qual
antou as sette partidas do Mundo. Lisboa, Officina de Francisco
Borges de Sousa, 1767.
Sentença Proferida Contra os Ladrões, 1760.
3. Discussão conceitual e metodológica
Uma das principais preocupações do historiador na execução de seu
ofício é a historicidade, razão mesma deste. Desta forma, ele deve estar atento
durante todo o tempo em perscrutar o sentido dos “mitos, emblemas e sinais”,
como propôs Carlo Ginzburg14, sob pena de incorrer em anacronismo. Chamo
atenção para isto neste momento para não perder de vista a especificidade do
período ao qual se restringe o foco da pesquisa proposta, a segunda metade
do século XVIII, em especial o período que ficou conhecido como pombalino.
É importante que se tenha bem claro que este período, sobretudo no
Império Português, é marcado por uma estrutura sócio-político-cultural que se
pode denominar de “Antigo Regime”. Utilizo-me portanto da concepção
defendida por Diogo Ramada Curto, para quem o Antigo Regime – expressão
que, aliás, não era utilizada durante o período em que floresciam os estados
modernos da Cristandade ocidental, entre os séculos XV e XVIII – é o tecido
14
Ver. Carlos Ginzburg. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das
Letras, 1990.
8
onde se dão as relações definidoras dos grupos sociais no período e espaço
acima definidos. Em um regime em que a norma não é o direito, mas sim o
privilégio; em que não importa a classe, mas a qualidade; em que a igualdade
ainda não desbancou a hierarquia no discurso político, a organização social se
dá, ao menos em termos teóricos, através da divisão dos grupos em três
estados, divisão esta que tem orígem em uma simplificação teórica pela qual
passa a Cristandade no século XI, quando a sociedade medieval é dividida
entre os que oram, os que guerreiam e os que trabalham. Assim sendo, a
tripartição que a sociedade ocidental da Modernidade
herda da teologia
política medieval consiste das seguintes ordens, a saber, o clero, a nobreza e o
povo, unificados pela cabeça que é o rei, prova irrefutável da hierarquização
antropomórfica desta sociedade. Desta maneira, o rei surge enquanto
promovedor da justiça e propagador da religião, fins ante aos quais não se lhe
pode antepor nenhum constrangimento, nisto consistindo o seu poder absoluto
– respeitando, porém, o monarca os privilégios e a lei, agindo sempre como
manda o costume.15 Esta concepção é especialmente importante para a
conformação do contexto em que ocorre a produção literária de caráter jurídicopolítico que pretendo observar, mormente quando os valores típicos do Antigo
Regime permeam a produção e a recepção das fontes.
No caso específico de Portugal, Francisco J. Calazans Falcon acredita
que se passa, no final do reinado de d. João V, pouco antes de 1750, uma
“decadência” do poder régio, o que impõe ao monarca seguinte, seu filho, d.
José I, uma tentativa de retomada da primazia régia na esfera de decisão do
Estado. O Marquês de Pombal tomaria as rédeas deste processo. 16 Portanto,
considerarei a produção textual dos meios intelectuais luso-americanos neste
contexto pombalino de retomada da primazia política da monarquia “ilustrada”
portuguesa em relação aos grupos que ascenderam politicamente no final do
reinado de d. João V, principalmente no que diz respeito ao terceiro quartel do
século XVIII.
No que diz respeito à política stricto sensu, pretendo utilizar-me do
ponto de vista de Quentin Skinner. Na opinião deste cientista político, a política
Ver. Diogo Ramada Curto. “A Cultura Política” in Joaquim Romero de Magalhães (coord.). No
Alvorecer da Modernidade. Lisboa: Estampa, 1997. (História de Portugal, III. Dir. José Mattoso)
16
Ver. Francisco José Calazans Falcon. A Época Pombalina: política econômica e monarquia ilustrada.
São Paulo: Ática, 1982. (Ensaios, 83)
15
9
só pode ser considerada enquanto parte integrante de uma esfera sóciocultural mais ampla, negando-se o autor a fazer uma história política que seja
baseada puramente na observação dos textos canônicos – o que resultaria
apenas em uma espécie de “genealogia intelectual” das idéias políticas. Para
Skinner, “a própria vida política coloca os principais problemas para o teórico
da política, fazendo que um certo elenco de pontos pareça problemático, e um
rol correspondente de questões se converta nos principais tópicos em
discussão”.17 Por conseguinte, só recuperando esses pontos problemáticos e a
rede de questões e discussões que geraram é possível compreender uma
obra, por mais extraordinária que seja.
Mais especificamente, porém ainda dentro de uma perspectiva de
história que considere a política enquanto aspecto cultural, valho-me de uma
concepção defendida originalmente pelo historiador Luiz Carlos Villalta.
Segundo este autor a cultura política no mundo luso-americano da segunda
metade do século XVIII só pode ser compreendida enquanto resultado do
encontro de diferentes tradições político-culturais, a saber, a Ilustração em
grande voga sobretudo no circuito europeu, e assimilada através dos filtros
ibéricos em diversos setores do Império, mas também a tradição do
pensamento político oriunda da Restauração Portuguesa de 1640. Conforme
bem demonstrou Villalta, analisando o depoimento do cônego Luís Vieira da
Silva por ocasião da Inconfidência Mineira, as idéias advindas do contexto
ilustrado europeu só podiam ser interpretadas a partir de uma bagagem cultural
anterior. Esta era constituída pela experiência lusitana em sua luta contra o
domínio espanhol em 1640, estando também vinculada às teorias políticas de
caráter conciliarista e constitucionalista do barroco ibérico, que se articulam a
um contexto ainda a longo da Segunda Escolástica.18
Tendo em vista o caráter qualitativo das fontes utilizadas para este
trabalho, recorrerei aos métodos usuais da história, a saber, a análise e crítica
interna dos documentos, ou seja, a “arqueologia histórica” da qual fala Ronaldo
Vainfas.19 Desta forma, pretendo me valer de uma análise aprofundada do
17
Ver. Quentin Skinner. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia das
Letras, 1996, p. 10.
18
Ver. Luiz Carlos Villalta. Luzes, Tradição e Sedição em Minas Gerais (1789). Mimeo, 1999.
19
Ver. Ronaldo Vainfas. “Prefácio”, in Jacqueline Hermann. No reino do Desejado: A construção do
sebastianismo em Portugal; séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 13.
10
Tratado de Tomás Antônio Gonzaga, fazendo também uma leitura das fontes
correlatas, que citei no ítem anterior, com o objetivo de reconstruir o mosaico
do qual a dita obra constitui um ladrilho. Seguindo o que propôs Carlo
Ginzburg, tenciono abordar as fontes acima mencionadas de forma a
considerá-las não discursos em si, mas como signos que só adquirem sentido
quando remodelados pelos leitores – ou ouvintes – da época na qual se
inserem.20 O objetivo aqui, em termos metodológicos, é proceder a uma
“história social das interpretações”, conforme as palavras de Roger Chartier.21
Por isso, pretendo examinar não só os cânones, a partir dos quais os princípios
legitimadores ou deslegitimadores de determinada concepção de Estado são
“formulados”, mas também os sermões, panegíricos e sentenças, em que as
representações acerca de tais princípios são mais aparentes.
Essas considerações levam, assim, a uma primeira hipótese, de cunho
mais geral, segundo a qual o recrudescimento do regalismo no terceiro quartel
do século XVIII no Império Português ocorre analogamente a um movimento de
caráter filosófico-jurídico-político que tende à legitimação do poder central
secular, sob o ministério de Sebastião José de Carvalho e Mello.
Desta primeira hipótese, seguem-se mais duas, de caráter mais
específico. Uma é que o Tratado de Diteito Natural de Tomás Antônio
Gonzaga, oferecido ao supracitado ministro por volta de 1770, faz parte
daquele hipotético movimento legitimador, uma vez que parece obliterar nos
campos filosófico, jurídico, político e até mesmo teológico as matrizes teóricas
da longa duração avessas ao centralismo régio, sendo dentre estas a principal
o constitucionalismo.
A terceira hipótese, que se relaciona com as duas primeiras, é que o
projeto centralizador em curso desde o início dos anos 1750 não é unívoco. Ao
contrário, as fontes correlatas aos tratados canônicos que dão suporte a este
projeto fornecem indícios de que o que ocorre, a rigor, é uma circularidade
cultural, ou seja, os discursos políticos são frutos e objetos de uma
reelaboração cultural, quer por via teológica, através dos sermões, quer por via
política, através dos panegíricos, nos quais os mitos e tradições políticas e
20
Ver. Carlo Ginzburg. O queijo e os vermes: O cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela
Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 29.
21
Ver. Roger Chartier. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1991, p. 26.
11
culturais, como o sebastianismo, surgem com um novo objetivo, que é o de
decidir o lugar que o poder régio ocupa na res publica.
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5. Cronograma
1/2002
2/2002
1/2003
Cursos
X
X
Análise das fontes
X
X
X
Leituras complementares
X
X
X
Qualificação
X
Redação
X
2/2003
X
14
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