ECOSSISTEMA: UMA VISÃO FILOSÓFICA SEM PURISMOS PAULO DOMENECH ONETO 1 1 – Doutor em Filosofia - UNICE / França e Prof. Bolsista FAPERJ / UGF Resumo O que se pretende é propor um debate em torno da noção de “ecossistema” evitando recair no “conservacionismo” mais óbvio e politicamente correto, deslocando o foco da análise para as condições éticas e políticas que puderam engendrar a situação atual, mas também os movimentos de defesa ecológica. Para tanto importa pôr em evidência os laços entre os problemas do meio ambiente, da produção de subjetividades e das relações sociais – as “três ecologias” de que nos fala Félix Guattari. Assim, a ecologia ambiental é pensada ao lado de uma ecologia mental (termo tomado a Gregory Bateson) e de uma ecologia social. Nesse sentido, mais importante do que insistir com discursos normativos visando estabelecer barreiras para o uso dos recursos do ecossistema, é “desidealizar” a natureza para poder criar instituições capazes de estimular e promover outros tipos de experiência e de relação consigo mesmo, com os outros e com o meio natural – relações baseadas na auto-sustentabilidade. A defesa do ecossistema não é oposta à idéia de desenvolvimento, mas deve vir à luz a partir de uma mudança de enfoque sobre o desenvolvimento que se almeja. Não há nenhum retorno a momentos mais puros da história do uso dos recursos naturais, assim como não deve haver nenhum ideal conservacionista ou protecionista à vida em geral. O que importa é a criação de meios que possam redirecionar o desejo do indivíduo e ajudar na reconstrução das relações deste com outros indivíduos e com a natureza circundante, de modo a impedir o esgotamento da vida no planeta, talvez apenas porque nossas próprias vidas dependem disso. Artigo A violenta aceleração no ritmo das transformações técnico-científicas ao longo dos últimos dois séculos, em particular a partir da segunda revolução industrial (do automóvel e do aço), bem como a crescente evidência quanto à Boletim Interfaces da Psicologia da UFRuralRJ – 1º Seminário – Ano 2007 Página - 27 extensão de seus efeitos sobre a natureza (destacando o impacto sobre o próprio homem), levaram ao aparecimento de um novo tipo de consciência ético-política, voltada mais precisamente para a questão do equilíbrio nas relações do homem com o meio. Nesse sentido, apesar da existência de alguns esboços de reflexão sobre o problema antes do século XX, podemos dizer que a questão do ecossistema é bastante recente. O próprio termo “ecologia” surge apenas em 1866, na obra do biólogo Ernst Haeckel intitulada Morfologia Geral dos Organismos, no intuito específico de designar um novo ramo da ciência biológica. Este ramo trataria do funcionamento da natureza como todo integrado, destacando a relação entre os diversos seres vivos e seus respectivos meios. Introduzia-se um novo objeto de estudo: o ecossistema. A nova ciência ou ramo da biologia receberia uma série de desenvolvimentos posteriores, subdividindo-se em campos mais ou menos restritos como, por exemplo, ecologia marinha, florestal etc., cada qual se dedicando a um ecossistema menor (um sub-ecossistema) do ecossistema Terra. Etimologicamente falando, a ecologia contrasta de imediato com a chamada ciência econômica, pois, em lugar de falar em uma regra (nomos) da “casa” (oikos) ou do sistema em que diversos elementos estão inseridos, remete a uma compreensão global (logos) deste sistema. Tratar-se-ia, justamente, de tentar problematizar a relação do homem com a natureza, ao invés de considerá-la antropocentricamente como “morada do homem”, lugarfonte de recursos para a ação desta espécie em particular. É a partir do momento em que a ação do homem sobre a natureza se revela diferente das ações dos demais seres vivos que a ecologia passa a ser vista como um campo de estudo mais vasto. A singularidade da relação entre homem e ecossistema se manifesta tanto em termos qualitativos quanto quantitativos. Por um lado, é evidente que o impacto da ação humana sobre o meio é muito maior do que o de qualquer outra espécie, o que se dá por alterações diretas sobre o espaço geográfico (mudanças no curso de rios, no relevo, na vegetação etc.), mas também como conseqüência de seu modus vivendi (máquinas que emitem gases, produção de materiais nãobiodegradáveis etc.). É preciso frisar que, de certo modo, isto tudo faz parte da própria evolução histórica do homem. A filosofia alemã contemporânea (na figura de alguém como Karl-Otto Apel, por exemplo) apresenta a situação como fruto de uma separação entre o mundo de nossa percepção (Merkwelt) e o mundo de nossa ação (Wirkwelt), separação que derivaria de uma perda da segurança instintiva do animal humano (processo de hominização). Surge, assim, uma tendência ao desenvolvimento indiscriminado de técnicas e tecnologias. As mediações que o homem cria para viver acabam por ignorar o seu envolvimento real (relação de interdependência) com o meio circundante, como se não houvesse limites na natureza ou como se a pretensa necessidade de garantir determinados ganhos no presente fosse mais importante do que os eventuais limites constatados. A crença moderna no progresso veio reforçar esse problema da sede de garantir ganhos. O próprio capitalismo deve muito a essa crença. Mesmo em nossos dias, após três séculos de variações no modo de produção capitalista, é fácil observar como a idéia desenvolvimentista ainda faz tal sucesso que impede uma crítica mais contundente ao sistema Boletim Interfaces da Psicologia da UFRuralRJ – 1º Seminário – Ano 2007 Página - 28 econômico vigente. A idéia de que haveria outro tipo de mediação humana, demasiado humana (a mediação dos valores morais), capaz de concorrer com os avanços da técnica e conter seus efeitos, parece animar diversas correntes do pensamento alemão contemporâneo (Apel, Habermas, Jonas). Isto os tem levado a defender outras modalidades de fundamentação moral ao invés de investir numa mudança de paradigma ético-estético, como será o caso de alguém como Félix Guattari6. De qualquer modo, vale a pena observar que há, na realidade, duas maneiras de se abordar a ciência econômica: é possível enxergá-la como um tipo de ciência que investiga o melhor modo de explorar a natureza, considerada em sua escassez, a fim de atender as necessidades humanas (visão antropomórfica típica das vertentes clássica e neoclássica); mas também é possível vê-la de modo mais suave, como ciência da produção, organização e distribuição de riquezas. Este segundo modo de abordagem tende a enfatizar mais o homem como homo faber, cuja ação é necessariamente transformadora do meio sem, no entanto, supor que essa ação é maximizadora de resultados (hipótese do homo economicus). Mas é precisamente a ideologia economicista da escassez e da tendência “naturalmente humana” à maximização que acabará por forçar uma ampliação do ramo da ecologia. Do foco sobre a mera questão do funcionamento da natureza com seus diversos ecossistemas passa-se à questão do funcionamento da natureza a ser preservado diante das alterações sensíveis promovidas pela ação humana. O século XX irá, então, retomar e aprofundar esboços de preocupações ecológicas avant la lettre, como as que podem ser divisadas nas obras de Malthus, Marx e até mesmo de um anarquista: Kropotkin (Campos, fábricas e oficinas). É, porém, somente a partir dos primeiros desastres ambientais – decorrentes do avanço cada vez maior do industrialismo, com exploração e uso indiscriminado de recursos naturais novos e desenvolvimento de pesquisas físico-químicas visando à descoberta de outros tipos de fontes energéticas (como o petróleo e o urânio) – que emerge a ecologia como movimento propriamente político. Pode-se dizer que a primeira obra especificamente voltada para a denúncia de destruições da natureza surge apenas em 1962 (Primavera Silenciosa de Rachel Carson). A utilização de agrotóxicos e inseticidas sobre as plantações se torna tema de debate e objeto de investigação. As duas décadas seguintes são marcadas por um questionamento do ethos vigente, estendendo-se das relações entre os homens até a relação entre estes e seu meio natural. O auge disso se dá com a criação de partidos verdes na Europa e movimentos de alcance mundial como o Greenpeace. Tornou-se bastante claro que o homem havia se tornado uma ameaça para o meio-ambiente e, por conseguinte, para si mesmo. De fato, o que o homem põe em risco ao se manter refém de uma ideologia economicista e desenvolvimentista a qualquer preço é o seu futuro. Seria, portanto, essencial pensar em novos meios para rumar em direção a este “futuro”. No entanto, os primeiros defensores da natureza colocaram o foco de suas preocupações apenas na questão da conservação do meio6 Em especial em sua obra As Três Ecologias, de 1989, traduzida no Brasil dois anos depois, pela editora Papirus. Boletim Interfaces da Psicologia da UFRuralRJ – 1º Seminário – Ano 2007 Página - 29 ambiente, tomado como um fim em si mesmo. Eles não propunham nenhum projeto alternativo de desenvolvimento, contentando-se em apontar os males do industrialismo, muitas vezes num tom quase religioso, que ainda pode ser encontrado em nossos dias. Esse tipo de movimento político, cuja preocupação central é apenas a defesa da natureza é denominado “conservacionismo” e deve ser distinguido da ação ecologista que se desenvolveu nos anos 60-70 e que denunciava desastres ecológicos como o da usina norte-americana de Three Mile Island. A diferença entre conservacionismo e ecologismo pode ser esclarecida por meio de uma conhecida metáfora de José Lutzenberger, ecologista brasileiro: suponhamos que nosso modelo atual de desenvolvimento seja uma auto-estrada conduzindo a um abismo. Uma vez que nos conscientizamos desse fato, podemos assumir o compromisso de abandonar a estrada. Podemos abandoná-la (ou até mesmo pararmos no ponto em que estamos), mas seria mais interessante continuar trafegando, só que num outro tipo de estrada, em outras direções. Esta estrada é o que nos cabe criar, para muito além da mera crítica à auto-estrada em que estamos atualmente. É preciso mostrar, ao contrário, que outras estradas ou tipos de desenvolvimento são possíveis. É a isso que se propõe o movimento ecologista. Apesar de suas aparentes “boas intenções”, um conservacionismo radical pode engendrar formas políticas proto-fascistas na medida em que, sob o argumento de “defender a natureza” a qualquer custo, pode conduzir à criação de instrumentos coercitivos absolutos em nome de um ideal de natureza “pura”, intocada. Mas não é apenas esse o perigo. A própria idéia de que “é preciso preservar a vida em geral” pode abrir ainda mais espaço para os atuais imperativos de gestão da vida tão bem criticados por Michel Foucault. Tratar-se-ia de mais uma modalidade de biopoder, cujo efeito é um controle cada vez maior sobre os modos concretos de existência das pessoas. Eis porque é preciso talvez desconfiar também das propostas biocêntricas de pensadores como Pierre Weil. Esse tipo de proposta salta ainda mais aos olhos quando se apresenta revestida de argumento “ético”: ético seriam os valores que tendem a respeitar a vida; não-éticos os que levam à sua destruição. Ora, em primeiro lugar a vida na Terra é uma história de catástrofes em prol de outras formas de vida. De resto, mesmo no universo dos valores humanos mais comuns, não parece razoável que defendamos espécies que transmitem malária, cólera e outras doenças. Na realidade, mesmo a analogia de Lutzenberger nos parece insuficiente como modo de colocar o problema ecológico. Isto porque ela pressupõe que devamos nos preocupar com o futuro. Por que razão exatamente? Nossa civilização pode querer adotar um modo de vida pleno, porém imediatista. Podemos dizer que nem sequer nossos filhos ou netos estão seriamente ameaçados e, então, passarmos o problema para gerações mais à frente, afirmando que elas serão capazes, talvez, de resolvê-lo à sua maneira num outro contexto. Por que não? Podemos argumentar, de maneira um pouco irônica, com a frase de Keynes: “no futuro estaremos todos mortos”. Ora, a questão fundamental não parece ser efetivamente a de estarmos ou não pondo em risco o futuro da vida na Terra, e sim a da qualidade de nossas vidas no presente. E a questão ética nunca é simplesmente a de Boletim Interfaces da Psicologia da UFRuralRJ – 1º Seminário – Ano 2007 Página - 30 encontrar um núcleo fundamental para nossas ações e, a partir daí, traçar limites para tipos de ação que não condigam com o núcleo identificado. Isto não é ética. O que é efetivamente ético – e é curioso observar que, etimologicamente, a palavra ethos intersecta o oikos da ecologia, pois também indica “morada” – é buscar compreender (no sentido de incluir, acolher, como um conjunto matemático compreende elementos, como uma morada nos acolhe) nossas ações para redirecioná-las. E, nesse âmbito, são duas as contribuições recentes que destacamos como as mais importantes para recolocarmos o problema dos diversos escossistemas e da ecologia em geral. Mais do que discutir essas contribuições, o que nos interessa aqui é deixá-las indicadas como referência para uma visão filosófica do problema sem os “purismos” conservacionistas ou moralistas (em nome de um biocentrismo – como afirma Nietzsche: “a vida na é argumento”). As contribuições a que nos referimos são: o já mencionado As Três Ecologias (1989), de Félix Guattari, e O Contrato Natural (1990) de Michel Serres7. Enquanto na primeira obra, trata-se de tentar uma reflexão sobre a recomposição dos objetivos e métodos do uso humano da natureza nas condições atuais com base nas suas relações consigo mesmo e com o meio social; no segundo livro, de autoria de Serres, utiliza-se um recurso metodológico bastante engenhoso, que consiste em pressupor – a exemplo da hipótese do contrato social de Rousseau para a origem ou fundamento da sociedade política – um contrato implícito entre cada ser vivo e a natureza. Esse contrato é um pacto de equilíbrio e sustentabilidade que inclui a natureza, como sujeito de direito. Ele é deduzido de uma visão sobre a vida na Terra que dificilmente pode ser questionada, por ser a própria raiz da definição de ecossistema: a que enxerga a natureza como todo integrado, em que cada um de seus componentes depende de todos os demais componentes (todos são sujeitos). Muito resumidamente, o que decorre dessas duas contribuições é: por um lado, a inserção da questão ambiental num contexto muito mais amplo, pois, afinal, “a deterioração dos ecossistemas vai de par com a deterioração de modos de vida individuais e coletivos” (Guattari); por outro, a ênfase na questão de geração de equilíbrios de forças (Serres). Podemos dizer, unindo as principias teses das duas obras, e a guisa de conclusão, que o hipotético “contrato natural” que garante a vida na Terra só pode ser mantido ou restabelecido a partir de uma consideração da articulação entre os três domínios de uma compreensão ampla do que vem a ser nossas “casas” ou “moradas” (uma ecosofia): ecologia ambiental, social e mental. O primeiro domínio é obviamente o que trata da nossa relação com o meio-ambiente. Mas ele depende da ecologia social que trata das relações humanas no seio da coletividade e da ecologia mental que trata da relação da consciência com o corpo. A idéia, então, é agir filosófica e politicamente no sentido de: a) compreender nossas reais motivações para agirmos como agimos diante da natureza; b) a partir daí, definir novos métodos e objetivos num nível global; c) criar instituições que possam vir a promover outros tipos de 7 Livro de 1990, traduzido no Brasil pela Cia das Letras. Boletim Interfaces da Psicologia da UFRuralRJ – 1º Seminário – Ano 2007 Página - 31 experiência e de relação, de tipo auto-sutentável – noção que se refere ao presente, sem o qual o futuro é apenas um ideal. Esse tipo de proposta – que enfatiza a indagação acerca de nossos desejos, a problematização acerca do que vem a ser desenvolvimento e seu valor, a criação de novos meios capazes de competir com os meios atualmente em vigor – se opõe às visões reativas e puristas que ainda predominam no discurso ecológico. Não há nela nenhuma visão nostálgica acerca da natureza. A natureza é o que está para ser permanentemente reconstruído, sempre, em função das novas ações que não param de se dar em seu interior. Não há tampouco nenhum afã regulador na proposta. O discurso normativista por mais leis e por instituições cerceadoras é visto como inócuo a longo prazo, além de ser dogmático ao pretender que sabe o que é natural. Abrir uma trilha no meio do mato para que um homem possa passar e buscar alimento é tão natural quanto o mato que ali está. Mas mesmo que saibamos distinguir claramente entre deterioração absoluta e relativa; mesmo que consigamos criar normas reguladoras da ação humana sobre o meio-ambiente, leis e punições para os desastres que continuam a ser perpetrados; cabe ainda uma pergunta: o que fazer para que não se deseje deteriorar? para que haja menos necessidade de regulação e fiscalização? para que outros tipos de relação com nosso próprio corpo e com os outros homens possam brotar, a ponto de invalidar a própria lógica social que hoje predomina: assentada na figura do homo economicus? Pois, como observa Guattari: “não faltam meios (inclusive legais) para responder à deterioração propriamente ecológica. Falta o élan para que formações subjetivas e organizações sociais possam se apropriar dos meios”. Em suma, o que está em jogo é nossa capacidade de reconstituir nossos componentes de subjetivação e nossas relações sociais. Só assim poderemos repensar adequadamente nossa relação com o meio-ambiente específico em que vivemos e com a natureza em geral. BIBLIOGRAFIA GUATTARI, F. Les Trois écologies. Paris : Galilée, 1989. SERRES, Michel. Le Contrat naturel. Paris : François Bourin, 1990. Boletim Interfaces da Psicologia da UFRuralRJ – 1º Seminário – Ano 2007 Página - 32