A espiritualidade de São Pedro de Alcântara (1499-1562): influências em Santa Teresa D’Ávila Raquel de Godoy Retz Doutora em Educação (Psicologia da Educação) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2007), diretora das Faculdades Integradas Teresa D´Ávila e vice diretora da Instituto Santa Teresa, escola de ensino fundamental e médio. RESUMO Trata-se da influência que teve São Pedro de Alcântara na vida, fundações e mística de Santa Teresa, com sua presença, sua direção espiritual e sua vida de oração e penitência. PALAVRAS-CHAVE Oração - Penitência - Pedro de Alcântara, santo - Teresa D’Ávila, santa ABSTRACT This is the influence that St. Peter of Alcantara in life, the foundations and the mystic Santa Teresa with his presence, his "spiritual direction" and his life of prayer and penance. KEYWORDS Prayer - Penance - Peter of Alcantara, saint - Teresa of Avila, saint 20 www.fatea.br/angulo “E que bem nos levou agora Deus no bendito Frei Pedro de Alcântara! O mundo já não suporta tanta perfeição. Dizem que a saúde das pessoas é mais fraca e já não vivemos nos tempos passados. Esse santo homem era desse tempo. Estava saudável no espirito como em outros tempos e, assim, tinha o mundo debaixo de seus pés. Pois, ainda que não se ande descalço nem se faça penitência tão dura como ele, há muitas coisas - como já disse outras vezes- para pisar o mundo. E o Senhor mostra-as quando vê coragem. E que grande coragem deu Sua Majestade a esse santo de que falo, para fazer durante 47 anos penitência tão dura, como todos sabem. Quero falar algo sobre e que sei que é totalmente verdade. Disse-me a mim e a outra pessoa com quem era pouco reservado (e a mim o amor que me tinha era a causa, porque quis o Senhor que ele o tivesse para me defender e me encorajar num tempo de muita necessidade, como já disse e direi), parece-me que foram quarenta anos que me disse em que dormiu só uma hora e meia entre a noite. Podia, e que esse era o maior trabalho de penitência que tinha tido no começo: o de vencer o sono, e para isso estava sempre ou de joelhos ou em pé. O tempo que dormia, era sentado, e a cabeça apoiada numa madeirinha que tinha fincada na parede. Deitado, ainda que quisesse, não conseguia, porque sua cela- como se sabe- não era maior do que quatro pés e meio. Em todos esses anos, jamais pôs o capuz, por mais que fizesse sol ou chovesse, nem nada nos pés, nem roupa, a não ser um hábito de tecido rústico, sem mais nada sobre as carnes, e esse era tão justo quando podia aguentar, e uma capa do mesmo tecido por cima. Dizia-me que, nos dias de grande frio, tirava-o e deixava a porta e a janela da cela abertas para, pondo depois a capa e fechando a janela, contentar o corpo para que, com mais abrigo, sossegasse. Comer dia sim, dia não, era muito comum. E perguntou- Ângulo 132, Jan./Mar., 2013. p. 020-025 -me com que eu me espantava, pois era muito possível para quem estivesse acostumado a isso. Um companheiro seu me disse que acontecia de ele ficar oito dias sem comer. Devia ser estando em oração, por que tinha grandes arrebatamentos e ímpetos de amor de Deus, do que uma vez fui testemunha” (TERESA D’ÁVILA, 2010, p. 248-9). Santa Teresa relata que, com toda essa penitência e santidade, Pedro de Alcântara era muito afável, porque tinha um entendimento lindo. Conta que Pedro lhe apareceu muitas vezes, com enorme glória, aconselhando-a em muitas coisas. Teve a previsão de sua morte e avisou-o. Quando viu que já se acabava, rezou o salmo 121, ajoelhou-se e morreu. (cf Teresa D’Ávila, 2010) Teresa narra como cerca de dois anos antes de morrer, Frei Pedro ficou um pouco mais de oito dias em Ávila, e muito a ajudou na fundação do Convento de São José, pois grande era a resistência da população e das autoridades. (TERESA D’ ÁVILA, 2010) Imagem de São Pedro de Alcântara. Pedro de Alcântara teve grande influência na vida de Santa Teresa. São Francisco de Borja e São Pedro de Alcântara são os únicos contemporâneos de Santa Teresa, que ela cita nominalmente. São Pedro de Alcântara foi um reformador da Ordem de São Francisco. Orientou Santa Teresa na fundação do Convento de São José de Ávila e deu-lhe segurança quanto à origem divina de suas experiências místicas e de seus êxtases. Dele escreveu, no Livro da vida: 21 Sepulcro de São Pedro de Alcântara. O nome de batismo de Frei Pedro era Juan de Gabarito y Vilela de Sanabria, de família nobre de Alcântara, onde nasceu, no último ano do século XV. Seu pai, jurisconsulto ilustre, era governador de Alcântara. Morreu a 18 de outubro de 1562, em Arenas de San Pedro, Ávila, com 63 de idade. Juan Pedro, desde criança, gostava de rezar secretamente, no oratório da Casa. Foi estudante de direito, em Salamanca, mas abandonou os estudos para tornar-se frade franciscano. No Noviciado, colocaram-no na função de porteiro, hortelão, varredor e cozinheiro. Muito distraído, sofreu frequentes acidentes, na função de cozinheiro. Foi ordenado sacerdote em 1524, com 25 anos. Ajudou a fundar uma série de mosteiros para os Capuchos e em 1555, iniciou a reforma da Ordem dos Frades Menores Capuchinhos, mediante as regras “alcantarinas”, hoje conhecidas como de “estrita Observância”. 22 Era notável pregador e místico e escreveu o “Tratado da Oração e Meditação”, que terá sido lido por São Francisco de Sales. (MARTINHO DE SANTA MARIA, 2011) Amável e compreensivo para com o próximo, era intransigente e extremamente severo para consigo mesmo. Franciscano de espírito e por convicção, outras coisas não possuía a não ser um hábito surrado, um breviário, um crucifixo tosco e um bastão. Mortificou-se tanto com a comida e a bebida, que perdeu o paladar e assim todos os alimentos lhe pareciam iguais. O amor de Deus lhe preenchia o espirito e era-lhe muito difícil celebrar a Santa Missa sem sair de si mesmo e levantar-se no ar. Como pregador, foi notável. Seus sermões, inspirados nos profetas e nos livros sapienciais, manifestavam a mais terna simpatia humana. Tinha a graça de comover seus ouvintes e, muitas vezes, bastava sua presença para que muitos mudassem de comportamento. Preferia os auditórios de gente pobre, pois lhe parecia que eram os que tinham mais vontade de se converterem. Pela reforma da Ordem Franciscana, Pedro não só restabeleceu na família monástica o espírito primitivo da pobreza, humildade e penitência, mas concorreu grandemente para a renovação da fé entre o povo, na época em que os protestantes começavam seu trabalho. Seu nome tornou-se conhecido e acatado em toda a Espanha e em Portugal; ainda em vida era chamado, Frei Pedro, o santo. Cidades e municípios recorriam a seu julgamento para acabar com litígios. Ao terminar cada missão, fazia erguer nas praças públicas ou encruzilhadas, uma grande cruz para lembrar ao povo, as verdades do Evangelho. Dizia a seus frades: “Se virdes pecar um vosso irmão, não o ofendais e não o perturbeis mas, cheios de docilidade, falai-lhe ao coração e avisai-o, com amor, convindo que vós sois feitos do mesmo barro”. Tornou-se conselheiro do rei Dom João III, do príncipe Dom Luís e da infanta D. Maria, todos de Portugal. A Infanta testemunhou sua gratidão a São Pedro de Alcântara ao abrir, em Lisboa, um mosteiro para as Clarissas e também ao construir www.fatea.br/angulo Ângulo 132, Jan./Mar., 2013. p. 020-025 composta por São Pedro de Alcântara, oferecido ao magnifico e devoto Sr. Rodrigo de Chaves, que o mandou escrever algo sobre a oração, breve, e claro e barato, de proveito comum aos pobres – que não podem comprar livros caros; aos simples – que não entendem coisas complicadas. No capitulo I, Frei Pedro diz que um dos maiores empecilhos, que o homem tem para alcançar a felicidade última são as más inclinações de seu coração e a dificuldade para fazer o bem. A devoção é uma prontidão e leveza para as coisas boas, uma refeição espiritual, um refresco e orvalho do céu, um sopro e alento do Espirito Santo e um afeto sobrenatural, que leva a gostar das coisas espirituais. Depois de citar as belas palavras de São Boaventura sobre o que é ser um homem de oração, Pedro de Alcântara trata de qual pode ser a matéria de oração, em cada dia da semana. Na 2ª feira – lembrar os pecados passados e conhecer-se a si mesmo, para que vejas teus defeitos e como não tens nenhum bem, que não tenhas Convento de S. José. AVILA. O Monastério de São José. o Hospital da Misericórdia. Acostumado ao recolhimento e à mais completa austeridade, tinha dificuldades em suportar as honrarias que lhe eram tributadas pela Corte Portuguesa, já que preferia viver desconhecido, dedicando-se à oração, à penitência e à contemplação. A essa sua característica atribui-se o fato de ter recusado o convite do imperador Carlos V para ser seu confessor, quando este se retirou para o Convento de São Justo, após sua abdicação; o mesmo ocorreu com a Princesa Joana da Áustria, que queria torná-lo seu diretor espiritual. Pedro de Alcântara foi beatificado pelo Papa Gregório XV em 18 de abril de 1622 e canonizado em 28 de abril de 1669, pelo Papa Clemente IX. Dom Pedro II, imperador do Brasil, considerou-o o principal padroeiro do Império, a 31 de maio de 1826. É o padroeiro da cidade de Petrópolis. D. Pedro II tinha nome de Pedro de Alcântara, em sua homenagem. Em Petrópolis se demarcou um terreno para nele edificar uma igreja sob a invocação do grande santo. Apesar da pedra fundamental ter sido lançada, em 1876, somente em 1925 ela foi inaugurada, mesmo que ainda incompleta, vindo a firmar-se como catedral, em abril de 1946. Para os petrolitanos, a famosa cidade serrana nasceu e cresceu sob o signo da celestial proteção desse extraordinário santo. Frei Francisco de Monte Alverne, um dos mais famosos nomes da oratória sacra, na época, em seu discurso proferido em 1854, por insistência de D. Pedro II, ressaltou os milagres realizados, em vida, por Frei Pedro de Alcântara: “(...) restitui vivo a uma mãe o filho que acabara de perder; na entrada entre Ávila de Pedroso um menino que se afogara. Novo Eliseu, aquece com seu calor vital o inanimado cadáver do filho do conde de Ozomo; fere as águas com seu manto, e encostado a seu cajado vadeia a pé enxuto o Tejo e o Guadiana”. Não foram porém, as honrarias ou os milagres que tornaram Pedro de Alcântara um homem notável. Foram sua pureza, sua pobreza, sua vida de penitência, sua completa dependência do Senhor, sua intimidade com o Cristo, sua afabilidade e compaixão. (cf. Alves Netto – site ) A obra Tratado de oração e meditação foi 23 Santuário de São Pedro de Alcântara. recebido de Deus. Este é o meio para alcançar a humildade, mãe de todas as virtudes. Depois, pensa nos benefícios divinos e como os empregaste. Pensa nos pecados que cometeste e cometes todos os dias, depois que aprofundaste o conhecimento de Deus. Pensa que não és mais que uma cana açoitada pelos ventos das paixões, sem firmeza nem estabilidade alguma; um Lázaro, morto há quatro dias; assim, atira-te como a pecadora, aos pés do Salvador. Na 3ª feira – pensa nas misérias da vida humana e como é vã a glória do mundo, digna de ser desprezada. Pensa como a vida é breve, incerta e duvidosa, frágil como um vaso de barro, mutável e provisória, flor do campo que fenece, enganosa, pois sendo feia nos parece formosa; sendo amarga nos perece doce; sendo breve nos parece eterna; sendo miserável nos parece amável. Sem falar na morte que é a última das coisas temíveis. Na 4ª feira – Nesse dia, pensa na morte. A hora é incerta, o lugar, desconhecido. Pensa na separação dos entes queridos, na perda total dos bens da vida. Na incerteza quanto ao destino final do corpo e da alma. Nas dores das enfermidades, mensageiras da morte. Pensa que terás de dar conta de tua vida e do sangue que Cristo, por ti, derramou. 24 Na 5ª feira – Pensa no juízo final, na sentença definitiva, nos sinais espantosos, que precederão esse dia, na trombeta do Arcanjo que convocará todas as gerações do mundo e na majestade do Juiz, que separará os bons e os maus. Na 6ª feira – Pensa nas penas do inferno, lago escuro e tenebroso, poço profundo cheio de fogo, cidade espantosa que arde em vivas chamas, vozes e gemidos atormentados, com perpétuo choro e ranger de dentes. Todos os sentidos serão castigados, mas maior tristeza é a “pena do dano”, isto é, nunca poder ver a Deus para sempre, eternamente. Deus, o Sumo Bem. Sábado – Pensa na companhia dos Santos, na beleza do ceu, na visão de Deus, no esplendor dos corpos e das almas, no gozo de todos os bens. Domingo – Pensa no amor de Deus para conosco, nos inumeráveis benefícios: a Criação, a Conservação, a Redenção, a Vocação. Deus nos deu a vida e esse mundo cheio de belezas. A Providência divina tudo foi conservando, a nosso serviço. Tendo o homem pecado, Jesus Cristo o redimiu, com sua morte na cruz e sua ressurreição. Quanto à vocação, considera a grande graça do batismo e a participação nos Sacramentos, a graça da fé e da perseverança. Deixamos aqui, para estimular a ler o livro todo, um texto de Pedro de Alcântara sobre a oração de agradecimento: “Dadas sinceramente graças ao Senhor por todos estes benefícios, então, naturalmente, prorrompe o coração naquele afeto do profeta Davi, que diz (Sl.115: 12): O que devo dar ao Senhor por todas as graças que me tem feito? Um homem satisfaz esse desejo, de alguma forma, dando e oferecendo a Deus de sua parte tudo o que tem e pode oferecer-lhe. E isto deve, primeiramente, oferecer-se a si mesmo como escravo perpétuo, resignando-se e pondo-se em suas mãos para fazer dele tudo que quiser, no tempo e na eternidade, e oferecer juntamente todas as suas palavras, ações, pensamentos e trabalhos, que é tudo o que fizer e padecer para que tudo resulte na glória e honra do seu santo nome. O segundo, ofereça ao Pai os méritos e serviços de seu Filho e todos os trabalhos que, neste www.fatea.br/angulo mundo, por sua obediência sofreu desde a manjedoura à cruz, porque são todos bens e herança nossa que Ele nos deixou no Novo Testamento, porque nos fez herdeiros de todo este tesouro tão grande. E assim como não é menos meu o que foi dado de graça e o que eu adquiri com minha lança, assim não são menos os méritos e o direito que me deu como se eu tivesse suado e trabalhado por mim. E para isso, não menos pode o homem oferecer esta segunda oferta como a primeira, contando todos esses serviços e trabalhos e todas as virtudes de sua vida santíssima, sua obediência, paciência, humildade, fidelidade, caridade, sua misericórdia, com todas as outras, porque esta é a oferta mais rica e preciosa que lhe podemos oferecer.”1 REFERÊNCIAS: TERESA D’ ÁVILA, santa, Livro da vida. Tradução e notas de Marcelo Musa Cavallari; prefácio de Frei Beto; introdução de J.M.Cohen. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2010. MARTINHO DE SANTA MARIA, evangelizo.org.19 de outubro de 2011. Jeronymo Ferreira Alves Netto – site – www.ihp.org. br/docs/jfan19991027.htm visitado em dezembro 2012 ALVES NETTO. In: www.lhp.org.br/jfan19991027.htm visitado em dezembro 2012 SAN PEDRO DE ALCÁNTARA, Tratado de la Oración y Meditación, edición preparada por Raquel e. López Ruano, Bilioteca de autores cristianos, Madrid , 2012 IN: http://books.google.com.br/books?id=8DmW 6 e I l O w w C & p g = PA 1 1 & h l = p t - B R & s o u r c e = g b s _ toc_r&cad=4#v=onepage&q&f=false 1 Segue-se nossa tradução: Dadas de todo corazón al Señor las gracias por todos estos beneficios, luego, naturalmente, prorrumpe el corazón en aquel afecto del profeta David, que dice (Sl.115,12): ¿Qué daré yo al Señor por todas las mercedes que me ha hecho? A este deseo satisface el hombre en alguna manera, dando y ofreciendo a Dios de su parte todo lo que tiene y puede ofrecerle. Y para esto primeramente debe ofrecerse a sí mismo por perpetuo esclavo suyo, resignándose y poniéndose en sus manos para que haga de él todo lo que quisiere en tiempo y en eternidad, y ofrecer juntamente todas sus palabras, obras, pensamientos y trabajos, que es todo lo que hiciere y padeciere para que todo sea gloria y honra de su santo nombre. Lo segundo, ofrezca al Padre los méritos y servicios de su Hijo y todos los trabajos que en este mundo por su obediencia padeció dende el pesebre hasta la Cruz, pues todos ellos son hacienda nuestra y herencia que Él nos dejó en el Nuevo Testamento, por el cual nos hizo herederos de todo este gran tesoro. Y así como no es menos mío lo dado de gracia que lo adquirido por mi lanza, así no son menos míos los méritos y el derecho que a mí me dio que si yo los hubiera sudado y trabajado por mí. Y por esto, no menos puede ofrecer el hombre esta segunda ofrenda que la primera, recontando por su orden todos estos servicios y trabajos y todas las virtudes de su vida santísima, su obediencia, su paciencia, su humildad, su fidelidad, su caridad, su misericordia, con todas las demás, porque ésta es la más rica y más preciosa ofrenda que le podemos ofrecer. Ângulo 132, Jan./Mar., 2013. p. 020-025 Convento de S. José. AVILA. O pátio primitivo NOTAS 25