saiba+ edição 9 – ano 3 – novembro de 2013 prática clínica Em casos de diarreia, quando e como investigar? Associada a inúmeras condições, os testes laboratoriais, em conjunto com o quadro clínico, auxiliam na investigação de sua etiologia. Considerada um sinal que pode ter uma variedade de causas, a diarreia é classificada como aguda (DA), quando tem duração igual ou inferior a 14 dias, e crônica (DC), quando persiste por mais de 30 dias ou quando ocorrem três ou mais episódios em um período de dois meses. Se o quadro agudo se estende por mais de 14 dias, caracteriza-se como diarreia persistente. Diarreia aguda Caracterizada, geralmente, por episódios autolimitados e de etiologia infecciosa, um dos principais desafios para o médico é decidir quando submeter o paciente a uma investigação mais específica. Alguns dados da história clínica auxiliam na investigação da DA: • Características das evacuações, como frequência, aspecto das fezes, presença de sangue, muco ou pus e sintomas sistêmicos associados; • História alimentar; • Contato com pessoas doentes; • Presença de comorbidades e uso de medicamentos, incluindo antimicrobianos; • Viagens recentes. Sugere-se a investigação do quadro agudo com exames laboratoriais nas seguintes situações: • Pacientes idosos ou imunocomprometidos; • Diarreia sanguinolenta ou hematoquezia; • Dor abdominal intensa; • História de uso recente de antimicrobianos; • Doença inflamatória intestinal suspeita ou conhecida; • Epidemiologia para algum agente infeccioso ou identificação de surto. Vírus Parasitas Bactérias Adenovírus entéricos Balantidium coli Aeromonas Astrovírus Blastocystis hominis Bacillus cereus Calicivírus Cryptosporidium parvum Campylobacter jejuni Citomegalovírus Cyclospora cayetanensis Clostridium difficile Norovírus Entamoeba histolytica Clostridium perfringens Rotavírus Giardia lamblia Escherichia coli Isospora beli Plesiomonas shigelloides Strongyloides stercoralis Salmonella spp Trichuris trichiura Shigella spp Staphylococcus aureus Yersinia enterocolitica doença celíaca amais_boletim_novembro.indd 1 intolerância à lactose Foto: CDC Agentes associados à diarreia aguda Microscopia eletrônica de varredura revela imagem de colônia da Escherichia coli enterro-hemorrágica – cepa O157:H7. amebíase 11/11/2013 14:35:50 prática clínica Passo a passo na investigação da diarreia crônica Ao contrário da DA, a DC não tem resolução espontânea e apresenta um amplo rol de causas associadas, o que requer uma avaliação específica. O início da investigação envolve uma história clínica e exame físico detalhados. As seguintes informações são essenciais ao raciocínio diagnóstico: • • • • • • • Triagem para diarreia crônica Cronologia dos sintomas, correlacionando-os com mudanças na alimentação e/ou estilo de vida; Uso de medicamentos, incluindo antimicrobianos; Presença de comorbidades, assim como, história de cirurgias pregressas; Características das fezes, como presença de sangue e muco, volume e consistência, além do padrão da diarreia (contínua ou intermitente); Sintomas sistêmicos associados como febre, astenia, perda de peso, dor abdominal, alteração do apetite, sangramentos, edema; Presença de infecções de repetição; Viagens recentes. Diarreia inflamatória Caracterizada, principalmente, por fezes de pouco volume e sanguinolentas, é, de modo geral, acompanhada por febre, dor abdominal e tenesmo. Os principais diagnósticos diferenciais são quadros infecciosos, doença inflamatória intestinal, alergia à proteína do leite de vaca (lactentes) e neoplasias. Como avaliar o processo inflamatório da mucosa intestinal Pesquisa de sangue oculto nas fezes (SOF): exame útil para o diagnóstico de sangramentos provenientes do intestino grosso, não visíveis nas fezes. Dosagem de alfa-1 antitripsina fecal (A1ATF): é uma proteína excretada íntegra nas fezes e um bom marcador para perdas proteicas intestinais e processos inflamatórios da mucosa intestinal. Dosagem de calprotectina nas fezes (CF): proteína ligadora de cálcio e zinco, abundante nos neutrófilos e muito estável nas fezes, bom marcador de processo inflamatório da mucosa do trato gastrointestinal e útil no diagnóstico diferencial de síndrome do intestino irritável e doença inflamatória intestinal. amais_boletim_novembro.indd 2 O exame coprológico é um conjunto de testes úteis na triagem para investigação da diarreia crônica. Atualmente é composto pela pesquisa de sangue oculto, dosagem de alfa-1 antitripsina, pesquisa de gordura, parasitológico e pH fecal. Em uma única amostra de fezes pode ser feita a avaliação conjunta desses exames, importantes na diferenciação de quadros funcionais e orgânicos e na avaliação da presença ou não de má-absorção, direcionando posteriormente para exames mais específicos que levarão ao diagnóstico. Infecção por Clostridium difficile Bactéria produtora de toxinas patogênicas, é responsável por quase a totalidade dos casos de colite pseudomembranosa e por até 20% dos casos de diarreia associada ao uso de antimicrobianos. O método considerado padrão-ouro para o diagnóstico do C. difficile é a cultura toxigênica, mas, em decorrência do tempo necessário para a liberação do resultado – de três a cinco dias – , o teste tem sido pouco solicitado na prática clínica. Com execução mais rápida, a pesquisa das toxinas A e B nas fezes, realizada por teste imunoenzimático, utilizando anticorpos monoclonais, tem sensibilidade mais baixa, mas alcança 98% de especificidade. Propiciando agilidade e mais acurácia ao diagnóstico, é possível realizar a pesquisa do DNA do C. difficile nas fezes por PCR em tempo real – método que permite extrair ácido nucleico diretamente da amostra clínica, assim como, amplificar e quantificar simultaneamente os genes que codificam as toxinas A e B, possibilitando a liberação rápida do resultado. Nos casos em que a pesquisa das toxinas ou o exame por PCR em tempo real forem negativos, mas persistir a suspeita clínica, a cultura de fezes com teste de toxigenicidade é recomendada para confirmação diagnóstica. 11/11/2013 14:35:50 Esteatorreia Associada a fezes volumosas, com alto teor de gordura, está geralmente relacionada com quadros de má-absorção ou má-digestão. Entre os principais diagnósticos diferenciais estão a doença celíaca, a insuficiência pancreática exócrina (incluindo aquela associada à fibrose cística) e a alteração na concentração duodenal de sais biliares. Como avaliar a perda de gordura nas fezes Determinação quantitativa de gordura nas fezes: realizado em material fecal colhido durante 72 horas, após dieta com sobrecarga de gordura, é um teste de triagem para investigação das síndromes de má absorção de origem pancreática ou duodenal. Em adultos, valores acima de 7 gramas de gordura em 24 horas sugerem esteatorreia. Dosagem de elastase nas fezes: útil para diferenciar entre esteatorreia de origem pancreática ou duodenal, pois reflete a capacidade secretória do pâncreas. Níveis de elastase nas fezes abaixo do valor de referência sugerem insuficiência pancreática exócrina. Doença celíaca – intolerância permanente ao glúten Caracterizada por atrofia total ou subtotal da mucosa do intestino delgado proximal, levando à má-absorção, na sua forma típica é uma causa de diarreia crônica. Os marcadores sorológicos – anticorpos antiendomísio e antitransglutaminase – são testes não invasivos com alta sensibilidade e especificidade e atualmente preconizados como diagnóstico da doença celíaca, quando positivos em títulos elevados – salvo exceções, quando a confirmação será necessária com a realização de endoscopia e biópsia de intestino delgado, para avaliação histológica da mucosa. Os anticorpos são também úteis para acompanhamento terapêutico já que, em pacientes celíacos, elevam-se com a ingestão de glúten e caem com a dieta isenta. Ademais, por meio de exame do sangue periférico, é possível realizar a genotipagem do HLA e determinar se o paciente apresenta os heterodímeros DQ2 e DQ8, associados à doença. Sabe-se que 98% dos portadores de doença celíaca apresentam DQ2 e/ou DQ8. Por outro lado, é importante frisar que esses alelos não são raros na população geral, ou seja, a ausência de ambos os alelos torna muito improvável esse diagnóstico, enquanto que a presença destes não permite a confirmação. Diarreia aquosa Caracterizada por fezes líquidas, pode ser classificada como osmótica ou secretória. Entre os principais diagnósticos diferenciais estão o uso de medicamentos laxativos, a intolerância à lactose, os quadros infecciosos e as neoplasias (carcinoma de cólon, linfoma, tumores neuroendócrinos). Intolerância à lactose – deficiência enzimática com alta prevalência em adultos A lactose é um dissacarídeo abundante no leite humano e no de outros mamíferos. Para sua absorção, deve ser digerida em monossacarídeos, a glicose e a galactose, por meio da ação da lactase, enzima presente nas microvilosidades dos enterócitos. A deficiência da lactase leva à má digestão da lactose, com consequente acúmulo desse açúcar na luz intestinal, onde tem um efeito osmótico, resultando em aumento local de água, aceleração secundária do trânsito e diarreia. As manifestações clínicas dependem, principalmente, da quantidade de lactose ingerida. Apesar dos sintomas, a correlação entre o relato de intolerância à lactose pelos pacientes e o diagnóstico é pobre. Assim, não se recomenda o início de uma dieta de exclusão de leite baseada apenas na história clínica, pois isso pode acarretar uma diminuição da ingesta de cálcio com prejuízo para o paciente. Entre os exames disponíveis para o diagnóstico, a dosagem de lactase na mucosa duodenal, em fragmento colhido por endoscopia, tem sensibilidade de 95% e especificidade de 100%. No entanto, por ser um exame invasivo, é pouco utilizado. Na prática, pode-se medir indiretamente a capacidade de digestão desse carboidrato. Conhecido como teste de absorção da lactose, esse exame consiste na ingestão de uma quantidade fixa do dissacarídeo, com dosagem da glicemia antes e depois da ingesta. O indivíduo capaz de digerir a lactose apresenta um incremento de pelo menos 20 mg/dL na glicemia em relação ao valor basal. amais_boletim_novembro.indd 3 11/11/2013 14:35:54 serviços À procura do agente etiológico na diarreia infecciosa A determinação do patógeno associada ao quadro pode auxiliar na decisão terapêutica. A pesquisa do agente infeccioso é importante em pacientes nos quais a intervenção com medicamentos antimicrobianos pode ser necessária, como imunocomprometidos, desnutridos graves, lactentes jovens e idosos ou se em algum momento da evolução houver a suspeita de infecção sistêmica. Os testes laboratoriais que podem ajudar na elucidação desse agente são: Cultura de fezes: útil na identificação de bactérias enteropatogênicas. A cultura de fezes inclui a pesquisa de diversos agentes como E.coli enteroinvasora, E.coli enteropatogênica clássica, E.coli entero-hemorrágica, Salmonella spp., Shigella spp., Campylobacter spp., entre outros. A pesquisa de alguns patógenos, como Yersinia spp., Vibrio cholerae e E.coli enterotoxigênica, deve ser solicitada separadamente, pois implica métodos especiais para isolamento e identificação. Pesquisa de Rotavírus e Adenovírus nas fezes: realizado por imunocromatografia, o teste tem sensibilidade e especificidade para Rotavírus de 96,3% e 97,2%, respectivamente. Para o Adenovírus, a sensibilidade atinge 87,4% e a especificidade 98,6%. A identificação desses vírus nas fezes permite o diagnóstico etiológico precoce, evitando, assim, o uso desnecessário de antimicrobianos e orientando medidas epidemiológicas adequadas. Pesquisa de Norovírus nas fezes: realizada por PCR em tempo real, que é considerada o padrão-ouro para o diagnóstico desse agente. Como tem baixa dose infectante e é resistente ao pH gástrico, o Norovírus está associado a surtos onde há concentração de pessoas em áreas de tamanho reduzido, como casas para idosos, reuniões para festividades, navios de cruzeiro, entre outros. Amebíase A ingestão dos cistos viáveis da Entamoeba histolytica causa a infecção, mas o trofozoíto é a forma capaz de invadir a mucosa intestinal, levando à colite amebiana aguda. A infestação atinge cerca de 10% da população mundial, mas a maioria dos indivíduos portadores é assintomática. Foto: CDC Na maioria dos casos, o diagnóstico etiológico presuntivo pode ser estabelecido a partir de indícios epidemiológicos, das manifestações clínicas, do exame físico e do conhecimento dos mecanismos fisiopatológicos dos enteropatógenos. Micrografia revela Entamoeba histolytica-trofozoíto. Como fazer o diagnóstico • Exame parasitológico de fezes e pesquisa dos trofozoítos: o exame parasitológico de rotina é capaz de detectar apenas as formas císticas – a pesquisa de trofozoítos é realizada pela coloração tricromática de Wheatley. Esses exames não permitem diferenciar a E. histolytica da E. dispar, não patogênica, visto que, ao exame microscópico, essas duas espécies de ameba são morfologicamente idênticas. Um único resultado negativo não afasta a possibilidade da infecção, razão pela qual devem ser examinadas três ou mais amostras. • Pesquisa do antígeno da Entamoeba histolytica nas fezes: realizado por ensaio imunoenzimático, o método é capaz de diferenciar a infecção causada pela E. histolytica da E. dispar. Apesar da alta sensibilidade do exame, na presença de níveis do antígeno abaixo de seu limite de detecção, resultados falso-negativos podem ocorrer – na suspeita clínica, recomenda-se fazer coletas seriadas. Não há descrição de reação cruzada com outros parasitas. • Sorologia: realizada por ensaio imunoenzimático, um teste positivo sugere infecção atual ou pregressa pela E. histolytica. saiba+ é uma publicação da a+ medicina diagnóstica • Responsável técnico: Dr. Celso Francisco Hernandes Granato (CRM 34.307) • Editora científica: Dra. Fernanda Aimée Nobre • Apoio editorial: Denise Rosa Ora • Produção gráfica: Solange Mattenhauer Candido • Impressão: Pigma • Contribuíram com esta edição: Dra. Márcia Wehba Esteves Cavichio, assessora médica em Gastroenterologia, Dr. Celso F. H. Granato e Dra. Carolina do Santos Lázari, assessores médicos em Infectologia e Dr. Jorge Luiz Mello Sampaio, assessor médico em Microbiologia e Parasitologia do Grupo Fleury. Assessoria técnica SP: [email protected] RJ: [email protected] amais_boletim_novembro.indd 4 PE: [email protected] BA: [email protected] RS: [email protected] PR: [email protected] 11/11/2013 14:35:55