BRAPHUPADA FOI ANÍBAL BARCA E SÊNECA Luiz Guilherme Marques 1 As revelações sobre vidas passadas podem acontecer de muitas maneiras, mas é sempre bom conferir os dados para não “embarcarmos em canoa furada”, afirmando situações que podem nos levar ao ridículo. Acontece que um espírito que se manifestou por meu intermédio ontem disse que Prabhupada, o grande guru indiano, que morreu envenenado há poucos anos atrás, foi Aníbal Barca, o militar e político cartaginês que suicidou por envenenamento há cerca de vinte e dois séculos atrás. De início procurei na Internet algum retrato de Aníbal e encontrei a estátua acima. Abaixo mostro uma fotografia de Prabhupada para vocês, prezados leitores, fazerem a comparação. 2 Um militar e político tornar-se, em relativamente pouco tempo, líder religioso pode parecer impossível para quem olha tudo com olhos da desconfiança ou faz uma pesquisa superficial, sem enxergar nas entrelinhas das informações que vai coletando. Mas é preciso, para quem quer conhecer a verdade, aprofundar realmente a análise primeiro sobre a “índole” desse homem extraordinário naquele tempo em que a brutalidade era muito maior do que hoje. Não era um brutamontes, mas um homem instruído, versado em vários idiomas, tendo escrito um livro de História, era adepto do estoicismo, segundo o qual a autodisciplina interior é regra inderrogável, e viveu modestamente, primando sempre por intenções nobres, mas, infelizmente, por uma visão equivocada do que se deve entender como “dever”, terminou por suicidar, porque não queria que os romanos, que tanto o odiavam, porque Cartago e Roma eram países inimigos, perdessem tempo com um velho que não podia mais guerrear contra eles. Infelizmente, o que a maioria dos historiadores e biógrafos registrou e faz questão de ressaltar são as guerras que Aníbal vivenciou e estratégias que utilizou, ora saindo vitorioso ora derrotado. 3 A leitura de suas biografias e as referências que a ele se faz se tornam fastidiosas pelo detalhamento entusiasta e incomodativo das guerras e estratégias. Sua verdadeira face era a de um homem dedicado à evolução da humanidade. As conjunturas daquele momento histórico é que o levaram a guerrear, pois Roma não sossegou enquanto não arrasou Cartago. Agora vamos dar um pulo de dois milênios e dois séculos para a frente, quando vamos encontrar Prabhupada tentando encaminhar para a ponderação drogados e desajustados de vários tipos sobretudo na nova Roma, que são os Estados Unidos. Como Aníbal tentou conter o imperialismo avassalador dos romanos. Foi criticado pelos estrategistas frios, porque, depois de vencer o exército romano, na Segunda Guerra Púnica, não invadiu e destruiu a capital do inimigo, mas sim desviou-se para cumprir outra meta, que era enfraquecer lhe o poderio, sem destruir sua capital. Com essa benevolência acabou permitindo que o poderoso adversário ganhasse forças e viesse, daí a algum tempo, a destruir Cartago. A coragem de peito aberto e que quer apenas neutralizar o inimigo, sem o destruir, 4 perdeu para a mentalidade vingativa e traiçoeira. São coisas deste mundo onde a perversidade ainda domina. Deu para entender, prezados leitores? Como Prabhupada cuidou do que muitos chamariam de “restolhos podres” do imperialismo cruel, ou seja, os egressos das guerras e os perturbados de vários tipos, de que a sociedade americana está cheia e que considera como carga desagradável, da qual se livraria, se pudesse, com a maior satisfação. Mas, em outra ocasião, foi-nos revelado, através da nossa própria mediunidade, que esse espírito missionário, dos mais evoluídos que a terra tem a honra de contar entre seus habitantes, tinha sido o filósofo estoico e político romano Sêneca, que viveu cerca de dois séculos depois da encarnação como Aníbal e, nessa oportunidade, depois de uma vida cheia de realizações nobres, foi obrigado a suicidar por ordem do imperador Nero, de quem tinha sido preceptor. Essa outra afirmação causa-lhes estranheza mais uma vez, prezados leitores? Vamos transcrever primeiro o que a Wikipédia registra sobre Aníbal Barca. 5 Se acharem que a citação é cansativa podem ir pulando as referências que não lhes interessarem. Depois vamos transcrever o texto intitulado SÊNECA E PRABHUPADA, O MESMO MESTRE E SEUS ENSINAMENTOS Luiz Guilherme Marques Vera Lúcia Ribeiro Rodrigues Frases de Clay Newman: ―Há uma grande diferença entre existir e estar vivo.‖ ―A primeira vez que me embebedei tinha 14 anos. A primeira vez que fumei um baseado, 15 e meio. A primeira vez que fui preso, 16, quase 17. A primeira vez que tomei meu primeiro antidepressivo, 18 recém-completados.‖ Frase de Sêneca: ―A sabedoria é o único remédio que cura as doenças da alma.‖ Frases dos autores: ―O único fator que define a conduta de cada ser humano são suas intenções e elas é que proporcionam a felicidade ou a infelicidade.‖ 6 ―Não olhamos em função de uma única vida, mas sim da ideia de eternidade.‖ Frases de Prabhupada: ―Vida simples, pensamento elevado.‖ ―A pureza é a força.‖ ÍNDICE Introdução 1. A ideologia de Sêneca 1.1 – Honestidade 1.2 – Humildade 1.3 – Autoconhecimento 1.4 – Consciência 1.5 – Energia 1.6 – Silêncio 1.7 – Auto aceitação 1.8 – Responsabilidade 1.9 – Proatividade 1.10 – Compaixão 1.11 – Perdão 1.12 – Desapego 1.13 – Assertividade 1.14 – Aceitação dos outros 1.15 – Evolução 1.16 – Correspondência 1.17 – Equanimidade 1.18 – Gratidão 1.19 – Confiança 7 1.20 – Obediência 1.21 – Aceitação da realidade 2. A ideologia de Prabhupada 3. A mesma base ideológica Notas INTRODUÇÃO Este livro não pretende retratar as biografias de Sêneca [1] e de Prabhupada [2] no sentido de relato detalhado de fatos e ideias relacionados com esses dois homens, que, aparentemente, nada têm a ver um com o outro. Uma pessoa que leia a biografia de um e do outro sem a ideia de unidade que caracteriza o nosso estudo, achará que estamos forçando uma similaridade inexistente. Todavia, através da percepção extrasensorial, viemos a tomar ciência de que são a mesma individualidade espiritiual em duas épocas e locais diferentes, com o mesmo propósito de instruir as criaturas terráqueas sobre a necessidade do auto aperfeiçoamento espiritual. Muitas das circunstâncias da biografia de um e do outro se devem às peculiaridades do meio onde viveram e da 8 própria necessidade de utilizarem as ferramentas disponíveis no momento. Não se deve achar que a biografia de um deva repetir exatamente a do outro. Também temos de considerar que inclusive os mestres evoluem enquanto desempenham suas missões. Queremos esclarecer, também, que, da vida de Sêneca, interessa-nos apenas o que ele realizou em função da aplicação da Ciência Secreta [3] que aprendeu no Egito, restringindo-nos aos seus ensinamentos relacionados com esse tema. Seus textos de Filosofia e de Literatura não ligados diretamente à Ciência Secreta estão fora de cogitação para efeito deste nosso estudo. Quanto a Prabhupada, igualmente importam-nos apenas o seu trabalho e o seu esforço de divulgar a ideologia de Krishna [4]. Sêneca cumpriu sua missão em Roma e Prabhupada nos Estados Unidos. Os prezados leitores podem não enxergar a correlação entre a Roma antiga e os USA, mas a verdade é que os remanescentes dos antigos romanos são os atuais estadunidenses, além dos britânicos. 9 Muitos daqueles que tiveram a oportunidade de conviver com Sêneca e ouvir seus ensinamentos são os mesmos que ouviram Prabhupada, dos quais um foi quem o envenenou. As vidas que esse grande trabalhador da Luz viveu entre uma encarnação e outra não serão abordadas aqui. Alguns seguidores de Prabhupada estranharão nossa afirmativa de que ele foi um romano em época passada, mas o mestre não está obrigado a seguir ―ad aeternum‖ uma única linha de trabalho e pensamento e, muito menos, encarnar num único país, mas sim muda suas áreas e locais de atuação conforme planos estabelecidos pelo Conselho Cármico, no caso da Terra. Entenda-se que o Conselho Cármico é a equipe de 42 espíritos superiores, que, sob o comando de Jesus, dirige os destinos da Terra. Atualmente há uma tendência a valorizar-se novamente Sêneca, mas somente há um ou outro admirador desse grande mestre como tal, dentre os quais o psicólogo americano Clay Newman, enquanto que os seguidores de Prabhupada contam-se aos milhões, 10 principalmente os que se autoqualificam de adeptos do Hare Krishna. É importante ficar bem claro que Sêneca procurou ensinar não o Estoicismo [5] no sentido restritivo de vitimismo que lhe deram muitas mentes confusas e outras mal intencionadas, ou seja, a renúncia forçada e antinatural ao que é necessário para se viver em condições razoáveis. Ele ensinou e exemplificou que a vida deve ter como objetivo maior a evolução espiritual própria e a contribuição à dos outros. O ser humano, segundo ensinou, deve viver em função desse objetivo, independente de ser rico ou pobre, instruído ou analfabeto, sacrificado pela maldade alheia ou benquisto pelos que lhe compõem o ―entourage‖. As deturpações que muitos filósofos e religiosos pregam, em nome do Estoicismo, com o isolamento da sociedade, autopunições etc., não têm nada a ver com a ideologia ensinada por Sêneca. Se houve ou há estoicos extremistas isso não tem nada a ver com Sêneca: deve ficar bem claro. 11 Quanto a Prabhupada igualmente priorizou o auto aprimoramento espiritual, apesar de que há alguns discípulos que acreditam que ele focou, como meta máxima, a alimentação não carnívora. Nosso objetivo não é atacar nenhuma forma de crença, mas sim deixar claro o que esse mestre quis ensinar nas duas épocas. Sempre seu público-alvo foi o mesmo, ou seja, os decadentes romanos de antigamente e de hoje. Por isso, a enorme quantidade de aderentes dependentes químicos ou dominados por outros vícios igualmente escravizantes. O nível espiritual desse trabalhador da Luz pode ser medido pelo grau de dificuldade das suas missões. Sêneca estudou no Egito do seu tempo a Ciência Secreta e Prabhupada estudou o Hinduísmo [6] (com profundidade) na Índia. As duas ramificações do Conhecimento são, na verdade, uma só árvore, mudando apenas os nomes utilizados por uma e pela outra. Os prezados leitores podem observar que muito se escreveu sobre Sêneca, mas 12 ninguém, pelo que conseguimos verificar, abordou a mensagem principal da sua vida, que foi baseada na Ciência Secreta. Essa omissão é que pretendemos suprir através deste livro. Os temas mais relevantes abordados pelo mestre foram abafados, esquecidos e muitos engrandeceram justamente aquilo que ele compôs como mero complemento da sua obra notável. Já Prabhupada concentrou sua atenção apenas na divulgação da ideologia de Krishna, no que fez melhor do que Sêneca, que misturou ―alhos com bugalhos‖ e isso possibilitou que as Trevas colocassem em foco o que menos valia na sua obra. Hoje em dia, Sêneca é lembrado apenas como um filósofo estoico, de fisionomia triste, que ele, na verdade, não tinha. Apenas como lembrete final desta introdução, temos a dizer aos prezados leitores que nosso objetivo não é outro que transmitir-lhes os ensinamentos desse mestre. Se o fez como Sêneca ou como Prabhupada não importa. O que vale é conhecer e aplicar as lições. Da mesma forma diríamos que também não faz diferença se foi ele quem abordou, 13 de forma sábia, esses tópicos ou se foi outro. A Verdade é que interessa, mas a Verdade a que Jesus se referiu quando disse: ―Conhecereis a Verdade e a Verdade vos libertará.‖ Estamos ―forçando a barra‖ com esta tese? Os prezados leitores irão avaliar e desejamos que aproveite bastante estas informações para sua vida diária, pois este estudo não é mera teorização, mas visa ser útil para o aperfeiçoamento espiritual de cada um, a começar pelo nosso. Os autores 1. A IDEOLOGIA DE SÊNECA Tentar resumir tudo de mais importante que Sêneca ensinou é uma tarefa hercúlea, mas há quem tenha feito isso e é justamente o autor a quem nos referimos linhas atrás: Clay Newman, que escreveu ―Mais Sêneca, Menos Prozac‖, publicado no Brasil pela Editora Best Seller, em 2015. Típico seguidor de Sêneca (portanto daqueles do público alvo de Prabhupada), relaciona vinte e um itens como 14 importantes no processo de aprimoramento espiritual. Tomaremos, como ponto de referência, como base, em linhas gerais, sua obra. Então, vamos adiante. 1.1 – HONESTIDADE A honestidade tem tudo a ver com a ideia de intenção. Não Queremos valorizar a honestidade aparente, aquela que se faz apresentar com a máscara da virtude, mas costuma representar um simulacro. Essa não resolve os problemas internos do ser humano. A única honestidade que dá a paz da consciência é aquela baseada na intenção pura. Atentemos sempre para as nossas verdadeiras e mais profundas intenções. 15 Só é realmente feliz que tem intenções puras. 1.2 – HUMILDADE Humildade nada tem a ver com andar esfarrapada, pedir desculpas por tudo que faz e outras atitudes de aparente humildade. Humilde é que, mesmo sabendo das próprias virtudes, inteligência e superioridade, não se prevalece disso para humilhar as outras criaturas. A pessoa humildade pode ser firme e até incisiva quando tal se faz necessário, mas nunca transforma essas oportunidades em pretexto para arrasar a autoestima de ninguém. 1.3 – AUTOCONHECIMENTO Ninguém precisa, necessariamente, conhecer suas vidas passadas para autoconhecer-se no sentido comum da palavra. O bom senso e a humildade nos mostram quem somos, ou seja, qual o nosso nível de inteligência e quais são nossas virtudes e nossos defeitos. 16 Há muito exagero e muita desinformação quanto ao que diz respeito ao autoconhecimento. Basta ter vontade sincera de autoanalisar-se para chegar-se à verdade sobre si mesmo. Mas há quem fique chocado com o que descobriu sobre si mesmo e desiste de continuar a procura do autoconhecimento. A pessoa tem de baixar o próprio ego e seguir adiante, auto avaliando-se para poder superar os defeitos e aperfeiçoar as próprias virtudes. Para isso tem de ter coragem e verdadeira humildade. 1.4 – CONSCIÊNCIA Estar seguro de que pretende aperfeiçoarse como ser humano significa ter consciência da sua condição de espírito eterno. Não somos o corpo, apesar de ele ser importante para nossa vida neste planeta. Devemos cuidar dele, mas não sermos seu escravo. 1.5 – ENERGIA Não queremos nos referir apenas à energia no sentido de força de vontade, 17 mas principalmente à substância eterizada que cada criatura tem em si e que pode ser direcionada a outras criaturas para ajudálas inclusive na cura. Toda criatura tem essa energia a que nos referimos e, pelo direcionamento que a vontade lhe dá, transforma-se em importante ferramenta para o aperfeiçoamento e a cura alheios. Aprender a usar essa ferramenta no Bem é muito importante até para a gente gozar de boa saúde, pois essa energia tem de circular de criatura para criatura. Quem não a doa aos outros acaba adoecendo. O egoísmo é altamente prejudicial até para a própria saúde física e espiritual. 1.6 – SILÊNCIO Nem sempre se devem rebater os pontos de vista alheios. Há ocasiões em que se deve esperar que o tempo esclareça o impetuoso, o agressivo e o inconsequente. Nós mesmos devemos silenciar muitas vezes ao invés de falarmos, porque a palavra, depois de proferida, não volta à boca de quem a falou. 18 Há uma sequência muito boa: ―silenciar, observar e agir.‖ Isso é sabedoria. Infelizmente, pouca gente procede dessa maneira. 1.7 – AUTOACEITAÇÃO Auto aceitação não significa acomodação, mas sim conformar-se com o que não pode ser mudado em si. Nem tudo conseguimos aperfeiçoar em nós e devemos saber aceitar nossos limites. Querer o impossível e sofrer por isso é sinal de falta de inteligência e, sobretudo, hipertrofia do ego. 1.8 – RESPONSABILIDADE Responsabilidade significa assunção do compromisso de realizar o que nos compete. Querer eximir-se das próprias responsabilidades com desculpismos é uma das piores opções que podemos adotar. Quem pretende evoluir desse procurar cumprir o que lhe deve e levar adiante 19 suas tarefas, sem procrastinações nem desculpismos ou vitimismo. 1.9 – PROATIVIDADE Proatividade significa a capacidade de encontrar as melhores possíveis soluções para cada problema. Ninguém precisa ser gênio para ser proativo, bastando que tenha boa vontade e perseverança. Outrem pode apresentar melhores soluções, mas dê conta da sua com a presteza possível, pois mais importa uma solução que ajude as pessoas quando elas precisam do que outra que fique apenas na promessa. 1.10– COMPAIXÃO Compaixão é sinônimo de bondade, caridade etc. A pessoa compassiva não deve ficar somente no domínio da solidariedade verbal, mas deve passar da palavra à ação. Isso, todavia, varia de caso para caso. Há situações em que se deve deixar a iniciativa por conta do próprio necessitado. 1.11– PERDÃO 20 Perdoar não significa que devamos ser omissos e, indiretamente, incentivar o ofensor a continuar abusando da força ou da astúcia. Tudo tem de ter uma finalidade construtiva e neste caso igualmente. O mestre nem sempre elogia o aprendiz e nem sempre deixa de dizer-lhe umas verdades até duras sob o pretexto do perdão. 1.12– DESAPEGO O verdadeiro desapego é interno e está dentro do capítulo das intenções. Ninguém consegue saber se outrem é desapegado ou não, pois o desapego está dentro do coração de cada um. Dentro do nosso coração devemos ser desapegados. Sêneca, apesar de milionário, era desapegado de tudo. 1.13– ASSERTIVIDADE Assertividade significa que, sem arrogância, alguém afirma seus pontos de vista, seu modo de ser. Devemos respeitar os sagrados pontos de vista alheios, mas afirmarmos os nossos para todos saberem o que somos. 21 Isso contribui para o aperfeiçoamento do meio onde vivemos, pois a multiplicidade de pontos de vista sempre enriquece. 1.14– ACEITAÇÃO DOS OUTROS Mesmo as criaturas mais evoluídas têm seus pontos fracos. Devemos aceitar cada um com seus pontos fracos, pois também temos os nossos. O respeito mútuo faz com que cada um mantenha certa tolerância para com as fraquezas alheias e vice-versa. Imagine-se se cada um cobrasse dos outros a perfeição absoluta: seria uma guerra permanente. 1.15– EVOLUÇÃO A evolução se processa a cada dia, mesmo que pareça o contrário. É como a plantícula, que cresce sem que consigamos perceber. Por isso as mudanças em cada um muitas vezes surgem inesperadamente: é porque não tínhamos percebido certo amadurecimento que estava acontecendo. Não devemos julgar nossos semelhantes pelas aparências, porque ele pode estar, na 22 verdade, mais pronto que nós para os grandes saltos qualitativos. 1.16– CORRESPONDÊNCIA ―Cada pessoa é um conjunto de fatores inacessível às demais‖. É possível conhecer alguns itens sobre os outros, mas não tudo. Costuma-se dizer que para ―conhecer alguém devemos ter caminhado duas luas com suas sandálias‖. Mas devemos respeitar as vivências alheias, pois elas são o seu acervo de experiências, que, cedo ou tarde, levam cada um à evolução espiritual. Nós, que lidamos com os espíritos voltados para o Mal, aprendemos que cada um tem seu momento de despertamento para a Luz. Não devemos olhar apenas o transcurso de uma encarnação, mas a eternidade. 1.17– EQUANIMIDADE ―Equanimidade significa serenidade de espírito‖. É um estado natural e relaxado, a capacidade de experimentar de maneira estável as diferentes situações do mundo físico, das sensações, da mente e dos 23 fenômenos. É caracterizada pela profunda tranquilidade, completamente livre de oscilações. Nada paga o preço de estarmos felizes por nós mesmos. Alcançando esse estágio, até mesmo os relacionamentos ficam mais fáceis de lidar, de pensar usando a razão ao invés do coração. ―Isso traz uma paz incomensurável.‖ (http://www.dicionarioinformal.com.br/eq uanimidade) Com o estilo de vida estressante atual, não é fácil manter-se equânime, mas devemos tentar viver dessa forma a maior parte do tempo possível. 1.18– GRATIDÃO As pessoas têm-se esquecido de ser gratas, sobretudo aos pais, e a primeira coisa que costumam fazer quando eles envelhecem, é interná-las nas chamadas ―casas de repouso‖, em vez de conviver com elas e devolver-lhes o carinho e a atenção que receberam deles nos tempos passados. A ingratidão dói muito em que a recebe. 1.19– CONFIANÇA 24 Devemos confiar em Deus, em nós mesmos e, até prova em contrário, nas pessoas. Se o nível de desconfiança nos outros chegar às raias do absurdo, perderemos até a condição de conviver em sociedade. É claro que ninguém deve ser ingênuo e colocar a própria vida nas mãos dos outros. 1.20– OBEDIÊNCIA As pessoas têm vivido em pé de guerra, porque ninguém está aceitando mais obedecer nem aos próprios chefes. Há ―muito cacique para pouco índio‖. Mas quem obedece está obedecendo ao seu conjunto de deveres e não à pessoa que está dando as ordens. Essa mudança de foco ajuda-nos a obedecer ―numa boa‖. 1.21 – ACEITAÇÃO DA REALIDADE A vida é o que é. Estamos em um mundo primário espiritualmente falando. Poucos aqui vivem cumprindo missões de esclarecimento. 25 A maioria está em função da satisfação dos objetivos básicos: ―comer, dormir e reproduzir‖. Querer obrigar a maioria à evolução espiritual é ―malhar em ferro frio‖. Devemos semear, mas a colheita fica por conta de cada um, que vai despertando gradativa e imperceptivelmente. Quem cumpre sua missão, chega a hora de ir para outros mundos e aqui as criaturas responderão por suas próprias intenções. Essa é a regra que devemos compreender e seguir. 2. A IDEOLOGIA DE PRABHUPADA Resumir sua ideologia é impossível. Por isso, transcreveremos algumas das suas frases: ―Todo aquele que queira lograr uma vida perfeita, deve buscar primeiro conhecimento.‖ ―A vida sexual é o principio básico da vida material. E devido a isso pensamos: eu sou este corpo e tudo o que está relacionado com este corpo é meu.‖ ―O verdadeiro objetivo da vida é regressar ao mundo espiritual.‖ 26 ―Primeiro de tudo faça com que sua vida seja perfeita. Então tente ensinar aos outros.‖ ―Vida material significa tentar satisfazer aos seus sentidos. E quando queira servir a Deus, isso é vida espiritual.‖ ―Inteligência significa: Saber quem eu sou quem é Deus, e o que é este mundo.‖ ―A verdadeira honestidade consiste em não usurpar a propriedade dos outros‖. ―Quando o discípulo está satisfeito com o mestre, se entrega e faz da sua vida um sucesso.‖ ―Devemos entender que é impossível ser feliz no mundo material, independentemente de quaisquer ajustes que façamos, e não podemos ser felizes a menos que levemos uma vida espiritual.‖ ―Fazer simplesmente uma exibição de ginástica não é a perfeição da yoga‖. Yoga significa controlar os sentidos. ―Nunca terá êxito alguém que parece praticar yoga, mas que satisfaça seus sentidos, sem restrição.‖ ―Baseado no Bhagavad-Gita, entendemos que estamos mudando de um corpo para outro, mesmo em nossa vida atual. Todos tivemos antes o corpo de um bebê 27 pequeno. Onde está o corpo agora? Esse corpo se foi.‖ ―Se você ama alguém, você sempre pensará nele naturalmente.‖ ―Se eu aceito que ―eu sou este corpo‖, então eu não sou melhor do que os cães e gatos, já que essa é a noção que eles têm sobre a vida.‖ ―A literatura védica completa abrange três tópicos: o primeiro é o nosso relacionamento com Deus, segundo, depois de haver entendido essa relação, aprendemos a praticá-la.‖ ―Cada criatura viva tem uma relação especial com Deus, mas agora se encontra esquecida.‖ ―O peixe não pode ser feliz fora da água, pois é um animal aquático. Da mesma forma, todos nós somos almas espirituais, e não podemos ser felizes a menos que levemos uma vida espiritual ou que estejamos no mundo espiritual.‖ ―Um pode continuar tentar ser feliz, mas a vida materialista nunca produzirá felicidade. Este é um facto.‖ ―A vida materialista se passa mastigando o mastigado.‖ ―Não sabemos que estamos atados pelas severas leis da natureza material.‖ 28 ―Ego falso significa identificação falsa. Nossa vida ignorante começou a partir desta falsa identificação: pensar que sou esta materia, apesar de todos os dias e cada momento vejo que não sou esta materia. A alma existe permanentemente, enquanto que a materia está mudando.‖ ―A verdadeira fórmula para a paz consiste no que saber que Deus é o proprietário de todo esse universo.‖ ―Nosso tempo está sendo desperdiçado na construção de muitos dispositivos que nos dão um conforto temporário e artificial, o preço de uma quantidade proporcional de inconvenientes. Tudo isso é parte da lei do karma, a lei de ação e reação. Pois tudo o que fazemos, há uma reação pela qual nos envolvemos.‖ ―Este mundo material está destinado a sofrer, a menos que existam os sofrimentos, não poderemos voltar conscientes do espiritual. Os sofrimentos são em realidade um incentivo e nos ajudam a elevar-nos para o espiritual.‖ ―Devemos ser muito sérios para alcançar a nossa vida eterna, plena de bemaventurança e conhecimento. Temos esquecido que este é o verdadeiro propósito da vida, nosso interesse real.‖ 29 ―Como o mundo espiritual é real, este mundo material, que é uma imitação, parece ser real, devemos compreender o significado da realidade: realidade significa existência que não pode desaparecer; realidade significa eternidade.‖ ―Um homem que está dormindo pode ser acordado por uma vibração sonora. Embora ele esteja praticamente inconsciente, incapaz de ver, sentir, cheirar etc., o sentido da audição é tão proeminente que é possível acordar a esse homem dormido com uma vibração sonora. Da mesma forma, a alma espiritual, ainda que já fosse vencida pelo sono material, pode ser despertada com a vibração do som transcendental do mantra. ‖ 3. A MESMA BASE IDEOLÓGICA Ambos ensinaram que a única coisa que importa na vida é evoluir espiritualmente, de que faz parte ajudar os outros nesse caminho. Eis aí o resumo de tudo que fizeram e falaram. NOTAS 30 [1] ―Lúcio Aneu Séneca (português europeu) ou Sêneca (português brasileiro) (em latim: Lucius Annaeus Seneca; Corduba, 4 a.C. — Roma, 65) foi um dos mais célebres advogados, escritores e intelectuais do Império Romano. Conhecido também como Séneca (ou Sêneca), o Moço, o Filósofo, ou ainda, o Jovem, sua obra literária e filosófica, tida como modelo do pensador estoico durante o Renascimento, inspirou o desenvolvimento da tragédia na dramaturgia europeia renascentista. Origens familiares Oriundo de família ilustre, era o segundo filho de Hélvia e de Marco Aneu Sêneca (Séneca, o Velho). O irmão mais velho de Lúcio chamava-se Lúcio Júnio Gálio e era procônsul (administrador público) na Acaia, onde, em 53, se encontrou com o apóstolo cristão Paulo. Séneca, o Jovem, foi tio do poeta Lucano. Ainda criança (três anos), foi enviado a Roma para estudar oratória e filosofia. 31 Com a saúde abalada pelo rigor dos estudos, passou uma temporada no Egito para se recuperar e regressou a Roma por volta do ano 31. Nessa ocasião, iniciou carreira como orador e advogado e logo chegou ao senado. Exílio Em 41, foi acusado por Messalina, esposa do imperador Cláudio, de ter cometido adultério com Júlia Livila, sobrinha do imperador. Como consequência, foi exilado para a Córsega. No exílio, em meio a grandes privações materiais, Séneca dedicou-se aos estudos e redigiu vários de seus principais tratados filosóficos. Entre eles, os três intitulados Consolationes ("Consolos"), em que expõe os ideais estoicos clássicos de renúncia aos bens materiais em busca da tranquilidade da alma mediante o conhecimento e a contemplação. Por influência de Agripina, a Jovem, sobrinha do imperador e uma das mulheres com quem este se casou, Séneca retornou a Roma em 49. Agripina tornouo preceptor de seu filho, o jovem Nero, e elevou-o a pretor em 50. Séneca contraiu 32 matrimônio com Pompeia Paulina e organizou um poderoso grupo de amigos. Conselheiro de Nero Logo após a morte de Cláudio, ocorrida em 54, o escritor vingou-se com um escrito que foi considerado obra-prima das sátiras romanas, Apocolocyntosis divi Claudii ("Transformação em abóbora do divino Cláudio"). Nessa obra, Séneca critica o autoritarismo do imperador e narra como ele é recusado pelos deuses. Seu irmão, Lúcio Júnio Gálio, também ridicularizou Cláudio, fazendo uma analogia com as pessoas executadas, que eram levadas ao Fórum Romano puxadas por ganchos: ele disse que Cláudio havia sido elevado aos céus puxado por um gancho Quando Nero, aos dezessete anos, tornouse imperador, Séneca continuou a seu lado, porém não mais como pedagogo e sim como seu principal conselheiro (ajudado por Afrânio Burro, prefeito do Pretório). Sêneca procurou orientar para uma política justa e humanitária. Se, durante os primeiros sete anos, o governo de Nero lembra o de Augusto, o mérito exclusivo é desses dois homens que, na 33 realidade, governaram ao lado do jovem príncipe. A índole de Nero foi mitigada, corrigida, freada. Mais tarde, porém, a malvadez de Nero teve o predomínio. Séneca, durante algum tempo, exerceu influência benéfica sobre o jovem, mas, aos poucos, foi forçado a adotar atitudes de complacência. Chegou mesmo a redigir uma carta ao senado na qual se alega que tentou justificar a execução de Agripina em 59. Séneca sabia que a maior culpa por sua morte havia sido da própria Agripina, que pretendia imperar e que se tornara hostil por ambição, capricho e corrupção; sua raiva crescente só fez aumentar a vingança matricida de Nero, que não deu mais ouvidos às palavras severas de seus dois conselheiros. Séneca foi, então, muito criticado pela fraca oposição à tirania e à acumulação de riquezas de Nero, incompatíveis com as concepções estoicas. Conforme concluiu o emérito professor Giulio Davide Leoni, o destino foi, em parte, malvado para com Séneca, fazendo chegar até nós as acusações e perdendo as defesas. Da leitura atenta de suas páginas, do modo como aceitou e caminhou para a morte, como Sócrates, surge um juízo sincero que as reticências dos 34 historiadores e estudiosos, muitas vezes, acabam por ofuscar. Em De Beneficiis (II, 18), Séneca lembra que "às vezes, mesmo contra a nossa vontade, devemos aceitar um benefício, quando é dado por um tirano cruel e iracundo, que reputaria injúria que tu desdenhasses seu presente. Não deverei aceitar?" Assim, mais importante do que saber que Séneca era rico, é saber se ele era ávido de riquezas, se viveu no fausto e na opulência. Conforme suas Epistulae Morales ad Lucilium, 18, seu pensamento era este: é lícito ser rico, contudo é preciso viver de tal modo que se possa, em cada contingência, bastar a si próprio e renunciar a qualquer bem que a sorte pode dar, mas também tirar. Rico, Séneca viveu com certo conforto, mas, conforme acreditava e pregava, sempre de maneira modesta. "Séneca", no Museu Arqueológico Nacional de Nápoles O professor G.D. Leoni, da Sedes Sapientiae, afirma, em seu estudo 35 introdutivo ao volume XLIV da Biblioteca Clássica da Atena Editora, São Paulo, 1957, que a posteridade foi injusta, recolhendo contra Sêneca somente as invejosas acusações dos seus inimigos. Mas a perfeita intuição dos poetas define aquilo que os críticos se esforçam por esclarecer, mas amiúde ofuscam. Dante, no limbo, vê, entre os sumos escritores e heróis antigos - Sócrates, Platão, Demócrito, Diógenes de Sinope, Anaxágoras, Tales de Mileto, Empédocles, Heráclito, Zenão de Cítio, Dioscórides, Orfeu, Cícero, Lino e "Séneca morale". Séneca, diferente de um filósofo, é um entusiasta da filosofia, estudioso apaixonado, informado de todas as correntes filosóficas do seu tempo, mas contrário a encerrar-se em qualquer sistema ou fórmula. Nele, a filosofia era viva, era a própria vida. "A prosa adere ao pensamento, uniformiza-se se adapta a ele; e muitas vezes um subentendido produz um jogo de luzes e sombras cheios de profunda beleza, amiúde a frase breve produz inesperadas imagens pictóricas, outras vezes antíteses, ou as anedotas enriquecem as sentenças austeras, a argúcia atenua a trágica solenidade do 36 assunto". Poeta, humanista, mais que filósofo, o elemento preponderante em suas obras são os sentimentos, mais do que as ideias, com as quais, na origem, pouco contribuiu. Entretanto, na história do pensamento, nunca ninguém foi tão compenetrado do sentimento da nobreza do espírito humano, e soube tão bem e poderosamente transmitir esse sentimento em palavras." Sua prosa é vivaz, variada, alegre, moderna, eterna; como quando procura mostrar como as desventuras pelas quais passam os bons, devem ser encaradas como provas para melhor evidenciar suas virtudes, ajudar o próximo: "Os deuses põem à prova a virtude e exercitam a força de espírito dos bons, que devem seguir seu destino preestabelecido: o sábio, por isso, nunca será infeliz." Sêneca, busto em mármore, por um autor anônimo do século XVII, Museu do Prado. Séneca retirou-se da vida pública em 62. Entre seus últimos textos, estão a compilação científica Naturales quaestiones ("Problemas naturais"); os tratados De tranquillitate animi (Sobre a 37 tranquilidade da alma), De vita beata (Sobre a vida beata) e, talvez sua obra mais profunda, as Epistolae morales, dirigidas a Lucílio, em que reúne conselhos estoicos e elementos epicuristas na pregação de uma fraternidade universal mais tarde considerada próxima ao cristianismo. Morte No ano 65, Séneca foi acusado de ter participado da conspiração de Pisão, na qual o assassínio de Nero teria sido planejado. Sem qualquer julgamento, foi obrigado a cometer o suicídio. Na presença dos seus amigos, cortou os pulsos com o ânimo sereno que defendia em sua filosofia. Tácito relatou a morte de Séneca e da mulher, que também cortou os pulsos. Nero, com medo da repercussão negativa dessa dupla morte, mandou que médicos a tratassem, e ela sobreviveu ao marido alguns anos. Contemporâneo de Cristo Ver artigo principal: Correspondência entre Paulo e Séneca Apesar de ter sido contemporâneo de Cristo, Séneca não fez quaisquer relatos 38 significativos de fenómenos milagrosos que aparentemente anunciavam o advento de uma poderosa nova religião; entretanto, segundo Jerónimo ("De Viris Illustribus", xii), Séneca teria trocado correspondências com Paulo (apóstolo com cidadania romana, também conhecido por Saulo). Constata-se que os cristãos, por intermédio de Lúcio Aneu Séneca, assimilaram os princípios estoicos, utilizando, inclusive, as mesmas metáforas estoicas na Bíblia. Um facto tanto mais curioso é que Séneca, como filósofo, interessou-se por todos os fenómenos da natureza, resultando nas cartas intituladas posteriormente "Questões da natureza", como observou Edward Gibbon, historiador do iluminismo do século XVIII, perito na história do Império Romano e autor do livro História do Declínio e Queda do Império Romano. A filosofia de Séneca Séneca desenhado por Peter Paul Rubens Sêneca ocupava-se da forma correta de viver a vida (ou seja, da ética), da física e da lógica. Via o sereno estoicismo como a maior virtude, o que lhe permitiu praticar 39 a imperturbabilidade da alma, denominada ataraxia (termo utilizado a primeira vez por Demócrito em 400 a.C. Juntamente com Marco Aurélio e Cícero, conta-se entre os mais importantes representantes da intelectualidade romana. Sêneca via, no cumprimento do dever, um serviço à humanidade. Procurava aplicar a sua filosofia à prática. Deste modo, apesar de ser rico, vivia modestamente: bebia apenas água, comia pouco, dormia sobre um colchão duro. Sêneca não viu nenhuma contradição entre a sua filosofia estoica e a sua riqueza material: dizia que o sábio não estava obrigado à pobreza, desde que o seu dinheiro tivesse sido ganho de forma honesta. No entanto, devia ser capaz de abdicar da riqueza. Sêneca via-se como um sábio imperfeito: "Eu elogio a vida, não a que levo, mas aquela que sei dever ser vivida." Os afetos (como relutância, vontade, cobiça, receio) devem ser ultrapassados. O objetivo não é a perda de sentimentos, mas a superação dos afetos. Os bens podem ser adquiridos, 40 à condição de não deixarmos que se estabeleça uma dependência deles. O pensamento de Sêneca, especialmente suas críticas ao comportamento vulgar, permite que se conheça melhor a sociedade de Roma no século I d.C. Para Sêneca, o destino é uma realidade. O homem pode apenas aceitá-lo ou rejeitálo. Se o aceitar de livre vontade, goza de liberdade. A morte é um dado natural. O suicídio não é categoricamente excluído por Sêneca. Sêneca influenciaria profundamente o pensamento de João Calvino. O primeiro livro de Calvino foi um comentário ao De Clementia, de Sêneca. A obra literária de Séneca Ao se analisarem os escritos de Séneca, é possível perceber a forma pela qual alcançou o conhecimento e desenvolvimento da ideia de fluxo de energia, que advém, segundo ele, de algum "princípio ativo" (termo utilizado em seu livro "Questões Naturais"), o qual sujeita à regra geral: "causa e efeito", ou "ação e 41 reação", de tal forma que sugeria, em uma de suas Cartas a Lucílio, que só tem domínio de si aquele que não faz de seu corpo um peregrinador por outros corpos. Séneca destacou-se como estilista literário. Numa prosa coloquial, seus trabalhos exemplificam a maneira de escrever retórica, declamatória, com frases curtas, conclusões epigramáticas e emprego de metáforas. A ironia é a arma que emprega com maestria, principalmente nas tragédias que escreveu, as únicas do gênero na literatura da antiga Roma. Versões retóricas de peças gregas, elas substituem o elemento dramático por efeitos brutais, como assassinatos em cena, espectros vingativos e discursos violentos, numa visão trágica e mais individualista da existência. Diálogos (40) Ad Marciam, De consolatione (41) De Ira - Estudo sobre as consequências e sobre o controle da ira (42) Ad Helviam matrem, De consolatione (44) De Consolatione ad Polybium 42 (49) De Brevitate Vitæ ("Sobre a brevidade da vida") (62) De Otio ("Do ócio") (63) De Tranquillitate Animi ("Sobre a tranquilidade da alma") (64) De Providentia ("Sobre a Providência") (55) De Constantia Sapientis ("A constância do sábio") (58) De Vita Beata Tragédias Hercules furens (Hércules furioso) Troades (As Troianas) Phoenissae (As Fenícias) Medea (Medeia) Phaedra (Fedra) Oedipus (Édipo) Agamemnon Thyestes (Tiestes) Hercules Oetaeus (Hércules no Eta)‖ (https://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%A9ne ca) [2] ―Abhay Charanaravinda Bhaktivedanta Swami Prabhupada (Bengali: ) (1 de 43 setembro de 1896 - 14 de novembro de 1977) foi um líder religioso indiano, fundador da Sociedade Internacional para a Consciência de Krishna, comumente conhecida como Movimento Hare Krishna. Nascido em Calcutá, Prabhupada migrou para os Estados Unidos em 1965 e surgiu como uma figura importante da contracultura ocidental, apresentando a cultura védica a milhões de pessoas em todo o mundo. Apesar dos ataques de membros da comunidade acadêmica e de grupos de apologética cristã, Prabhupada recebeu acolhida favorável de muitos estudiosos da religião, tais como J. Stillson Judá, Harvey Cox, Shinn Larry e Thomas Hopkins, que elogiou as traduções de Prabhupada e defendeu seu movimento contra as imagens distorcidas e as más apresentações veiculadas pela mídia. Prabhupada foi descrito como um líder carismático, no sentido usado pelo sociólogo Max Weber, devido à sua bemsucedida aquisição de seguidores nos Estados Unidos, Índia, Austrália, países da Europa, da África e outras regiões. 44 Após sua morte, o Movimento Hare Krishna continuou a crescer e desenvolver-se e está presente até os dias de hoje, contando com diferentes sedes ao redor do mundo que celebram a vida de Prabhupada e seus discípulos. Biografia A. C. Bhaktivedanta Swami Prabhupada nasceu em 1896 em Calcutá, filho de Gour Mohan e Rajani De. Seus pais eram devotos de Krishna e deram-lhe o nome de Abhay Charan ( "destemido por ter se abrigado no Senhor" ). Seu pai, Gour Mohan, educou-o à risca de acordo com a etiqueta devocional (vaishnava) e deu-lhe todos os ensinamentos básicos do Bhagavad Gita, ensinou-o a cozinhar e a tocar mridanga (instrumento de percussão de origem indiana). Gour Mohan sempre quis que o seu filho se tornasse um devoto de Sri Radha e Krishna. Srila Prabhupada concluiu em 1920 os seus estudos em sânscrito, filosofia, inglês e economia no Scottisch Churches College. Por circunstâncias auspiciosas ele encontrou em 1922 o seu mestre 45 espiritual Bhaktisiddhanta Sarasvati Maharaja, em Calcutá. Em 1932 ele recebeu a primeira e segunda iniciação por Bhaktisiddhanta Sarasvati Maharaja, um proeminente erudito devocional e fundador de sessenta e quatro Gaudiya Mathas(institutos védicos), que lhe deu o nome de Abhay Caranaravinda. Naquela época, Srila Prabhupada ainda estava enredado na vida familiar e nos negócios. Quando pensava em abandonar os seus afazeres materiais para viver no templo, Bhaktisiddhanta Maharaja o desencorajava. Alguns dos devotos queriam que Srila Prabhupada assumisse a direção de um dos maiores templos da Gaudiya-Matha de Srila Bhaktisiddhanta, mas o próprio Bhaktisiddhanta tinha outros planos. Ele não queria que Srila Prabhupada se envolvesse diretamente com a Gaudiya-Matha. No primeiro encontro que tiveram em 1922, Srila Bhaktisiddhanta pediu que Srila Prabhupada difundisse o conhecimento védico na língua inglesa. Nos anos que se seguiram, Srila Prabhupada escreveu um comentário sobre o Bhagavad Gita e ajudou a Gaudiya Matha no seu serviço de pregação. 46 Obras Em 1944 ele publicou o primeiro número duma revista quinzenal em inglês Back to Godhead ( De volta para o Supremo) .Ele próprio redigia, datilografava os manuscritos e revia as provas, distribuindo ele mesmo as revistas nas ruas de Nova Délhi de forma gratuita. Lutava para manter a publicação, pedindo doações de papel e algumas moedas. Desde então, a revista chamada "De Volta ao Supremo" continua a ser publicada ininterruptamente e é editada em mais de trinta línguas. Em seguida, começou a tradução do Bhagavad Gita e do Sri Ishopanishad. Embora Srila Prabhupada sempre tentasse organizar a pregação, não sabia como transformá-la em realidade. A sua ideia era inspirar devotos na Índia e ir com eles para os Estados Unidos.Com esse objetivo, ele fundou a League of Devotes (Sociedade dos Devotos), por intermédio da qual conseguiu alguns colaboradores. "Pelo reconhecimento da erudição filosófica e devoção, a Sociedade vaishnava Gaudiya honrou, em 1947, Srila Prabhupada com o título de 47 'Bhaktivedanta'." Em 1954, com 58 anos, Srila Prabhupada retirou-se da vida familiar e tomou vanaprastha (ordem de vida retirada), para poder dedicar-se mais tempo aos estudos e às atividades literárias. Srila Prabhupada dirigiu-se para a cidade de Vrindavan, o famoso lugar sagrado onde Krishna tinha aparecido cinco mil anos atrás. Ele achou abrigo no templo medieval de RadhaDamodara, onde vivia em condições humildes, dedicando-se profundamente aos estudos por muitos anos. Em 1959 entrou na ordem de vida renunciada (sannyasa). No templo de Radha-Damodara Srila Prabhupada iniciou a obra da sua vida - a tradução dos muitos volumes do Srimad-Bhagavatam com comentários dos 18.000 versos! Ali escreveu também o livro Easy Journey to Other Planets (Fácil viagem a outros planetas). Sendo um sannyasi sem recursos materiais, Srila Prabhupada teve dificuldade em arranjar os meios necessários para suas publicações. Apesar disso conseguiu publicar até 1965, graças 48 a donativos, o Primeiro Canto do SrimadBhagavatam em 3 volumes. Além disso Srila Prabhupada esforçava-se para conseguir uma viagem grátis para os Estados Unidos, que por fim lhe foi concedida pro Sumati Morarji, proprietária da Scindia Steamship Company. E assim Srila Prabhupada viajou, sozinho, para os Estados Unidos no outono de 1965 a bordo do cargueiro Jaladuta, para cumprir a missão do seu mestre espiritual. Quando Srila Prabhupada chegou com o navio no porto de Nova Iorque, ele praticamente estava sem recursos financeiros. Após um ano cheio de dificuldades Srila Prabhupada fundou em julho de 1966 a Sociedade Internacional da Consciência de Krishna (ISKCON), que sob sua direção pessoal se desenvolveu numa década num movimento mundial com mais de 100 ashramas, escolas, templos e comunidades rurais. Em 1968 Srila Prabhupada fundou nas colinas do Oeste da Virginia a primeira comunidade rural da consciência de Krishna, que serviu de exemplo para projetos idênticos em todos os continentes. Em 1972, com a fundação da escola gurukula em Dallas, Texas, Srila 49 Prabhupada introduziu o sistema védico de ensino elementar e secundário no Ocidente. Com o constante aumento do número de alunos formaram-se 10 outras escolas até 1978. A mais importante das suas escolas está sediada em Vrindavan, Índia. Também na Índia Srila Prabhupada criou muitos projetos, como por exemplo o impressionante templo de KrishnaBalarama em Vrindavana, o Centro de Congresso e Cultural junto com o templo e casa internacional de hóspedes em Bombay e o Centro Mundial da ISKCON em Sridhama Mayapur (Bengala), onde se projeta erguer uma cidade em moldes védicos. Além destas muitas atividades Srila Prabhupada sempre via na publicação de livros sua tarefa principal, e assim em 1972 ele fundou a Bhaktivedanta Book Trust (BBT), hoje a maior editora na Índia de literatura religiosa e filosófica. Até seu desaparecimento em 14 de novembro de 1977 em Vrindavana, Srila Prabhupada, apesar da sua idade avançada, viajou 14 vezes em viagens de 50 pregação ao redor da Terra. Não obstante desta apertada agenda, publicou continuamente novos livros - num total de mais de 80 volumes - que hoje em dia são traduzidos em todas as línguas do mundo. Nestes onze anos, de 1966 até 1977, Srila Prabhupada iniciou milhares de discípulos e escreveu, além dos seus livros, cinco mil cartas que hoje estão disponíveis em forma de livros, para seus seguidores. Srila Prabhupada faleceu em Vrindavan, Índia, no ano de 1977. Seus discípulos continuam levando adiante o movimento que ele iniciou e a mensagem que ele trouxe da Índia para o Ocidente.‖ (https://pt.wikipedia.org/wiki/Bhaktivedant a_Swami_Prabhupada) [3] ―A religião no Antigo Egito refere-se ao complexo conjunto de crenças religiosas e rituais praticados no Antigo Egito. Não existiu propriamente uma religião egípcia, pois as crenças - frequentemente diferentes de região para região - não eram a parte mais importante, mas sim o culto aos deuses, que eram considerados 51 os donos legítimos do solo, terra que tinham governado no passado distante. Este conjunto de crenças foi praticado no antigo Egito desde o período pré-dinástico, cerca de 3000 anos a.C., até o surgimento do cristianismo. Inicialmente, era uma religião politeísta por crer em várias divindades, como forças da natureza. Com o passar dos séculos, a crença se diversificou, sendo considerada henoteísta, porque acreditava em uma divindade criadora do universo, tendo outras forças independentes, mas não iguais em poder a este. Também pode ser considerada monoteísta, pois tinha a crença em um único deus, as outras divindades eram neteru (plural de neter), participantes da criação e manutenção da realidade, mas ainda assim inferiores em poder ao grande Ser supremo. Amenófis IV instaurou o monoteísmo, que fenece As fontes para o estudo da antiga religião egípcia são variadas: templos, pirâmides, estátuas, túmulos e textos. Em relação às fontes escritas, os egípcios não deixaram obras que sistematizassem, de forma clara e organizada, as suas crenças. Em geral, 52 os investigadores modernos centram seu estudo em três obras principais: o Livro das Pirâmides, o Livro dos Sarcófagos e o Livro dos Mortos. O Livro das pirâmides de Sacará. Do ponto de vista cronológico, situam-se na época da V dinastia; O Livro dos Sarcófagos, uma recolha de textos escritos em caracteres hieroglíficos cursivos no interior de sarcófagos de madeira da época do Império Médio, tinha também como função ajudar os mortos no outro mundo; Por último, o Livro dos Mortos, que inclui os textos das obras anteriores, para além de textos originais, datando do Império Novo. Esta obra era escrita em rolos de papiro pelos escribas e vendida às pessoas para ser colocada nos túmulos. Outras fontes escritas são os textos dos autores gregos e romanos, como os relatos de Heródoto (século V a.C.) e Plutarco (século I d.C.). Divindades 53 As várias divindades egípcias existentes caracterizavam-se pela sua capacidade de estar em vários locais ao mesmo tempo e de sobreviver a ataques. A maioria delas era benevolente, com exceção de algumas divindades com personalidade mais ambivalente como as deusas Sekhet e Mut. Um deus poderia também assumir várias formas e possuir outros nomes. O exemplo mais claro é o da divindade solar Rá, que era conhecido como Kepra, representado como um escaravelho, quando era o sol da manhã. Recebia o nome de Atom enquanto sol do entardecer, sendo visto como velho e curvado, um deus esperado pelos mortos, que se aquecem com os seus raios. Durante o dia, Rá anda pela Terra como um falcão. Estes três aspectos e outros setenta e dois são invocados numa ladainha sempre na entrada dos túmulos reais. Estas divindades eram agrupadas de várias maneiras, como em grupos de nove deuses (as Enéades), de oito deuses (as Ogdóades), ou de três deuses (tríades). A principal Enéade era a da cidade de 54 Heliópolis, presidida pela divindade solar Rá. Cosmologia e criação O princípio do universo é a formação única de Deus, que não se fez do nada, e sim, autocriou seus aspectos. Os aspectos de Deus, como dito anteriormente, chamam-se neteru (no singular: neter no masculino e netert no feminino). Tudo vem a início de um líquido infinito cósmico chamado Nun (Nu ou Ny): este é o "ser subjetivo". Quando esse líquido se autocria e torna-se real, é Atum, o "ser objetivo". Essa passagem é semelhante à passagem de inconsciente para consciente do ser humano. Atum criou uma massa única universal que deu origem a uma explosão, porém pré-planejada. Atum também tem o poder de "tornar-se a si mesmo", que, segundo os antigos egípcios, é algo muito complicado para um humano, seria uma "obra divina". Mas isto é o princípio da Terra. A oração para a transformação de Atum é a seguinte: Saudamos a vós, Atum! 55 Saudamos a vós, aquele que torna a si mesmo! Vós sois em vosso nome o altíssimo! Vós tornais em vosso nome Khepri, aquele que se torna si mesmo! Khepri é um nome dado ao primeiro neter da Terra, Rá, o que é outra forma de Atum. Para criar a Terra, Rá deu origem ao Sol da manhã, enquanto o Sol da tarde era Atum. Cuspiu Chu e Tefnut, que deram origem a ar e a umidade. A seguir outro texto de "obra divina": Fui anterior aos dois anteriores que criei, pois tinha prioridade sobre os dois anteriores que criei. Visto que meu nome é anterior ao deles, porque os criei antes dos dois anteriores. Os próximos neteru a serem gerados eram Geb e Nut, que criaram os dois ambientes da Terra: o céu e a terra (plana). Estes 56 também deram origem aos quatro neteru da vida: Osíris, Ísis, Seth e Néftis. Osíris criou a vida no além e todo o processo de jornada até o céu. Ísis é responsável por todos os seres vivos. Seth representa os opostos, mas também coisas más, como ódio e caos. Néftis representa o deserto, a orientação, e o ato de morte. A história desses quatro neteru é a origem do próximo a ser gerado. Lembrando que as próximas histórias são semelhantes aos humanos porque esses neteru eram de espécies bem próximas aos humanos. Existem milhares de versões, no geral a história é a seguinte: Osíris era o neter que criou o ciclo de vida e morte, por isso governava a terra. Seth, movido a inveja, resolveu armar uma forma de matá-lo. Então, de forma incerta, provavelmente mostrando outra intenção, o trancafiou em um caixão e jogou no Nilo para se perder e ninguém nunca achar. Néftis percebeu isso e avisou Ísis, quando começaram a procurar e encontraram um caixão, e recuperaram Osíris. Seth como era uma forma do mal, esquartejou a forma material de Osíris em 40 pedaços e espalhou-os por todo o deserto e no Nilo. 57 Ísis, depois de muito tempo, conseguiu encontrar todos eles, exceto o pênis, que foi devorado por três peixes. Então, Osíris uniu-se a Ísis e gerou um filho, a primeira ideia de "imaculada concepção", ela ficou conhecida com "Virgem Ísis". O filho era Hórus, o herdeiro que então lutou contra Seth, perdendo um olho na batalha, mas consegui vencê-lo. Esse olho ficou conhecido como "Olho de Hórus", que foi reconhecido como símbolo de proteção pelos egípcios. A seguir uma oração relacionada a isso: Ó benevolente Ísis que protegeu o seu irmão Osíris, que procurou por ele incansavelmente, que atravessou o país enlutada, e nunca descansou encontrado. antes de tê-lo Ela, que lhe proporcionou sombra com suas asas 58 e lhe deu ar com suas penas, que se alegrou e levou o seu irmão para casa. Ela, que reviveu o que, desesperançado, estava morto, para o que recebeu a sua semente e concebeu um herdeiro, e que o alimentou na solidão, enquanto ninguém sabia quem era... Hórus também era conhecido como o "salvador da humanidade". Depois disso, Seth se tornou um neter menor. Também há histórias dizendo que Hórus encarnou na terra e mostrou ensinamentos à humanidade. Ele seria guiado pela estrela Sirius e presenteado em seu nascimento por três reis, que seriam representados pelas Três Marias. Também fez milagres na terra, como andar sobre as águas do Nilo. Em outra versão, teria ressuscitado um homem 59 chamado El-Azar-Us. Foi morto pelo faraó (por inveja deste) e também teria ressuscitado alguns dias depois. Fora da terra, teria se casado com Hator. Os templos Pilone do Templo de Luxor Os templos no Antigo Egito eram entendidos como os locais onde residia a divindade (hut-netjer, "casa do deus"), que poderia ser acompanhada pela sua família e por outras Divindades, sendo, por isso, muito diferentes dos modernos edifícios religiosos. Os templos dos períodos mais antigos da história do Antigo Egito, como o Império Antigo e o Império Médio, não chegaram em bom estado até aos dias de hoje, pelo que são as construções do Império Novo e da época ptolomaica que permitem o conhecimento da estrutura dos templos. Na estrutura "clássica" dos templos egípcios podem ser distinguidas três partes: o pátio, as salas hipóstilas e o santuário. À entrada de um templo, encontravam-se obeliscos e estátuas monumentais, que 60 antecediam o pilone. Nos templos do Império Novo, é comum a existência de uma avenida de acesso ladeada por esfinges com corpo de leão e cabeça de carneiro (que se acreditava protegerem o templo e o deus), na qual desfilava a procissão em dias de festa. Um pilone era uma porta monumental composta por duas torres em forma de trapézio, entre as quais se situava a entrada propriamente dita. Nas paredes do pilone, representavam-se as divindades ou, muitas vezes, a cena clássica na qual se vê o faraó a atacar os inimigos do Egito. Passado o pilone, existia uma grande pátio (uba), a única zona acessível ao público, onde a estátua da Divindade era mostrada nos dias de festa. O pátio era rodeado por colunas e possuía por vezes um altar (aba), onde se efetuavam os sacrifícios. Este pátio precedia uma sala hipostila (ou seja, uma sala de colunas), mais ou menos imersa na escuridão, que antecedia outros salas onde se guardavam a mesa de oferendas e a barca sagrada. Finalmente, achava-se o santuário do deus (kari). Se os 61 faraós entendessem ampliar um templo construíam-se novas salas, átrios e pilones. Os templos mais importantes poderiam possuir um lago sagrado, nilómetros, per ankh (casas de vida), armazéns e locais para a residência dos sacerdotes. Pilone do Templo de Edfu visto desde o pátio O culto nos templos Teoricamente, o rei egípcio tinha o dever de realizar a liturgia em cada templo. Uma vez que era fisicamente impossível para o rei estar presente em todos os templos que existiam no Egito, o soberano nomeava representantes para realizar as cerimónias a Deus. Os reis só visitavam os templos em ocasiões especiais associadas a festivais, o que não impedia que fossem representados nos templos fazendo oferendas às Divindades. A vida nos templos seguia o curso da vida normal. Antes do nascer do sol, abatiamse os animais que seriam oferecidos as Divindades. Os sacerdotes purificavam-se com água, e, vestidos com trajes brancos, 62 entravam em procissão no templo. No pátio do templo, os sacerdotes apresentavam as suas oferendas e queimavam incenso. Um sacerdote dirigiase ao santuário da divindade, uma sala especialmente consagrada, localizada na parte mais reservada do templo. Aqui, o sacerdote acendia um archote e abria o naos, tabernáculo onde se guardava a estátua da Divindade. O sacerdote apresentava-se à divindade e anunciava vir cumprir os seus deveres. Limpava o tabernáculo, queimava incenso, lavava a estátua e aplicava sobre ela óleos, vestia-a, maquilhava-a e colocava-lhe a coroa. Terminado este processo, o sacerdote colocava a estátua no naos, abandonando a sala e apagando o archote e as pegadas que havia feito. Ao meio-dia, poderia ser feita uma nova cerimónia na qual se ofereciam alimentos. Sacerdotes Sacerdotes vestidos com pele de leopardo realizam rituais de purificação. Túmulo de Userhat. XIX Dinastia. No Antigo Egito, não existiu uma estrutura sacerdotal centralizada; cada Divindade possuía um grupo de homens e 63 mulheres dedicados ao seu culto. O termo mais comum para designar um sacerdote em egípcio era hem-netjer, o que significa "Servo de Deus". Não se sabe em que época da história egípcia se estruturou o grupo sacerdotal. Na época do Império Antigo, os sacerdotes não estavam ainda organizados em corpos fixos como sucederia no Império Novo. De acordo com os Textos das Pirâmides, datados do Império Antigo, os reis tinham cinco refeições diariamente: três no céu e duas na terra; estas últimas estavam a cargo dos sacerdotes funerários. As fontes do Império Novo mostram que os sacerdotes estavam organizados em quatro grupos (em grego: phyles), cada um dos quais trabalhava durante um mês cada três meses. Durante os oito meses que tinham livres, os sacerdotes levavam uma vida comum inserida na comunidade, junto das suas esposas e filhos. O clero egípcio estava estruturado de forma hierárquica. O rei era, em teoria, o líder de todos os cultos egípcios, mas, como já foi referido, este delegava o seu 64 poder a outro homem devidamente preparado por Deus: o Sumo Sacerdote, que, na hierarquia, era seguido do segundo sacerdote, por sua vez seguido do terceiro e quarto sacerdotes. O grupo seguinte era o dos "pais divinos" e "dos "puros". Existiam também os sacerdotes leitores, os que calculavam o momento ideal para realizar uma determinada cerimónia através da observação do sol ("horólogos") e os que determinavam os dias fastos e nefastos ("horóscopos"). Finalmente, pode distinguir-se um grupo dedicado aos serviços de manutenção do templo (imiu-seté). As mulheres também trabalhavam nos templos seguindo o mesmo regime de rotatividade dos homens. Frequentemente, estas mulheres eram esposas dos sacerdotes. As mulheres poderiam ser cantoras (chemait), músicas (hesit) ou dançarinas (khebait). Durante o Império Antigo e o Império Novo, muitas mulheres da classe abastada serviram a deusa Hathor. No culto de Amon, o cargo mais importante ocupado por mulheres era o de "Adoradora Divina". As mulheres que 65 ocuparam este cargo foram filhas ou irmãs do faraó governante.‖ (https://pt.wikipedia.org/wiki/Religi%C3% A3o_no_Antigo_Egito) [4] ―Krishna ou Críxena (em sânscrito: , pronunciado K a ou kr ) no hinduísmo, é um avatar ou manifestação de Brâma, Vishnu e Shiva, os três nomes da divindade. Considerado o oitavo avatar de Vishnu, é uma das divindades mais cultuadas em toda a Índia possivelmente por ser o interlocutor de Arjuna no Bhagavad-Gitā e pelas comunidade Hare Krishna de seus seguidores. Krishna é muitas vezes descrito e retratado como uma criança comendo manteiga, um jovem rapaz tocando uma flauta como no Bhagavata Purana, :56 ou como um ancião que dá direção e orientação como no Bhagavad Gita. :15 As histórias de Krishna aparecem em várias tradições filosóficas e teológicas hindus que o retratam de vários modos: um deuscriança, um brincalhão, um modelo de amante, um herói divino e o Ser 66 Supremo[7] As escrituras principais que discutem a história de Krishna são o Mahabharata, o Harivamsa, o Bhagavata Purana e o Vishnu Purana. Nome e títulos A palavra em sânscrito k a é essencialmente um adjetivo que significa "negro", "azul" ou "azul-escuro". Como um substantivo feminino, k a é usado no sentido de "noite", "escuridão" no Rigveda. Krishna é um nome de Deus que significa "o todo atraente", a Verdade absoluta. O Mahabharata (Udyogaparva 71.4) analisa a palavra K ishna da seguinte maneira: krishir bhu-vacakah sabdo nas ca nirvriti-vacakah tayor aikyam param brahma krishna ity abhidhiyate A palavra 'krish' é a característica atrativa da existência divina, e 'na' significa 'prazer espiritual.' Quando o verbo 'krish' é adicionado ao 'na', ele se torna 67 'krishna', que indica a Suprema Verdade Absoluta. Krishna também é conhecido por diversos nomes, epítetos e títulos, que refletem suas múltiplas qualidades e atividades. Entre os mais usados, estão Hari ("Aquele que tira" [pecados, ou que afasta samsara, o ciclo de nascimentos e mortes]), Govinda ("Aquele que dá prazer às vacas, à Terra e aos sentidos") e Gopala ("Protetor das vacas" ou, mais precisamente, "Protetor da vida"). Iconografia Krishna é facilmente reconhecido por suas representações artísticas. Sua pele é retratada na cor preta ou azul-escura, conforme descrito nas Escrituras, embora em representações pictóricas modernas ele geralmente seja mostrado com pele azul. Ele aparece usando um dhoti de seda amarelo e uma coroa de penas de pavão. Representações comuns mostram-no como um bebê, um menino ou um jovem. Normalmente, está com uma perna dobrada na frente da outra, levando uma 68 flauta aos lábios, esboçando um sorriso misterioso, e acompanhado por vacas. A cena no campo de batalha de Kurukshetra, nomeadamente quando se dirige a Arjuna no Bhagavad Gita, é outro tema comum para sua representação. Nessas cenas, ele é mostrado como um homem de dois braços atuando como cocheiro, ou com as típicas características da arte religiosa hindu (tais como braços ou cabeças múltiplas) e com atributos de Vishnu, como o chakra. Biografia Este resumo se baseia no Mahabharata, no Harivamsa, no Bhagavata Purana e no Vishnu Purana . Os fatos narrados ocorreram no norte da Índia, a maior parte nos atuais estados de Uttar Pradesh, Bihar, Haryana, Deli e Gujarat. Nascimento e infância Yashoda, a mãe adotiva de Krishna, adornando-o, em pintura de Raja Ravi Varma (1848-1906) De acordo com o Bhagavata Purana, Krishna nasceu sem uma união sexual, mas por meio da "transmissão mental" 69 ióguica da mente de Vasudeva no ventre de Devaki. Baseado em dados das escrituras e cálculos astrológicos, a data de nascimento de Krishna, conhecida como Janmastami, é o dia 18 de julho de 3228 a.C. Krishna pertencia ao clã Vrishni dos Yadavas, de Mathura, capital dos clãs Vrishni, Andhaka e Bhoja. Foi o oitavo filho da princesa Devaki e seu marido Vasudeva O rei Kamsa subiu ao trono após mandar prender o próprio pai, Ugrasena (rei da dinastia Bhoja). Kamsa é tido como um grande demônio, que pertencia à classe dos Kshatriyas, mas que, de algum modo, havia se desviado do Dharma universal. No caminho que conduzia os noivos até a nova casa, Kamsa escutou uma voz que dizia que o oitavo filho de Devaki iria leválo à morte. Imediatamente fez menção de matar Devaki, mas Vasudeva implorou pela vida da esposa, prometendo que cada filho que nascesse, seria levado à presença de Kamsa. Receoso, mandou prender Vasudeva e a esposa no porão do castelo, sendo vigiados 70 dia e noite por guardas. Cada filho do casal que nascia era morto por Kamsa, que mesmo sabendo que a profecia se cumpriria apenas no oitavo filho, não tinha piedade de nenhum e matava a todos. Kamsa havia sido alertado por Narada Muni que, em breve, Vishnu nasceria na família de Vasudeva. Soube também, através deste sábio, que, em uma encarnação anterior, Kamsa havia sido um demônio chamado Kalanemi que tinha sido morto por Vishnu. Conta a tradição védica que Kamsa, temendo que Vishnu nascesse em qualquer uma das famílias do reino, mandou matar todos os meninos com até dois anos de idade, a fim de evitar o cumprimento da profecia. E foi então que o oitavo filho de Devaki nasceu - Bhagavan Sri Krishna. O local do nascimento é conhecido atualmente como Krishnajanmabhoomi, onde um templo foi erguido em honra. Como sua vida corria risco na prisão, foi tirado da 71 prisão e entregue aos pais adotivos Yashoda e Nanda em Gokula. Juventude Nanda, pai adotivo de Krishna, era o líder de uma comunidade de pastores de gado. As histórias da infância e juventude contam a vida e relação com as pessoas da região. Uma dessas histórias conta que Kamsa, descobrindo que ele havia sido libertado da prisão, enviou vários demônios para impedir que isso acontecesse. Todos falharam. São muitas as façanhas de Krishna e as aventuras com as Gopis da vila, incluindo Radha, aventuras estas que se tornaram conhecidas como Rasa lila. Krishna, o Príncipe Krishna, então um jovem homem, retorna para Mathura, acaba com o governo de Kamsa, e institui o pai, Vasudeva, que havia sido aprisionado por Kamsa, como rei de Yadavas. Em seguida declarou a si mesmo príncipe da corte. Neste período, iniciou a amizade com Arjuna e outros príncipes de Pandava do reino de Kuru. Casou-se com Rukmini, filha do rei Bishmaka de Vidarbha. Ele também teve 72 150 mil esposas, incluindo Satyabhama e Jambavati. A guerra de Kurukshetra Ver artigo principal: Guerra de Kurukshetra Krishna possuía primos em ambos os lados na guerra entre os Pandavas e os Kauravas, porém ele tomou o lado dos Pandavas e concordou em ser o cocheiro da carruagem de Arjuna - o primo e grande amigo - na batalha decisiva. O Bhagavad Gita consiste nos conselhos dados por Krishna a Arjuna, antes do início do combate. Últimos dias Segundo o Mahabharata, a Batalha de Kurukshetra resultou na morte de todos os cem filhos de Gandhari. Na noite antes da morte de Duryodhana, o Senhor Krishna visitou Gandhari para oferecer suas condolências. Pressentindo que Krishna conscientemente não tinha posto fim à guerra, Gandhari teve um acesso de raiva e tristeza, e amaldiçoou Krishna e toda a dinastia dos Yadu a morrerem no prazo de 36 anos. 73 Em um festival, uma briga começou entre os Yadavas, que exterminaram uns aos outros. Balarama, o irmão mais velho de Krishna, entregou conscientemente o corpo usando yoga. Krishna se retirou para a floresta e sentou-se debaixo de uma árvore em meditação. Um caçador chamado Jara confundiu o pé parcialmente visível de Krishna com um veado, e atirou uma flecha ferindo-o mortalmente. De acordo com os eruditos vaishnavas, o corpo de Krishna é completamente espiritual, e não seria corruptível nem sujeito à morte e à deterioração. Mesmo assim, na execução de seus passatempos terrenos, ele "aparenta" nascer e morrer como uma pessoa comum. Ao ver que tinha ferido Krishna, o caçador ficou muito perturbado e pediu perdão. Krishna então respondeu-lhe: "Você era Vali em seu nascimento anterior, e eu era Rama, que o matei secretamente. Você queria se vingar, e, assim, neste meu aparecimento, estou cumprindo seu desejo; tudo isso fazia parte do meu 74 plano". Dizendo isso, Krishna partiu para Goloka, sua morada celestial. Segundo as Escrituras hindus, o desaparecimento de Krishna ocorreu na meia-noite de 17 para 18 de fevereiro de 3102 a.C. e marca o fim de Dwapara Yuga e o início de Kali Yuga, a era da hipocrisia e das desavenças. Devido à presença de Krishna no planeta, o demônio Kali não se atreveu a manifestar-se com toda a sua força. Mas neste mesmo dia, Kali entra no mundo na forma do delito de ferir uma vaca - justamente o animal preferido de Krishna. Devoção a Krishna Segundo o Srimad Bhagavatam, Krishna é a forma original de Deus, superior a todas as outras expansões divinas, já que todas emanam dele. Krishna é um ser eterno, sem nascimento nem morte, que adotou uma manifestação temporária na terra para poder agraciar seus devotos e aniquilar os demônios - mas que simultaneamente está presente eternamente em seu planeta espiritual. Gita Govinda 75 Vários trabalhos foram importantes na difusão da devoção a Krishna, especialmente o Gita Govinda, escrito por Jayadeva Goswami na Índia oriental, no século XII. Trata a respeito da relação íntima de Krishna com uma gopi em particular, Radharani (que no Mahabharata teve papel secundário). Movimentos recentes de Krishna-bhakti Derivações posteriores das primeiras tradições de devoção a Krishna incluem a que foi promovida pelo santo bengali Caitanya Mahaprabhu, no século XVI. Seus seguidores consideram-no uma encarnação de Krishna e Radharani num só corpo. Vários movimentos pertencem a esta tradição, entre eles o Movimento Hare Krishna. Fundado em nova York pelo guru indiano Bhaktivedanta Swami Prabhupada em 1966, o Movimento Hare Krishna é o principal responsável pela disseminação contemporânea da figura de Krishna no Ocidente.‖ (https://pt.wikipedia.org/wiki/Krishna) [5] 76 ―O estoicismo (do grego Στωικισμός) é uma escola de filosofia helenística fundada em Atenas por Zenão de Cício no início do século III a.C. Os estoicos ensinavam que as emoções destrutivas resultam de erros de julgamento, e que um sábio, ou pessoa com "perfeição moral e intelectual", não sofreria dessas emoções. O estoicismo afirma que todo o universo é corpóreo e governado por um Logos divino (noção que os estoicos tomam de Heráclito de Éfeso e desenvolvem). A alma está identificada com este princípio divino como parte de um todo ao qual pertence. Este logos (ou razão universal) ordena todas as coisas: tudo surge a partir dele e de acordo com ele, graças a ele o mundo é um kosmos (termo grego que significa "harmonia"). Busto de Zenão de Cítio (334 a.C. - 262 a.C.), fundador do estoicismo, em Atenas, na Grécia O estoicismo propõe se viver de acordo com a lei racional da natureza e aconselha a indiferença (apathea) em relação a tudo que é externo ao ser. O homem sábio obedece à lei natural, reconhecendo-se 77 como uma peça na grande ordem e propósito do universo, devendo, assim, manter a serenidade perante tanto as tragédias quanto as coisas boas. A partir disso, surgem duas consequências éticas: primeiro, deve-se "viver conforme a natureza". Mas, sendo a natureza essencialmente o logos, essa máxima é prescrição para se viver de acordo com a razão. Sendo a razão aquilo por meio do que o homem torna-se livre e feliz, o homem sábio não apreende o seu verdadeiro bem nos objetos externos, mas usando estes objetos através de uma sabedoria pela qual não se deixa escravizar pelas paixões e pelas coisas externas. Os estoicos preocupavam-se com a relação activa entre o determinismo cósmico e a liberdade humana, e com a crença de que é virtuoso manter uma vontade (denominada prohairesis) que esteja de acordo com a natureza. Por causa disso, os estoicos apresentaram a sua filosofia como um modo de vida, e pensavam que a melhor indicação da filosofia de uma pessoa não era o que teria dito mas como se teria comportado. 78 Estoicos mais tardios, como Séneca e Epicteto, enfatizaram que porque a "virtude é suficiente para a felicidade", um sábio era imune aos infortúnios. Esta crença é semelhante ao significado de "calma estoica", apesar de essa expressão não incluir as visões "éticas radicais" estoicas de que apenas um "sábio" pode ser verdadeiramente considerado livre, e que todas as corrupções morais são igualmente viciosas. O estoicismo floresceu na Grécia com Cleantes de Assos e Crisipo de Solis, sendo levado a Roma no ano 155 a.C. por Diógenes de Babilônia. Ali, seus continuadores foram Marco Aurélio, Séneca, Epiteto e Lucano. Busto de Crisipo de Solis (c. 279 a.C. - c. 206 a.C.) O estoicismo foi uma doutrina que sobreviveu todo o período da Grécia Antiga, até o Império Romano, incluindo a época do imperador Marco Aurélio, até que todas as escolas filosóficas foram encerradas em 529 por ordem do imperador Justiniano I, que percepcionou as suas características pagãs, contrárias à fé cristã. 79 A escola estoica preconizava a indiferença à dor de ânimo causada pelos males e agruras da vida. Reunia seus discípulos sob pórticos ("stoa", em grego) situados em templos, mercados e ginásios. Foi bastante influenciada pelas doutrinas cínica e epicurista, além da influência de Sócrates. Princípios básicos do estoicismo Cquote1.svg A filosofia não visa a assegurar qualquer coisa externa ao homem. Isso seria admitir algo que está além de seu próprio objeto. Pois assim como o material do carpinteiro é a madeira, e o do estatuário é o bronze, a matéria-prima da arte de viver é a própria vida de cada pessoa. Cquote2.svg — Epiteto Os estoicos apresentavam uma visão unificada do mundo consistindo de uma lógica formal, uma física não dualista e uma ética naturalista. Dentre estes, eles enfatizavam a ética como o foco principal do conhecimento humano, embora suas teorias lógicas fossem de mais interesse para os filósofos posteriores. 80 Busto de Sêneca (4 a.C. - 65) em Córdoba, na Espanha O estoicismo ensina o desenvolvimento do autocontrole e da firmeza como um meio de superar emoções destrutivas. Defende que tornar-se um pensador claro e imparcial permite compreender a razão universal (logos). Um aspecto fundamental do estoicismo envolve a melhoria da ética do indivíduo e de seu bem-estar moral: "A virtude consiste em um desejo que está de acordo com a natureza". Este princípio também se aplica ao contexto das relações interpessoais; "libertar-se da raiva, da inveja e do ciúme" e aceitar até mesmo os escravos como "iguais aos outros homens, porque todos os homens são igualmente produtos da natureza". A ética estoica defende uma perspectiva determinista. Com relação àqueles que não têm a virtude estoica, Cleanto uma vez opinou que o homem ímpio é "como um cão amarrado a uma carroça, obrigado a ir para onde ela vai". Já um estoico de virtude, por sua vez, alteraria a sua vontade para se adequar ao mundo e 81 permanecer, nas palavras de Epicteto, "doente e ainda feliz, em perigo e ainda assim feliz, morrendo e ainda assim feliz, no exílio e feliz, na desgraça e feliz", assim afirmando um desejo individual "completamente autónomo" e, ao mesmo tempo, um universo que é "um todo rigidamente determinista". Retrato de Epiteto (55 - 135) na capa de uma tradução inglesa de 1751 do Manual de Epiteto O estoicismo tornou-se a filosofia mais popular entre as elites educadas do mundo helenístico e do Império Romano, a ponto de, nas palavras de Gilbert Murray, "quase todos os sucessores de Alexandre [...] declararem-se estoicos." História Por volta de 301 a.C., Zenão de Cítio ensinou filosofia no Pórtico Pintado, lugar a partir do qual o nome da filosofia se originou. Ao contrário de outras escolas de filosofia, como a dos epicuristas, Zenão escolheu ensinar a sua filosofia num espaço público, que era uma colunata com vista para o local central de manifestação da opinião pública, a Ágora de Atenas. 82 As ideias de Zenão desenvolveram-se a partir do cinismo, cujo fundador, Antístenes, foi um discípulo de Sócrates. O seguidor mais influente de Zenão foi Crisipo de Solis, responsável pela moldagem do que actualmente é denominado estoicismo. Estoicos posteriores, da época do Império Romano, focaram o aspecto da promoção de uma vida em harmonia com o universo, sobre o qual não se tem controlo directo. Os académicos dividem, normalmente, a história de estoicismo em três fases: A primeira (estoicismo antigo) desenvolveu-se no século III a.C., com Zenão de Cítio, Cleanto, Crisipo de Solis e Antíprato de Tarso, se preocupando com a lógica, a física, a metafísica e a moral. Na segunda (estoicismo médio), o pensamento estoico combinou-se com o espírito romano. Foi representado por Panécio de Rodes (180 a.C. - 110 a.C.) e Possidónio (135 a.C. - 51 a.C.). A terceira (estoicismo imperial ou novo estoicismo), com representantes como: Caio Musónio Rufo, Séneca (nascido no 83 início da era cristã e falecido em 65 d.C., Epicteto (50 d.C. - 125 d.C.) e Marco Aurélio (121 d.C. - 180 d.C.), que foi imperador romano em 161 d.C. As obras de Séneca, Epicteto e Marco Aurélio propagaram o estoicismo no mundo ocidental. A última época do estoicismo, ou período romano, caracteriza-se pela sua tendência prática e religiosa, fortemente acentuada como se verifica nos "Discursos" e no "Enchiridion" de Epiteto e nos "Pensamentos" ou "Meditações" de Marco Aurélio. Não sobreviveu, até a actualidade, qualquer obra completa de um filósofo estoico das duas primeiras fases. Apenas textos romanos da última fase nos chegaram completos. Epistemologia Os estoicos acreditavam que o conhecimento pode ser atingido através do uso da razão. A verdade pode ser distinguida da falácia, mesmo que, na prática, apenas uma aproximação possa ser efetuada. De acordo com os estoicos, os sentidos recebem constantemente sensações: pulsações que passam dos 84 objectos através dos sentidos em direcção à mente, onde deixam uma impressão na imaginação (phantasia). Uma impressão originária da mente era designada de phantasma. A mente tem a capacidade de julgar (sunkatathesis) — aprovar ou rejeitar — uma impressão, permitindo que possa ser feita uma distinção entre uma verdadeira representação da realidade de uma falsa. Algumas impressões podem ter um assentimento imediato, enquanto que outras podem apenas atingir diferentes graus de aprovação hesitante, que podem ser chamadas de crenças ou opiniões (doxa). É apenas através da razão que podemos atingir uma clara compreensão e convicção (katalepsis). A certeza e o conhecimento verdadeiro (episteme), alcançável pelo sábio estoico, podem apenas ser atingidos pela verificação da convicção com a experiência dos pares e pelo julgamento colectivo da humanidade. Cquote1.svg Produz para ti próprio uma definição ou descrição da coisa que te é apresentada, de modo a veres de maneira distintiva que tipo de coisa é na sua substância, na sua nudez, na sua completa 85 totalidade, e diz a ti próprio é seu nome apropriado, e os nomes das coisas de que foi composta, e nas quais irá resultar. Pois nada é mais produtivo para a elevação da alma, como ser-se capaz de examinar metódica e verdadeiramente cada objecto que te é apresentado na tua vida, e sempre observar as coisas de modo a ver ao mesmo tempo que universo é este, e que tipo de uso tudo nele realiza, e que valor todas as coisas têm em relação com o todo. Cquote2.svg — Marco Aurélio Filosofia social Uma característica distintiva do estoicismo é o seu cosmopolitismo: todas as pessoas seriam manifestações do espírito universal único e deveriam, de acordo com os estoicos, em amor fraternal, ajudarem-se uns ao outros de maneira eficaz. Nos Discursos, Epicteto comenta sobre a relação do ser humano com o mundo: "cada ser humano é, primeiro, um cidadão da sua comunidade; mas também é membro da grande cidade dos homens e deuses..." Este sentimento ecoa o de Diógenes de Sínope, que disse "Eu não 86 sou nem ateniense nem coríntio, mas um cidadão do mundo." Apoiavam a ideia de que as diferenças externas, como status e riqueza, não são importantes nas relações sociais. Em vez disso, advogavam a irmandade da humanidade e a natural igualdade do ser humano. O estoicismo tornou-se a mais influente escola do mundo greco-romano. O estoicismo produziu uma grande quantidade de escritores e personalidades de renome, como Catão, o Jovem e Epicteto. Em particular, os estoicos eram notados pela sua defesa à clemência aos escravos. Séneca exortava: "Lembra-te, com simpatia, de que aquele a quem chamas de escravo veio da mesma origem, os mesmos céus lhe sorriem, e, em iguais termos, contigo respira, vive e morre." (https://pt.wikipedia.org/wiki/Estoicismo) [6] ―Hinduísmo é uma tradição religiosa que se originou no subcontinente indiano. É frequentemente chamado de Sanātana 87 Dharma ( ) por seus praticantes, frase em sânscrito que significa "a eterna (perpétua) dharma (lei)". Num sentido mais abrangente, o hinduísmo engloba o bramanismo, isto é, a crença na "Alma Universal", Brâman; num sentido mais específico, o termo se refere ao mundo cultural e religioso, ordenado por castas, da Índia pósbudista.De acordo com o livro História das Grandes Religiões, "o hinduísmo é um estado de espírito, uma atitude mental dentro de seu quadro peculiar, socialmente dividido, teologicamente sem crença, desprovido de veneração em conjunto e de formalidades eclesiásticas ou de congregação: e ainda substitui o nacionalismo". Entre as suas raízes está a religião védica da Idade do Ferro na Índia e, como tal, o hinduísmo é citado frequentemente como a "religião mais antiga", a "mais antiga tradição viva" ou a "mais antiga das principais tradições existentes". É formado por diferentes tradições e composto por diversos tipos, e não possui um fundador. Estes tipos de sub-tradições 88 e denominações, quando somadas, fazem do hinduísmo a terceira maior religião, depois do cristianismo e do islamismo, com aproximadamente um bilhão de fiéis, dos quais cerca de 905 milhões vivem na Índia e no Nepal. Outros países com populações significativas de hinduístas são Bangladesh, Sri Lanka, Paquistão, Malásia, Singapura, ilhas Maurício, Fiji, Suriname, Guiana, Trinidad e Tobago, Reino Unido, Canadá e Estados Unidos. O vasto corpo de escrituras do hinduísmo se divide em shruti ("revelado") e smriti ("lembrado"). Estas escrituras discutem a teologia, filosofia e a mitologia hinduísta, e fornecem informações sobre a prática do dharma (vida religiosa). Entre estes textos os Vedas e os Upanixades possuem a primazia na autoridade, importância e antiguidade. Outras escrituras importantes são os Tantras, os Ágamas, sectários, e os Puranas (AFI: Purā as ), além dos épicos Maabárata (AFI: Mahābhārata ) e Ramáiana (AFI: Rāmāya a ). O Bagavadguitá (AFI: Bhagavad Gītā ), um tratado do Maabárata, narrado pelo deus Críxena (Krishna), costuma ser definido 89 como um sumário dos ensinamentos espirituais dos Vedas. Os hindus acreditam num espírito supremo cósmico, que é adorado de muitas formas, representado por divindades individuais. O hinduísmo é centrado sobre uma variedade de práticas que são vistos como meios de ajudar o indivíduo a experimentar a divindade que está em todas as partes, e realizar a verdadeira natureza de seu Ser. A teologia hinduísta se fundamenta no culto aos avatares (manifestações corporais) da divindade suprema, Brâman. Particular destaque é dado à Trimurti - uma trindade constituída por Brama (Brahma), Xiva (Shiva) e Vixnu (Vishnu). Tradicionalmente o culto direto aos membros da Trimurti é relativamente raro - em vez disso, costumam-se cultuar avatares mais específicos e mais próximos da realidade cultural e psicológica dos praticantes, como por exemplo Críxena (Krishna), avatar de Vixnu e personagem central do Bagavadguitá. Os hindus cultuam cerca de 330 mil divindades diferentes. 90 Etimologia Hindū é o nome em persa do rio Indo, encontrado pela primeira vez na palavra Hindu (h ndu) do persa antigo, correspondente ao sânscrito védico Sindhu. O Rigveda chama a terra dos indo-arianos como Sapta Sindhu (a terra dos sete rios no noroeste da Ásia Meridional, um deles o Indo), que corresponde ao Hapta H ndu no Avesta (Vendidad or Videvdad, 1.18), escritura sagrada do zoroastrianismo. O termo foi utilizado para designar aqueles que viviam no subcontinente indiano, ou para além do "Sindhu". O termo persa (persa médio Hindūk, persa moderno Hindū) entrou na Índia pelo Sultanato de Délhi e aparece nos textos do sul da Índia, bem como da Caxemira, a partir de 1323 d.C, e a partir daí é cada vez mais utilizado, especialmente durante o Raj britânico. Desde o fim do século XVIII a palavra passou a ser usada no Ocidente como um termo que abrange a maioria das tradições religiosas, espirituais e culturais do subcontinente, com a exceção do 91 sikhismo, budismo e jainismo, religiões distintas. Divisões O hinduísmo pode ser subdividido em diversas correntes principais. Dos seis darshanas ou divisões históricas originais, apenas duas escolas, a vedanta e a ioga, sobrevivem. As principais divisões do hinduísmo hoje em dia são o vixnuísmo, o xivaísmo, o smartismo e shaktismo. A imensa maioria dos hindus atuais podem ser categorizados sob um destes quatro grupos, embora ainda existam outros, cujas denominações e filiações variam imensamente. Alguns estudiosos dividem as correntes do hinduísmo moderno em seus "tipos": Hinduísmo popular, baseado nas tradições locais e nos cultos das divindades tutelares, praticado em nível mais localizado; Hinduísmo dármico ou "moral diária", baseado na noção de carma, na astrologia, nas normas de sociedade como o sistema de castas, os costumes de casamentos. 92 Hinduísmo vedanta, especialmente o Advaita (smartismo), baseado nos Upanixades e nos Puranas; Bhakti, ou "devocionalismo", especialmente o vixnuísmo; Hinduísmo bramânico védico, tal como é praticado pelos brâmanes tradicionalistas, especialmente os shrautins; Hinduísmo iogue, baseado especialmente nos Yoga Sutras de Patandjáli. Com os principais templos Hoysaleswara e Khajuraho. Definições Templo hinduísta em Mysore, Índia. O hinduísmo não tem um "sistema unificado de crenças, codificado numa declaração de fé ou um credo", mas sim é um termo abrangente, que engloba a pluralidade de fenômenos religiosos que se originaram e são baseados nas tradições vêdicas. Hindu é originalmente um termo persa, em uso desde os tempos do Sultanato Délhi, e que se referia a qualquer tradição nativa da Índia, em contraste com o islã. 93 Hindu é usado no inglês no sentido de "pagão indiano" desde o século XVII, porém a noção do hinduísmo como uma tradição religiosa identificável, qualificando uma das religiões do mundo, surgiu apenas durante o século XIX. A característica da tolerância compreensiva às diferenças de credo e a abertura dogmática do hinduísmo o torna difícil de ser definido como uma religião de acordo com o conceito ocidental tradicional. Embora o hinduísmo seja um conceito prático claro para a maior parte de seus seguidores, muitos manifestam algum tipo de problema ao tentar chegar a uma definição do termo, principalmente devido à ampla gama de tradições e ideias incorporadas ou cobertas por ele. Embora seja descrito como uma religião, o hinduísmo costuma ser definido com mais frequência como uma 'tradição religiosa'. É descrito como a mais antiga das religiões mundiais, e mais diversa em tradições religiosas. A maior parte das tradições hindus reverenciam um corpo de literatura sagrada ou religiosa, os Vedas, embora 94 existem exceções; algumas tradições religiosas acreditam que certos rituais específicos sejam essenciais para a salvação, mas diversos pontos de vista sobre o assunto podem coexistir. Algumas filosofias hindus postulam uma ontologia teística da criação, sustento e destruição do universo, enquanto outros hindus são ateus. O hinduísmo por vezes é caracterizado pela crença na reencarnação (samsara), determinada pela lei do karma (karma), e que a salvação é a liberdade deste ciclo de sucessivos nascimentos e mortes; outras religiões da região, no entanto, como o budismo e o jainismo, também acreditam nisto, mesmo estando fora do escopo do hinduísmo. O hinduísmo é visto como a mais complexa de todas as religiões históricas vivas do mundo, porém a despeito desta complexidade é não apenas numericamente a maior delas, como também a mais antiga tradição em existência na Terra, com raízes que se estendem até a pré-história. Uma definição do hinduísmo dada pelo primeiro vice-presidente da Índia, o reputado teólogo Sarvepalli 95 Radhakrishnan, diz que ele não é "apenas uma fé", mas que, por estar ele próprio relacionado à união da razão e intuição, não pode ser definido, apenas experimentado.[30] De maneira similar, alguns acadêmicos sugerem que o hinduísmo pode ser visto como uma categoria com seus limites pouco definidos, e não uma entidade rígida e bem-definida. Algumas formas de expressão religiosa são centrais ao hinduísmo, enquanto outras não são tão centrais, porém ainda enquadram-se dentro da categoria; com base nisto desenvolveram-se algumas teorias acerca da definição do hinduísmo, como a 'teoria dos protótipos'. Os problemas com uma única definição do que realmente se quer dizer pelo termo 'hinduísmo' frequentemente são atribuídas ao fato de que o hinduísmo não tem um fundador histórico único ou comum. O hinduísmo ou, como alguns dizem, 'hinduísmos', não tem um sistema único de salvação, e apresenta diferentes metas de acordo com a seita ou denominação. As formas da religião vêdica são vistos não como uma alternativa ao hinduísmo, mas 96 como a sua forma mais antiga, e praticamente não há justificativa para as divisões estabelecidas pela maior parte dos acadêmicos ocidentais entre o vedismo, o bramanismo e o próprio hinduísmo. Uma possível definição de hinduísmo é ainda mais complicada pelo uso frequente do termo "fé" como sinônimo para "religião". Alguns acadêmicos e diversos praticantes se referem ao hinduísmo com uma definição nativa, como 'Sanātana Dharma', uma frase em sânscrito que significa "a eterna lei" ou "eterno caminho". Crenças Escultura no templo de Hoysaleswara representando a Trimurti: Brahma, Shiva e Vishnu. O hinduísmo é uma corrente religiosa que evoluiu organicamente através dum grande território marcado por uma diversidade étnica e cultural significativa. Esta corrente evoluiu tanto através da inovação interior quanto pela assimilação de tradições ou cultos externos ao próprio hinduísmo. O resultado foi uma variedade enorme de tradições religiosas, que vai de 97 cultos pequenos e pouco sofisticados aos principais movimentos da religião, que contam com milhões de aderentes espalhados por todo o subcontinente indiano e outras regiões do mundo. A identificação do hinduísmo como uma religião independente, separada do budismo e do jainismo, depende muitas vezes da afirmação dos próprios fiéis de que ela o é. Temas proeminentes nas (porém não restritos às) crenças hinduístas incluem o darma (dharma, ética hindu), samsara (samsāra, o contínuo ciclo do nascimento, morte e renascimento), carma (karma, ação e consequente reação), mocsa (moksha, libertação do samsara), e as diversas iogas (caminhos ou práticas). Conceito de Deus Ver artigo principal: Deus no hinduísmo Brama, uma das principais divindades do hinduísmo. O hinduísmo é um sistema diversificado de pensamento, com crenças que abrangem o monoteísmo, politeísmo, panenteísmo, panteísmo, monismo e ateísmo, e o seu conceito de Deus é complexo, e está 98 vinculado a cada uma das suas tradições e filosofias. Por vezes é tido como uma religião henoteísta (isto é, que envolve a devoção a um único deus, embora aceite a existência de outros), porém o termo é visto, da mesma maneira que os outros, como uma generalização excessiva. A maior parte dos hindus acredita que o espírito ou a alma - o "eu" verdadeiro de cada pessoa, chamado de ātman — é eterno. De acordo com as teologias monistas/panteístas do hinduísmo (tais como a escola Advaita Vedanta), este Atman não pode ser distinguido, em última instância, do Brâman, o espírito supremo; estas escolas são, portanto, chamadas de não-dualistas. A meta da vida, de acordo com a escola Advaita, é chegar à conclusão que o seu ātman é idêntico ao Brâman, a alma suprema. Os Upanixades afirmam que quem que tome consciência do ātman como o âmago de si próprio estabelece uma identidade com Brâman, atingindo assim o moksha ("liberação" ou "liberdade"). Escolas dualísticas (Ver Dvaita e Bhakti) compreendem Brâman como um Ser 99 Supremo que possui personalidade, e o/a veneram como Vishnu, Brahma, shiva ou Shakti, dependendo da seita. O ātman é dependente de Deus, enquanto o moksha depende do amor a Deus e da graça de Deus. Quando Deus é visto como um ser supremo pessoal (em lugar do princípio infinito), Deus é chamado de Ishvara ("O Senhor"), Bhagavan ("O Auspicioso") ou Parameshwara ("O Senhor Supremo" As interpretações de Ishvara variam, no entanto, da não-crença no Ishvara dos seguidores do Mimamsakas, até a sua identificação com Brâman, pelo Advaita.[39] Na maior parte das tradições do vishnuísmo Deus é Vishnu, e o texto das escrituras desta denominação identifica este Ser como Krishna, por vezes chamado de svayam bhagavan. Também existem escolas, como o Samkhya, que têm tendências ateias. Devas e avatares Críxena (à esquerda), a oitava encarnação (avatar) de Vishnu, ou svaym bhagavan, com sua consorte, Rada - venerada como Radha Krishna em diversas tradições. Pintura tradicional do século XVII. 100 As escrituras hindus se referem a entidades celestiais chamadas devas (ou devī, na sua forma feminina; devatā é usado como sinônimo de Deva em hindi), "os brilhantes", que pode ser traduzido como "deuses" ou "seres celestiais". Os devas são uma parte integrante da cultura hindu, e foram retratados na sua arte, arquitetura, e através de ícones, e histórias mitológicas sobre eles foram relatadas nas escrituras da religião, particularmente na poesia épica indiana e nos Puranas. Frequentemente são, no entanto, dissociados de Ishvara, um deus pessoal supremo que muitos hindus veneram de uma forma particular, como seu i ṭa devatā, ou "ideal escolhido". A escolha é uma questão de preferência individual e tradições regionais e familiares. Os épicos hindus e os Puranas relatam diversos episódios da descida de Deus à Terra em sua forma corpórea para restaurar o dharma da sociedade e guiar os humanos ao moksha. Tal encarnação é chamada de avatar. Os avatares mais são os de Vishnu, e incluem Rama (protagonista do Ramáyana) e Krishna (figura central do épico Mahabárata). 101 Karma e samsara Ver artigo principal: Karma Karma pode ser traduzido literalmente como "ação", "obra" ou "feito" e pode ser descrito como a "lei moral de causa e efeito". De acordo com os Upanixades um indivíduo, conhecido como o jiva-atma, desenvolve samskaras (impressões) a partir das ações, sejam elas físicas ou mentais. O linga sharira, um corpo mais sutil que o físico, porém menos sutil que a alma, armazena as impressões, e lhes carrega à vida seguinte, estabelecendo uma trajetória única para o indivíduo. Assim, o conceito de um carma infalível, neutro e universal, relaciona-se intrinsecamente à reencarnação, assim como à personalidade, característica e família de cada um. O carma une os conceitos de livre-arbítrio e destino. O ciclo de ação, reação, nascimento, morte e renascimento é um contínuo, chamado de samsara. A noção de reencarnação e carma é uma premissa forte do pensamento hindu. O Bagavadguitá afirma que: 102 ― Assim como uma pessoa veste roupas novas e joga fora as roupas antigas e rasgadas, uma alma encarnada entra em novos corpos materiais, abandonando os antigos. (B.G. 2:22)‖ A samsara dá prazeres efêmeros, que levam as pessoas a desejarem o renascimento para gozar dos prazeres de um corpo perecível. No entanto, acreditase que escapar do mundo da samsara através do moksha assegura felicidade e paz duradouras. Acredita-se que depois de diversas reencarnações um atman eventualmente procura a união com o espírito cósmico (Brâman/Paramatman). A meta final da vida, referida como moksha, nirvana ou samādhi, é compreendida de diversas maneiras diferentes: como uma realização da união de alguém com Deus; como a realização da relação eterna de alguém com Deus; realização da unidade de toda a existência; abnegação total e conhecimento perfeito do próprio Eu; como o alcance de uma paz mental perfeita; e como o desprendimento dos desejos mundanos. Tal realização libera o 103 indivíduo da samsara e termina com o ciclo de renascimentos. A conceitualização do moksha difere entre as várias escolas de pensamento hindu. O Advaita Vedanta, por exemplo, sustenta que após alcançar o moksha um atman não mais identifica a si próprio como um indivíduo, mas sim como sendo idêntico a Brâman em todos os aspectos. Os seguidores das escolas Dvaita (dualísticas) se identificam como parte de Brâman, e, após atingir o moksha, esperam passar a eternidade num loka (céu),[57] na companhia de sua forma escolhida de Ishvara. Assim, diz-se os seguidores do Dvaita desejam "provar o açúcar", enquanto os seguidores do Advaita querem "se tornar açúcar". Objetivos da vida humana Ver artigo principal: Purusharthas O pensamento hindu clássico aceita os seguintes objetivos da vida humana, conhecidos como os puru ārthas ou "quatro objetivos da vida": dharma "retidão", "ethikos", artha "sustento", "riqueza", kāma "prazer sensual", mok a "liberação", "liberdade" [do samsara]". 104 No hinduísmo, acredita-se que todos os homens seguem o kama e o artha, mas brevemente, com maturidade, eles aprendem a controlar estes desejos com o dharma, ou a harmonia moral presente em toda a natureza. O objetivo maior seria o infinito, cujo resultado é a absoluta felicidade, moksha, ou liberação (também conhecida como mukti, samadhi, nirvana, etc.) do samsara, o ciclo da vida, morte, e da existência dual. Ioga Ver artigo principal: Ioga Estátua de Xiva em meditação yogue. Qualquer que seja a maneira na qual o hindu defina a meta de sua vida, existem diversos métodos (yôgas) que os sábios ensinaram para se atingir aquela meta. Textos dedicados ao ioga incluem o Bagavadgitá (Bhagavad Gita), os Yôga Sutras, o Hatha Yoga Pradipika, a Gheranda Samhita, entre outros, e, como sua base filosófico-histórica, os Upanixades. Os caminhos que um indivíduo pode seguir para atingir a meta espiritual da vida (moksha ou samadhi) incluem, entre outros: 105 Bhakti Yoga (o caminho do amor e da devoção) Karma Yoga (o caminho da ação correta) Raja Yoga (o caminho da meditação) Jnana Yoga (o caminho da sabedoria) Raja Yoga (o caminho da união real) Um indivíduo pode preferir um ou alguns iogas sobre os outros, de acordo com a sua inclinação e entendimento. Algumas escolas devocionais ensinam que o bhakti é, para a maior parte das pessoas, a único caminho prático para se alcançar a perfeição espiritual, com base em sua crença de que o mundo atualmente estaria no Kali Yuga (uma das quatro épocas que formam o ciclo Yuga). A prática de um yoga não exclui as outras, e muitos estudiosos acreditam que os diferentes yogas se misturam naturalmente e auxiliam na prática das outros yogas. Por exemplo, acredita-se que a prática da Jñana Yoga inevitavelmente leve ao amor puro (a meta do bacti-ioga), e vice-versa. Alguém que pratica a meditação profunda (como no raja-ioga) deve incorporar os princípios centrais do karma-ioga, do 106 jnana-ioga e do bacti-ioga, seja direta ou indiretamente. Práticas As práticas hinduístas geralmente envolvem a procura da consciência de Deus, e por vezes também a procura de bençãos dos devas. Assim, o hinduísmo desenvolveu muitas destas práticas como forma de ajudar o indivíduo a pensar na divindade em meio à vida cotidiana. Os hindus podem praticar a pūjā (culto ou veneração) tanto em casa como num templo. Em seus próprios lares os hindus frequentemente costumam criar um altar, com ícones dedicados às suas formas escolhidas de Deus. Os templos costumam ser dedicados a uma divindade primária e às divindades subordinadas que lhe são associadas, embora alguns templos sejam dedicados a mais de uma divindade. A visita a templos não é obrigatória, e muitos os visitam apenas durante os festivais religiosos. Os hindus realizam seu culto através dos murtis, ícones; o ícone serve como uma ligação tangível entre o fiel e Deus. A imagem costuma ser considerada uma manifestação de Deus, já que Ele é imanente. O Padma Purana afirma que o 107 mūrti não deve ser visto como apenas pedra ou madeira, mas sim como uma forma manifesta da Divindade. Algumas seitas hindus, como o Ārya Samāj, não acreditam em venerar Deus através de ícones. O hinduísmo possui um sistema desenvolvido de simbolismo e iconografia para representar o sagrado na arte, arquitetura, literatura e em seu culto. Estes símbolos ganham seu significado das escrituras, mitologia ou tradições culturais. A sílaba Om (que representa o Parabrahman) e o sinal da suástica (que simboliza auspiciosidade) acabaram passando a representar o próprio hinduísmo, enquanto outros símbolos, como a tilaka, identificam um seguidor da fé. O hinduísmo ainda apresenta diversos símbolos que são costumeiramente associados a divindades específicas, como o lótus, chakra e veena. Os mantras são invocações, louvores e orações que, através de seu significado, som e estilo de canto, ajudam um devoto a focar a sua mente nos pensamentos sagrados ou exprimir devoção a Deus ou 108 às divindades. Muitos devotos realizam abluções matinais às margens de um rio sagrado, enquanto cantam o Gayatri Mantra ou os mantras Mahamrityunjaya. O poema épico Maabárata exalta o japa (canto ritualístico) como o maior dever durante o Kali Yuga (que os hindus acreditam ser a era presente), e muitos adotam o japa como sua prática espiritual primordial. Rituais Tradicionais diyas e outros itens usados em orações durante uma cerimônia de casamento hindu. A imensa maioria dos hindus praticam rituais religiosos diariamente, porém a observância destes rituais varia enormemente de acordo com as regiões, cidades ou aldeias e indivíduos. A maior parte dos hindus segue estes rituais religiosos em seus lares. Os hindus mais devotos também executam tarefas diárias, como venerar durante a alvorada, depois de se banhar (normalmente num santuário familiar, num ritual que também envolve o acendimento de uma lâmpada e a colocação de oferendas de alimentos diante de imagens das divindades), recitar 109 os escritos religiosos, cantar hinos devocionais, meditar, cantar mantras, entre outros. Um fator de destaque nos rituais religiosos é a divisão entre o puro e o impuro (ou poluído). Atos religiosos pressupõem algum grau de impureza ou poluição para o seu praticamente, que devem ser anulados ou neutralizados antes ou durante o decorrer do ritual. A purificação, feita geralmente com água, é portanto um aspecto típico da maior parte dos atos religiosos do hinduísmo. Outras características incluem a crença na eficácia do sacrifício e do conceito de mérito, ganho através da realização da caridade ou de bons atos, que acumulam com o tempo e reduzem o sofrimento no próximo mundo. Os ritos védicos da oblação pelo fogo (yajna) são atualmente apenas práticas ocasionais, embora sejam altamente reverenciadas na teoria. Nas cerimônias de casamentos e funerais hindus, no entanto, o yajña e o entoamento de mantras védicos ainda são a norma. Os rituais, upacharas, mudam com o tempo; por exemplo, nas últimas centenas de anos alguns rituais, como as danças sagradas e as oferendas musicais nos tradicionais conjuntos de Upacharas 110 Sodasa, recomendados pelo Agama Shastra, foram substituídos por oferendas de arroz e doces. Ocasiões como nascimentos, casamentos e mortes envolvem o que são frequentemente conjuntos elaborados de costumes religiosos. No hinduísmo, os rituais que tratam do ciclo da vida incluem o Annaprashan (a primeira ingestão de comida sólida por um bebê), Upanayanam ("cerimônia do fio sagrado" pela qual passam as crianças de castas elevadas em sua iniciação na educação formal) e Shraadh (ritual de conceder banquetes em nome dos falecidos). Para a maior parte das pessoas na Índia, o noivado de um jovem casal e a data e hora exatas do casamento são questões decididas pelos pais, em consultas com astrólogos. Na morte, a cremação, que é considerada obrigatória para todos, com a exceção de sanyasis, hijra e crianças abaixo de cinco anos,[carece de fontes] costuma ser executada envolvendo-se o corpo em algum tecido e queimando-o sobre uma pira. Peregrinação e festivais Ver artigo principal: Festivais hindus 111 Diwali, o festival das luzes, principal do hinduísmo. mostradas as tradicionais frequentemente são acesas Diwali. é o festival Aqui são Diyas, que durante o A peregrinação não é obrigatória no hinduísmo, embora muitos de seus seguidores as realizem. Os hindus reconhecem diversas cidades sagradas na Índia, incluindo Allahabad, Haridwar, Varanasi e Vrindavan. Entre as cidades que possuem templos famosos está Puri, que abriga um dos principais templos vixnuísta de Jagannath e a comemoração de Rath Yatra; Tirumala - Tirupati, lar do Templo Tirumala Venkateswara; e Katra, onde se localiza o templo de Vaishno Devi. Os quatro locais sagrados de Puri, Rameswaram, Dwarka e Badrinath (ou, alternativamente, as cidades de Badrinath, Kedarnath, Gangotri e Yamunotri, no Himalaia) compõem o circuito de peregrinação de Char Dham (quatro moradas). O Kumbh Mela (o "festival das jarras") é uma das peregrinações hindus mais sagradas, realizada a cada quatro anos; a localização é alternada entre Allahabad, Haridwar, Nashik e Ujjain. 112 Outro importante grupo de peregrinações são os Shakti Peethas, onde a Deusa Mãe é cultuada, da qual as duas principais são Kalighat e Kamakhya. O hinduísmo apresenta diversos festivais ao longo do ano. O calendário hindu costuma prescrever estas datas. Estes festivais tipicamente celebram eventos da mitologia hindu, e coincidem muitas vezes com as mudanças de estação. Existem festivais que são celebrados principalmente por seitas específicas ou em certas regiões do Subcontinente Indiano. Alguns dos festivais mais importantes são o Maha Shivaratri, Holi, Ram Navami, Krishna Janmastami, Ganesh Chaturthi, Dussera e Durga Puja, além do Diwali. Escrituras O Rig Veda é um dos mais antigos textos religiosos. Este manuscrito do Rig Veda em particular esta no alfabeto devanágari. O hinduísmo baseia-se no "tesouro acumulado de leis espirituais descobertas por diferentes pessoas em diferentes tempos." As escrituras foram transmitidas oralmente, na forma de versos - para 113 auxiliar na sua memorização, muitos séculos antes de serem escritos. Ao longo dos séculos diversos sábios refinaram estes ensinamentos e expandiram o cânone. Na crença hindu pós-védica e moderna a maior parte das escrituras não costuma ser interpretadas literalmente; dá-se mais importância aos significados éticos e metafóricos derivados deles. A maior parte dos textos sagrados está em sânscrito, e os textos se dividem em duas classes: Shruti e Smriti. Shruti Ver artigo principal: Śruti Shruti (lit: "aquilo que é ouvido") referese primordialmente aos Vedas, que compõem o mais antigo registro das escrituras hindus. Enquanto muitos hindus veneram os Vedas como verdades eternas reveladas aos antigos sábios (Ṛ is), alguns devotos não associam a criação deles com qualquer divindade ou pessoa, acreditando serem leis do mundo espiritual, que existiriam mesmo se não tivessem sido reveladas aos sábios. Os hindus acreditam que, como as verdades espirituais dos Vedas são eternas, eles 114 estão sendo expressos continuamente, de diferentes maneiras. Vedas Os Vedas são os textos mais antigos do hinduísmo, e também influenciaram o budismo, o jainismo e o sikhismo. Os Vedas contêm hinos, encantamentos e rituais da Índia antiga. Juntamente com o Livro dos Mortos, com o Enuma Elish, I Ching e o Avesta, eles estão entre os mais antigos textos religiosos existentes. Além de seu valor espiritual, eles também oferecem uma visão única da vida cotidiana na Índia antiga. Enquanto a maioria dos hindus provavelmente nunca leram os Vedas, a reverência por mais uma noção abstrata de conhecimento (Veda significa "conhecimento" em sânscrito) está profundamente impregnada no coração daqueles que seguem o Veda Dharma. Existem quatro Vedas: Rig Veda, Sama Veda, Yajur Veda, Atharva Veda. O Rig Veda é o primeiro e mais importante deles. Cada Veda se divide em quatro partes: a primeira, o Veda propriamente dito, é o Saṃhitā, que contém mantras sagrados. 115 As outras três partes formam um conjunto em três camadas de comentários, costumeiramente em prosa, tidos como feitos numa data um pouco posterior ao Saṃhitā. São os Brâmanas (Brāhma as), Āra yakas e os Upanixades. As primeiras duas partes foram chamadas posteriormente de Karmakā ḍa (parte ritualística), enquanto as últimas duas formam a Jñānakā ḍa (parte do conhecimento). Embora os Vedas tenham como foco os rituais, os Upanixades se concentram numa abordagem espiritual e em ensinamentos filosóficos, discutindo Brâman e a reencarnação. Upanixades Os Upanixades são denominados Vedanta, porque eles contêm uma exposição da essência espiritual dos Vedas. Entretanto é importante observar que os Upanixades são textos e Vedanta é uma filosofia. A palavra Upanishad significa "sentar-se próximo ou perto", pois os estudantes costumavam sentar-se no solo, próximos a seus mestres. Os Upanixades organizaram mais precisamente a doutrina védica de auto116 realização, yoga, e meditação, karma e reencarnação, que eram veladas no simbolismo da antiga religião de mistérios. Os mais antigos Upanixades são geralmente associados a um Veda em particular, através da exposição de uma brâmana ou Aranyaka, enquanto os mais recentes não. Formando o coração da Vedanta (Final dos Vedas), eles contêm a técnica de adoração aos deuses védicos e capturam a essência do dito do Rig Veda "A Verdade é Uma". Eles colocam a filosofia hindu separada e acolhendo uma única e transcendente força imanente e inata na alma de cada ser humano, identificando o microcosmo e o macrocosmo como Um. Podemos dizer que enquanto o hinduísmo primitivo é fundamentado nos quatro Vedas, o hinduísmo clássico, a ioga e vedanta, e correntes tântricas do Bhakti foram modelados com base nos Upanixades. Smritis O Naradeya Purana descreve a mecânica do universo; neste retrato vê-se Vishnu, com sua consorte, Lakshmi, descansando 117 em Shesha Nag. Narada e Brama também aparecem. Textos hindus além dos shrutis são chamados coletivamente de smritis ("memória"). Os mais célebres dentre os smritis são os poemas épicos, que consistem do Maabárata (Mahābhārata) e do Ramáiana (Rāmāya a). O Bagavadguitá (Bhagavad Gītā), parte integral do Maabárata, e um dos mais populares textos sacros do hinduísmo, contém ensinamentos filosóficos de Krishna, uma encarnação de Vishnu, narradas ao príncipe Arjuna às vésperas de uma grande guerra. O Bhagavad Gītā, narrado por Krishna, é descrito como a essência dos Vedas. O Gītā, no entanto, por vezes também chamado de Gitopanishad ("Guitopanixade"), costuma ser categorizado com maior frequência entre os shrutis, por ter um conteúdo de natureza upanixádica.[86] Os smritis também incluem os Puranas (Purā as), que ilustram ideias hindus através de narrativas vívidas. Também existem textos de natureza sectária, como o Devi Mahatmya (Devī Mahātmya), os Tantras, os Yoga Sutras, Tirumantiram, Shiva 118 Sutras e Agamas (Āgamas). Um texto mais controverso, o Manusmriti, é o livro de leis que epitomiza os códigos sociais do sistema de castas. Puranas Os Puranas são considerados smriti; ensinamentos não escritos passados oralmente de uma geração a outra. Eles são distintos dos shrutis ou ensinamentos em escritos tradicionais. Existem um total de 18 Puranas maiores, todos escritos em forma de versos. Acredita-se que estes textos foram escritos muito anteriormente ao Ramayana e ao Mahabarata. Acreditase que o mais antigo Purana provém de cerca de 300 a.C., e os mais recentes de 1300-1400 d.C. Apesar de terem sido compostos em diferentes períodos, todos os Puranas parecem ter sido revisados. Tal pode ser notado quando se observa que todos eles comentam que o número de Puranas é 18. Os Puranas variam muito: o Skanda Purana é o mais longo com 81 000versos, enquanto o Brahma Purana e o Vamana Purana são os mais curtos com 10 000 versos cada. O número total de versos em todos os 18 Puranas é 400 000. Ramayana e Mahabarata 119 O Ramayana e o Mahabarata são os livros épicos nacionais da Índia. São provavelmente os poemas mais longos escritos em todo o mundo. A obra conta a história de um príncipe, Rama de Ayodhya, cuja esposa Sita é abduzida pelo demônio Rāvana, rei de Lanka. O Mahabarata é atribuído ao sábio Vyasa, e foi escrito no período entre 540 e 300 a.C.. A obra, que conta a lenda dos báratas, uma das tribos arianas, discute o tri-varga ou as três metas da vida humana: kama ou desfrute sensorial, artha ou desenvolvimento econômico e dharma a religiosidade mundana que se resume em códigos de conduta moral e ritual. O Ramayana é atribuído ao poeta Valmiki, e foi escrito no primeiro século d.C., apesar de ser baseado em tradições orais que datam de seis ou sete séculos a.C. Bhagavad Gita A Bhagavad Gita (Bagavadguitá em português) é considerado parte do Maabárata (escrito em 400 ou 300 a.C.), é um texto central do hinduísmo, um 120 diálogo filosófico entre o deus Krishna e o guerreiro Arjuna. Este é um dos mais populares e acessíveis textos do hinduísmo, e é de essencial importância para a religião. O Gita discute altruísmo, dever, devoção, meditação, integrando diferentes partes da filosofia hindu. As Leis de Manu Manu é o homem lendário, o "Adão" dos hindus. As leis de Manu, ou Manusmriti, são uma coleção de textos atribuídos a ele. História O monte Kailash, no Tibete, é tido como a morada espiritual de Shiva. A mais antiga evidência de uma religião pré-histórica na Índia data do fim do Neolítico, no período harapano inicial (5500-2600 a.C.). As crenças e práticas do período pré-clássico (1500-500 a.C.) são chamadas coletivamente de "religião histórica védica". O hinduísmo moderno cresceu a partir dos Vedas, dos quais o mais antigo é o Rig Veda, que data de 1700-1100 a.C.. Os Vedas centralizam o culto em divindades como Indra, Varuna e Agni, e no ritual do soma[desambiguação necessária]. Sacrifícios de fogo eram 121 realizados, chamados de yagna (yajña), e entoavam mantras védicos, porém não construíam templos nem ícones.[carece de fontes] As tradições védicas mais antigas mostram fortes semelhanças com o zoroastrianismo e outras religiões indoeuropeias. Os principais épicos em sânscrito, o Ramáiana e o Maabárata, foram compilados durante um período extenso que abrangeu os últimos séculos antes de Cristo, e os primeiros da Era Comum, e contêm histórias mitológicas sobre os governantes e as guerras da antiga Índia, intercaladas com tratados religiosos e filosóficos. Os Puranas posteriores recontam histórias sobre os devas e devis, suas interações com os humanos e suas batalhas contra demônios (rakshasas). Origens históricas e aspectos sociais Pouco é conhecido sobre a origem do hinduísmo, já que a sua existência antecede os registros históricos. É dito que o hinduísmo deriva das crenças dos arianos, que residiam nos continentes subindianos, ('nobres' seguidores dos Vedas), dravidianos, e harapanos. Alguns dizem 122 que o hinduísmo nasceu com o budismo e o jainismo, mas Heinrich Zimmer e outros indólogos afirmam que o jainismo é muito anterior ao hinduísmo, e que o budismo deriva deste e do Sankhya que em consequência afetaram o desenvolvimento de sua religião mãe. Diversas são as ideias sobre as origens dos Vedas e a compreensão se os arianos eram ou não nativos ou estrangeiros na Índia. A existência do hinduísmo data de 4000 a 6000 mil anos a.C. Historicamente, a palavra hindu antecede o hinduísmo como religião; o termo é de origem persa e primeiramente referia-se ao povo que residia no outro lado (do ponto de vista persa) do Sindhu ou rio Indo. Foi utilizado para expressar não somente a etnicidade mas a religião védica desde o século XV e século XVI, por personalidades como Guru Nanak (fundador do sikhismo). Durante o Império Britânico, a utilização do termo tornou-se comum, e eventualmente, a religião dos hindus védicos foi denominada "hinduísmo". Na verdade, foi meramente uma nova vestimenta para 123 uma cultura que vinha prosperando desde a mais remota Antiguidade. Distribuição geográfica atual A Índia, a Maurícia, e o Nepal, assim como a ilha indonésia de Bali têm como religião predominante o hinduísmo; importantes minorias hindus existem em Bangladesh (11 milhões), Myanmar (7,1 milhões), Sri Lanka (2.5 milhões), Estados Unidos (2,5 milhões), Paquistão (4,3 milhões), África do Sul (1,2 milhão), Reino Unido (1,5 milhão), Malásia (1,1 milhão), Canadá (1 milhão), Ilhas Fiji (500 mil), Trinidad e Tobago (500 mil), Guiana (400 mil), Países Baixos (400 mil), Singapura (300 mil) e Suriname (200 mil). Filosofia hindu: as seis escolas védicas As seis escolas filosóficas ortodoxas hindus (Astika, que aceitam a autoridade dos Vedas) são Nyaya, Vaisheshika, Sankhya, Yoga, Purva Mimamsa (também denominada Mimamsa) e Uttara Mimamsa (também denominada Vedanta). As escolas não-védicas são denominadas Nastika, ou heterodoxas, e referem-se ao budismo, jainismo e Lokayata. As escolas que continuam a influenciar o hinduísmo 124 hoje são Purva Mimamsa, Yoga, e Vedanta. Nyaya A escola Nyaya é de importância ímpar no desenvolvimento da filosofia indiana devido ao seu papel na construção de um sistema lógico e analítico, do qual nasceu todo o resto da filosofia lógica indiana, além de influenciar o desenvolvimento paralelo em diversas outras áreas do pensamento. O Nyaya foi fundado por Aksapada Gautama, conhecido como Aksapada ("o de olhos fixos nos pés"), que escreveu o texto de maior importância dessa escola, o Nyaya Sutra, por volta do século II a.C. Inicialmente vista com suspeita pelo clero hindu, passou logo depois a ser promovido por este como ferramenta de debate contra os heterodoxos (materialistas, budistas e jainistas). A escola teve seu prestígio incrementado, e o seu sistema passou a ser visto como um dos meios para se levar à salvação. Vaisheshika 125 A escola Vaisheshika representa uma linha de pensamento intimamente associada com a da Nyaya, e originalmente proposta pelo sábio Kanada (ou Kana-bhuk'", literalmente, comedor de átomos), em torno do século II aC. Basicamente, a Vaisheshika expressa uma forma de atomismo e postula que todos os objetos do universo físico são redutíveis a um número finito de átomos. Samkhya A filosofia Sámkhya é anterior ao bramanismo, filosofia que deu origem ao hinduísmo, como coloca o indólogo Heinrich Zimmer em seu clássico Filosofias da Índia. Patandjali, monge do sul da Índia, onde até hoje a tradição tamil preserva elementos das filosofias prévédicas, tinha formação no sistema Saámkhya-yoga, indissociável. O Sámkhya foi compilado bem antes de Patandjali (que viveu no século II a.C., por Kapila, que viveu pouco tempo antes de Buda. Uma diferença importante entre o Sámkhya e o bramanismo é que o primeiro é dualista, e o segundo monista, mas ambos vêem o espírito, ou Deus, como 126 imanente e transcendente ao mesmo tempo. Inicialmente vista com suspeita pelo clero hindu, passou logo depois a ser promovido por este como ferramenta de debate contra os heterodoxos (materialistas, budistas e jainistas). A escola teve seu prestígio incrementado, e o seu sistema passou a ser visto como um dos meios para se levar à salvação. A diferença mais significante do Sámkhya é que a escola de yoga não somente incorpora o conceito do Ishvara (ou "Deus pessoal") numa visão do mundo metafísica mas também sustenta Ishvara como um ideal sobre o qual meditar. A razão é que Ishvara é o único aspecto de purusha (do infinito Terreno Divino) que não foi mesclado com prakrti (forças criativas temporárias). Também utiliza as terminologias Brahman/Atman e conceitos profundos dos Upanixades, adotando uma visão vedântica monista. A realização do objetivo do ioga é conhecido como moksha ou samadhi. E como nos Upanixades, busca o despertar ou a compreensão de Atman como sendo nada mais que o 127 infinito brâmane, através da (mente) ética, (corpo) físico e meditação (alma), o único alvo de suas práticas é a "verdade suprema". Purva Mimamsa A escola Purva Mimamsa (ou "investigação anterior") estabeleceu as bases para a formulação de regras de interpretação dos Vedas. O principal questionamento da Purva Mimamsa se refere à natureza das lei naturais (ou dharma). Segundo esta linha de pensamento, a natureza do dharma não é acessível à razão ou observação, e deve ser inferida a partir da autoridade da revelação contida nos Vedas. Este método empírico e eminentemente sensível de aplicação religiosa é a chave para Sanatana Dharma e foi especialmente desenvolvido por racionalistas como Sankaracharya e Swami Vivekananda. A Purva Mimamsa, sendo fortemente ligada à exegese textual dos Vedas, deu origem ao estudo da filologia, ou da filosofia linguagem na Índia. A introdução da noção de shabda ("discurso") como unidade indivisível de 128 som e significado é devido ao sábio Bhartrhari (século VII). Ioga O sistema do ioga é geralmente considerado como tendo surgido a partir da filosofia Sankhya. Entretanto o ioga referido aqui, é especialmente o raja-ioga (Raja Yoga, ou união através da meditação). E é baseada em um texto (que exerceu grande influência) de Patandjali intitulado Yoga Sutras, e é essencialmente uma compilação e sistematização da filosofia do Ioga meditacional. Os Upanixades e o Bhagavad Gita também são textos indispensáveis ao estudo da ioga. Uttara Mimamsa ou Vedanta Ver artigo principal: Vedanta A escola Uttara Mimamsa (ou "investigação posterior"), também conhecida como Vedanta, é talvez a pedra angular dos movimentos do hinduísmo, e certamente foi responsável por uma nova onda de investigação filosófica e meditativa, renovação da fé, e reformas culturais. A maior parte da atual filosofia hindu está relacionada a mudanças que 129 foram influenciadas pelo pensamento vedanta, o qual é focalizado na meditação, moralidade e centralização no Eu uno, ao invés de rituais ou distinções sociais como as castas. Primeiramente associada com os Upanixades e seus comentários por Badarayana, e Vedanta Sutra, o pensamento vedanta dividiu-se em três grupos, descritos a seguir. Puro monismo: Advaita Vedanta Advaita literalmente significa "não dois"; isto é o que referimos como monoteístico, ou sistema não-dualístico, que enfatiza a unidade. Seu consolidador foi Shankaracharya (788-820). Shankara expôs suas teorias baseadas amplamente nos ensinamentos dos Upanixades e de seu guru Gaudapada. Através da análise da consciência experimental, ele expôs a natureza relativa do mundo e estabeleceu a realidade não dual ou Brahman no qual Atman (a alma individual) ou Brahman (a realidade última) são absolutamente identificadas. Não é meramente uma filosofia, mas um sistema consciente de éticas aplicadas e meditação, direcionadas a obténção da paz e compreensão da verdade. Sankaracharya acusou as castas 130 e rituais como tolos, e em sua própria maneira carismática, suplicou aos verdadeiros devotos a meditarem no amor de Deus e alcançarem a verdade. Monismo qualificado: Vishistadvaita Vedanta Ramanuja (1040 - 1137) foi o principal proponente do conceito de Sriman Narayana como Brahman o supremo. Ele ensinou que a realidade última possui três aspectos: Ishvara (Vixnu), cit ("alma") e acit ("matéria"). Vixnu é a única realidade independente, enquanto alma e material são dependentes de Deus para sua existência. Devido a esta qualificação da realidade última, o sistema de Ramanuja é conhecido como não dualístico. Dualismo: Dvaita Vedanta Madhva (1199 - 1278) identificou deus com Vishnu, mas a sua visão da realidade era puramente dualista, pois ele compreendeu uma diferenciação fundamental entre o Deus supremo e a alma individual, e o sistema consequentemente foi denominado Dvaita (dualístico) Vedanta. 131 Filosofia hindu: as escolas não védicas As principais escolas não-védicas ou heterodoxas (Nastika) do pensamento hindu são o budismo, o jainismo e Lokayata (ou Carvaka). Culturas alternativas de adoração As escolas Bhakti A escola devocional Bhakti tem seu nome derivado do termo hindu que evoca a ideia de "amor prazeroso, abnegado e estupefante de Deus como Pai, Mãe, Filho Amados", ou qualquer outra forma de relacionamento que encontre apelo no coração do devoto. A filosofia de Bhakti procura usufruto pleno da divindade universal através da forma pessoal, o que explica a proliferação de tantas divindades na Índia, frequentemente refletindo as inclinações particulares de pequenas áreas ou grupos de pessoas. Vista como uma forma de Ioga ou união, ele preconiza a necessidade de se dissolver o ego em Deus, na medida em que a consciência do corpo e a mente limitada, como individualidade, seriam fatores contrários à realização espiritual. Essencialmente, é Deus que promove toda mudança, que é a fonte de 132 todos os trabalhos, que a idade através do amor e da luz. 'Sins' e mal - fazendo da devoto são mencionado cair embora da sua próprio acorde , o entusiasta enrugar limitedness já transcendido , através do amor de Deus. Os movimentos Bhakti rejuvenesceram o hinduísmo ao longo da sua intensa expressão de fé e receptividade às necessidades emocionais e filosóficas da Índia. Pode-se dizer corretamente que influenciaram a maior onda de mudança em orações e rituais hindus desde tempos remotos. A mais popular forma de expressão de amor a Deus na tradição hindu é através do puja, ou ritual de devoção, frequentemente utilizando o auxílio de murti (estátua) juntamente com canções ou recitação de orações meditacionais em forma de mantras. Canções devocionais denominadas bhajan (escritas primeiramente nos séculos XIV-XVII), kirtan (elogio), e arti (uma forma filtrada do ritual de fogo Védico) são algumas vezes cantados juntamente com a realização do puja. Este sistema orgânico de devoção tenta auxiliar o indivíduo a conectar-se com Deus através de meios 133 simbólicos. Entretanto, é dito que bhakta, através de uma crescente conexão com Deus, é eventualmente capaz de evitar todas as formas externas e é inteiramente imerso na bênção do indiferenciado amor a Verdade. Tantrismo A palavra tantra significa "tratado" ou "série continua", e é aplicada a uma variedade de trabalhos místicos, ocultos, médicos e científicos bem como aqueles que agora nos consideramos como "tântricos". A maioria dos tantras foram escritos no final da Idade Média e surgiram da cosmologia hindu. Temas e simbolismos importantes no hinduísmo Ahimsa e as vacas Ahimsa É vital uma nota sobre o elemento ahimsa no hinduísmo para compreender a sociedade que se formou à volta de alguns dos seus princípios. Enquanto o jainismo, à medida que era praticado, era certamente uma grande influência sobre a sociedade indiana - que dizer da sua exortação do veganismo e da não134 violência como ahimsa - o termo primeiro apareceu nos Upanixades. Assim, uma influência internamente enraizada e externamente motivada levou ao desenvolvimento de uma grande quantidade de hindus que acabaram por abraçar o vegetarianismo numa tentativa de respeitar formas superiores de vida, restringindo a sua dieta a plantas e vegetais. Cerca de 30% da população hindu actual, especialmente em comunidades ortodoxas no sul da Índia, em alguns estados do norte como o Guzerate e em vários enclaves brâmanes à volta do subcontinente, é vegetariana. Portanto, enquanto o vegetarianismo não é um dogma, é recomendado como sendo um estilo de vida sátvico (purificador). Os hindus abstêm-se predominantemente de carne, e alguns até vão tão longe quanto evitar produtos de pele. Isto acontece provavelmente porque o largamente pastoral povo Védico e as subsequentes gerações de hindus ao longo dos séculos dependiam tanto da vaca para todo o tipo de produtos lácteos, aragem dos campos e combustível para fertilizante, que o seu estatuto de "cuidadora" 135 espontânea da humanidade cresceu ao ponto de ser identificada como uma figura quase maternal. Assim, enquanto a maioria dos hindus não adora a vaca, e as instruções escriturais contra o consumo de carne surgiram muito depois dos Vedas terem sido escritos, esta ainda ocupa um lugar de honra na sociedade hindu. Diz-se que Krishna é tanto Govinda (pastor de vacas) como Gopala (protector de vacas), e que o assistente de Xiva é Nandi, o touro. Com a força no vegetarianismo (que é habitualmente seguido em dias religiosos ou ocasiões especiais até por hindus comedores de carne) e a natureza sagrada da vaca, não admira que a maior parte das cidades santas e áreas na Índia tenham uma proibição sobre a venda de produtos de carne e haja um movimento entre os Hindus para banir a matança de vacas não só em regiões específicas como em toda a Índia. Formas de adoração: murtis e mantras O hinduísmo prático é simultaneamente politeísta e enoteísta, pois professa a crença na existência de 33 milhões deuses que dividem graus hierárquicos, crendo na existência um deus supremo uma 136 infinidade de deuses secundários.Segundo algumas interpretações de caráter monoteísta a variedade de deuses e avatares que são adorados pelos hindus são compreendidos como diferentes formas da Verdade Única, algumas vezes vistos como mais do que um mero Deus e um último terreno Divino (Brahman), relacionado mas não limitado ao monismo, ou um princípio monoteístico como Vixnu ou Xiva. Acreditando na origem única como sem forma (nirguna brahman, sem atributos) ou como um Deus pessoal (saguna Brahman, com atributos), os Hindus compreendem que a verdade única pode ser vista de forma variada por pessoas diferentes. O hinduísmo encoraja seus devotos a descreverem e desenvolverem um relacionamento pessoal com sua deidade pessoal escolhida (ishta devata) na forma de Deus ou Deusa. Enquanto alguns censos sustentam que os adoradores de uma forma ou outra de Vishnu (conhecido como Vaishnavs) são 80% dos Hindus e aqueles de Shiva (chamados Shaivaites) e Shakti compõem 137 o restante dos 20%, tais estatísticas provavelmente são enganadoras. A maioria dos Hindus adora muitos deuses como expressões variadas do mesmo prisma da Verdade. Entre os mais populares estão Vishnu (como Krishna ou Rama), Shiva, Devi (a Mãe de muitas deidades femininas, como Lakshmi, Sarasvati, Kali e Durga), Ganesha, Skanda e Hanuman. A adoração das deidades é geralmente expressa através de fotografias ou imagens (murti) que são ditas não serem o próprio Deus mas condutos para a consciência dos devotos, marcas para a alma humana que significam a inefável e ilimitada natureza do amor e grandiosidade de Deus. Eles são símbolos do princípio maior, representado mas nunca presumido ser o conceito da própria entidade. Consequentemente, a maneira hindu de adoração de imagens as toma apenas como símbolos da divindade, opostos à idolatria, geralmente imposta (erroneamente) aos hindus. Mantra Recitação e mantras originaram-se no hinduísmo e são técnicas fundamentais 138 praticadas até os dias de hoje. Muito da chamada Mantra Yoga, é realizada através de japa ("repetições"). Dizem que os mantras, através de seus significados, sons e recitação melódica, auxiliam o sadhaka (aquele que prática) na obtenção de concentração durante a meditação. Eles também são utilizados como uma expressão de amor a deidade, uma outra faceta da Bhakti Yoga necessária para a compreensão de murti. Frequentemente eles oferecem coragem em momentos difíceis e são utilizados para a obtenção de auxílio ou para 'invocar' a força espiritual interior. As ultimas palavras de Mahatma Gandhi enquanto morria foi um mantra ao Senhor Rama: "Hey Ram!" O mais representativo de todos os mantras Hindu é o famoso Gayatri Mantra: ॐ : | | | : Aum bhūrbhuvasvah | tat savitūrvare yam | bhargo devasya dhīmahi | dhiyo yo naha pracodayāt 139 Significa, literalmente: "Om! Terra, Universo, Galáxias (invocação aos três mundos). Que nós alcancemos a excelente glória de Savitr, o Deus. Que ele estimule os nossos pensamentos/meditações." O mantra Gayatri é considerado o mais universal, o mais importante (maha mantra) de todos os mantras hindus, e invoca o Brâman universal como um princípio de conhecimento e iluminação do sol primordial, mas somente em seu aspecto feminino. Muitos hindus até os dias de hoje, seguindo uma tradição que permanece viva por pelo menos 5.000 anos, realizam abluções matinais às margens do rio sagrado (especialmente do rio Ganges. Conhecido como um mantra sagrado, é reverenciado como sendo a forma mais condensada do "Conhecimento Divino" (Veda). E governado pelo princípio, Ma ("Mãe") Gayatri, também conhecido como Veda Mata ("mãe dos Vedas") e intimamente associado à deusa do aprendizado e iluminação, Sarasvati. O maior objetivo da religião védica é alcançar moksha, ou liberação, através da 140 constante dedicação a Satya (Verdade) e uma eventual realização de Atman (Alma Universal). Não importa se atingido através de meditação ou puro amor, este objetivo universal é alcançado por todos. Deve ser observado que o hinduísmo é uma fé prática, e é incorporado em cada aspecto da vida. Acredita igualmente no temporal e no infinito, e somente encoraja perspectivas destes principios. Os grandes rishis (sábios, considerados espécies de santos hindus) e também denominados como samsárico (aquele que vive no samsara, i.e. plano temporal ou terrestre) aquele que segue um meio de vida honesto e amável (dhármico) é um jivanmukta (alma vivente liberta). As verdades fundamentais do hinduísmo são melhores compreendidas na frase dos Upanixades, Tat Twam Asi (Assim És Tu), e na última aspiração como segue: Aum Asato ma sad gamaya, tamaso ma jyotir gamaya, mrityor ma aamritaam gamaya "Aum Conduza-me da ignorância para a verdade, das trevas para a luz, da morte para a imortalidade." 141 (https://pt.wikipedia.org/wiki/Hindu%C3% ADsmo) ----------------------------------------------------―Aníbal, filho de Amílcar Barca 1 ; Cartago, 248 a.C. - Bitínia, 183[2] [3] [4] ou 182 a.C.,[n 1] conhecido comumente apenas como Aníbal (em púnico: ḤNBʻL, Ḥannibaʻal ou Ḥannibaʻl, 5 6 lit. "Ba'al é/foi bondoso"[6] [7] ou "Graça de Baal"[5] ou "recebi a graça de Baal",[8] talvez também nas formas Ḥannobaʻal, 9 ou ʼDNBʻL, ʼAdnibaʻal, lit. "Ba'al é meu senhor"; 9 em em grego: Ἁννίβας, Hanníbas) foi um general e estadista cartaginês considerado por muitos como um dos maiores táticos militares da história. Seu pai, Amílcar Barca (Barca, "raio"[10] ), foi o principal comandante cartaginês durante a Primeira Guerra Púnica, travada contra Roma; seus irmãos mais novos foram os célebres Magão e Asdrúbal, e seu cunhado foi Asdrúbal, o Belo. Sua vida decorreu no período de conflitos em que a República Romana estabeleceu supremacia na bacia mediterrânea, em 142 detrimento de outras potências como a própria Cartago, Macedônia, Siracusa e o Império Selêucida. Foi um dos generais mais ativos da Segunda Guerra Púnica, quando levou a cabo uma das façanhas militares mais audazes da Antiguidade: Aníbal e seu exército, onde se incluíam elefantes de guerra, partiram da Hispânia e atravessaram os Pirenéus e os Alpes com o objetivo de conquistar o norte da península Itálica. Ali derrotou os romanos em grandes batalhas campais como a do lago Trasimeno ou a de Canas, que ainda se estuda em academias militares na atualidade. Apesar de seu brilhante movimento, Aníbal não chegou a capturar Roma. Existem diversas opiniões entre os historiadores, que vão desde carências materiais de Aníbal em máquinas de combate a considerações políticas que defendem que a intenção de Aníbal não era tomar Roma, senão obrigá-la a renderse.[11] Não obstante, Aníbal conseguiu manter um exército na Itália durante mais de uma década, recebendo escassos reforços. Por causa da invasão da África por parte de Cipião, o Senado púnico lhe chamou de volta a Cartago, onde foi 143 finalmente derrotado por Públio Cornélio Cipião Africano na Batalha de Zama. O historiador militar Theodore Ayrault Dodge o chamou "pai da estratégia".[12] Foi admirado inclusive por seus inimigos — Cornélio Nepos o batizou como «o maior dos generais»[13] —, assim sendo, seu maior inimigo, Roma, adaptou certos elementos de suas táticas militares a seu próprio arsenal estratégico. Seu legado militar o conferiu uma sólida reputação no mundo moderno, e tem sido considerado como um grande estrategista por grandes militares como Napoleão ou Arthur Wellesley, o duque de Wellington. Sua vida tem sido objeto de muitos filmes e documentários. Bernard Werber lhe rende homenagem através do personagem do «Libertador»,[14] e de um artigo em L’Encyclopédie du savoir relatif et absolu mencionada em sua obra Le Souffle des dieux.[15] Em meados do século III a.C., a cidade de Cartago, onde nasceu Aníbal,[2] estava fortemente influenciada pela cultura helenística derivada dos vestígios do império de Alexandre Magno.[16] Cartago 144 ocupava então um lugar importante nos intercâmbios comerciais da bacia mediterrânea, e em particular nos empórios da Sicília, Sardenha e nas costas da Ibéria e da África do Norte. A cidade dispunha igualmente de uma importante frota de guerra que protegia suas rotas marítimas, que transportavam o ouro procedente do Golfo da Guiné e o estanho procedente das costas britânicas. A outra potência mediterrânea da época era Roma, com a qual Cartago entrou em guerra durante vinte anos em um conflito conhecido como a Primeira Guerra Púnica,[17] a primeira guerra de grande envergadura em que Roma saiu vitoriosa. Este enfrentamento entre a República Romana e Cartago foi provocado por um conflito secundário em Siracusa, e se desenvolveu por terra e mar, em três fases: combates na Sicília (264-256 a.C.), combates na África (256-250 a.C.) e de novo na Sicília (250-241 a.C.). Durante esta última fase, e sobretudo com a guerra, nasceu a fama de Amílcar Barca, pai de Aníbal, que dirigia a guerra contra Roma desde o ano 247 a.C.. Com a grande derrota naval nas ilhas Égadi, ao noroeste 145 da Sicília, os cartagineses se viram obrigados a firmar um tratado na primavera de 241 a.C. com o cônsul Caio Lutácio Cátulo.[18] Entre os termos impostos a Cartago por este tratado se encontravam a cessão dos territórios da Sicília e Sardenha,[16] e o desmantelamento de sua frota. Ao final da Primeira Guerra Púnica, apesar das precauções adotadas por Amílcar Barca, Cartago encontrou problemas na hora de dispersar seus regimentos armados de mercenários, que não tardaram em assaltar à cidade e provocar um conflito da envergadura de uma guerra civil.[18] Este episódio histórico é conhecido como a Guerra dos Mercenários. Amílcar conseguiu reprimir esta rebelião depois de três anos, depois de vencer aos rebeldes no rio Bagradas e de novo, com um grande derramamento de sangue, no desfiladeiro da Serra. Políbio o nomeia como o "desfiladeiro da serra",[19] mas Gustave Flaubert, que utiliza a tradução de Vincent Thuillier, o chama "o desfiladeiro do machado".[20] Da sua parte, Roma havia aproveitado a falta de oposição para tomar a Sardenha, 146 anteriormente em mãos dos cartagineses.[21] Para compensar esta perda, Amílcar marchou à Ibéria, onde se apoderou de vastos territórios no sudeste do país. Durante uma década, Amílcar dirigiu a conquista do sul da Ibéria, apoiado militar e logisticamente por seu genro Asdrúbal.[18] Esta conquista restabelecia a situação econômica de Cartago, graças à exploração das minas de prata e estanho. Juventude Caricatura do juramento que fez Aníbal a seu pai de ser sempre inimigo de Roma. Aníbal Barca era o filho mais velho do general Amílcar Barca e de sua mulher ibérica.[21] [22] Ainda que «Barca» não era um sobrenome, senão um apelido (de barqä, "raio" em língua púnica), foi adotado como tal por seus filhos.[23] Os historiadores designam à família de Amílcar com o nome de Bárcidas, a fim de evitar a confusão com outras famílias cartaginesas com os mesmos nomes (Aníbal, Asdrúbal, Amílcar, Magón, etc.). 147 Sobre a educação de Aníbal é pouco o recolhido pelos autores greco-romanos. É sabido que aprendeu de um preceptor espartano, chamado Sosilos, as letras gregas,[24] a história de Alexandre Magno e a arte da guerra. Assim adquiriu o modo de raciocínio e de ação que os gregos chamavam Métis, fundado na inteligência e a astúcia. Depois de haver incrementado seu território, Amílcar enriqueceu sua família e, por extensão, Cartago.[18] Ao perseguir tal objetivo, Amílcar se apoiou na cidade de Gadir (atual Cádis, Espanha), próxima ao Estreito de Gibraltar, e começou a submeter as tribos iberas. Naquele momento, Cartago se encontrava em tal estado de empobrecimento que sua marinha era incapaz de transportar o exército à Hispânia. Amílcar se viu, pois, obrigado a fazê-lo marchar até as Colunas de Hércules a pé, para cruzar ali em barco o Estreito de Gibraltar, entre o que atualmente seriam Marrocos e Espanha. O historiador romano Tito Lívio menciona que quando Aníbal foi ver ao seu pai e lhe rogou que o permitisse acompanhá-lo, este 148 aceitou com a condição de que jurasse que durante toda sua existência nunca seria amigo de Roma.[2] [21] [22] [25] Outros historiadores referem que Aníbal declarou a seu pai: Juro que enquanto a idade me permita … empregarei o fogo e o ferro para romper o destino de Roma. — Aníbal[12] [26] Seu aprendizado tático começou sobre o terreno, baixo a égide de seu pai. Continuou aprendendo de seu cunhado, Asdrúbal, o Belo,[27] quem sucedeu a Amílcar, morto no campo de batalha contra os rebeldes iberos[22] em 229 a.C.[16] ou em 230 a.C.,[28] momento em que o nomeia chefe da cavalaria.[2] [29] neste domínio, Aníbal revela de imediato sua resistência e seu sangue frio,[30] e sua capacidade para se fazer apreciar e admirar por seus soldados.[31] Asdrúbal perseguiu uma política de consolidação dos interesses ibéricos de Cartago.[16] Para isso, casou Aníbal com uma princesa ibera[32] de nome Imilce,[33] com a qual teve um filho.[34] [35] No entanto, esta aliança matrimonial é considerada 149 improvável e não está atestada por todos.[35] Por outro lado, Asdrúbal assinou em 226 a.C. um tratado com Roma pela qual a Península Ibérica ficava dividida em duas zonas de influência.[28] O rio Ebro constituía a fronteira:[28] Cartago não devia expandir-se mais ao norte deste rio, na mesma medida que Roma não se estenderia ao sul do curso fluvial.[29] Em 221 a.C., Asdrúbal fundou a nova capital, Qart Hadasht, hoje Cartagena, situada no que é atualmente a província de Múrcia (ao sudeste da Espanha).[16] Porém, um pouco mais tarde, um escravo gaulês, que acusou Asdrúbal de haver assassinado seu amo[29] [36] o assassinou por sua vez em torno do ano 221 a.C..[34] Governo da Hispânia Após ter assumido o comando, Aníbal passou dois anos consolidando suas aquisições e completando a conquista da Hispânia ao sul do Ebro.[12] Contudo, Roma, temendo a força crescente de Aníbal na Ibéria, fez aliança com a cidade de Sagunto, que fica a uma distância considerável ao sul do rio Ebro e 150 proclamou a cidade como seu protetorado. Aníbal entendeu isso como um rompimento do tratado assinado com Asdrúbal, fazendo assim um cerco na cidade, que caiu após oito meses. Roma reagiu a essa aparente violação do tratado e demandou justiça de Cartago. Em vista da grande popularidade de Aníbal, o governo cartaginês não repudiou as ações de Aníbal, e a guerra que ele buscava foi declarada no final do ano. Aníbal agora estava determinado a levar a guerra até o coração da Itália com uma rápida marcha através da Hispânia e sul da Gália. Segunda Guerra Púnica na Itália (218– 203 a.C.) Preparativos para atacar Roma Aníbal e seus homens cruzando os Alpes. A missão romana retorna ciente da hostilidade da Hispânia, da neutralidade dos gauleses e do apoio de Massília. Quando os dois novos cônsules foram escolhidos, Cipião foi incumbido de considerar a Hispânia como sua "província", e que desenvolvesse uma nova frota, pois o sítio e a pilhagem de Sagunto não poderia ser tolerado, sob a 151 pena de abalar sua reputação entre gauleses e iberos. Os cartagineses iberos possuíam apenas alguns navios de guerra para a proteção da navegação entre a península Ibérica e a África do Norte. Cientes de sua supremacia marítima, os romanos se prepararam para transportar suas legiões, via Massília, para uma invasão dos territórios de Nova Cartago ao sul do Ebro. Contudo, Aníbal não se preparava para defender seus novos territórios, nem planejava cruzar o rio para prosseguir com sua campanha ao norte. Os próprios romanos também não consideravam o ataque pelos Alpes, pois tal jornada implicaria nada menos do que quinze centenas de milhas. Aníbal instruiu Asdrúbal para assumir o comando na Hispânia caso se ausentasse durante um ataque romano, além de conseguir o apoio da maior parte da Península Ibérica, deixou seu irmão comandando o forte e nova cidade-porto e ainda reuniu a tropa que julgava necessária. Devido à sua estratégia, a guerra havia sido declarada pelos 152 romanos, que seriam vistos como causadores do rompimento do tratado com Cartago. Isso foi mostrado às tribos gaulesas como um exemplo da falta de palavra de Roma. Aníbal dispôs tropas para salvaguardar tanto a África quanto a península Ibérica, e para assegurar-se de que seu irmão não enfrentaria problemas de lealdade enquanto ele estivesse distante, adotou a política de transferir tropas iberas para a África e tropas africanas para a Ibéria. Na primavera de 218 a.C. as tropas foram deslocadas dos quartéis de inverno para o norte onde cruzaram o rio Ebro com doze mil cavaleiros e noventa mil soldados de infantaria. Na Catalunha, entre o Ebro e os Pirenéus, encontraram resistentes tribos das montanhas. Sua passagem foi fortemente impedida, e muitas aldeias precisaram ser arrasadas antes que eles conseguissem prosseguir. Essa resistência não era esperada, contudo, ficou claro que ele havia partido com uma força maior do que a pretendida para a campanha, haja vista que deixara encarregados do novo território e de manter guarda sobre os 153 desfiladeiros entre a península Ibérica e a Gália mil cavaleiros e dez mil soldados de infantaria, sob o comando de seu irmão Hanão. Contornando o porto grego de Ampúrias, o exército foi em direção aos Pirenéus. Após Aníbal ter exposto seu plano de campanha às tropas, qualquer demora mais prolongada do que o necessário à conclusão das preparações finais para a marcha deveria ser evitada, pois possuía informações de que a época ideal para transpor os Alpes era o verão. Contudo, o tempo necessário para alcançá-los foi maior do que o pretendido. Apesar de contar com grande número de cavaleiros, as tropas também levavam 37 elefantes que seguiram desde a península Ibérica, através dos Pirenéus e do rio ródano, sobre os Alpes, até à península Itálica. Não há registro de que algum deles tenha morrido durante a marcha, mas está escrito que, quando o Aníbal chegou ao destino, seus elefantes ainda permaneciam com ele. 154 A utilização de elefantes de guerra era bastante antiga no oriente, embora só tivessem sido mencionados nas campanhas de Alexandre, o Grande, quando em 313 a.C. derrotou Dario III, que tinha quinze elefantes em seu exército na batalha de Gaugamela. O que não era esperado era que os gauleses boios, no norte da Itália, entusiasmados pela notícia de que Aníbal estava em marcha, se rebelassem contra Roma e, conclamando seus aliados, os ínsubres, para se unirem a eles, invadissem a terra que os romanos haviam colonizado. Os gauleses, valendo-se de seu habitual poder de fogo, apanharam os romanos desprevenidos, obrigando-os a revisar seus planos prévios. As legiões que partiriam para a península Ibérica não poderiam ser dispensadas até que o problema na Gália Cisalpina fosse contornado. O retorno dos cavaleiros númidas teria sido suficiente para confirmar a pressa de Aníbal. Em sua jornada de reconhecimento, eles haviam encontrado uma força de trezentos cavaleiros de 155 Cipião, enviados numa missão similar. Após esse encontro, os númidas, que se saíram mal, bateram em retirada seguidos pelos romanos. Acuados por dois fogos, eles se puseram a correr desordenadamente. Aníbal cuidou deles com rapidez, e é significativo que em suas campanhas tenha utilizado mão-de-obra gaulesa de um modo cínico, exaltando sua bravura mas nunca os colocando num posto onde não estivessem cercados por tropas treinadas, tampouco sem uma retaguarda que os detivesse se eles resolvessem desertar e fugir. Os gauleses fugiram assim que a força total dos cartagineses desembarcou. Aníbal havia estabelecido sua cabeça-depraia na margem oriental do Ródano, e as outras tropas ficaram para seguirem assim que um transporte regular por balsas foi organizado. Enquanto os últimos preparativos eram feitos e a travessia dos elefantes realizada, Aníbal se reunia com chefes tribais das planícies do Pó, que haviam lutado contra os romanos e que agora insistiam para que não atrasasse sua passagem para a Itália. 156 Cipião regressou para Massília com suas legiões. Mas a Hispânia lhe fora designada como sua esfera de operações, assim como toda a península Ibérica ainda permanecia sendo a chave de toda a guerra. Com Aníbal e seu exército afastados, os romanos poderiam alcançar a vitória e destruir o poder cartagineses. Quanto a ele, estava claro que deveria retornar à Itália para se encarregar pessoalmente das tropas ao norte. Ele enviou sua frota e seu exército à Hispânia sob o comando de seu irmão Cneu e embarcou para a Itália. Se as tropas de Aníbal conseguissem atravessar os Alpes, elas o encontrariam à sua espera. Com os elefantes e uma retaguarda de cavalaria seguindo o corpo principal das tropas, o exército deslocava-se ao longo do rio Ródano no sentido ascendente, marchado o mais rápido possível, de modo a escapar dos romanos.[carece de fontes] Há um corredor escarpado na provável rota de Aníbal durante os estágios iniciais de seu avanço em direção aos Alpes que tem sido aceitavelmente identificado ao lugar onde os cartagineses tiveram seu 157 primeiro conflito com os gauleses das montanhas. É o desfiladeiro de Gás, que por ser muito estreito era potencialmente uma armadilha mortal, e se foi através dessa rota que o exército passou, é possível supor que Aníbal não havia feito qualquer reconhecimento e fora enganado por seus guias, ou que ele simplesmente resolveu arriscar. Nenhuma dessas suposições parece provável, mas a geografia da rota de Aníbal tem originado inúmeros livros e teses, nenhum com efetiva comprovação, a menos que algum dia alguma evidência arqueológica seja encontrada para provar que "os cartagineses um dia passaram por esse caminho"; o máximo que se pode dizer é "devem tê-lo feito". À luz do dia, o exército começou a se posicionar para a passagem através da garganta. A essa altura, os alóbrogos já haviam descoberto que seus pontos estratégicos tinham sido ocupados durante a noite. Rota da invasão de Aníbal Aníbal estava agora a meio caminho de seu destino, aproximadamente, numa travessia dos Alpes que ninguém jamais pensara que um grande exército pudesse realizar. De modo a não deixar o comboio 158 de animais de carga e bagagens indefeso na retaguarda, Aníbal, rápida e cuidadosamente, posicionou-o atrás do corpo principal da cavalaria, na vanguarda; depois vinha o grosso do exército, seguido da nata da infantaria pesada como retaguarda. É quase certo que, se não tomasse essas sábias providências, teria perdido todo o seu exército. Dois dias de marcha adiante, os gauleses, que silenciosamente haviam se concentrado nas montanhas ao redor, prepararam seu ataque. O exército passava através de uma estreita garganta, seguindo a trilha que acompanhava o curso de um pequeno e rápido rio (possivelmente o rio Guil), que desagua no rio Durance, o qual haviam deixado para trás. Era outubro, e naquela tardia estação do ano os cartagineses talvez tivessem pouca noção de direção básica — sem contar que desconheciam a área específica daquele território. Aníbal sabia que a Itália ficava em algum lugar a sudeste, mas mesmo coordenadas elementares, tais como o nascer e o pôr-do-sol, eram mascaradas pelas montanhas. Os guias, como ele suspeitava todo o tempo, 159 provaram ser traiçoeiros. Então, finalmente, "após uma subida de nove dias, Aníbal atingiu o cume (…)". Lá embaixo se revelava o território verdeescuro da Itália. Para isso muitos tinham morrido, e somente a impossibilidade de retorno e a impetuosa inspiração de seu líder haviam mantido esse exército multirracial e poliglota em movimento através da imensidão dos Alpes. Ele esperou por dois dias no ponto onde a trilha não ia mais acima.[carece de fontes] Consta que Aníbal saiu de Cartagena aproximadamente na metade de junho de 218 a.C. e passou cinco meses entre Cartagena e as planícies do Pó. Portanto, foi em meados de outubro que ele se deteve ante a linha divisória de águas acima da Itália e fitou o sul. Contrariando o otimismo expressado no discurso de Aníbal, a descida desde a linha d'água foi até mesmo pior do que a longa subida até ali. O inimigo não era mais o gaulês das montanhas, mas sim as condições impostas pelo inverno — a queda de neve nas primeiras nevascas 160 daquele ano, sob a qual, naquela altitude, jazia a dura e compacta neve do ano anterior. A cavalaria deteve-se ali — parecia-lhes que haviam finalmente alcançado o fim da estrada, uma posição sem chances de avanço — e foi comunicado a Aníbal que o caminho era intransponível. Não somente um deslizamento de terra, mas também o volume de neve acumulada bloqueavam o exército. A neve fresca encobrindo as velhas trilhas fazia com que os animais, quando rompiam a superfície, afundassem as patas no leito mais abaixo, enquanto a neve mole se fechava ao redor deles, segurando-os como uma garra gelada. Os homens se saíam pouca coisa melhor: quando tentavam erguer-se sobre as mãos e joelhos, eles não conseguiam apoio na neve velha e profundamente congelada, e escorregavam pelas escarpas que serviam como degraus. Aníbal percebeu que não havia como fazer qualquer desvio, mas que o estreito desfiladeiro da montanha podia ser reforçado e toda a trilha nivelada. 161 Por qual desfiladeiro Aníbal conduziu seu exército na descida até as planícies do rio Pó é pergunta que tem gerado muita controvérsia no decorrer dos séculos e ocasionado vários escritos diferentes, de muitos monógrafos. Alguns desfiladeiros, tais como o Grande St. Bernard e o Pequeno St. Bernard, são relativamente fáceis de se descartar, uma vez que eles não levam ao país habitado pelos taurinos — tribo em cujo território as forças de Aníbal emergiram em sua descida dos Alpes. O que é perfeitamente claro nos relatos da travessia de Aníbal pelos Alpes é que o desfiladeiro utilizado por ele está entre os altos e perigosos que conduziam de modo íngreme à Itália. Após verificarmos todos os dados, sem contar as teorias, os quatro mais cotados continuam sendo o monte Cenis (tornado famoso por Carlos Magno e Napoleão), o passo Clapier, o Montgenèvre e o passo de Traversette. O desfiladeiro Monte Cenis e o Passo Clapier possuem ambos locais próximos ao cume onde o exército poderia ter acampado, mas o Passo Clapier tem preferência, sendo um desfiladeiro alto e rústico. Ele também possui uma saliente espora no início de sua descida em direção 162 à Itália, de onde se tem uma esplêndida vista das planícies abaixo. O Montgenèvre, que através dos anos ganhou muitos partidários, oferece um bom local para acampamento, mas é o mais baixo de todos os desfiladeiros e não está de acordo com o retrato da perigosa rota tomada por Aníbal. O desfiladeiro mais alto de todos os quatro, o passo de Traversette, preenche quase todos os requisitos das narrativas, mas falta um local de acampamento adequado. Fortes argumentos podem ser, e têm sido, adaptados para cada uma dessas quatro rotas de acesso. A escolha final parece recair entre o desfiladeiro de Clapier e o de Traversette, com ligeira diferença em favor do passo Clapier. Monte Cenis Monte Montgenèvre Monte Clapier Para que não possam restar dúvidas, quando chegaram as notícias a Roma de que o impossível acontecera — Aníbal e seu exército cartaginês haviam irrompido 163 tal qual uma águia nos desfiladeiros dos Alpes — houve pânico na cidade. Era, contudo, uma águia esfarrapada e magra, que então alisava suas asas sob a pálida luz do sol de inverno do norte italiano e tentava tirar algum proveito do que restou da horrível marcha. Reunidas uma vez mais em uma terra que fornecia pasto, cereais e animais para abate, as tropas, que em aparência e condição mais se assemelhavam a animais do que a homens, poderiam, pela primeira vez em muitos meses, desfrutar de algum conforto — ainda que não por muito tempo — e recuperar suas forças. Aníbal podia agora proceder a uma cuidadosa análise e saber com exatidão o que o seu inacreditavelmente arriscado empreendimento havia lhe custado. Pela vantagem da surpresa e para assegurar a ligação da sua causa à dos gauleses na Itália, ele havia pago tão caro que a maioria dos generais teria considerado a campanha já perdida. De acordo com Políbio, a mais notável autoridade no assunto, ele havia cruzado o Ródano com cerca de cinquenta mil soldados de infantaria e nove mil cavaleiros[19] e, 164 uma vez que não há registro de quaisquer perdas após ou durante a travessia do Ródano, presume-se que fora com um número aproximado — levando-se em conta as perdas naturais devido a acidentes e doenças — que ele tenha iniciado sua subida aos Alpes. Quinto Fábio Pictor, primeiro dos historiadores latinos, conhecido como o "Pai da História Romana", lutou contra Aníbal na guerra que estava para começar e reconheceu que naquele período os romanos e seus Estados aliados eram capazes de mobilizar setecentos e cinquenta mil homens. Aníbal sabia, pois fora avisado previamente pelos gauleses na Itália, que muitos milhares deles iriam se sublevar, aclamando-o como libertador, e se uniriam às suas forças na guerra contra Roma. Ele conhecia a bravura deles (bem como sua falta de disciplina), mas o que não poderia saber, enquanto contemplava seu maltratado exército recuperando-se no sopé dos Alpes, era quantos deles exatamente se uniriam sob seu estandarte. Havia subjugado as tribos do norte da Hispânia, e tudo o que precisavam da península Ibérica 165 constituía agora colônia cartaginesa; cruzara os Pirenéus e o rio Ródano; e podia olhar para trás em direção aos luzentes picos alpinos, que conquistara com tão severas perdas, como a última grande aventura entre ele e seu objetivo. Porém agora deveria enfrentar os fortes e disciplinados exércitos de Roma — e naquele momento ele tinha não mais do que vinte mil semidefinhados soldados, seis mil cavaleiros em esqueléticos cavalos, e trinta e sete extenuados elefantes. Era muito pouco com que medir forças contra o maior poderio do mundo mediterrâneo. Primeiras batalhas contra os romanos A batalha de Ticino, travada em novembro de 218 a.C., foi uma batalha da Segunda Guerra Púnica, na qual Aníbal derrotou os Romanos sob Públio Cornélio Cipião numa luta de cavalaria. A batalha do Trébia deu-se em dezembro do ano 218 a.C., junto das margens do rio Trébia, na atual região italiana da Emília-Romanha, na qual o general romano Públio Cornélio Cipião foi derrotado pelo exército cartaginês comandado por Aníbal, em um dos sucessos bélicos mais importantes das Guerras Púnicas onde se confrontaram 166 romanos e cartagineses. A batalha do Lago Trasimeno, travada na primavera de 217 a.C., foi uma batalha da Segunda Guerra Púnica, na qual Aníbal destruiu o exército romano de Caio Flamínio numa emboscada, matando-o. A ditadura de Fábio Estátua de Quinto Fábio Máximo, ditador romano durante a Segunda Guerra Púnica. A derrota de Caio Flamínio no lago Trasimeno, deixou Roma à mercê de Aníbal. Esperava-se que o cartaginês, em seguida, investisse contra a cidade para tomá-la e terminar, vitoriosamente, a guerra. Diante dessa séria ameaça, o senado romano decidiu nomear um ditador para dirigir a defesa, e a escolha recaiu sobre o senador e ex-cônsul, Fábio Máximo, que já exercera essa função extraordinária, anteriormente. Supondo que Aníbal marcharia contra Roma, Fábio concentrou seus esforços em preparar a cidade e seus cidadãos para a resistência ao invasor. Mas como o exército cartaginês não apareceu ele concluiu que Aníbal não dispunha dos 167 equipamentos necessários para cerco e assalto, e que esperava que os romanos reunissem suas últimas reservas para esmagá-las em campo de batalha. Mas o ditador não se dispôs a dar a Aníbal o que ele queria. Ao contrário, consciente da superioridade militar do inimigo, decidiu evitar uma nova batalha campal, preferindo fustigar as forças púnicas, numa guerra de desgaste. Para tanto, ordenou que todas as pessoas residentes na linha de marcha de Aníbal abandonassem suas casas e fazendas, queimassem todas as suas propriedades e destruíssem suas colheitas, para privar os invasores de quaisquer meios locais de manutenção. Por adotar essa tática, tão estranha à tradição militar romana, Fábio foi apelidado, pejorativamente, de "cunctator" (contemporizador), sendo alvo de muitas críticas por parte de seus concidadãos e, sobretudo, de seus adversários políticos. Quando Aníbal moveu-se para o sul, Fábio o seguiu, mantendo seus homens no sopé dos Apeninos, de onde ele poderia despachar grupos de ataque para isolar 168 forrageadores e acossar os flancos do inimigo. E todas as vezes que o cartaginês lhe ofereceu uma oportunidade de combate, ele, cautelosamente, a ignorou. Nem mesmo quando Aníbal atacou Cápua, esperando que Fábio usasse suas legiões para defender a cidade, nem assim o ditador abandonou a estratégia que decidira adotar. Quando se esgotou o tempo (limitado) de sua ditadura, Fábio Máximo devolveu o comando aos cônsules Servílio e Régulo (que havia substituído Flamínio). Pouco tempo depois, foram eleitos os cônsules de 216 a.C.: Lúcio Emílio Paulo, membro de uma renomada família patrícia, e Caio Terêncio Varrão, um plebeu de opiniões radicais, que se tornara um dos maiores críticos da estratégia contemporizadora de Fábio Máximo. Eles dariam a Aníbal o que Fábio lhe negara: uma grande batalha, que talvez decidisse a guerra. Canas Ver artigo principal: Batalha de Canas Aníbal contando os anéis dos cavaleiros romanos caídos na Batalha de Canas (216 169 a.C.). Mármore de 1704 esculpido por Sébastien Slodtz, atualmente exposto no Museu do Louvre. Na primavera de 216 a.C., Aníbal começou a movimentar-se. Os suprimentos de Gerônio estavam quase esgotados e não havia mais nada a ser tirado da terra conquistada. Enquanto os romanos mantinham um firme sistema de suprimento para os seus exércitos em campo, Aníbal sempre era forçado a capturar algum rico depósito ou deixar o país, uma desvantagem que ele iria sentir ao longo de suas campanhas. Marchou para o sul e, cruzando o Rio Aufido (Ofanto), desceu sobre a cidade de Canas. Apesar de ser um lugar sem importância em si, era um dos principais depósitos de grãos que os romanos usavam para abastecer o exército. A cidade situava-se em uma colina que se erguia abruptamente de uma indistinta planície, através da qual o Aufido fluía de modo tortuoso para o Adriático, cerca de seis milhas distante. Apoderando-se de Canas, Aníbal privara o exército romano de uma importante fonte 170 de suprimentos, assegurando, além disso, alimentação mais do que adequada para seu próprio exército. Depois, o precoce milho da Apúlia estava amadurecendo e ele encontrava-se, assim, em posição de isolar os romanos dessas futuras colheitas. Servílio e Atílio, os cônsules do ano anterior que ainda estavam com o exército, defrontavam-se com um dilema. Até que fossem rendidos pelos dois novos cônsules, Lúcio Emílio Paulo e Caio Terêncio Varrão, estavam tecnicamente no comando. Eles certamente não tinham o desejo de travar batalha contra o formidável cartaginês, particularmente porque sabiam que o exército que iria se juntar a eles significava, praticamente, a única esperança que os romanos possuíam de derrotar o inimigo. Fora a batalha, suas únicas opções reais eram seguir Aníbal a uma distância segura e conseguir seus suprimentos de armazéns distantes, ou retirar o exército inteiramente até que fossem reforçados pelas novas legiões. O senado havia determinado aquele ano para a batalha. Eles tinham o apoio não só do povo como também dos equites, a 171 cavalheiresca casta aristocrática. Todos os segmentos da população, embora houvesse grande divisão entre eles — divisão fomentada por homens como Varrão — estavam decididos a vingar as derrotas que Roma sofrera nas campanhas dos dois anos prévios, e apagar o desprezo lançado sobre o nome romano pela presença desse general cartaginês e seu exército improvisado nas terras da Itália. Não apenas sua honra e suas tradições os exortavam a oferecerem seus serviços, mas consta que tanto plebeus quanto aristocratas perceberam que Roma, não só a cidade mas também todo o conceito da Roma eterna, havia chegado a um ponto crítico. Embora ainda fosse uma república, era fato que a Roma imperial já havia começado a despontar — e nenhum império pode sobreviver se não consegue lidar com os invasores de sua própria terra. Era essencial, para manter o respeito dos países sob seu poder, e dos que ainda viriam a estar, que o invasor fosse aniquilado. Determinado, então, a uma decisiva batalha em larga escala, o Senado deu ordens para os procônsules permanecerem com o exército existente e 172 não fazerem qualquer movimento até que fossem reforçados pelos cônsules Lúcio Emílio Paulo e Caio Terêncio Varrão — e o novo exército de 216 a.C.. Contra eles, Aníbal colocou quarenta mil homens de infantaria e dez mil de cavalaria. Parte da discussão a respeito do número exato de romanos engajados em Canas parece ter vindo do fato de os comentadores não aceitarem de bom grado a possibilidade de tamanha desproporção entre a extensão dos dois exércitos: no máximo, os romanos teriam o dobro de homens que o inimigo e, na pior das hipóteses, seriam um quarto mais numerosos. Porém, exemplos suficientes existem, ao longo dos tempos, de pequenas forças triunfando sobre grandes, e em Canas havia muitas vantagens do lado de Aníbal que de longe sobrepujavam qualquer superioridade numérica ostentada pelos romanos. Sucede que ele não era somente um génio da guerra, mas também estava num comando solitário e sem divisões. Ademais, seus outros comandantes eram excepcionalmente brilhantes, tinham trabalhado e lutado juntos em muitos campos de batalha, e 173 conheciam e respeitavam a qualidade de seu líder. (Como o "bando de irmãos" de Nelson, eles não necessitavam de quaisquer ordens, uma vez que a ação tivesse iniciado, pois se entendiam completamente.) Não bastasse isso, o exército cartaginês, embora misto, consistia inteiramente de soldados experientes, que gozavam de completa confiança, vantagem que os sucessos prévios lhe proporcionaram, enquanto a maioria dos romanos e seus aliados, por outro lado, era formada de inexperientes grupos. Ainda um último fator de vantagem, de modo algum menos importante, foi terem chegado primeiro ao local; assim tiveram tempo de se refazer e explorar a área inteira ao redor de Canas e do rio Aufido, ao passo que os romanos vinham de uma longa marcha por um lugar estranho, e com comandantes em discordância um com o outro. Apesar da desproporção numérica, portanto, a verdadeira desigualdade agia em favor do cartaginês e é improvável que Aníbal tenha ficado mais intranquilo do 174 que qualquer general que estivesse prestes a mandar seu exército para a batalha. Aníbal primeiro acampou às escondidas ao sul da colina de Canas. Ao ouvir sobre a aproximação dos romanos, deslocou suas tropas através do Aufido e montou um novo acampamento na margem oeste. Uma vez que a terra, daquele lado, era ainda mais plana e adequada para a cavalaria, ele esperava poder enfrentá-los onde a superioridade de seus cavaleiros mais facilmente se fizesse sentir. No dia em que os dois exércitos, pela primeira vez, ficaram à vista um do outro, Lúcio Emílio Paulo estava no comando e, reconhecendo que a terra adiante favorecia claramente uma ação de cavalaria, alertou Caio Terêncio Varrão de que as legiões levariam maior vantagem se elas se deslocassem para um solo mais acidentado. Varrão não concordou e, no dia seguinte, estando no comando, decidiu levar as legiões pelo Aufido e enfrentar Aníbal do outro lado da planície. Embora Políbio atribua o pronunciamento às tropas a Paulo,[19] não pode haver dúvidas de que as 175 palavras, a seguir, refletiam a opinião de Varrão: (…) Seria estranho ou certamente impossível que, após enfrentarem seus inimigos em termos de igualdade em tantas escaramuças diferentes, e na maioria dos casos saindo vitoriosos, agora que vão confrontá-los com suas forças unidas, as quais superam as deles em mais de dois por um, vocês fossem batidos. Varrão estava bastante consciente de que o novo exército tinha sido enviado para conquistar uma grande vitória e livrar Roma do cartaginês de uma vez por todas. Ele não utilizava qualquer tática ao gosto de Quinto Fábio Máximo, o Protelador, e falar sobre deslocamento por solo acidentado só o deixava mais determinado a descer até a planície. Então, todo o exército romano moveu-se para a margem oeste do Aufido, onde estabeleceram seu acampamento principal, em frente às tropas de Aníbal, cerca de duas milhas distante deles ao norte. Ao mesmo tempo, parte do exército foi enviada através de um vau para estabelecer um acampamento secundário 176 menor na margem oriental do rio. Quando os romanos estavam em coluna de marcha, foram atacados por alguns dos cavaleiros ligeiros númidas, sofrendo algumas poucas baixas. Esse encontro não foi de grande consequência e os númidas retiraram-se quando se viram frente à cavalaria pesada romana reforçada pelas legiões. Quando muito, os romanos ficaram com a vantagem nesse primeiro choque, o que deve ter gerado certo otimismo, "não tendo os cartagineses alcançado o sucesso que esperavam". No dia seguinte, Lúcio Emílio Paulo reassumiu o comando e "vendo que os cartagineses em breve teriam que trocar de acampamento de modo a obter suprimentos, permaneceu imóvel, após garantir seus dois acampamentos com forças de cobertura." Nisso ele estava totalmente correto, pois, deslocando-se através do rio, Aníbal estava agora do outro lado de Canas e de seus suprimentos. Ele novamente enviou os númidas, que tinham ordens de acossar os destacamentos romanos de abastecimento de água ocupados em trabalho fora do acampamento menor, no lado leste do rio. 177 Os romanos tiveram seu moral desgastado quando viram aquele acampamento distante assediado por esquadrões volantes de cavaleiros e seus suprimentos de água negados. Estratégia arquitetada por Aníbal para destruir o exército romano durante a Batalha de Canas, cortesia do Departamento de História da Academia Militar dos Estados Unidos. Era junho. O quente verão se instalara; a água era importantíssima, e a planície ao redor do rio Aufido começava a rachar com o calor. Durante aquela noite, ou no começo do dia seguinte, o vento mudou para o sul e um siroco (conhecido localmente como Volturno) começou a soprar. Bafejando preguiçosamente ao longo do Adriático, e atingindo os dois exércitos acampados milha após milha através da Itália, do mar Jônio e do distante golfo de Taranto chegava o ar úmido, trazendo a poeira da terra consigo. Vento desgastante, o siroco deixa uma cobertura de poeira e umidade mesmo sobre o viajante sem cargas; as novas legiões, pouco acostumadas a levar armas e armaduras, ao contrário dos veteranos 178 de Aníbal, suavam à medida que subia o sol. Já era o cruel "sol leão" de verão e os homens teriam que se defrontar não apenas com o adversário, mas também com o maior inimigo de todos nas terras sulinas, o calor do meio-dia. Naquele dia, o quarto desde que os exércitos haviam se avistado, era a vez de Caio Terêncio Varrão assumir o comando, "e logo após nascer o sol começou a deslocar-se, com suas forças, de ambos os acampamentos". Cruzou o rio com a parte principal do exército e reuniu-se ao acampamento menor na margem leste. Suas razões para agir assim não foram investigadas pelos historiadores primitivos e, todavia, esse movimento que determinou o local do campo de batalha é logicamente importante. Em primeiro lugar, o segundo acampamento fora inicialmente estabelecido de modo a prover um local para abastecimento de água de um vau adequado, e a água seria crucial num dia de verão. Em segundo, movendo-se pelo lado em que se elevava a colina de Canas e seus celeiros, Caio Terêncio Varrão ameaçava os suprimentos de alimento de Aníbal. Em terceiro lugar, sendo o 179 primeiro a mover-se e a ter forças dispostas em linha diante do calor do dia que se iniciava, deve ter esperado surpreender Aníbal e, antevendo que as forças deste último naturalmente se deslocariam para enfrentar os romanos, pilhar o exército cartaginês enquanto ainda estivesse em desordem após ter atravessado o rio. Finalmente, a terra na margem leste do Aufido, embora bastante plana, possuía uma quantidade de ondulações e irregularidades que tornariam as coisas difíceis para a cavalaria. Varrão não agiu com estupidez precipitada. Tão logo viu os romanos a mover-se naquele tórrido dia, Aníbal enviou suas tropas com armas leves — os fundibulários e os lanceiros — através do rio. Ele sabia quem estava no comando do exército romano e que, mesmo antes de o corpo principal das tropas oponentes começar a desfilar em direção do rio, após uma longa demora, ele havia trazido o corpo principal das armas romanas para a batalha. Desde o lago Trasimeno esperava por esse momento, e o ano de espera — sempre frustrado pela inteligente 180 temperança de Quinto Fábio Máximo talvez agora pudesse ser levado à necessária e dinâmica conclusão. Os romanos posicionaram-se em formação de batalha quando Aníbal e a corporação de seu exército cruzaram o Aufido em dois locais separados e entraram no padrão tátíco que seu general lhes havia designado. Se estivesse lutando na margem oeste do Aufido, teria colocado os cavaleiros ligeiros númidas em seu flanco esquerdo, onde sua mobilidade poderia ser melhor utilizada, e sua cavalaria pesada à sua direita, bem próximo do rio, onde não importaria tanto se seu ataque fosse restrito. Como estava, posicionando seu exército na terra abaixo da colina de Canas, colocou os númidas no seu flanco direito, onde eles novamente poderiam fazer uso do terreno aberto, e a brigada pesada, consistindo de iberos e gauleses, à sua esquerda, perto do sinuoso rio. Eles estariam de frente para a cavalaria da ala direita romana e ele esperava que sua maior habilidade e a superioridade numérica o capacitassem a enfrentar os 181 romanos na margem do rio. Próximo a eles, estacionou metade de seus veteranos africanos, a infantaria de armas pesadas locupletada de equipamento bélico tomado dos romanos em Trasimeno. No centro, onde ele próprio comandava, posicionou o corpo de suas tropas, os iberos e gauleses, com a outra metade dos africanos à sua direita, e além deles os cavaleiros númidas. Os africanos "estavam armados à moda romana. Cquote1.svg Os escudos dos iberos e dos celtas eram muito similares, mas suas espadas eram inteiramente diferentes: as dos iberos trespassavam mortalmente devido ao seu corte, mas as gaulesas eram apenas capazes de talhar, precisando de um longo movimento para fazê-lo. Do modo como estavam dispostos em companhias alternadas, com os gauleses despidos e os iberos em túnicas curtas bordadas em púrpura, sua vestimenta nacional, eles representavam uma estranha e impressionante visão. — Políbio[19] O irmão de Aníbal, Magão, estava junto dele no comando do núcleo; Asdrúbal, 182 oficial da equipe de Aníbal, comandava a esquerda cartaginesa; Hanão, à direita, com o grande comandante da cavalaria Maárbal liderando os cavaleiros númidas. Enquanto isso, o maior exército que Roma jamais enviou a campo estava disposto contra ele do modo convencional, com a cavalaria em cada uma das alas, os cavaleiros aliados à esquerda, de frente para os númidas, e os romanos à direita, próximo do rio, enfrentando a cavalaria pesada de Aníbal. No centro estavam as legiões, fileira após fileira: "os manipules, mais próximos um do outro do que de costume, fazendo com que a profundidade de cada um muitas vezes excedesse sua frente". Era esperado que, como em muitos campos de batalha, o peso blindado dos disciplinados legionários abrisse um buraco através do núcleo de Aníbal. Emílio Paulo, relutante porém apto para essa ação que ele considerava imprudente, comandava a cavalaria romana, enquanto Caio Terêncio Varrão liderava a cavalaria aliada. Gemino Servílio, o cônsul do ano anterior, comandava o núcleo romano composto pelas legiões. 183 Naquele instante, quando ambos os exércitos se encararam e o abrupto peso e superioridade numérica dos romanos ficaram evidentes aos olhos de todos, deve ter ocorrido um momento de tremor entre os cartagineses, e entre o pequeno grupo de oficiais de comando em volta de Aníbal. O escudo de Henrique II de França representando a vitória de Aníbal em Canas, uma ilusão do conflito da França com o Sacro Império Romano Germânico durante o século XVI. O pequeno grupo, então, desatou a rir, a tensão foi quebrada, e as fileiras atrás deles sentiram sua confiança restaurada pelos risos dos líderes ecoando no ar do verão. No momento em que os exércitos colocaram-se em ordem de batalha — as tropas com armas leves, fundibulários, atacantes e lanceiros, avançando para iniciarem os primeiros ataques — o sol estava a pino. Assim que começou a inclinar-se para o sul, os romanos ficaram com o sol nos olhos, e os cartagineses, de costas para ele. O siroco começou a soprar mais fortemente à medida que o dia avançava, "um vento", como Lívio diz, "que sopra nuvens de poeira sobre a seca 184 aridez das planícies".[37] Levantando-se sobre a terra atrás das linhas cartaginesas, soprou rispidamente no rosto dos romanos e de seus aliados. Quando o trote de milhares de homens e cavalos, o alarido de armaduras e espadas, o relincho dos cavalos e os brados de comando de oficiais e centuriões haviam acalmado, os dois exércitos se defrontaram no penoso semisilêncio que precede uma tempestade. Ao som das trombetas de bronze, as tropas leves avançaram através do ar denso para desferirem seus primeiros golpes exploratórios umas contra as outras, como boxeadores procurando por uma brecha. Assim que os exércitos começaram a mover-se, foi notável que o núcleo cartaginês se lançasse à frente numa curiosa disposição em formato de um crescente, com a cúspide desse crescente projetando-se em direção ao inimigo, "a linha das companhias laterais ficando mais afilada à medida que se prolongava". Aníbal abriu a batalha propriamente dita com os iberos e gauleses, deixando os africanos armados com armas pesadas como reservas em cada ala. Eles formavam, por assim dizer, fortes retângulos flanqueando o saliente 185 crescente. Sombrias e tenebrosas, equipadas com armas romanas, as tropas africanas eram como sombras em cada lado da sanguinária meia-lua guerreira que se projetava além deles. O verdadeiro combate começou com os cavaleiros iberos e gauleses e a cavalaria pesada romana, ambos constringidos pelo rio. Somente um ataque frontal poderia sobrevir, e os romanos — os cavaleiros de armadura ávidos para provar sua virtude e patriotismo, à frente dos legionários plebeus — tinham a desvantagem de, ao contrário dos seus oponentes, não terem vivido e lutado na sela por vários meses, para não dizer anos. "Ambas as partes investiram direto à frente", escreve Lívio,[37] "e assim que os cavalos pararam, emaranhados na multidão, os cavaleiros se atracaram com seus inimigos e os arrastaram para fora das selas. Combatiam, agora, em sua maioria, sobre seus pés (…)". Os romanos, há apenas cerca de uma semana fora dos quartéis de inverno, muitos deles pacatos homens da cidade, não foram páreo para seus inimigos. "(…) Mesmo tendo sido severa, a batalha logo terminara, e a derrotada 186 cavalaria romana voltou-se e fugiu". A cavalaria pesada atacou através da lacuna deixada pelo colapso da ala direita romana. O cônsul Lúcio Emílio Paulo, que estava no comando, escapou incólume dessa selvagem ação e cavalgou para o núcleo, onde se colocou na vanguarda dos legionários, "encorajando e exortando seus homens". Ele era da velha linhagem romana, conservador, porém preparado para lutar mesmo onde ele próprio não teria travado batalha. À direita cartaginesa os númidas tinham agora entrado em ação contra os cavaleiros aliados de Roma com os africanos usando o espaço livre do terreno além deles para impedir qualquer ataque frontal, mas dando a volta e atacando seu inimigo em turnos de mergulhos e retiradas, como aves de rapina. Enquanto isso, os corpos principais dos dois exércitos, as esforçadas infantarias, haviam entrado em colisão. Aníbal, "que havia estado nessa parte do campo desde o início da batalha", despreocupado, como sempre, com sua própria segurança, liderava as mesmas tropas que ele enviara ao sacrifício. A linha estreita de iberos e 187 gauleses não suportaria muito mais tempo os golpes duros como de clavas que a densa massa das legiões em avanço desferiam contra ela. Vagarosa, mas constantemente, a cúspide do crescente sucumbia e retrocedia, primeiramente em corte, e depois em forma de U. As legiões, bastante amontoadas desde o início e sem a mobilidade que sua formação aberta de manipulo normalmente lhes proporcionava, começavam agora a afluir para trás, uma após a outra, de modo que pareciam uma torrente de armaduras arrebentando-se sobre um dique em desmoronamento. Mas em ambos os lados do núcleo que recuava as muralhas de ferro dos africanos permaneciam firmes. Ao contrário dos legionários que lideraram o ataque e dos legionários que os seguiam (comprimidos, ombro a ombro, dificilmente capazes de erguerem os braços armados com espadas), os africanos não tinham até agora tomado parte na luta. Na ala direita cartaginesa, os númidas haviam triunfado da cavalaria aliada romana, não sendo essa última páreo para os mais habilidosos cavaleiros do mundo, 188 que agora perseguiam o inimigo enquanto este dispersava. Entre os que fugiam estava o cônsul Caio Terêncio Varrão, o homem cuja confiança mal direcionada havia levado a esse sangrento encontro no campo de Canas. Durante todo o tempo, as legiões romanas continuavam a forçar o núcleo de Aníbal. Elas haviam penetrado tão fundo que a infantaria africana nos flancos projetavase de cada lado como margens cercando um movimentado rio de armaduras. Asdrúbal, oficial da equipe de Aníbal, à frente da cavalaria pesada cartaginesa, tinha, enquanto isso, destroçado completamente a ala direita romana e, em seguida, guiou seus cavaleiros para trás das legiões romanas, atacando a cavalaria aliada em seu flanco esquerdo. Já em desordem, ou em fuga diante dos númidas, esse trovão da cavalaria pesada em sua retaguarda completava o colapso da ala esquerda romana. Uma trombeta soou. O momento havia chegado. A tática de Aníbal de duplo envolvimento das legiões romanas estava 189 concluída. As tropas africanas, pesadamente armadas, disciplinadas e robustas, fizeram seu movimento: "os da ala direita volvendo para a esquerda, e os da ala esquerda, volvendo para a direita (…)". Sobre a massa de romanos que se debatia entre os cartagineses, agora apanhados no núcleo das tropas, os africanos se movimentaram como os dois lados de um torno se fechando. Para completar essa terrível armadilha dentro da qual as legiões haviam mergulhado na perseguição ao núcleo de Aníbal em colapso, suas linhas de retaguarda agora viam-se atacadas. A cavalaria pesada, tendo completado a destruição da cavalaria aliada, havia deixado que os númidas os perseguissem enquanto fugiam, para surpreender a retaguarda das legiões romanas. Cercados, uma vez que os iberos e gauleses que formavam o núcleo de Aníbal ainda lutavam ferozmente, disputando cada pedaço de solo, os romanos foram totalmente atingidos pelo arrocho das duas alas formadas pelos africanos. Por toda aquela tarde quente, a 190 planície abaixo da colina de Canas se transformara num matadouro. Lívio escreve que quarenta e cinco centenas de soldados de infantaria e dois mil e setecentos cavaleiros foram mortos numa proporção quase igual de cidadãos e aliados.[37] Apiano e Plutarco dão um total de cinquenta mil homens;[38] Quintiliano, sessenta mil homens, e Políbio eleva o grande total de romanos mortos a setenta mil.[19] Os cartagineses perderam aproximadamente quatro mil gauleses, mil e quinhentos iberos e africanos, e duzentos cavaleiros. Assim como o cônsul Lúcio Emílio Paulo, os dois cônsules dos anos anteriores, Servílio e Atílio, foram ambos mortos, além de Minúcio, o chefe dos cavaleiros de Quinto Fábio Máximo|Fábio. Oitenta senadores, dois questores (tesoureiros do Estado) e vinte e nove tribunos militares — mais da metade do total daqueles descendentes de sangue nobre romano — morreram naquele dia. Após a batalha 191 Caio Terêncio Varrão, junto com um pequeno grupo de cavaleiros aliados, cavalgou para Venusia (atual Venosa) trinta milhas adiante. Políbio comenta que "ele desgraçou a si mesmo com tal fuga; o exercício do seu mandato tinha sido o menos proveitoso possível para o seu país".[19] O mais espantoso é que, ao chegar, por fim, a Roma, foi recebido por uma grande multidão que o congratulava por não ter perdido a esperança na república. Seria essa flexibilidade — a pura força e vitalidade — das instituições políticas de Roma que no fim derrotaria Aníbal. Em Cartago, o destino de um general malsucedido e covarde era bem conhecido — ele era crucificado. Da infantaria sobrevivente um número não especificado conseguiu chegar a Canusio (atual Canosa di Puglia), entre eles um dos tribunos militares, o jovem Cipião. Este era testemunha da genialidade de Aníbal, a qual ele iria estudar e aproveitar. Anos mais tarde, no campo de batalha norte-africano de Zama, ele demonstraria ter absorvido bem as lições. Dez mil homens que haviam sido deixados para guardar o acampamento 192 romano e, se possível, atacar e tomar o acampamento principal dos cartagineses, foram apanhados após a batalha; foram mortos dois mil, e os restantes, aprisionados. A pilhagem do acampamento romano e do campo de Canas foi considerável: armas e armaduras, arreios de cavalos, prata e ouro, cavalos e bagagem. Diz-se que somente os anéis com sinetes de ouro, tirados dos cavaleiros romanos que haviam tombado em batalha, somavam três bushels de peso. Aníbal, como de costume, tentou recuperar os corpos de seus líderes oponentes, mas somente o do cônsul Lúcio Emílio Paulo pôde ser identificado, e a ele foi dado um honroso funeral. Naquele momento de triunfo, quando parecia que seus inimigos estavam irreversivelmente derrotados, dificilmente haveria surpresa se alguns dentre os cartagineses sentissem ter chegado a hora de marchar sobre Roma. Ainda menos surpreendente seria que esse sentimento tivesse sido externado por Maárbal, um comandante de cavalaria sem igual, que com justiça achava que muito do êxito 193 obtido pelos cartagineses desde a chegada à Itália podia ser atribuído aos seus soberbos cavaleiros. É natural para um cavalariano ter o sangue quente e ser cheio de ela, e Maárbal agora clamava ao seu líder para fazer uso da oportunidade que tão devastadora vitória lhe proporcionara. "No quinto dia a partir de agora", ele teria dito, segundo Lívio, "você irá jantar como um vitorioso na colina do Capitólio. Meus cavaleiros irão à sua frente, e os romanos saberão que você chegou, mesmo antes de imaginarem que viria".[37] Aníbal respondeu que, embora tais palavras fossem boas de se ouvir, ele ainda precisava de tempo para considerar. Ao que veio a famosa e irada resposta de Maárbal, ressoando através dos tempos: "Aníbal, vejo que os deuses dão a um homem muitas dádivas, mas não todas. Você sabe como vencer, mas não sabe o que fazer das suas vitórias!"[nota 1] Aníbal não tinha opção. Seu exército não era grande o bastante para investir sobre uma cidade do tamanho de Roma e cerceá-la, e ele não possuía maquinário para um cerco. 194 Cquote1.svg Os cartagineses, com essa ação (em Canas), tornaram-se, de uma vez por todas, senhores de quase todo o resto da costa. Com Tarento rendendo-se imediatamente, enquanto Argiripa e algumas cidades campanianas convidavam Aníbal para vir até elas (…) Os romanos, por seu lado, devido a essa derrota, abandonaram de vez todas as esperanças de reter sua supremacia na Itália, apreensivos que estavam por sua própria segurança e a de Roma, com a expectativa de que Aníbal aparecesse a qualquer momento. — Políbio[19] As razões pelas quais ele não o fez são conhecidas, mas naquele momento parecia inconcebível para os romanos que ele não seguisse adiante com seu triunfo. As primeiras notícias que chegaram à cidade depois que os mensageiros foram enviados para ver o que tinha acontecido em Canas eram que o exército havia sido destruído e ambos os cônsules mortos. Ainda não se sabia que Caio Terêncio Varrão estava reunindo "algo semelhante a um exército consular" em Canúsio. Não havia sinal do acampamento romano, e o inimigo parecia 195 estar de posse de toda a região. Era como se aquelas orgulhosas legiões novas, que haviam marchado para o sul para destruírem Aníbal de uma vez por todas, terminassem elas próprias varridas da face da Terra. O tratamento de Aníbal a seus prisioneiros diferiu ligeiramente nessa ocasião, uma vez que ele não permitiu de pronto que os aliados retomassem livres para os seus lares. Ele separou uns dos outros, mas ofereceu tanto aos aliados quanto aos romanos a liberdade em troca do pagamento de um resgate — sendo o pagamento imposto aos romanos cinquenta por cento superior ao exigido pelos aliados. Ele já tinha prisioneiros e escravos mais do que suficientes e, apesar da riqueza armazenada pelo campo de batalha, sentiu provavelmente ser a hora certa para adquirir tanto dinheiro quanto possível, em vista do futuro pagamento de suas tropas. Ele tomou, uma vez mais, o cuidado de enfatizar aos aliados que sua guerra não era contra eles, mas contra Roma, e permitiu que uma delegação de dez romanos partisse para a cidade deles em companhia de um nobre cartaginês, 196 Cartalão. Quaisquer que fossem as expectativas de Aníbal, ele ficaria desapontado: Cartalão não foi recebido em Roma e, sob advertências, precisou deixar os limites da cidade antes do cair da noite. Se Aníbal esperou com tal generosidade ter uma oportunidade de descobrir o estado do moral romano, o Senado estava igualmente convencido de que ele deveria aprender que não houvera qualquer fraqueza. Após muito debate, decidiu-se que os delegados deveriam ser enviados de volta a Aníbal com a mensagem de que Roma não tinha qualquer intenção de pagar resgates por seus soldados capturados. Nesse momento de desastre, Roma exibia aquela face dura e resistente que faria dela a cabeça de um grande império. Embora pudesse bem ter utilizado esses soldados, sentia-se e proclamava-se que era o dever de um romano morrer a render-se. A cidade abraçara o código espartano. Dificilmente haveria dentro dos muros de Roma uma mãe que não tivesse perdido um marido ou filho nas campanhas de Aníbal: não foi permitido que elas deixassem suas casas de luto. 197 Quinto Fábio Máximo, o Protelador, uma vez mais sustentou o velho código romano, encarregando-se do moral, bem como do trabalho nas defesas. O luto público foi proibido; o rumor e o falatório foram eliminados pela imposição do silêncio em locais públicos; todos os portadores de notícias vindos de fora da cidade eram imediatamente trazidos à presença dos pretores para que revelassem suas informações (mas não lhes era permitido discuti-las depois disso), e sentinelas foram postados nos portões para impedir que qualquer um deixasse a cidade. A necessidade dessas medidas severas foi reforçada quando as últimas notícias terríveis chegaram: um exército consular no norte da Itália, sob o comando do cônsul eleito Lúcio Postúmio, havia caído numa emboscada armada pelos boios e tinha sido massacrado. Lívio, volvendo o passado nesse momento da história romana, avalia acuradamente a situação: No ano anterior, um cônsul e seu exército foram perdidos em Trasimeno; não se tratava agora meramente de um golpe 198 seguido de outro, mas de uma calamidade muitas vezes mais grandiosa que sucedia a anterior. Dois cônsules e dois exércitos consulares tinham sido perdidos (em Canas) e não havia mais qualquer acampamento romano, ou general, ou soldado. Aníbal era o senhor da Apúlia, do Sâmnio e de quase toda a Itália (…) Seria comparável a isso o desastre das Ilhas Egates, que os cartagineses sofreram no combate marítimo, quando o seu moral foi atingido pela perda da Sicília e da Sardenha e por terem se tornado tributários e pagadores de impostos? Ou à derrota na África, à qual esse mesmo Aníbal mais tarde iria sucumbir? Em nenhum aspecto sequer eles podem ser comparados com essa calamidade, exceto o de terem sido suportado com menos vigor. — Tito Lívio[37] Aníbal não podia investir e destruir Roma, mas Canas lhe permitiu colher os frutos da vitória em termos políticos. Uma quantidade de cidades na Apúlia abriram os portões para ele, incluindo Arpi e Salápia, enquanto todo o Brútio (atual Calábria) — com a notável exceção das 199 cidades gregas — e quase toda a Lucânia deixaram a confederação romana para se juntarem aos cartagineses. A maior parte do Sâmnio o fez, seguida no devido curso por Cápua, na Campânia — a segunda maior cidade em toda a península Itálica, a mais rica depois da própria Roma e a mais importante da confederação. Cápua era capaz de comportar um exército de cerca de trinta mil soldados de infantaria e quatro mil cavaleiros, e parecia destinada a ser a capital dessa nova coalizão de Estados que, sob o controle de Aníbal, poderia formar um bloco italiano e expandir-se desde o rio Volturno, a oeste, até o monte Gargano na costa adriática. Contudo, algo significativo — e que dificilmente poderia ter escapado à observação de Aníbal — era que nenhuma das colônias latinas na região tinha aberto seus portões para ele e que as cidades gregas, igualmente, mantinham sua fidelidade a Roma. Esse último fato foi de maior consequência, uma vez que eram os "aliados navais" gregos, como eles eram denominados, que forneciam a espinha dorsal da frota de Roma. Seus portos de Nápoles, Régio da Calábria, Tarento e 200 Túrio não somente eram prósperos por si, mas também essenciais para o controle do mar Tirreno, dos acessos à Sicília e, certamente, de todo o oeste mediterrâneo. Políbio antecipou os fatos quando se referiu a "Tarento se rendendo imediatamente".[19] Isso aconteceu meses antes de esse grande porto marítimo sulino cair nas mãos de Aníbal, e até o momento ele não tinha nenhum real acesso ao mar. Ele, contudo, conseguiu enviar seu irmão caçula Magão de volta a Cartago com as notícias sobre Canas e um relato da situação geral na Itália. Magão marchou pelo "dedo do pé" da Itália, onde as tribos brútias saudavam qualquer um que os tivesse libertado da intrometida dominação de Roma, e embarcou presumivelmente em alguma embarcação cartaginesa que havia se destacado de uma frota que ainda explorava vigorosamente as defesas da Sicília. Aníbal necessitava muito de reforços, particularmente para a cavalaria e a treinada infantaria norte-africana. A brilhante força escolhida a dedo, com a qual ele havia deixado a península Ibérica dois anos antes, havia sofrido severas 201 perdas — mesmo excluindo os muitos homens perdidos na passagem dos Alpes — e os gauleses e outros aliados não eram substitutos para soldados profissionais. Aníbal também precisava de dinheiro. Os mercenários tinham que ser pagos, e os espólios de Canas e sucessos políticos que se seguiram não vieram sem o lado reverso da moeda: Aníbal precisava, agora, de homens para reforçar guarnições, dinheiro para subornar cidadãos idóneos e, acima de tudo, de um equipamento para sítio. Com seu exército de conquista, ele havia feito uma brilhante demonstração que nunca mais seria repetida na história da guerra. Agora estava frente a algo que nem ele nem seu pai, e certamente ninguém do Senado de Cartago, jamais havia considerado: a exigência de uma consolidação. Não tendo meios para assediar cidades fortificadas e sem tropas disponíveis para guarnecê-las mesmo se elas caíssem, encontrava-se diante de um problema insolúvel: não poderia reter um país inteiro. O pensamento de Aníbal — pensamento cartaginês — estava ultrapassado. Tendo feito o impossível, cruzando os Alpes para 202 atacar o Estado romano por terra e derrotando-o com sucesso no norte, Roma deveria ter-se rendido. Tendo marchado para o sul e aniquilado um exército consular no lago Trasimeno, Roma deveria ter-se rendido. Tendo marchado ainda mais para o sul e destruído completamente os exércitos da república, Roma deveria ter-se rendido. Aníbal e os cartagineses pensavam nos moldes do passado. Pelos séculos de guerra, primeiro tribal e depois extraterritorial, os romanos tinham aprendido que uma batalha não faz uma conquista. Aníbal era um comando-líder, e ele havia alcançado seus objetivos. Ninguém lhe havia dito — nem ele havia previsto — que teria então de comandar um exército de ocupação. O irmão de Aníbal, Magão, deve ter esperado que sua recepção em Cartago fosse, no mínimo, calorosa e estimada. Ele viera para relatar aos senhores de Cartago, e aos do seu senado, que seu general Aníbal, o filho de Amílcar, fundador de seu império na península Ibérica, havia vingado as injúrias da primeira guerra contra Roma, e que a nação que os havia humilhado com os 203 termos de um infame tratado de paz estava agora caída de joelhos. Tinha evidências do campo de batalha — os anéis de ouro dos cavaleiros romanos, entre outras coisas —, dando conta da extensão da vitória que acabara de ser conquistada. Se trouxera esplêndidas notícias, Magão também tinha algumas requisições a fazer. Aníbal precisava muito de reforços na forma de homens de infantaria treinados, de mais cavaleiros númidas e dinheiro. O partido de oposição em Cartago, liderado por Hanão, descendente do Hanão que havia sido obscurecido por Amílcar Barca e representante de uma das mais ricas famílias de Cartago, estava preparado com objeções contra o envio de assistência a Aníbal. Se ele havia alcançado tão grandes vitórias, por que precisava tanto de mais dinheiro e homens? Se ele fazia semelhantes demandas quando a maioria da Itália estava sob seu poder, o que pediria se tivesse sido derrotado? Agora, certamente, depois de uma vitória tão conclusiva, era a hora de fazer a paz, já que parecia duvidoso que sua posição pudesse de alguma forma ser melhorada para se obter bons termos. 204 Embora frequentemente desacreditado por historiadores subsequentes, o partido da paz tinha marcado sua posição — que os eventos posteriores justificariam. Contudo, não surpreende que ele tenha sido vencido e que se tenha tomado a decisão de enviar a Aníbal substanciais reforços. A maior parte deles, uns vinte mil homens de infantaria, viriam da Espanha, enquanto do território cartaginês foi acertado o envio de quatro mil cavaleiros númidas e quarenta elefantes. Mas a maioria desses reforços jamais alcançou a Itália. A posição na Espanha havia se debilitado seriamente durante os dois anos em que Aníbal se tornara o senhor da arena italiana. Após a derrota de Hanão, em 218 a.C., Públio Cornélio Cipião e seu irmão Cneu haviam partido para combater Asdrúbal, irmão de Aníbal, ao sul do Ebro, e os romanos também ganharam o controle do mar ao longo da costa ibérica. Por todo o ano de 216 a.C., enquanto Aníbal dominava a Itália e concluía a humilhação de Roma em Canas, os romanos tinham consolidado seu domínio no norte da península Ibérica, bem como fomentado a agitação tribal no sul. 205 Asdrúbal, mesmo reforçado por Cartago, tinha dificuldades em manter a suserania cartaginesa ao sul até Guadalquivir, de modo que não poderia dispensar tropas para enviar em assistência a Aníbal na Itália. Frente a isso, contudo, à medida que o ano 216 a.C. se encaminhava para o fim, parecia aos governantes cartagineses que as perspectivas de uma derradeira vitória eram boas. Houve uma revolta na Sardenha contra os romanos, e isso podia ser encorajado; o norte da Hispânia ainda poderia ser reconquistado; Hierão II, governante de Siracusa, aliado de Roma, estava morrendo, e no devido curso tais eventos poderiam oferecer a oportunidade da reconquista de toda a ilha — ou tanto dela quanto lhes fosse conveniente. Os sucessos de Aníbal deram ânimo a um Senado sempre inclinado a julgar as coisas muito mais pela perspectiva de retorno financeiro imediato. Três forças expedicionárias foram despachadas, uma para a Sardenha, e duas para Aníbal, na Itália. Somente a menor delas o alcançou — os númidas e os elefantes, pois a Hispânia, principal fonte dos recursos de 206 Cartago, estava destinada a receber a maior parte. É significativo que os reforços que Aníbal estava para receber, como resultado da decisão cartaginesa tinham que desembarcar em Lócris Epicefíria, um pequeno porto no afastado sudoeste da Itália, porque nenhum porto maior estava em suas mãos. Pretendendo capitalizar sua vitória, Aníbal entrou em contato com Filipe V da Macedônia, um governante perspicaz e enérgico que mantinha uma pendência de longa duração com Roma por sua interferência nos assuntos adriáticos, e que viu nos sucessos cartagineses na Itália uma chance de aumentar sua própria posição na Grécia. Para ele, como para tantos outros na Grécia e no leste, Roma era o inimigo, a principal ameaça para a independência de ação, e ele compreendia bem o velho ditado "O inimigo de meu inimigo é meu amigo." No verão de 215 a.C., ele e Aníbal assinariam um tratado (preservado por Políbio) no qual ambas as partes, ainda que de modo algum comprometidas, concordavam com uma aliança contra Roma. 207 O senado romano não tinha motivo senão para estar bastante alarmado nos últimos meses do que seria chamado "O Ano de Canas". A miséria e as trevas que encobriam a cidade levaram o povo daquela região a regredir, de avançada república, para um estado mais sombrio, que remontava às primitivas raízes de uma velha raça camponesa cujo pragmatismo nunca totalmente perdera de vista a religião e as superstições dos etruscos que haviam dominado há tantos anos. Os sagrados Livros Sibilinos foram consultados e uma comitiva enviada para Delfos para aconselhar-se com um dos mais antigos oráculos do mundo mediterrâneo. Assim como aconteceria cerca de dois mil anos mais tarde, em meio a guerras mais sofisticadassofistiscadas, as pessoas achavam que seus erros e pecados haviam trazido a calamidade sobre elas, e os templos ficavam lotados, todos se esforçando para descobrir o motivo da fúria dos deuses — e apaziguá-la. Duas Virgens Vestais, que em outros tempos não teriam seus pecados da carne descobertos, foram reveladas indignas de seu título de celibato: uma cometeu suicídio e a outra foi enterrada viva. Os romanos, mesmo 208 alguns educados no racionalismo da Grécia, voltaram-se aos mais antigos e sombrios dos deuses (tais como aqueles que os cartagineses ainda adoravam) e reverteram à expiação pelo sacrifício humano: dois gregos e dois gauleses foram enterrados vivos para satisfazer essa arcaica sede de sangue. "Após se aplacar essa erupção, contudo", escreve B. H. Warmington em Carthage, "aquela feroz determinação que havia marcado os romanos nos piores dias da Primeira Guerra Púnica retornou. Quanto à direção da guerra, os eleitores, de agora em diante, escolheriam regularmente candidatos que tivessem o apoio do senado, uma vez que dois dos cônsules escolhidos contra o desejo dele foram, pelo menos em parte, responsáveis pelas derrotas de Trasimeno e Canas. Formidáveis esforços eram demandados deles e dos aliados; o imposto de guerra foi dobrado em 215 a.C., por volta de 212 a.C. havia vinte e cinco legiões em campo, e durante todo o tempo foi mantida uma frota de duzentos navios com cinquenta mil remadores". Roma, que havia se recusado a pagar resgate por seus 209 soldados capturados em Canas, mostrava agora sua disposição de ferro: prisioneiros foram libertados da cadeia com a condição de que se juntassem às legiões e estivessem dispostos a lutar por seu país, e vários milhares de escravos jovens e saudáveis foram comprados de seus proprietários e ganhavam sua liberdade se então se alistassem. Templos e casas particulares foram despojados de armas e armaduras guardadas como troféus de batalha de guerras anteriores, e todos os artífices e artesãos foram recrutados para a fabricação de armamentos. A cidade não tinha esquecido seu dever para com os deuses e não esqueceu sua obrigação com a exigência material de uma guerra até a morte. Um outro ditador, Marco Júnio Pêra, foi escolhido com Tibério Semprônio Graco como seu Chefe de Cavalaria. No Trébia, no Trasimeno e em Canas, os romanos pagaram amargamente por uma política de ação agressiva. Agora demonstravam que foram sábios o bastante para terem aprendido a lição. Quinto Fábio Máximo, o "Protelador", havia-lhes mostrado o correto curso de 210 ação, que passaria doravante a ser seguido. Aníbal começava a assentar, até onde podia, aquele reino do sul que a vitória em Canas parecia ter colocado em seu poder. Cápua era, logicamente, o principal alvo de suas considerações primárias, pois essa cidade rica, embora politicamente dividida, parecia oferecer uma capital da qual ele poderia conduzir sua guerra contra Roma. A cidade não viera até ele sem uma respeitável divergência entre seus líderes, mas o fato decisivo que os levara a fazê-lo talvez tenha sido um pedido de Roma para que os capuenses os ajudassem com dinheiro, grãos e tropas. Diz-se que os capuenses eram um povo auto-indulgente, que se esquivava do fardo de se ligar a uma má causa — especialmente quando o exército de Aníbal estava em seus portões. Por outro lado, logo deixaram claro ao cartaginês que sua amizade não implicava qualquer colaboração mais ativa. Ele não poderia convocar qualquer elemento de suas forças armadas, embora fosse permitido aos capuenses serem voluntários para o serviço com ele, e em toda a região da 211 Campânia somente oficiais locais poderiam ter qualquer jurisdição. Da mesma forma, as leis e costumes cartagineses só se aplicariam ao exército de Aníbal; elas não teriam nenhuma autoridade sobre os campanianos. No entanto, Aníbal, que havia esperado pelo grande porto de Nápoles e seu quartelgeneral, mas tinha sido dissuadido por seus portões fechados e fortes muralhas, encontrara uma cidade-capital adequada e basicamente bem-disposta para sua conquista. Era evidente que todo o conceito da guerra nos limites do qual ele havia aluado era falso. Não era suficiente uma dramática conquista em campo e, então, ditar uma paz que confinaria Roma às suas antigas fronteiras e restauraria ao mundo mediterrâneo o status quo que prevalecia antes da Primeira Guerra Púnica. Recusando-se a se render mesmo depois de suas retumbantes derrotas, os romanos haviam introduzido um novo elemento na guerra e não cumpriam "as regras" que há muito vigoravam entre as antigas civilizações. Aníbal tem sido frequentemente comparado a Napoleão, 212 mas uma das inovações de Napoleão foi desatrelar sobre os reinos da Europa do século XVIII um novo conceito — a guerra total ou "de povos". Eram os romanos quem agora faziam isso a Aníbal, recusando-se a aceitar que a derrota em campo de batalha implicava derrota na guerra. Ele teve tempo durante o inverno de 216 a.C. para perceber que estava diante de algo totalmente novo: uma guerra de desgaste contra uma república politicamente bem equilibrada. O Alexandre do mundo afro-semita estava diante de um problema que nunca confrontara o grego Alexandre em suas campanhas contra os reinos do leste. A noroeste de Cápua, dominando aquela fértil planície, ergue-se a mil e oitocentos pés o topo de monte Tifato (monte Virgo) que iria servir como uma das principais bases de Aníbal nos anos que viriam. Existia a grande vantagem de que seu cume era um platô adequado para o pasto de cavalos e outros animais, e que ele dominava não somente a planície a oeste mas também o vale do Volturno, rumando 213 para o leste através dos desfiladeiros pelo Sâmnio e pela Apúlia. Seria bastante bom para as tropas, e mesmo para o próprio Aníbal, passar o inverno em Cápua, mas é duvidoso (e ele tinha bons motivos, a crer em Lívio) que ele confiasse na maior parte dos cidadãos de Cápua. Sugerir, como escritores romanos posteriormente o fizeram, que o exército, e mesmo o próprio Aníbal, tivessem sido "corrompidos" pela vida branda no primeiro inverno em Cápua significa dizer que os generais e exércitos romanos que o enfrentaram durante os anos seguintes tenham sido de uma qualidade muito medíocre. O ano de 216 a.C. foi o de maior sucesso de Aníbal na península Itálica; contudo, não seria antes do outono de 203 a.C. que ele deixaria finalmente essas praias. Durante todos aqueles anos, apesar de um ou dois contratempos, ele iria manter seu controle sobre toda essa terra com um exército composto de uma quantidade decadente de norte-africanos e ibéricos, e principalmente de gauleses e nativos do Brútio (atual Calábria) e outras províncias do sul, onde a influência de Roma nunca tinha sido profundamente sentida. Apesar 214 dos mais de dois mil anos que se passaram desde que o reino do sul fora conquistado por Aníbal, é possível sentir que sua sombra ainda pairava sobre toda aquela terra. Africa comincia a Napoli ("A África começa em Nápoles"), dizem os modernos romanos quando querem depreciar todo o território ao sul. É provável que a frase tenha se originado durante aqueles tardios séculos quando os piratas mouros, sarracenos, africanos e otomanos devastavam toda essa área. É tentador, contudo, pensar que a lembrança de Aníbal, que corroeu tão profundamente a consciência romana durante o período clássico, nunca tenha sido totalmente apagada. No início do ano 215 a.C., Aníbal dominava monte Tifato, de onde ele comandava toda a planície campaniana. Os romanos, que apesar de todas as suas perdas possuíam oito legiões em campo, estavam preocupados principalmente em vigiar as rotas ao norte. Assim, Quinto Fábio Máximo, não mais ditador, pois que fora escolhido como um dos cônsules para o ano, estava estacionado com seu exército a cerca de dez milhas ao norte de Cápua, 215 em Cales. O segundo cônsul, Tibério Semprônio Graco, estava próximo da costa ocidental em Sinuessa guardando a Via Ápia para Roma em um ponto estreito onde as colinas a empurravam para a costa. Em Nola, a sudeste de Cápua e guardando as cidades e portos ao redor da baía de Nápoles, estava o procônsul Marcelo com duas legiões. Na Apúlia, protegendo Brundísio (Brindisi) e Tarento — já que se temia, com razão, que Aníbal poderia tentar atacar um ou outro desses valiosos portos marítimos — estava estacionado um quarto exército sob o comando de Marco Valério. Todas as rotas importantes permaneciam guardadas e outros exércitos menores mantinham vigilância na Sicília e Sardenha, ambas as áreas à espera de que os cartagineses fizessem um desembarque. Roma estava totalmente espalhada, e Aníbal, confiante após seu sucesso do ano prévio e em suas negociações com o rei Filipe V da Macedônia, bem como com Siracusa na Sicília, poderia esperar progressos. Vendo o resultado de seu trabalho amadurecendo dessa maneira, Aníbal sentou-se serenamente no cume do Tifato, 216 para irromper como o lampejo de um relâmpago quando a tempestade estivesse totalmente armada. — Arnold[39] Durante aquele ano, Nápoles foi atacada em três ocasiões, mas uma vez mais a situação desprivilegiada de Aníbal — sua falta de equipamento de sítio — ficou evidente para todos. Os romanos não demoraram para notar que qualquer cidade bem murada e bem defendida estaria protegida contra os cartagineses. Sem dúvida, uma igual sensação de alívio foi sentida na própria Roma, muito embora uma parte tão grande da Itália ainda fosse negada a eles. As cidades interioranas de Casilino e Nucéria caíram sob seu domínio — mas através de ataques e não de sítio, enquanto a pequena cidade grega de Petélia, no sudoeste do golfo de Tarento, conseguiu resistir por oito meses antes de render-se. A ela logo se seguiria Cosência e o proveitoso porto de Crotona, outrora a cidade grega que dominava o golfo, a qual, com a derrota e destruição de sua rica rival Síbaris em 510 a.C., havia passado para a história. 217 Pelo fim de 215 a.C., o exército cartaginês no Brútio (a atual Calábria) invadira toda a região sudoeste da Itália, tendo somente Régio, no estreito de Messina, resistido, em lealdade a Roma. Assim como os outros portos importantes de Nápoles e Cumas, contra os quais Aníbal não tinha tido sucesso, o Régio deveu sua resistência não apenas ao resguardo de suas muralhas que confinavam com a terra, mas ao fato de que poderia ser abastecida por mar, e a frota romana tinha o completo domínio daquele importantíssimo canal estreito que divide o continente da Sicília. Nos últimos anos da guerra, quando a força do exército cartaginês encontrava-se em declínio e as táticas do "Protelador" eram aplicadas em todos os lugares contra ele, a região do Brútio iria mostrar-se o derradeiro reduto de Aníbal na península Itálica. Nessas etapas relativamente precoces, proporcionou um centro de recrutamento para os cartagineses, agora que estavam tão separados de seus aliados gauleses no norte. Hanão, que estava no comando no sul, é mencionado como tendo conseguido um exército de cerca de vinte mil homens da Calábria, principalmente entre os 218 vigorosos nativos das montanhas, que tinham aversão a Roma e que não se ressentiam dos cartagineses como o faziam os gregos das cidades costeiras. Embora despercebido por qualquer um naquela ocasião, o nível de maré alta do sucesso de Aníbal havia sido atingido, e — tão lentamente a ponto de ser impercetível por alguns anos — a inexorável maré da fortuna começava a afastar-se dele. A atmosfera em Roma é bem descrita por Lívio, que, embora escrevendo tanto tempo após os acontecimentos, possuía fontes mais recentes e contemporâneas para abastecer-se: Cquote1.svg Prodígios em grande número — e quanto mais créditos recebiam de homens simples e devotos, mais eram contados — foram relatados naquele ano: que em Lanúvio os corvos (sempre um pássaro de mau agouro) tinham feito um ninho dentro do templo de Juno Protetora; que na Apúlia uma palmeira verde se incendiara; que em Mântua um lago, transbordado do Rio Míncio, apareceu ensanguentado; e em Cales choveu greda, e sangue em Roma no Mercado de Gado; e que na aldeia Insteio 219 uma fonte subterrânea jorrou com tal volume de água que a força da torrente entornou os jarros, grandes e pequenos, que estavam ali e os levou para longe; que o Átrio Público do Capitólio, o templo de Vulcano na Campua, aquele de Vacuna, e uma rua pública no país Sabino, a muralha e o portão de Gábios foram atingidos por raios. Outras maravilhas circulavam amplamente: que a lança de Marte em Palestrina moveu-se sozinha; que um boi na Sicília falou; que entre os marrucinos um bebê no útero de sua mãe gritou "Salve o Triunfo!"; que em Espoleto uma mulher tinha se transformado em homem; que em Ádria um altar foi visto no céu, e sobre ele as formas de homens em trajes brancos. — Tito Lívio[37] O ano chegou ao fim com alguma vantagem para o lado dos romanos. Um velho e experiente soldado, Torquato, havia debelado com sucesso um levante de inspiração cartaginesa na Sardenha; Cláudio Marcelo, operando de sua base na colina sobre Suéssula, havia desviado as tentativas de Aníbal em Nola, e a captura dos embaixadores de Filipe V da 220 Macedônia pela frota romana no Adriático havia colocado os romanos em guarda contra qualquer ação imediata vinda da aliança entre Aníbal e Filipe. Por outro lado, a morte de Hierão, governante de Siracusa e fiel aliado de Roma, abria uma nova estrada na guerra, pois o reino fora deixado para seu neto, um jovem de quinze anos, que abriu comunicações com Aníbal e prometeu-lhe a ilha inteira em troca de sua assistência. Com o encerramento da estação das campanhas, Aníbal uma vez mais deslocou suas tropas pela costa leste da Itália e armou quartéis de inverno em Arpi, na Apúlia. Monte Tifato era um admirável acampamento de verão, mas inadequado para o inverno, e é provável que ele não desejasse impor seu exército aos habitantes de Cápua uma segunda vez. Cápua, cuja secessão de Roma parecera um triunfo, se mostraria uma pedra de moinho em volta do pescoço de Aníbal, pois sem sua ajuda a cidade não poderia se defender; o general púnico seria conclamado constantemente para auxiliála nos anos seguintes. Apesar do continuo brilhantismo de suas táticas, a estratégia 221 completa ora adotada por Roma era superior, e aquele ano marcou claramente a data a partir da qual ele fora compelido a seguir um esquema defensivo. Isso dificilmente agradaria a seu génio agressivo, embora ele viesse a demonstrar que, mesmo neste papel incompatível, era um mestre. É significativo que, embora os romanos continuassem a segui-lo onde e quando quer que seu exército se movesse, eles não o atacavam quando estava em marcha. Haviam já visto o suficiente de sua excepcional habilidade em desembaraçar-se de situações aparentemente insustentáveis. O conflito na bacia mediterrânea e terras circunvizinhas — coração da civilização ocidental — iria em breve abranger toda a região. No espaço de um ano desde o começo da guerra, a península Ibérica tinha se tornado um rinhadeiro disputado entre os dois antagonistas; a invasão da Itália por Aníbal trouxera Cartago e Roma a um conflito direto, pela primeira vez, em solo romano; a Sicília iria agora se tornar um teatro mais importante na guerra; e a aliança de Filipe V da Macedônia com Aníbal finalmente colocaria os Estados e 222 reinos da Grécia dentro da esfera romana de influência. Nessa guerra, a guerra anibálica, os quatro cantos do Mediterrâneo, em maior ou menor grau, estariam todos envolvidos. O mundo semita e africano ao sul havia desafiado o mundo europeu ao norte — envolvendo o oeste, desde a península Ibérica até o vale do Ródano. Os desfiladeiros dos Alpes haviam sido tomados, e os gauleses da própria Gália e do norte da Itália haviam sido arrastados para dentro do conflito. Em breve, a Primeira Guerra Macedônica iria começar, pois Marco Valério cruzaria o Adriático e destruiria o exército que Filipe preparava para a invasão da Itália, queimando a frota macedônica. Por todo o Mediterrâneo, os estaleiros estariam permanentemente ocupados pelos próximos dez anos, enquanto, da Hispânia até a própria Cartago, Itália e Grécia, as potências visavam estabelecer seu domínio do mar — posição que não poderia ser negligenciada por qualquer adversário, especialmente em um teatro onde tudo dependia das comunicações marítimas e, em última instância, da supremacia naval. 223 Pelo ano de 214 a.C., o Senado decretou que a frota romana deveria somar cento e cinquenta navios de guerra, com a deficiência de material humano na marinha compensada por meio de impostos aos ricos em proporção para a provisão de marinheiros e seu pagamento. Cquote1.svg Os marinheiros obtidos de acordo com esse edital subiram a bordo armados e equipados por seus chefes, e com rações preparadas para trinta dias. Era a primeira vez que uma frota romana era tripulada com equipes sustentadas por pagamento privado. — Tito Lívio[37] O efeito mais importante desses anos selvagens foi a lenta, porém sistemática, devastação de todo o sul da Itália. À medida que o território mudava de mãos, o novo conquistador — cartaginês ou romano — também o espoliava para alimentar suas tropas ou o devastava para negar sustento ao inimigo. Em 215 a.C., Quinto Fábio Máximo estabeleceu que todas as colheitas de grãos deveriam ser trazidas dos campos para dentro das cidades fortificadas mais próximas no 224 começo de junho. A recusa em fazê-lo acarretaria a penalidade de destruição da fazenda em questão e a venda forçada de todos os escravos do fazendeiro. No ano seguinte, Aníbal, enfurecido pela falta de resposta das cidades napolitanas à sua causa, devastou todas as terras ao redor delas e tomou o gado e os cavalos. No mesmo ano, Quinto Fábio Máximo destruiu as colheitas e fazendas do território dos irpinos e dos samnitas, como advertência àqueles que quisessem demonstrar amizade aos cartagineses. No decorrer do conflito, toda a face sul da Itália seria mudada, o fazendeiro camponês praticamente eliminado, e o caminho aberto para o longo futuro dos latifúndios — vastas propriedades pertencentes a donos de terra ausentes e trabalhadas por escravos. A força de Roma não residia apenas na estabilidade de suas associações políticas, mas também em seu poderio humano. Ela provou isso colocando em armas, pelo ano de 214 a.C., a melhor parte de seus duzentos e cinquenta mil homens — com a plena contribuição dos aliados. Aníbal, com suas diminutas forças que não 225 deviam somar, numa estimativa deveras otimista, mais de cem mil soldados — a maioria deles gauleses, lucanianos ou brútios — era agora confrontado por não menos do que vinte legiões. É verdade que as tropas romanas achavam-se espalhadas por toda a península Itálica e Sicília, mas era um formidável esforço de guerra da parte de Roma que Cartago nunca conseguiria igualar. A fúria de Roma pela deserção de Cápua não conheceu limites: estava determinada a ameaçar essa "capital" do cartaginês e levar os capuenses, devidamente castigados, de volta para o curral da aliança no primeiro instante possível. Por um apelo dos capuenses, aterrorizados pela ameaça preparada para ser aplicada contra eles, Aníbal deslocou-se de Arpi, trouxe seu exército até a cidade, expulsou habilmente o cônsul Tibério Semprônio Graco em Lucéria e retornou para o seu quartel-general no platô de monte Tifato. Lívio escreve: "Então, deixando os númidas e espanhóis para defenderem o acampamento e Cápua ao mesmo tempo, desceu com o restante de seu exército para o lago de Averno, sob o pretexto de 226 oferecer sacrifícios, mas tendo na realidade a intenção de atacar Putéolos e a guarnição que estava lá".[37] O estranho sobre essa afirmação de Lívio é que ele faz supor que Aníbal precisasse de algum pretexto para atacar Putéolos. Ele já havia atacado ou ameaçado muitas cidades da Itália — e não necessitava de desculpas para quaisquer de suas ações, que já tinham levado ao massacre de dezenas de milhares de homens. Por que, então, podese perguntar, essa visita a Averno? Averno era um dos mais sagrados locais da Itália. O lago, uma milha e meia ao norte de Baias, ficava próximo das importantes cidades e portos fundados pelos gregos, Nápoles e Cumas. Tinha mais de duzentos pés de profundidade, sendo formado pela cratera de um vulcão extinto. Como os lagos sagrados da América do Sul, onde havia sacrifícios humanos, o Lago Averno era escuro, profundo e, para os comuns, não apenas misterioso, mas impregnado de um muito especial numen. Rodeado por altas margens, cobertas por uma densa, e lúgubre floresta consagrada a Hécate (deusa tríplice associada à lua, mas 227 predominante uma deidade do mundo inferior), Averno era a entrada para aquele misterioso mundo das sombras através do qual tanto Ulisses quanto Eneias teriam passado. Vapores pestilentos subiam das águas, segundo a lenda, nenhum pássaro conseguia voar seguramente sobre o lago, donde vem seu nome, que em grego significava "sem pássaros". A exata entrada do mundo inferior era supostamente a caverna da profetisa de Cumas — a última das quais vendera Livros Sibilinos ao rei Tarquínio, o Soberbo, livros esses que Roma, agora, estava habituada a consultar em momentos da mais grave angústia. É muito provável que Aníbal tenha se encaminhado para tal lugar por razão semelhante; ele tinha muito sangue em suas mãos, e também desejava saber o que o futuro lhe reservava. Homens consultam oráculos quando são presas da dúvida e desejam obter alguma indicação divina acerca de qual direção tomar, ou uma confirmação de que o curso que seguem é o correto. Pela primeira vez desde que emergiu no palco da história, parece possível que Aníbal estivesse inseguro. Educado por um instrutor grego, devia 228 estar familiarizado com Homero desde a infância, e sem dúvida havia algum ritual prescrito em um templo que fosse semelhante àquele adotado por Ulisses: Com minha espada em punho Eu cavei o poço votivo, e derramei libações ao seu redor para os incontáveis mortos: doce leite e mel, depois vinho doce, e por último água limpa; e espalhei cevada. Então eu me dirigi aos velados e desalentados mortos (…) — Ulisses Pareceu que o sacrifício de Aníbal, nas sombrias regiões do lago escuro, havia dado frutos quando um pequeno grupo de nobres de Tarento veio visitá-lo. Eles lhe disseram que representavam um partido da cidade favorável à causa cartaginesa e que, se ele levasse seu exército para o sul e ficasse à vista das muralhas de Tarento, 229 não haveria demora para a sua rendição. Tarento não era somente o maior rico porto no extremo sul da Itália, mas também apresentava localização ideal para servir de centro de comunicações e base se os cartagineses pudessem trazer uma frota do Norte da África. Mais ainda, na eventualidade de Filipe V da Macedônia deslocar frota e exército através do Adriático para invadir a Itália, Tarento serviria como porto de desembarque e centro de abastecimento. Mas o momento ainda não era oportuno, e embora Aníbal se deslocasse tardiamente no ano — depois de ver o milho colhido e guardado dentro das muralhas de Cápua — os previdentes romanos tinham se antecipado. As muralhas foram equipadas contra ele, e uma vez mais Aníbal retirouse para o inverno na costa adriática. O que quer que os sombrios deuses dos portões do Hades possam ter dito a Aníbal, é difícil que tenha sido algo confortador — se é que a verdade foi dita. Não somente deixaria de capturar Tarento naquele ano, mas também suas forças sofreriam o primeiro, e único, golpe desastroso jamais recebido em solo 230 italiano. Aníbal enviara ordens para Hanão, com os reforços cartagineses e o exército recém-recrutado de Brútio (atual Calábria)], para marcharem rumo ao norte e se juntaram a ele na Campânia. Com seu exército aumentado, sem dúvida pretendia novamente mediar forças com Nápoles ou Cumas: a falta de um eficiente porto marítimo atalhava toda a sua campanha. Quinto Fábio Máximo, contudo, ordenara que Tibério Semprônio Graco avançasse de sua posição em Lucéria para Benevento e que seu filho tomasse Lucéria em seu lugar. Hanão, que marchava ao norte de Benevento, foi surpreendido pela chegada de Graco e uma batalha extraordinária foi travada, na qual o general de Aníbal sofreu dura derrota. Embora as legiões romanas fossem, em grande parte, compostas de escravos (com a promessa de liberdade se lutassem bem), eram superiores aos até então destreinados recrutas brútios de Hanão, um pequeno grupo de homens de infantaria cartagineses e cavaleiros númidas. O próprio Hanão escapou, mas o exército de reforço com o qual Aníbal contava foi 231 destruído. A vitória de Graco iria dar novo ânimo aos romanos e os levaria a sitiar e finalmente retomar Casilino. Subsequentemente, um número de pequenas cidades no Sâmnio e na Lucânia Basilicata foi atacado e capturado por Fábio, Marcelo e Graco: elas pagaram por sua deserção a Roma com muitas vidas e com severo confisco de propriedades. Aníbal poderia comandar o respeito, a confiança e a admiração das heterogéneas tropas que o seguiram através dos anos, mas não lhe seria possível comandar o dedicado apoio da confederação latina a Roma. A austera vontade e disciplina de Roma foram demonstradas pelo fato de que, embora Graco tivesse derrotado decisivamente a Hanão, achou-se que nem todos os legionários haviam lutado tão bem quanto deveriam. Pelo resto daquele ano ordenou-se que eles fizessem suas refeições noturnas em pé. "Suave Tarento" e "pacífico" era como o poeta Horácio descreveria o porto sulino anos mais tarde nos dias do imperador Augusto. Certamente essa cidade, que em seu apogeu grego havia sido a mais próspera em toda a Magna Grécia, não 232 estava apta a oferecer uma resistência forte contra um ataque determinado. Aqui, na ponta do golfo de Tarento, o indolente mar Jônio e o predominante vento sul não criaram uma raça vigorosa. Em 281, quando os tarentinos haviam resistido ao poder de Roma, eles o tinham feito tãosomente com a ajuda de Pirro, rei do Épiro, cujas atividades em solo italiano haviam dado aos romanos uma remota prelibação do que eles iriam enfrentar nas mãos de Aníbal. Situada em terra baixa e plana, Tarento era um porto de natureza incomum. A bacia principal era larga e protegida do mar por duas ilhotas, mas havia também uma pequena bacia cercada de terras — o Pequeno Mar — que seguia para dentro da terra com uma entrada estreita. Perto da garganta dessa bacia ficava uma pequena elevação, não mais do que setenta pés acima da cidade vizinha, mas suficientemente forte para ter se transformado na cidadela de Tarento. O Pequeno Mar protegia um lado da cidade, o Mediterrâneo o outro, e o terceiro lado, em direção à terra, era fortemente murado e fortificado. Este não era o tipo de lugar 233 que Aníbal sonharia enfrentar sob circunstâncias normais. Os tarentinos, contudo, ao contrário de seus companheiros gregos de Nápoles e Cumas, eram considerados suspeitos pelos romanos, provavelmente em vista de sua conduta anterior, por serem aliados não confiáveis. Por essa razão, tinham sido forçados a enviar reféns a Roma como garantia de seu bom comportamento. Alguns destes foram tolos o bastante para tentarem escapar para sua cidade e, recapturados pelos romanos, foram mortos com grande crueldade — algo que tornou o partido anti-romano em Tarento ainda mais hostil. Eles chegaram à conclusão de que se dariam melhor com o cartaginês, cuja generosidade com outras cidades e aldeias tais como Cápua era bem conhecida a esta altura. Com a abertura da temporada de campanha em 213 a.C., Tarento começou a parecer ainda mais desejável para Aníbal, pois tivera o infortúnio de perder o importante centro de comunicações de Arpi para o cônsul Quinto Fábio Máximo e — um raro golpe em seu ânimo — algumas das guarnições espanholas 234 tinham desertado frente aos romanos. Informado de que havia um partido prócartaginês dentro de Tarento, Aníbal moveu-se para o sul mas permaneceu bem distante da cidade. Nessa posição, ameaçava potencialmente não apenas Tarento como também Brundísio (Brindisi), os dois mais importantes portos no sul da Itália e os únicos, com exceção do Régio no estreito de Messina, que ainda permaneciam em mãos romanas. Sabendo da chegada do grande cartaginês, treze jovens nobres tarentinos, liderados por um certo Filêmeno, deixaram a cidade fortificada, cujos portões certamente eram fechados à noite, e encaminharam-se para o acampamento de Aníbal sob o pretexto de estarem numa expedição de caça. Capturados pelas sentinelas nas proximidades do acampamento cartaginês, Filêmeno expôs seu parecer, e o início de um conluio para a traição de Tarento foi tramado. Para fazerem sua ausência parecer plausível após o seu retorno, Aníbal permitiu aos jovens levarem com eles algum gado, que diriam terem encontrado extraviados, arrebanhando-os. O mesmo pretexto foi utilizado em várias outras ocasiões. Sendo Filêmeno bem 235 conhecido como exímio caçador, seu retorno com gado ou caça — alguns dos quais ele tinha o cuidado de dar às sentinelas romanas — era aceito como algo perfeitamente normal. Aníbal, que se fingira doente como desculpa para sua atividade incomum e, assim permanecia em sua tenda, aguardou até que todos os preparativos para a tomada de Tarento tivessem sido concluídos. Ele havia prometido a Filêmeno e seus companheiros conspiradores que os cartagineses nem guarneceriam a cidade nem pediriam qualquer tributo de seus habitantes. Seu exército seria proibido de praticar pilhagens, com a acertada exceção daquelas casas que fossem apontadas a Aníbal como pertencentes a cidadãos romanos ou pró-romanos. Uma vez que a rotina de caça noturna de Filêmeno tornara-se tão constante que as sentinelas romanas não suspeitavam de nada, e prontamente abriam os portões quando ouviam seu assobio de retorno, o momento mostrava-se perfeito para Aníbal agir. Levando dez mil homens de infantaria e alguns cavaleiros com ele, e enviando oitenta cavaleiros númidas para 236 avançarem como escolta, ele deixou o corpo principal de seu exército e moveu-se a uma distância de cerca de quinze milhas de Tarento. Os númidas receberam ordens de matar qualquer pessoa que encontrassem, para que ninguém soubesse do avanço das tropas de Aníbal. Ao mesmo tempo, fariam incursões fortuitas pela zona campestre, para assim confirmarem a crença dos romanos de que não passavam de um grupo de forrageadores, e não anunciariam o avanço de um exército. Lívio reconta os eventos daquela noite: O guia de Aníbal era Filêmeno, com sua usual carga de caça. O resto dos traidores esperava como previamente arranjado. Assim que ele se aproximou do portão, um sinal de fogo foi dado por Aníbal, como tinha sido combinado, e vindo de Nícon outro líder conspirador dentro da cidade o mesmo sinal resplandeceu; então, de ambos os lados, as chamas foram extintas. Aníbal guiou silenciosamente seus homens até o portão. Nícon e seus homens atacaram as sentinelas que dormiam em suas camas, mataram-nas e abriram os portões - a principal entrada de Teminits. Aníbal e sua coluna de infantaria 237 entraram. Enquanto isso, do outro lado da cidade, Filêmeno se aproximava do portão de trás, pelo qual habitualmente ia e vinha. Sua voz bem conhecida e o já familiar sinal acordaram a sentinela; Filêmeno lhe disse que haviam trazido um varrão tão grande que mal podiam carregá-lo. Enquanto dois jovens carregavam o varrão, ele próprio seguiu com um caçador que não trazia carga. No momento em que a sentinela se maravilhava com o tamanho do animal e olhava na direção dos homens que o carregavam, Filêmeno o transpassou com uma lança de caça. Então, cerca de trinta homens armados investiram e, abatendo o restante das sentinelas, abriram o portão adjacente. A coluna cartaginesa surgiu e encaminhou-se silenciosamente para o foro, onde Aníbal foi se juntar a eles. Ele, então, despachou dois mil gauleses, divididos em três unidades, pela cidade, cada grupo acompanhado por dois tarentinos que aluavam como guias. Aníbal ordenou que ocupassem as ruas principais e, quando o tumulto começasse, que matassem os romanos sem exceção, poupando porém os cidadãos de Tarento. Foi dito aos guias que avisassem a todos 238 de seu próprio povo que se mantivessem quietos e não temessem nada. — Tito Lívio[37] Ainda assim houve grande tumulto mas ninguém sabia ao certo o que estava acontecendo. Os tarentinos achavam que os romanos estavam saqueando a cidade, enquanto os romanos acreditavam estar às voltas com algum tipo de levante traiçoeiro iniciado pelo povo da cidade. Seu comandante, despertado logo ao começou do tumulto, fugiu para o ancoradouro, onde foi recolhido por um esquife e navegou rápido para a cidadela. Mais confusão foi causada pelo som de uma trombeta vindo do teatro. Era uma trombeta romana roubada pelos traidores justamente para esse propósito; sendo tocada de modo errado por um grego, ninguém poderia dizer que sinal estava sendo dado, e para quem. Quando rompeu o dia, as armas púnicas e gaulesas foram reconhecidas, o que acabou com a incerteza dos romanos, e ao mesmo tempo os gregos, vendo romanos mortos por toda parte, perceberam que a cidade havia sido capturada por Aníbal. Os romanos que não tinham sido massacrados fugiram 239 para a cidadela e, à medida que a ordem era gradualmente restaurada, Aníbal ordenou a todos os cidadãos, exceto àqueles que haviam seguido os romanos em sua fuga para a cidadela, que se reunissem sem armas. Então, falou-lhes com palavras amistosas, relembrando como libertara os seus concidadãos capturados em Trasimeno ou Canas. Ele invetivou contra o arrogante jugo dos romanos, depois ordenou que cada cidadão fosse para sua casa e escrevesse na porta a palavra "tarentino". Após essa assembleia ter sido desfeita e todas as portas marcadas, Aníbal permitiu que suas tropas saqueassem as casas dos romanos, e o espólio foi considerável. As táticas de comando de Aníbal, auxiliado por sua quinta coluna de dentro dos muros, asseguraram a ele um grande porto e uma próspera cidade, embora sua vitória tivesse sido, de certo modo, anulada pelo fato de que a guarnição romana e seus simpatizantes ainda detinham a cidadela, e não seriam desalojados dali. Um ataque a ela falhou, e Aníbal foi forçado a tentar efetuá-lo com um trabalho por terra. Isso se mostrou sem 240 efeito, pois a posição da cidadela num promontório dominando a entrada para o porto interno significava que a guarnição e seus demais convivas poderiam ser reforçados e alimentados por mar aberto, onde a frota romana possuía superioridade naval. Ainda mais, todos os navios tarentinos estavam, agora, retidos no porto interno, no Pequeno Mar, e à primeira vista pareciam permanentemente presos. Aníbal resolveu o problema trazendo os navios para terra firme, transportando-os então pelas ruas de Tarento sobre rodas, para depois lançá-los novamente ao mar pelo porto externo. A traição e a captura da cidade, e mesmo o engenhoso método de livrar os navios, tudo tinha a marca de Aníbal. O fato de que Tarento caíra por traição seria um dos argumentos mais tarde utilizados pelos romanos para acusarem Aníbal de "fé púnica" ou conduta desonesta. Resta dizer que, ao longo de toda a história da guerra, a traição de uma cidade feita no seu interior por um partido favorável aos sitiantes foi sempre prática comum. A história primitiva da Grécia e abundante em relatos de tais estratagemas. Não há 241 nada de modo algum peculiarmente "púnico" a esse respeito. Deixando que os próprios cidadãos tratassem do problema da guarnição na cidadela, Aníbal retirou suas tropas (como ele havia prometido aos tarentinos) e pouco depois levou-as de volta aos quartéis de inverno. O Metaponto, no golfo de Tarento e ligeiramente a oeste, em breve caiu sob seu poder enquanto Túrio, outro porto grego, do outro lado do golfo, caiu frente a um exército comandado por Hanão e Magão, com o povo da cidade abrindo seus portões aos cartagineses. Apesar da perda de Arpi, o ano finalmente se mostrava favorável a Aníbal, e os únicos grandes portos no sul da Itália, abaixo da baía de Nápoles, que ainda permaneciam nas mãos dos romanos eram Brundísio, na costa adriática, e o Régio, no estreito de Messina. O comentário de Políbio, "de tudo que sobreveio aos romanos e aos cartagineses, a causa foi um homem e uma mente — Aníbal",[19] estava claramente justificado. Quase todo o mundo mediterrâneo, com a exceção da Grécia, 242 onde Filipe V da Macedônia hesitava, estava agora envolto em chamas. O principal evento na Sicília tinha sido a ascensão ao reinado de Siracusa do jovem Jerônimo, que de pronto, declarara-se favorável aos cartagineses — somente para ser quase imediatamente assassinado pelo partido pró-romano. Isso, por sua vez, fez com que os siracusanos que favoreciam Cartago matassem ou expulsassem os ricos mercadores e outros que favoreciam Roma. É significativo que ali, e em toda a Itália, era o partido popular — hostil àqueles que enriqueceram graças às suas conexões romanas — que favorecia Aníbal. Os pobres e sem posses viam nele um líder que os libertaria da pesada mão de Roma, mas que, depois disso, não se preocuparia muito, se o fizesse, com o modo como governariam suas cidades. E, talvez, curioso ver o autocrático senhor da guerra ser bem-vindo pelos plebeus, mas vemos isso acontecer vez por outra ao longo da história. Na Hispânia a guerra estava indo bem para as armas romanas, de tal modo que um dos principais aliados de Cartago, o rei 243 númida Sífax, agora voltava sua fidelidade em prol de Roma. Uma vez que os cartagineses dependiam tão grandemente da habilidade e superioridade dos cavaleiros númidas, este era um amargo golpe, mas que seria compensado por mais variações de apoios políticos. A guerra, agora, espalhava-se pelo Norte da África, e um outro rei númida, Gaia, da Argélia oriental, encorajou-se a marchar contra seus companheiros e impedir os romanos de garantirem uma base no continente. O filho de Gaia, o jovem príncipe Masinissa, teria grande participação na história posterior às campanhas de Aníbal. Em combinação com o irmão de Aníbal, Asdrúbal, que havia sido compelido a levar suas tropas para a África a fim de acabar com a ameaça em sua retaguarda, destruiu o rebelde Sífax, permitindo assim a Asdrúbal retornar à Espanha para enfrentar a ameaça romana naquelas paragens. A guerra explodia agora na Sicília. Não pode haver dúvidas de que Aníbal, embora constantemente engajado na Itália contra a sempre crescente maré de armas romanas, nunca deixava de perceber o 244 quanto seria importante para sua causa um triunfo cartaginês naquela rica e poderosa região do sul. A Sicília tinha sido, por séculos, o pomo da discórdia entre gregos e cartagineses, e a perda da Sicília para os romanos — não por culpa de seu pai Amílcar — havia levado à humilhante paz que concluíra a Primeira Guerra Púnica. Dois emissários de Aníbal, Hipócrates e Epícides, encontraram-se, então, com o governo da grande cidade e porto de Siracusa após a expulsão do partido pró-romano. Era essencial para sua estratégia global que os cartagineses não apenas detivessem o poder sobre Siracusa, mas também ganhassem o controle sobre a maior parte da ilha. Com os portos e embarcadouros que uma vez tinham sido seus — particularmente no oeste — tinham uma chance de quebrar o domínio romano sobre o mar entre a Sicília e a própria Cartago. A real dificuldade era que, tendo os romanos conquistado a supremacia sobre a área que já fora sinónimo do nome Cartago, eles não iriam nunca cedê-la. Como sua cidade, a Rainha do Mar, nunca fosse capaz de mandar-lhe reforços convenientes, nem de desafiar os romanos 245 com sucesso, todos os anos que Aníbal passaria na Itália resultariam inúteis ao fim. A influência do poderio marítimo sobre a história nunca havia sido mais claramente demonstrada do que nesta grande guerra entre Cartago e Roma. Siracusa havia sido, uma dia, a mais próspera e importante cidade do Mediterrâneo central. No século V a.C., à época das guerras greco-persas — que determinaram o destino do oeste — Siracusa seria capaz de colocar em campo mais homens de infantaria armados com armas pesadas e mais navios do que toda a Grécia. Agora, embora ainda importante, tornara-se uma espécie de força represada, porém enriquecida pelo dinheiro e pelos tesouros artísticos da mais grandiosa era de seus antepassados gregos. Os romanos que visitavam a cidade deslumbravam-se com a beleza da arquitetura, a visível riqueza, o grande teatro e a soberba posição do local. A aliança com o governante anterior, Hierão, dera aos romanos não apenas uma promessa de estabilidade em uma 246 ilha sempre atormentada, mas também uma relação com os ricos tesouros da Grécia colonial. O grande porto, com aproximadamente cinco milhas de circunferência, havia testemunhado a destruição do poderio ateniense em 413. O pequeno porto, que ficava entre a ilha de Ortígia e a capital, era capaz de abrigar uma frota. Sua importância para os romanos como base naval na guerra contra Cartago era bastante óbvia; porém sua perda, caso ela fosse ocupada por uma frota cartaginesa, seria um duro golpe para Roma, e um triunfo da maior valia para Aníbal. Se os cartagineses pudessem garantir e reter Siracusa, teriam uma linha aberta até sua capital e uma importantíssima base de suprimentos para o exército de Aníbal. Por essas razões, o cônsul Cláudio Marcelo foi enviado à Sicília. Na confusão que se seguiu à morte de Hierão, um número de cidades voltou-se para a causa cartaginesa, notavelmente Leonte, um pouco ao norte de Siracusa, que dominava a mais rica e fértil área da ilha. Marcelo era um soldado notável e vigoroso, a quem Aníbal aprendera a respeitar como o 247 homem que por várias vezes o havia bloqueado na Campânia, sempre que ele se movia de Monte Tifato. Absolutamente destemido, Marcelo, em seu primeiro consulado, em 222 a.C., pessoalmente se batera com um chefe tribal gaulês, matando-o com suas próprias mãos. Dedicou, então, seus espólios, os spolia opima, no templo de Júpiter Ferétrio — a terceira e última vez na história romana em que tão proeminente oferenda foi feita. Impiedoso para com os derrotados e na imposição da lei militar, Marcelo era amado por suas tropas devido à sua preocupação com o bem-estar delas. Após retomar Leonte, onde ele mandou degolar cerca de dois mil homens da tropa oponente por sua rebeldia contra Roma, deslocou-se para o sul a fim de sitiar Siracusa por terra e mar. Os romanos eram mestres em guerras de sítio e Marcelo tinha todas as razões para estar confiante. As defesas de Siracusa eram muito extensas, particularmente ao norte da ilha-fortaleza de Ortígia, onde uma ampla área triangular pouco habitada era cercada por maciças muralhas que necessitariam de muito mais homens para sua defesa do que ora possuía. 248 Aníbal, inteiramente ciente da importância do combate que acontecia ao sul dele, mantinha correspondência com Cartago a respeito da necessidade de se desembarcar um exército na Sicília para auxiliar na insurreição. Com a Sicília em mãos cartaginesas, a dominação romana do estreito de Messina estaria ameaçada — revertendo, assim, o processo da Primeira Guerra Púnica e fornecendo a base garantida a partir da qual poderia tomar as cidades da baía de Nápoles. Enquanto a Sicília fosse basicamente pró-romana, sua posição no sul da Itália estaria constantemente ameaçada. Alguns historiadores pósteros têm-se referido ao mau uso de navios e homens cartagineses na campanha siciliana, argumentando que eles teriam sido melhor empregados como reforços para Aníbal. É muito duvidoso que ele próprio visse o problema dessa forma. Aníbal não somente era um mestre da tática, mas também um respeitado estrategista: a Sicília constituía a chave para seu derradeiro sucesso na Itália, uma vez que o auxílio que esperava de seu irmão Asdrúbal não parecia prestes a chegar. Com Tarento assegurado e com os 249 romanos relutando em desafiá-lo em qualquer campo de batalha, aparentemente poderia manter sua posição na Itália por anos, se necessário (o que ele de fato iria fazer). Demandava agora um sucesso no sul: conquistar a Sicília, terra rica como um celeiro e com excelentes portos para o uso da frota cartaginesa. Com tal base firme a respaldá-lo, seria capaz de se deslocar para o norte na ocasião oportuna, após assegurar Nápoles e Cumas, e eliminar a ameaça naval romana em sua retaguarda, confrontando, finalmente, o coração do adversário — Roma e a confederação latina que, estava claro, jamais seria destruída em um único campo de batalhas. Por esses motivos, a frota cartaginesa, ao chegar, não se dirigiu ao grande porto de Tarento, mas, em vez disso, rumou para as longas praias do sul da Sicília, onde, por muitas milhas de território quase inabitado, a frota romana não poderia manter permanente vigília e proteção. O porto de Heracleia Minoa, na foz de um pequeno rio, foi escolhido como ponto de desembarque, e ali o almirante Himilcão trouxe à terra vinte e cinco mil homens de 250 infantaria, três mil de cavalaria, e doze elefantes — força grande o suficiente, em aparência, para assegurar todo o sul da ilha antes do deslocamento para render Siracusa. Tudo parecia ir bem a princípio e a mais importante cidade do sul, Agrigento, caiu sob os invasores. Mas generais da envergadura de Amílcar e seus filhos sempre foram raros entre os cartagineses, e esse exército iria, na devida ocasião, confrontar Marcelo. O sítio de Siracusa, empreendido com tanta confiança, iria se prolongar: em grande parte devido a um só homem. Entre os habitantes da cidade, encontravase o grande matemático e cientista grego Arquimedes. Educado na escola matemática alexandriana, na época em que Euclides lá ensinava, Arquimedes (amigo, se não parente, de Hierão) enriquecera a cidade com suas dádivas intelectuais, e construíra para os governantes numerosos e incomuns engenhos de guerra. Como Leonardo da Vinci, séculos mais tarde, ele pagava pelo ócio e pela liberdade de especular com o trabalho prático que poderia garantir a segurança de seu protetor. Marcelo tinha 251 decidido atacar a cidade pelo lado do mar de Acradina, subúrbio da velha cidade no lado norte. A própria Ortígia parecia quase inexpugnável. Arquimedes havia equipado as muralhas com uma artilharia tão poderosa que esmagava os romanos antes mesmo que se aproximassem o suficiente para que seus projéteis fossem eficazes; e quando eles chegavam mais perto, descobriram que toda a parte inferior da muralha estava equipada com seteiras: seus homens eram derrubados, com fatal pontaria, por um inimigo que não podiam ver, e que atirava suas setas em perfeita segurança. Se eles ainda perseveravam, tentando colocar escadas nas muralhas do lado do mar, subitamente viam longos postes saindo do topo da muralha como os braços de um gigante, de onde eram atiradas sobre eles pedras enormes e grandes massas de chumbo que faziam suas escadas em pedaços e quase afundavam os seus navios. Em outras ocasiões, máquinas como guindastes projetadas da muralha, com um arpão de ferro afixado na ponta de uma alavanca, eram baixadas sobre os navios romanos. A descrição de Lívio 252 inspirou inúmeros artistas em séculos posteriores: Tão logo o arpão se enganchasse, a outra ponta da alavanca era forçada para baixo por grandes pesos e o navio erguia-se da água até ficar quase em pé sobre a popa; então, o arpão era subitamente solto, e o navio caía na água com violência tal que ou era virado ou se enchia de água (…) Os soldados romanos, valentes como eram, ficavam tão atemorizados diante desses estranhos e irresistíveis dispositivos, que bastava porém os olhos em algo como uma corda ou pau pendurado ou projetado de uma parede para que se virassem e saíssem correndo, gritando "Arquimedes vai usar um de seus engenhos contra nós!" — Tito Lívio[37] Este foi um dos primeiros exemplos, na história da guerra, de um inimigo superior em quantidade e determinação, sendo frustrado e vencido por tecnologia superior. "Assim, o génio de um homem, Arquimedes, derrotou os esforços de inumeráveis mãos". 253 A tenaz perseverança, com a qual Roma iria construir o seu império, finalmente triunfou sobre a engenhosidade científica grega e suas defesas muradas, que tornavam os siracusanos confiantes de estar numa "cidade inconquistável". Rechaçado no seu ataque marítimo, Marcelo voltou sua atenção para a terra e — numa noite em que se sabia que os siracusanos estariam celebrando uma grande festa de Ártemis — invadiu as débeis fortificações do norte, atacando a cidade. Esta pagou caro por ter descuidado do confronto com os romanos, como países desde a Pérsia até a Bretanha iriam aprender nos séculos seguintes. O combate que se seguiu foi longo e complicado. Uma frota cartaginesa estacionada no porto retirou-se de modo irresoluto quando parecia que iria ser encurralada ali pelos navios romanos vindos do mar. Parte do exército cartaginês que desembarcara no sul, incapaz de reforçar as defesas da cidade, foi compelida a aquartelar-se no pantanoso delta do rio Anapo, que chegava até o grande porto. Como havia acontecido anteriormente na longa história de Siracusa, o delta impregnado 254 da febre do Anapo, cobrou seu preço do exército acampado ali, matando milhares de soldados e dois generais cartagineses. Um emissário de Aníbal, Epícides, que vinha conduzindo a defesa da cidade, percebeu que tudo estava perdido e fugiu para Agrigento, ao sul. Em 212 a.C., a cidade de ouro e mármore caiu frente a Marcelo e seus romanos — homens que haviam absorvido a coragem de Esparta, sem a destreza dos atenienses, mas que possuíam uma disciplina organizada que faltava à maioria dos gregos. Allcroft e Masom resumiram assim a conclusão do sítio a Siracusa — conclusão, pode-se dizer, de séculos de colonização grega da Sicília, a grande ilha que pareceu aos primeiros navegantes gregos a "terra recém-descoberta", perfeita e rica além de suas expectativas: No outono, um oficial espanhol abriu os portões de Ortígia e Acradina, e os romanos tornaram-se senhores de Siracusa, após um sítio de mais de dois anos. As usuais atrocidades marcaram sua queda; a cidade foi pilhada, e muitos de seus tesouros de arte levados embora para 255 Roma. Arquimedes foi morto por um soldado romano. A guerra na Sicflia durou mais dois anos devido à energia de Mutino, oficial líbio que financiou uma guerra de guerrilha contra os romanos, até que as repetidas desfeitas de um colega invejoso o levaram, em vingança, a trair Agrigento, em 210 a.C. Depois disso, a ilha tornou-se uma vez mais uma província pacífica, cujo destino seria produzir milho para seus senhores e submeter-se pacientemente às extorsões dos governadores, coletores de impostos e agiotas da vitoriosa Roma. — Allcroft e Masom[40] O padrão da ilha, pode-se dizer, estava se configurando para toda a sua história futura, e a natureza do temperamento siciliano se estabelecia irrevogavelmente num molde de ressentimento e de determinação a esquivar-se das leis de qualquer conquistador por quaisquer meios possíveis. Marcelo havia dado ordens para que Arquimedes fosse poupado a qualquer custo, mas, segundo a lenda, o grande matemático estava tão absorvido em resolver algum problema em um tabuleiro 256 de areia que, quando os soldados invadiram seu quarto e ele ignorou suas ordens para que declarasse sua identidade, foi transpassado por uma lança. Ele não foi a única grande perda de Siracusa, pois incontáveis tesouros de arte eram agora despachados para Roma. Diz-se que esta primeira grande introdução da arte grega foi, de algum modo, responsável pelo crescimento da subsequente admiração romana e emulação da cultura helénica. De um modo muito semelhante, séculos mais tarde, os despojos de Constantinopla iriam adornar Veneza e fertilizar a imaginação dos artistas e artesãos daquela cidade. As consequências da queda de Siracusa foram estrategicamente muito prejudiciais para Aníbal. Com os romanos de posse do grande porto, e com seu domínio sobre o estreito de Messina fortalecendo seu controle das vias marítimas para a Sicília e Itália, Aníbal e seu exército ficaram ainda mais isolados de sua cidade-mãe, Cartago. A menos que reforços chegassem até ele da Hispânia por meio dos Alpes, ele estaria mais ou menos abandonado na Itália. Somente o seu gênio militar e o 257 temor que suas vitórias anteriores haviam infundido nos romanos poderiam salvá-lo da derrota. Na primavera do ano seguinte, Aníbal preocupava-se muito com o destino de Cápua, onde quatro exércitos romanos posicionaram-se com a intenção de subjugar a cidade por sítio e não através de ataque. O usual pedido de ajuda dos capuenses já havia chegado até ele. Uma vez que ele próprio ainda se encontrava na região de Tarento, enviara Hanão do Brútio (Calábria) para Benevento para tentar livrar a cidade. Hanão, tendo evitado brilhantemente o exército de Graco na Lucânia (Basilicata), assim como o de Nero em seu flanco, havia conseguido escapulir e estabelecer um acampamento fortificado que transformou em depósito de grãos. Foi pedido aos capuenses que enviassem cada carroça e animal disponível para transportar o cereal que ele havia coletado. Fatalmente sujeitos à inércia e à incapacidade, os capuenses somente conseguiram obter quatrocentas carroças, ao que Hanão exclamou: "Nem mesmo a fome, que estimula animais estúpidos a se 258 esforçarem, pode instigar os capuenses a alguma atividade". Os capuenses foram enviados de volta com ordens de conseguir mais transporte; mas, no momento em que retornavam com duas mil carroças, os romanos, que haviam tomado conhecimento da atividade, esperavam preparados. Enquanto Hanão estava fora com um grupo de forrageadores, eles atacaram o acampamento e, apesar de uma empenhada resistência dos cartagineses remanescentes, a posição foi tomada e os grãos, as carroças e outros depósitos capturados. Hanão e seu grupo conseguiram escapar, retirando-se frustrados para o Brútio. Cápua, não por culpa de seus aliados cartagineses, foi ainda deixada sem suprimentos. Ao ouvir as notícias, Aníbal despachou dois mil númidas para irem em socorro a Cápua, ordem que esses admiráveis cavaleiros do deserto executaram, esquivando-se do cerco à cidade, conseguindo adentrar Cápua de noite. Animados por essa evidência de apoio, os capuenses saíram a cavalo quando os 259 confiantes romanos juntavam o milho fora da cidade. À frente deles cavalgavam os númidas. Quinze centenas de romanos foram mortos nessa investida e os restantes, desmoralizados pela inesperada chegada da grande arma de cavalaria de Aníbal, buscaram refúgio detrás de suas fortificações. Ao mesmo tempo, sofreram um choque adicional. Graco, a ponto de deixar sua província para vir reforçar o bloqueio de Cápua, foi colhido numa emboscada e morto. Aníbal, tradicionalmente atento às cortesias de guerra, deu ao cadáver do líder romano um honroso funeral. Ele enviara seus númidas adiante apenas para que atuassem como força de avanço, e isso não ocorreu muito antes de o cônsul, Fúlvio Flaco, ser informado de novidades muito desagradáveis. monte Tifato estava lotado de homens, e seu topo plano fora uma vez mais ocupado. Aníbal, movendo-se do sul da Itália com extraordinária velocidade (mais rápido do que a cavalaria romana que havia sido convocada da Lucânia, local relativamente próximo), surgira em cena mais uma vez. Adentrou Cápua em triunfo, pois os dois 260 exércitos consulares se retiraram antes dele — evidência do temor ainda sentido pelos romanos diante de sua presença, bem como de algum acordo velado entre eles para aderirem a Quinto Fábio Máximo, ainda que este último não mais ocupasse um alto cargo. Aníbal, todavia, não podia aquartelar seu exército na cidade por causa da falta de suprimentos e quando os exércitos romanos se retiraram, seguiu a tropa que estava sob o comando de Apio Cláudio que rumava para a Lucânia, de modo a ameaçar o sul da Itália. Tão logo o exército cartaginês se retirou, Flaco retornou para investir contra Cápua; não muito depois, Cláudio despistou Aníbal e também retornou para a cidade. Ao fim do ano, seis legiões romanas encontravam-se em Cápua para iniciarem a prática romana de circunvalação; cercando o local sitiado com terraplenagens e trincheiras, impediam os habitantes de saírem e as forças de auxílio de entrarem. Aníbal voltou a Tarento, onde a guarnição romana na cidadela ainda resistia; ele, sem dúvida, esperava que, terminados os meses de inverno, pudesse conseguir 261 desalojá-la, já que os tarentinos haviam falhado. Talvez o grande cartaginês tenha se desesperado com a qualidade dos aliados tarentinos e capuenses em tempos de guerra. Era evidente que somente os pouco corajosos e os que nutriam rancor contra Roma vieram até ele. Nenhum membro da confederação latina desertou de sua velha aliança e, se os gauleses e os brútios lutaram bem ao seu lado, eram porém povos indisciplinados e semiselvagens que não poderiam ser utilizados contra Roma até que tivessem sido treinados por seus oficiais e homens cartagineses — e assim mesmo de modo tosco, para servirem como "bucha de canhão", enquanto as reais infantaria e cavalaria fizessem o serviço profissional. Aníbal encerrou um ano que, se não havia sido muito satisfatório para ele, tinha certamente sido infeliz para Roma. Em sua rota de volta a Tarento cruzou com um exército romano que barrava seu caminho. Superior em cavalaria — e largamente superior devido às qualidades de seus númidas — ele os dispôs cuidadosamente nos flancos. Os romanos, avançando à sua velha (e a essa altura já 262 ultrapassada) maneira, confiantes na força de suas legiões blindadas, foram feitos em pedaços, e o general, Marco Sentênio Pênula, morto. Como se não fosse suficiente para um invasor estrangeiro em sua marcha de volta para os quartéis de inverno, após a conclusão de uma temporada de campanha bemsucedida, Aníbal soube que Herdônia, na costa leste da Apúlia, estava sendo sitiada pelo irmão do cônsul, Fúlvio Flaco, e voltou seu exército para o nordeste da Itália. Chegou para pegar os desavisados romanos pela retaguarda e, tendo colocado uma típica armadilha anibálica no flanco em direção do qual ele deduziu que os romanos deveriam se voltar, aniquilou o inimigo. Dois mil — ou menos — desse exército escaparam, e Aníbal assegurou sua posição territorial, novamente voltando para o sul para garantir às suas tropas suprimentos adequados e bons abrigos para o inverno. Dois exércitos romanos foram destruídos e dois generais mortos — tudo em uma campanha feita às pressas. Algum país, ou mesmo o Senado de Cartago, poderia demandar mais de um homem — sem nenhum auxílio e longe de casa? O ano 263 seguinte, 211 a.C., provaria ser um dos mais singulares e alarmantes da história romana. Aníbal dividia-se entre o desejo de capturar a cidadela em Tarento, a qual ainda impedia os cartagineses de utilizar o porto como base de frota e suprimento para a campanha italiana, e a necessidade de assegurar Cápua. Como escreve Lívio: Contudo, prevaleceu o cuidado com Cápua, uma cidade na qual viu que a atenção de todos os seus aliados e inimigos se concentrava, destinada a ser um exemplo notável, qualquer que fosse o resultado de sua revolta contra os romanos. Consequentemente, deixando na terra dos brútios grande parte de sua bagagem e toda arma pesada, com infantaria e cavalaria selecionada, precipitou-se pela Campânia na melhor condição possível para uma marcha rápida. A despeito de sua movimentação veloz, trinta e três elefantes conseguiram acompanhá-lo. [Fizera a mesma coisa antes, em sua marcha pela margem leste do Ródano.] Ele acampou em um vale fechado atrás de Tifato (…) Quando ele se aproximou, capturou primeiro o forte de Galátia, subjugando sua guarnição, e 264 então dirigiu sua marcha contra os sitiantes de Cápua. Mandando comunicar antecipadamente a Cápua a ocasião em que pretendia atacar o acampamento romano, de modo a dar-lhes tempo de se prepararem para uma investida conjunta, irrompendo ao mesmo tempo de todos os portões, ele inspirou grande rebuliço. Assim, de um lado ele próprio atacaria, de outro todos os capuenses, cavalaria e infantaria, irromperiam para fora, e com eles a guarnição cartaginesa comandada por Bóstar e Hanão.Cquote2.svg — Tito Lívio[37] Na batalha que se seguiu, a franqueza da posição de Aníbal ficou patente: eles não poderiam transpor uma posição defendida. Embora seus rígidos homens de infantaria iberos tivessem rompido as linhas romanas, eles foram incapazes de forçar caminho até Cápua, sendo detidos e mortos. A cavalaria cartaginesa permaneceu, como sempre, suprema em combate, mas isso não era suficiente quando em ataque contra legionários romanos em suas trincheiras. Aníbal fez tudo o que pôde para provocar a saída dos romanos para uma batalha aberta, mas eles não cederam. Haviam aprendido a 265 lição nos primeiros dois anos de campanhas na Itália. Políbio, ele próprio um comandante de cavalaria, reconhece que mesmo essa poderosa arma era inútil quando se tratava de desalojar um tenaz e entrincheirado inimigo.[19] Além do mais, a operação coordenada com os capuenses mostrou uma lúgubre falha, sendo seus aliados facilmente rechaçados pelos romanos, determinados a fazer a cidade de renegados pagar o preço por sua deserção da aliança latina. Aníbal atirou todas as forças à sua disposição no ataque às linhas romanas, menos seus númidas e iberos, que "irromperam dentro do acampamento romano inesperadamente". Os elefantes foram à carga com eles e "em seu caminho pelo acampamento iam devastando as tendas com um barulho terrível, e fazendo os animais de carga romperem seus cabrestos e fugirem". Lívio concluiu: "(…) os elefantes foram tirados de suas posições mediante o uso de fogo. Seja lá como tenha começado ou acabado, esta foi a última batalha antes da rendição de Cápua".[37] Os romanos descobriram que os elefantes possuíam suas fraquezas; o fogo era uma, e a outra 266 era deixá-los ir em desatino através das linhas e então atacá-los por trás. Com o benefício da visão posterior aos eventos, parece-nos hoje que Aníbal havia cometido um erro estratégico em sua tentativa de livrar Cápua. Trouxera contra as posições romanas um peso de forças que teriam se desempenhado melhor contra a guarnição de Tarento, libertando, assim, aquele grande porto para a frota cartaginesa. Por outro lado, elefantes e superioridade numérica significavam pouco contra uma cidadela fortificada, com um suprimento interno de água e um grande depósito de grãos. É por isso que as cidadelas, guarnições e castelos sobreviveram por milhares de anos na história da guerra. Somente projéteis explosivos e métodos científicos de colocação de minas ameaçariam o "ponto forte". Suficientemente rápido para perceber seu erro após essa fracassada operação combinada para livrar Cápua, Aníbal recuou. Só lhe restara um lance estratégico, que tem sido usado por muitos grandes capitães, inclusive Napoleão (o qual aprendeu muito com Aníbal). Este era levar suas forças embora e ameaçar a 267 peça principal do tabuleiro de xadrez — Roma. Ele devia saber, em vista de seu fracasso contra cidades menos fortificadas, que só constituiria uma ameaça, nada mais, mas estariam as legiões romanas ao redor de Cápua totalmente confiantes de que a capital sobreviveria ao ataque do grande cartaginês? A marcha de Aníbal sobre Roma, um acontecimento tão aterrorizante que continuava a ser lembrado por poetas e historiadores mesmo séculos mais tarde, levanta a interessante questão da rota que ele teria tomado. Lívio é pouco claro, afirmando que ele se utilizou da grande Via Latina nas últimas etapas de sua marcha, enquanto Fúlvio Flaco tomou a Via Ápia mais para o oeste, chegando a Roma antes dele.[37] Políbio — muito mais confiável no que se refere a assuntos militares — mostra Aníbal levando seu exército diretamente através do Sâmnio para leste e descendo sobre Roma, vindo do nordeste.[19] Conhecendo, por suas outras manobras, a inclinação de Aníbal pelo inesperado, essa rota parece a mais provável. Sir Gavin de Beer acrescenta um 268 ponto: "Marchando através do Sâmnio para Sulmona, e então através de regiões hostis a Roma, Aníbal passou por Alba, onde sua passagem foi marcada por dois elefantes de pedra toscamente esculpidos, inequivocamente africanos, dado o grande tamanho de suas orelhas". Queimando e pilhando, com os númidas devastando o campo adiante de seu exército, Aníbal suscitou um pânico tal que a cidade nunca antes conhecera. Finalmente, ele acampou na margem direita do rio Ânio, e a apenas três milhas de Roma — os cavaleiros do deserto, a infantaria pesada cartaginesa, os selvagens gauleses e brútios, todos visíveis aos observadores nas muralhas. Após uma inconsequente escaramuça de cavalaria, na qual Flaco parece ter se saído melhor, os dois exércitos confrontaram-se, tendo a cidade como o prêmio da aposta. Mas, como Lívio conta, "depois que os exércitos se posicionaram (…) um grande aguaceiro, misturado a uma chuva de pedras, confundiu de tal modo as linhas de batalha que, agarrandose às suas armas com dificuldade, eles retornaram ao acampamento".[37] Aconteceu de a terra na qual acampara o 269 cartaginês estar à venda e, mesmo enquanto o exército de Aníbal a ocupava, diz-se que a negociação prosseguiu — e sem qualquer redução no preço. Tais histórias não devem ser verdadeiras — elas exaltam os romanos das gerações posteriores, exibindo confiança igual à de seus ancestrais, mas permanece o fato de que, em nenhum momento a defesa romana acreditou que a cidade estivesse em grande perigo. Era sempre a mesma história — sem equipamento de sítio, Aníbal não pôde tomar Cumas ou Nápoles, logo era impossível para ele capturar a que era talvez a mais rigidamente fortificada e bem defendida capital do mundo mediterrâneo. Depois de mais um dia em que a violência do clima novamente fez com que ambos os exércitos se retirassem para seus acampamentos, Aníbal recuou para uma posição seis milhas atrás. Ele tinha visto Roma; é bem possível, como diz a lenda, que tenha atirado uma azagaia na Porta Colina para zombar da impotência de seus defensores. Mas nunca adentrou a cidade de seus inimigos, e nunca mais a veria novamente. Um entusiasta sem igual de Aníbal foi Sigmund Freud, o qual idolatrava o 270 cartaginês tão fervorosamente que por muitos anos foi incapaz de entrar em Roma — porque Aníbal nunca havia colocado os pés ali. A tentativa de Aníbal de livrar Cápua ameaçando Roma havia falhado. Nenhum exército romano tinha se deslocado de Cápua para verificar sua ameaça; os dois cônsules permaneciam em Roma e, com eles, duas, possivelmente mais, legiões por detrás das resistentes fortificações. Ele aproveitou sua marcha ao máximo, contudo, saqueando todo o campo ao redor, violando o antigo relicário de Ferônia, onde oferendas de ouro e prata datados de tempos imemoriais iriam pagar o serviço de seus mercenários. Deve-se lembrar sempre que o magnífico exército poliglota de Aníbal tinha de ser pago, pois ele não consistia numa corporação de cidadãos, como o de Roma, e não tinha qualquer fidelidade a não ser para com um único homem. Cápua, evidentemente, estava perdida, e Aníbal sabia disso quando voltou de Roma. Inevitavelmente, ele foi seguido em sua marcha, e alguns na sua "cauda", carregados com bagagem e saques, foram mortos. Fracassando em 271 Roma, manteve-se intacto porém seu usual espírito indomável; voltando-se de novo contra os romanos em ataque noturno, castigou-os tão severamente que eles nunca mais o acossaram em sua marcha. Em muitos aspectos, assemelhava-se a um grande e nobre animal saído da África, sempre forte o suficiente para, volvendose, atacar selvagemente os predadores em seu encalço. Aníbal moveu-se para o leste em direção ao Adriático e, então, fez uma falsa investida contra Tarento, onde a indómita guarnição romana ainda resistia, antes de deslocar-se rapidamente para sudeste, através do Brútio, chegando inesperadamente ao Régio. É provável que fossem se unir a novas tropas que haviam invernado em Brútio (atual Calábria); de qualquer modo, sua marcha é considerada uma das mais rápidas e memoráveis da história da guerra. No entanto, ainda que tenha chegado subitamente à cidade, de modo a capturar muitos dos habitantes ainda trabalhando fora nos campos, tratando-os com cortesia, na esperança de causar uma impressão favorável, o Régio fechou seus portões e permaneceu fiel a 272 Roma. Apesar de sua impressionante sequência de marchas, apesar de seu castigo aos romanos no ataque noturno e da rapidez de seus movimentos, que sempre os deixava confusos quanto às intenções dele, a campanha da primavera de 211 a.C. não rendeu coisa alguma. Cápua estava condenada a cair, junto com o sonho de Aníbal de uma federação italiana independente de Roma. Politicamente, ele havia falhado, e as esperanças cartaginesas de isolar Roma para então destruí-la quase com tranquilidade, se despedaçaram. Assim que os capuenses souberam que Aníbal havia se retirado de Roma e se deslocado para o sul, deram conta de seu destino. Um decreto do senado romano de que as vidas de todos os capuenses que se rendessem a Roma seriam poupadas caiu em descrédito, pois os que agiram na conspiração perceberam que nada além da morte os aguardava. Cercados pelas legiões, à beira da fome, não lhes restava nada a fazer a não ser abrirem os portões. Vinte e oito dos senadores que haviam votado contra a resolução cometeram suicídio por veneno e pela espada. 273 Estavam certos em crer que Roma desejava vingar-se: setenta dos que haviam se comprometido na decisão de receber Aníbal foram executados, junto com muitos outros cidadãos líderes. A secessão de Roma foi encarada como o que de fato era: conspiração com o inimigo. Embora Cápua não tivesse sido saqueada, todos o seus edifícios e terras públicas foram declarados propriedade do povo romano. Cápua deixou de existir como entidade independente, e os senhores romanos da Campânia iriam, dali em diante, ver aquelas terras ricas e férteis trabalhadas para o benefício de seus senhores romanos. Toda a Itália, salvo o extremo sul e Brútio (atual Calábria), estremeceu; e as cidades e fazendas que haviam recebido as forças cartaginesas, em algumas das quais Aníbal havia posicionado pequenas guarnições, tornaram-se pró-romanas outra vez e voltaram a hostilizar o invasor. De um só golpe, Aníbal ficou desprovido de suas conexões com o Sâmnio e a Apúlia e mais ou menos confinado ao Brútio e ao litoral sul. Assim, com seu fracasso no Régio e sua incapacidade de subjugar a guarnição em Tarento, ele foi deixado com 274 pouco campo para manobras. Sem um porto adequado e com os romanos controlando o mar, restavam-lhe poucas esperanças de receber reforços. A queda de Cápua e a captura de Siracusa pareciam indicar um desastroso ano para os cartagineses. A única boa notícia, talvez, a alcançar Aníbal na região que se tornaria sua derradeira fortaleza na Itália foi o triunfo de seu irmão Asdrúbal na Espanha — um triunfo tão grande que quase eclipsou essas outras perdas. O dois Cipiões haviam avançado pelo coração da Espanha, ao sul do Ebro, conseguindo, a princípio, considerável sucesso. Públio Cornélio Cipião em particular foi hábil em conquistar a lealdade de muitos espanhóis e incorporá-los em uma aliança com Roma. Mas o retorno de Asdrúbal, após debelar a revolta marroquina, e sua união com Asdrúbal Gisgão e Magão foram fatais para a sorte dos irmãos Cipião. A influência de Asdrúbal sobre os celtiberos em breve se mostraria valorosa e os Cipiões viram-se privados de linhas de comunicação, e mais ou menos abandonados por seus aliados espanhóis. Aparentemente incapazes de unir suas 275 forças, os dois generais romanos envolveram-se em ações separadas. Seus exércitos foram feitos em pedaços, sendo ambos os Cipiões mortos. O desastre com as armas romanas e a morte desses dois destacados generais contribuíram muito para reverter o equilíbrio da grande guerra anibálica contra Roma. Enquanto isso, o próprio Aníbal, embora sem apoio, permaneceu sem derrotas, na terra italiana. Uma constante ameaça a Roma e contínua preocupação para seus generais, ele ainda permaneceria ali por mais sete anos. O ritmo da guerra só poderia diminuir. As perdas sofridas por ambos os lados foram suficientes para enfraquecê-los tanto pelo sangue derramado quanto pela falta de determinação. O exército que Aníbal trouxera para a Itália pelas montanhas há muito havia mudado seu temperamento e constituição; nove anos não poderiam deixar de exigir um alto preço daqueles veteranos da Espanha, França e Alpes, que tinham um dia contemplado de cima das montanhas, com muita expectativa, o rico prémio: a Itália. 276 Não existem registros, e apenas pode-se presumir que, após tantos embates, a força original dos cartagineses encouraçados tenha-se exaurido bastante — embora vitoriosos em todas as suas principais batalhas. Fica claro que a cavalaria númida fora reforçada por transporte da África. Esta brigada ligeira de cavalaria permanece em evidência até o fim da longa guerra mas, muito curiosamente, não há mais referências à brigada pesada de cavaleiros — embora seja possível que Políbio e Lívio simplesmente suponham que eles estiveram sempre presentes. O corpo principal da infantaria havia certamente se transformado sem medida, sendo os espanhóis substituídos por gauleses e estes, por sua vez, pelos brútios. Também é possível que houvesse muitos fugitivos do acampamento romano — desertores (não o melhor dos soldados), etruscos que há muito odiavam a cidade que arruinara seu próprio Estado e, desde a queda de Cápua, campanianos que não mais ousavam retornar à sua própria terra. Era uma força heterogénea a ser lançada contra aquele formidável composto de Estados que Roma reunira. Aníbal, com a queda de Cápua, também 277 havia perdido seus aliados e existia pouca ou nenhuma probabilidade de que fossem substituídos. Roma demonstrara o quão cruel era seu julgamento contra os desertores, e somente outra vitória da amplitude de Canas poderia convencer os Estados da Itália de que Aníbal seria o potencial governante de toda a península. Roma também se ressentia do esforço de sustentar uma guerra por tanto tempo. A fadiga da guerra, evidente do lado romano, assim como a carga dos pesados impostos, para o que parecia não haver fim, contribuíram para uma atmosfera geral de derrotismo. Cquote1.svg Queixas começaram a ser ouvidas entre os latinos e seus aliados em suas reuniões: já era o décimo ano em que eles se exauriam com as levas de tropas e seu pagamento; e quase todos os anos sofriam alguma derrota desastrosa. Alguns, diziam eles, foram mortos em batalhas, outros caíram por doença. O aldeão alistado pelos romanos estava perdido para eles mais completamente do que um homem capturado pelos cartagineses. Pois, sem demandar resgate, 278 o inimigo o mandava de volta para sua cidade nativa; os romanos o transportavam para fora da Itália (…) Se os soldados antigos não retornassem a seus locais de origem, e novos soldados continuassem a ser recrutados, em breve não haveria mais nenhum. Conseqüentemente, o que a situação demandasse de recursos deveria ser recusado ao povo romano, sem que se esperasse chegar ao extremo da desolação e da pobreza. Se os romanos vissem os aliados unânimes nisso, certamente pensariam em fazer a paz com os cartagineses. De outro modo, nunca, enquanto Aníbal vivesse, estaria a Itália livre da guerra. — Tito Lívio[37] Doze colônias romanas, das trinta que compunham o Estado romano, revoltaram-se em 209 a.C., informando aos cônsules de que não tinham meios de fornecer mais soldados ou dinheiro. A fim de pagar os exércitos, até mesmo o tesouro sagrado de Roma, recurso que só deveria ser usado na mais grave das emergências, teve de ser desprovido de seu ouro. Os senadores foram solicitados — e atenderam — a trazer ouro, prata e jóias 279 particulares de suas famílias de modo a reabastecer os cofres do Estado. Nunca em sua história Roma se reduzira a tal penúria, e parecia que a ameaça representada por Aníbal e seu exército de modo algum retrocederia. Embora as cidades que haviam se voltado aos cartagineses fossem reintegradas à aliança romana — Salápia, na Apúlia, primeiro, e Meles e Maroneia, no Sâmnio — a temível sombra do invasor ainda assombrava grandes áreas da Itália. Quando os romanos eram imprudentes o bastante para enfrentá-lo, como acontecera em Herdônia, aprendiam a costumeiramente sangrenta lição. Ali o procônsul Fúlvio Centumalo havia acampado contra a cidade, enquanto negociava com um partido pró-romano dentro das muralhas. Quando Aníbal soube da ameaça, deslocou-se do Brútio por marchas forçadas e enfrentou as duas legiões de Centumalo; sua cavalaria atacou a retaguarda das legiões, enquanto sua infantaria pesada os segurava pela frente. O resultado foi outra daquelas mortíferas derrotas romanas que, até o fim da guerra na Itália, fizeram cada general 280 romano ver estremecida sua reputação quando confrontados pelo cartaginês. Marcelo, que havia retornado de sua vitória sobre Siracusa na Sicília, era um dos cônsules para o ano de 210 a.C. e um dos generais romanos por quem Aníbal demonstrava verdadeiro respeito, dizendo sobre ele: "Marcelo é o único general que, quando vitorioso, não dá descanso ao seu inimigo, e, quando derrotado, não dá descanso a si mesmo". O modo sarcástico e impessoal de Aníbal expressar-se é revelado numa comparação, a ele atribuída, entre Quinto Fábio Máximo, o Protelador, e Marcelo: "Fábio era um professor a quem eu respeitava, mas Marcelo era um virtuoso inimigo: o primeiro não me deixou causar qualquer dano, mas o outro me fez sofrê-lo". Marcelo iria participar de parte da campanha de 209 a.C., na qual Aníbal perderia sua última possessão importante na Itália, a cidade portuária de Tarento. O outro cônsul para o ano era o velho Quinto Fábio Máximo, que pela primeira vez ganharia algum predomínio sobre o homem que o havia desafiado com sucesso em ocasiões prévias. Enquanto Quinto 281 Fábio Máximo trazia suas forças o norte e prosseguia em marcha para Tarento, Marcelo acossava Aníbal e perseguia suas pegadas, marchando no verdadeiro estilo "fabiano". Além desses dois exércitos, Roma colocou em campo, naquele ano, mais um, sob o comando de Fúlvio Flaco, para subjugar as cidades na Lucânia e no Sâmnio que se mostrassem favoráveis aos cartagineses. A campanha de abertura de Aníbal, que esteve tão próxima do sucesso, fora projetada para quebrar o espírito de Roma por uma série de vitórias maciças em campo. Ele havia conseguido as vitórias, mas Roma teimosamente ainda recusavase a se render. Sua segunda campanha, com fins políticos, tinha sido projetada para quebrar o espírito dos aliados de Roma e, ao fazê-lo, destruir a confederação latina com a qual Roma necessariamente teria que contar para obter dinheiro e poderio humano. Todavia, após mais de nove anos de guerra, dezoito dos trinta aliados continuavam fiéis a Roma e os doze que a haviam renegado só o fizeram porque seu poderio humano se exaurira e seus tesouros encontravam-se 282 vazios. Dois fatores principais sempre afligiram Aníbal desde que percebera que deveria lutar uma guerra de desgaste em solo inimigo. O primeiro era a falta de um equipamento de sítio e o segundo a falta de infantaria pesada treinada, que somente poderia vir da própria Cartago ou da Espanha. O comando romano do mar, estabelecido na Primeira Guerra Púnica, havia demonstrado claramente que um Estado como o cartaginês, tão dependente de negócios ultramarinos, deve comandar o mar ou perecer. Esta foi uma lição que os estadistas e comandantes britânicos, educados nos clássicos, haviam absorvido bem na época de suas guerras contra a França no século XVIII. Era aterrador que Aníbal, com seu pequeno corpo de oficiais cartagineses e seus definhados grupos de soldados profissionais, tivesse sido capaz de utilizar a força humana de rudes gauleses e primitivos brútios para tal. Ao mesmo tempo, enquanto seu próprio exército, mesmo com Hanão e outros recrutando substitutos, declinava em força, os romanos recrutavam homens em quantidade na extensa e relativamente 283 próspera terra da Itália. Somente um grande reforço de vigorosos e treinados soldados poderia devolver a Aníbal a iniciativa que ele havia tido quando adentrara a Itália, e que havia subsequentemente confirmado em Canas. Os reforços deveriam vir ou pelos Alpes, da Hispânia, ou pelo mar, de Cartago, para o sul da Itália. Os romanos da república haviam aprendido muito com seus erros anteriores em campo contra um génio da guerra e tinham agora adotado permanentemente as táticas de desgaste contra ele. Eles também tinham aprendido muito da estratégia necessária para lidar com uma guerra englobando uma grande área — neste caso toda a bacia mediterrânea. Enquanto enfrentavam o inimigo na Espanha, calcularam que a primeira coisa a ser feita na península italiana era impedir que Aníbal recebesse qualquer reforço da Grécia ou de Cartago. A chave para isso era Tarento, onde a guarnição romana na cidadela havia impedido a plena utilização do porto pelo cartaginês. Enquanto Marcelo seguia o exército de Aníbal e tentava atraí-lo para o norte 284 rumo à Apúlia, distraindo-o o suficiente para fazê-lo virar de lado em pelo menos duas ocasiões, Quinto Fábio Máximo deslocava-se velozmente para o antigo porto marítimo grego. No final das contas, Aníbal voltou-se e atacou Marcelo, obrigando seu exército a se retirar para seu quartel em Venúsia. Marcelo conseguira seu objetivo e, enquanto Aníbal o enfrentava, o exército do cônsul Quinto Fábio Máximo chegava diante das muralhas de Tarento. Como os cidadãos de Cápua, os tarentinos não haviam se empenhado muito pela causa cartaginesa (ambos estavam simplesmente à espera de uma vida fácil e de menos impostos) e fracassaram visivelmente contra a, cidadela sob domínio romano. É evidente que Aníbal, naquele ano, esperava reforços da África do Norte, pois ele agora se desviara do problema de Tarento por um sítio do porto de Caulônia, na extremidade sudeste do Brútio, executado por tropas que se desencumbiram da ação na Sicília. Após castigar Marcelo tão duramente que ele foi obrigado a se retirar, Aníbal marchou diretamente através do centro do Brútio e acabou com o sítio de Caulônia. 285 Teria agido melhor se antes olhasse para Tarento, mas pode-se presumir que ele havia designado Caulônia como o ponto de desembarque para as tropas cartaginesas, uma vez que aquele era um obscuro e insignificante porto no extremo sul, bem no meio de território amigo. Havia espiões por todos os lados naqueles dias e, assim como os cartagineses possuíam seus próprios agentes dentro das muralhas de Roma, em cada porto onde mercadores iam e vinham havia provavelmente olhos atentos que forneciam informação para um lado ou outro nessa luta pelo mundo mediterrâneo. Com a posse do estreito de Messina e sua ocupação de Siracusa, os romanos estavam numa boa posição para saber quando e onde uma frota cartaginesa deveria ser esperada. Aníbal não recebeu nenhum reforço naquele ano, por mar ou terra. Estava para perder seu último e único grande porto, Tarento. Deixando Caulônia restituída às mãos dos cartagineses e seus simpatizantes, Aníbal marchou de volta ao longo do "pé", do sul da Itália, e ao redor do grande Golfo de 286 Tarento — para alcançar a cidade logo após a sua queda. Apesar de seu contratempo contra Marcelo no norte e do desvio adicional para livrar Caulônia no sudeste, ele estava há apenas cinco milhas da cidade quando Tarento foi traída por elementos do próprio local. As tropas de Quinto Fábio Máximo, que nunca haviam sido capazes de enfrentar Aníbal com alguma firmeza de ânimo em campo, agora, das muralhas, contemplavam e zombavam do seu inimigo. Cartalão, o comandante cartaginês, havia sido morto na luta que se seguiu à invasão dos romanos, assim como os dois tarentinos principais responsáveis pela traição anterior da cidade. Assim que ele ficou visível das muralhas, diz-se que Aníbal teria sido avisado por um batedor sobre os acontecimentos e feito o frio comentário: "Então, os romanos também possuem um Aníbal. Eles tomaram Tarento, como nós". Tarento permaneceria como mais um monumento à determinação romana; todos deveriam saber que acolher o cartaginês era inútil. 287 Cquote1.svg Soldados chacinavam homens em toda parte, tanto os armados como os desarmados, fossem cartagineses ou tarentinos. Por toda a parte, brútios também eram mortos, muitos deles, por engano, por velhos rancores inatos ou a fim de apagar a ideia de traição, para que Tarento parecesse ter sido capturada pela força das armas. Então, da matança partiram ao saque da cidade. Trinta mil escravos, diz-se, foram capturados, uma imensa quantidade de prata, trabalhada e cunhada, três mil e oitenta libras de ouro, estátuas e pinturas de modo a quase superar os adornos de Siracusa. — Tito Lívio[37] Aníbal e seus homens cruzando os Alpes, de Joseph Mallord William Turner, na galeria Tate Britain, Londres. É notável que Lívio, descrevendo a história e grandeza de sua cidade e sua ascensão ao poder, não omita tais detalhes da crueldade ferrenha que finalmente asseguraria o império romano. Quando Aníbal capturou a cidade, tivera o cuidado de assegurar que houvesse o mínimo de derramento de sangue e que somente as casas dos tarentinos pró-romanos fossem 288 saqueadas. Ele, então, seguiu em retirada na direção do Metaponto, através da baía de Tarento, onde ordenou a um grupo de cidadãos destacados que fossem até Quinto Fábio Máximo e oferecessem a traição de sua cidade se os romanos se movessem contra ela. Aníbal escondera seu exército de cada lado da estrada para o Metaponto e resta pouca dúvida de que, se Quinto Fábio Máximose deslocasse, teria caído numa típica armadilha anibálica — da qual nem ele nem seu exército teriam escapado. Nessa ocasião, contudo, os romanos foram salvos por suas observâncias religiosas, pois Quinto Fábio Máximo, um homem da velha escola, nunca marcharia sem verificar os presságios, e o sacerdote, na ocasião, após analisar o sacrifício, achou-os desfavoráveis e avisou Quinto Fábio Máximo] de que ele deveria estar em guarda "contra o ardil de um inimigo". Conhecendo a relutância de uinto Fábio Máximo em fazer qualquer movimento que pudesse expor seus homens a perigos desconhecidos, é mais do que provável que ele próprio tenha tomado parte na interpretação dos sacrifícios. Suas suspeitas foram confirmadas quando, 289 tendo os cidadãos do Metaponto retornado numa segunda ocasião para inquirirem por que os romanos demoravam em avançar contra a cidade deles, foram presos e ameaçados com torturas, confessando o plano. A perda de Cápua e agora a perda de Tarento foram acuradamente interpretadas por Aníbal como desastrosas. Dele é dito ter observado aos seus oficiais: "A menos que possamos adquirir nova força, nós perdemos a guerra na Itália". Ele havia esperado que Tarento servisse como porto de desembarque para reforços de Cartago, assim como para o uso de seu aliado macedônio. Com sua perda, restava-lhe ainda menos esperança de incitar Filipe a deslocar tropas através do Adriático para apoiar a invasão da Itália. Ele permanecia sem derrotas no campo, mas isso, em si, pouco significava. Só poderia olhar em direção da Espanha e de seu irmão Asdrúbal — mas as notícias vindas da Hispânia eram más. 290 Cipião, o mais jovem[editar | editar código-fonte] O homem que então despontava como um dos maiores soldados da Roma republicana vinha de uma ilustre família patrícia à qual Roma devia mais gratidão do que qualquer outra pelo império mundial. Como a tumba dessa família nos revela, os Cipiões haviam sido homens da maior distinção na história romana desde o remoto século IV a. C., uma sequência de cônsules com uma longa série de méritos em campos de batalha e em assuntos civis. Públio Cornélio Cipião era filho do Públio que recentemente havia sido morto junto com seu irmão Cneu Servílio, durante a luta na Hispânia. Ainda jovem, aos dezessete anos, salvara a vida de seu pai quando este fora ferido na batalha de Ticino, a primeira grande vitória de Aníbal na Itália. Dois anos mais tarde, após o desastre de Canas, tinha sido um dos poucos sobreviventes que não arrefeceu, ajudou a reagrupar os demais e persuadiu alguns dos jovens nobres a não fugirem do país em desespero, como se preparavam para fazer. Sua experiência 291 era em alguns aspectos semelhante à de Aníbal — aristocrata e rico, vigoroso e inteligente — e ele havia tido a oportunidade, a partir do momento em que Aníbal irrompeu sobre a Itália, de estudar as táticas e estratégias de seu grande oponente. Outro curioso ponto de semelhança que iria manifestar-se era o fato de que, se a família Barca, desde a chegada de Amílcar Barca na península Ibérica, parece ter considerado aquela terra quase como uma província particular de sua propriedade, os Cipiões também adquiriram uma associação de algum modo semelhante com aquela terra quente e estranha — provavelmente selada pelo sangue dos dois irmãos que recentemente ali tombaram. Cipião, o mais jovem, havia sido eleito edil (um dos magistrados de Roma) três anos depois de Canas, embora fosse extremamente jovem para a posição e tivesse a ferrenha oposição de muitos dos tribunos, aparentemente por causa de sua pouca idade, mas na verdade porque eles defendiam os interesses de outras famílias patrícias. Em 210 a.C., Cipião, embora com pouco mais de vinte anos, foi escolhido para assumir o comando na Hispânia. 292 Houve aqueles que quase imediatamente acharam imprudência designar um homem tão jovem para tão importante posto (ele tinha aproximadamente a mesma idade de Aníbal quando este último reuniu seu exército para a invasão da Itália), ainda que essa decisão em breve mostrasse ter sido uma das mais sábias que Roma jamais tomara. Chegando à península Ibérica no final de 210 a.C. com onze mil reforços, Cipião Africano imediatamente se deslocou para Tarraco (Tarragona). Durante todo aquele inverno, encontrou-se com tantos representantes das tribos ibéricas quanto possível, homens confusos com a constante variação de sorte na guerra entre Cartago e Roma, mas que parecem ter ficado seguros com o ar confiante e as invariáveis boas maneiras de Cipião Africano. Como o próprio Aníbal, ele parece ter possuído uma habilidade inata para tratar com o povo nativo de outros países: nenhum desses dois aristocratas mostrava a arrogância dos generais comuns ou a jactância dos políticos plebeus. Assim, o brilhantismo de Cipião 293 Africano, como em breve se mostraria, não repousava apenas no campo da guerra, mas também em um tratamento de estadista para s com os habitantes locais. As tribos ibéricas, passionais, orgulhosas e sensíveis a desprezos, já portavam a inequívoca marca da nação que havia se desenvolvido na península através dos séculos. Durante aquele primeiro inverno, Cipião Africano aprendeu a compreender sua natureza, a fazer amigos entre seus chefes e a colocar a pedra fundamental naquela poderosa e próspera província que viria a ser no final a Hispânia romana. Na primavera de 209 a.C., ele cruzou o Ebro com trinta mil homens e marchou ao sul para Cartagena, com seu exército sendo acompanhado ao longo da costa por uma frota romana. Era uma bem planejada operação anfíbia e Cipião Africano não se movera sem boas perspectivas de sucesso. Ele soube por seus informantes que as forças cartaginesas estavam divididas em três e posicionadas bem distantes umas das outras: uma sob o comando de Asdrúbal, perto de Sagunto; outra comandada por Magão, no interior; e a terceira de Asdrúbal Gisgão, a sudoeste, em Gades. 294 Essa separação de comando deveu-se não somente a ambições rivais entre os líderes, mas também à própria natureza do país. Não havia, naquela época, uma única região onde grande concentração de homens pudesse fixar base e se sustentar da terra. "A Espanha", como Henrique IV da França observaria séculos mais tarde, "é um país onde grandes exércitos morrem de fome e pequenos exércitos são batidos". Cipião Africano deslocou-se com a segurança que Wellington iria um dia demonstrar quando confrontado por marechais franceses igualmente vorazes e em desavença uns com os outros. A guarnição de Cartagena, pequena mas confiante por causa da suposta inexpugnabilidade da cidade, lançou uma brava investida contra o exército romano, mas foi repelida. A frota cartaginesa bloqueou-os pelo mar, e Cipião Africano, fazendo uso do conhecimento do local, descobrira que uma lagoa que protegia a capital cartaginesa a oeste poderia ser escoada através de certos baixios com o vento do norte, diminuindo seu nível em um pé ou mais. Totalmente confiantes na proteção proporcionada por essa lagoa, os cartagineses haviam deixado as muralhas 295 daquele lado bem menos fortificadas do que as da ponta de terra peninsular, onde Cartagena então se situava (a garganta dessa península há muito foi encoberta e não é mais discernível). Tendo testado a força das muralhas principais e descoberto que eram altas demais e muito bem definidas para um assalto bem-sucedido, Cipião Africano] esperou até que um forte vento soprasse do norte e, então, enquanto a guarnição mantinha-se ocupada do lado da terra, fez com que parte do exército atacasse Cartagena através da lagoa. A manobra foi bem-sucedida, os romanos irromperam dentro da cidade e logo abriram os portões para o corpo principal de seu exército. O comandante cartaginês retirou-se para a cidadela, enquanto a cidade era entregue à usual rapina e ao massacre. Então, vendo que a situação estava perdida tanto em terra quanto no mar — a frota atacante havia logrado destruir e capturar os navios no porto — ele se rendeu. Nova Cartago, a capital da rica província da Hispânia que consolidara tão amplamente os esforços de guerra de Aníbal, estava perdida. Naquele momento, o controle de 296 Cipião Africano sobre as tropas, tão diferente do de Marcelo em Siracusa, foi acionado de imediato : as tropas obedeceram totalmente e daí em diante Cipião Africano exibiu sua cortesia junto aos conquistados, especialmente os iberos, que se tornaria o símbolo de seu sucesso. "(…) Da população masculina livre, cerca de dez mil foram capturados. Desses, Cipião Africano libertou os cidadãos de Nova Cartago e restituiu-lhes sua cidade, bem como todas as propriedades que a guerra lhes havia tirado."[37] Lívio prossegue relatando como vários milhares de artesãos treinados foram declarados escravos do povo romano, mas foram encorajados a continuar trabalhando com a perspectiva de liberdade no futuro próximo se eles se empenhassem na fabricação de armamentos. Eram também muito necessários na manutenção das docas e na construção naval. Cartagena era um grande prêmio em todos os sentidos. Além da pilhagem, dividida entre os soldados romanos, havia uma imensa quantidade de ouro e prata que reabasteceu além do suficiente os cofres vazios do tesouro romano. Havia, também, 297 um vasto estoque de cevada e trigo, quantidades de bronze e ferro, e todas as reservas necessárias para sustentar uma frota — bem como a frota em si. Dezoito navios de guerra cartagineses foram capturados e Cipião Africano arrolou muitos dos escravos para servirem como remadores. Sessenta e três navios mercantes com toda sua carga intacta também estavam no porto. Os romanos, indubitavelmente, estenderam seu controle das rotas marítimas do Mediterrâneo, e agora dominavam as regiões central e ocidental, bem como o Adriático e o Jônio. Entre a extensa quantidade de material de guerra que caiu em mãos romanas achavam-se cerca de cem catapultas de tipo grande, bem como instrumentos de arremesso de rochas e arpões, além de todo o equipamento para um grande comboio de sítio — aquilo que havia faltado para Aníbal em todos os seus anos na Itália e que os cartagineses nunca foram capazes de transportar através do mar dominado pelos romanos. Cipião Africano tirou bom proveito político dos reféns espanhóis tomados em Cartagena como garantia para um bom 298 comportamento de suas tribos. "Aprendendo os nomes de seus Estados, ele fez uma lista dos cativos, mostrando quantos pertenciam a quais povos, e enviou mensageiros aos seus lares, propondo que cada homem viesse e recuperasse seus próprios filhos. Se acontecesse de embaixadores de quaisquer Estados se encontrarem lá, os reféns seriam devolvidos diretamente a eles". Quando a cunhada de Indíbilis, príncipe da importante Ilergetes, caiu em prantos a seus pés suplicando que garantisse a segurança de suas lindas e jovens filhas, Cipião Africano "confiou-as a um homem de comprovada integridade" e ordenou que ele as protegesse como a si mesmo. "Então", prossegue Lívio, "foi trazida a ele uma donzela de tal beleza que, onde quer que ela fosse, atraía os olhares de todos".[37] Os companheiros oficiais de Cipião Africano sabiam muito bem o quanto ele era afeiçoado às mulheres e pensaram que lhe estavam dando um presente mais do que adequado. Cipião Africano, contudo, não se esquecera de que era não somente o conquistador de Cartagena, mas também o homem de quem dependia a futura política dos novos 299 interesses de Roma na Hispânia. Tendo inquirido sobre o parentesco da jovem e descoberto que ela estava prometida a um jovem celtibero de certa importância, ele o convocou à sua presença e confiou a ele sua futura noiva, esclarecendo que não queria qualquer agradecimento, mas que o jovem deveria ser um amigo do povo romano. Os pais dela, entretanto, pensando resgatá-la, trouxeram para Cipião Africanouma grande quantidade de ouro: ele, por sua vez, deu o ouro ao jovem nobre como presente de casamento. Esta, e outras ações semelhantes, contribuíram em grande parte para assegurar a transferência aos romanos da lealdade das tribos que, até então, tinham fornecido tantos dos homens do exército cartaginês. Grandes levas de tribos que serviam no exército de Asdrúbal Barca desertaram dos cartagineses ao longo dos meses que se seguiram. Tendo mostrado sua habilidade como general e estadista, Cipião Africano voltou-se para os aspectos práticos imediatos da guerra. Observara na Itália e na Hispânia as vantagens da espada ibérica, que poderia ser usada tanto para 300 cortar como para perfurar, sobre os gládios romanos, adequados principalmente para perfurar. Durante aquele inverno, enquanto as armarias de Cartagena ressoavam com batidas de martelos, Cipião Africano exercitava as legiões em táticas mais flexíveis do que o velho ataque frontal romano, que contava em demasia com o peso abrupto das legiões. Ele presenciara o fracasso em Canas. Ao mesmo tempo, não negligenciou a frota, e os remadores e marinheiros eram exercitados regularmente em batalhas simuladas sempre que o clima permitia. A morte dos cônsules Dez anos se passaram desde que Aníbal assolara a Itália para desmantelar os exércitos romanos e fazer com que as primeiras dúvidas surgissem entre seus aliados sobre Roma ser a senhora e futura governante do Mediterrâneo. Por volta de 208 a.C., contudo, com o ímpeto de seu assalto há muito passado e as rachaduras na confederação latina consertadas, Aníbal vislumbrava um cenário muito diferente. 301 Cápua estava perdida, e Tarento também. As cidades no Sâmnio e na Campânia que haviam abjurado da aliança romana voltando-se para o que parecia ser a estrela nascente de Cartago estavam agora renegando-a, e muitas outras começavam a pensar em seguir seu exemplo, porque observavam a maneira como Roma punia qualquer desertor. Aníbal não tinha portos dignos do nome para manter ligações marítimas com Cartago, e a importantíssima Ilha da Sicília estava irreversivelmente perdida. A Sardenha nunca conseguira se libertar de Roma e todas as proximidades da Itália estavam vigiadas e guardadas por vitoriosas frotas romanas. Filipe V da Macedônia, quase convencido, após Canas, de que valeria a pena desembarcar assistência aos conquistadores cartagineses, logo se lembrou do controle romano do Adriático. (Ele estava agora engajado na Grécia contra os etolianos que, com o apoio de Roma, iriam mante-lo ocupado em casa até que a ameaça de Aníbal estivesse acabada.) Aníbal certamente não obteria qualquer conforto das notícias vindas da Espanha, onde seu irmão Asdrúbal seria batido em Bécula naquele ano pelo jovem 302 Cipião Africano. Ele tinha pouco para sustentá-lo e às suas tropas, além do reconhecimento de que ainda estava na Itália após tantos anos — e ainda não fora derrotado. Ainda assim, o ano de 208 a.C., que deve ter parecido sinistro para os cartagineses, iria se encerrar com uma extraordinária inversão na sorte romana. Os cônsules para o ano de 208 a.C. eram o duro e velho soldado Marcelo, agora no seu quinto mandato, e Tito Quíncio Crispino, que tinha sido o braço direito de Marcelo na captura de Siracusa. Cada um estava no comando de duas legiões. Crispino iniciou as campanhas daquele ano com ataque a Lócris Epicefíria, um dos poucos portos ainda nas mãos de Aníbal, no sul, onde ele ainda poderia esperar reforços pelo mar, vindos de Cartago. Forçado a desistir do sítio por Aníbal, recuou para o norte até a cidade de Venúsia, onde ele e Marcelo acamparam com os seus exércitos separados apenas por poucas milhas. Disposto a trazê-los para a batalha se, como ele tinha motivos para suspeitar, os romanos tivessem recobrado suficientemente sua coragem para 303 enfrentá-lo em campo aberto, Aníbal dirigiu-se a norte deles. Em seu caminho, soube que uma legião de Tarento tinha sido enviada para marchar até Lócris e recomeçar o sítio, com a esperança de capturar a cidade-porto em sua ausência. Ele armou uma típica armadilha anibálica abaixo da colina de mil pés de altura de Petélia, ocultando seus cavaleiros e infantaria de cada lado da estrada — o tipo de laço no qual ele antes havia esperado pegar as tropas de Quinto Fábio Máximo. Os romanos, presumindo que Aníbal estava distante ao norte, avançaram descuidadamente e sem quaisquer batedores à frente, e aprenderam a lição que já deveria há muito ter sido absorvida por todos os comandantes inteligentes: "Nunca subestimar o cartaginês". A armadilha foi acionada; dois mil romanos foram mortos, mil e quinhentos aprisionados; o restante fugiu de volta para Tarento, felizes ao ver os portões da cidade abertos para deixá-los entrar. Quando Aníbal finalmente chegou a uma posição não muito distante de Venúsia e dos exércitos romanos, armou 304 acampamento e preparou-se para o que prometia ser um duro combate. Como narra Lívio, "ambos os cônsules estavam com um espírito feroz e saíam diariamente pela linha de batalha com a esperança certa de que, se o inimigo viesse a arriscar uma batalha, com dois exércitos consulares unidos, seria possível finalizar a guerra".[37] Entre os dois exércitos ficava uma pequena colina coberta de vegetação que os romanos, posicionados muito antes da chegada de Aníbal, certamente deviam ter tomado. O mestre da guerra não perdeu tempo; durante a noite, enviou um número de esquadrões da cavalaria númida para verem se a colina estava ocupada e, se não, se esconderem lá e permanecerem sem qualquer movimentação durante as horas de luz do dia. Decidira que, por seu formato e tamanho, a colina era mais adequada para alguma forma de emboscada do que para um acampamento do exército. Como de costume, seu modo de pensar deixou-o um passo à frente do oponente. "No acampamento romano", escreve Lívio, "havia um clamor geral de que a colina devia ser ocupada e defendida por 305 um forte, de modo que eles não tivessem o inimigo sobre seus pescoços, o que aconteceria se a colina fosse ocupada por Aníbal".[37] Não sabendo o que já havia acontecido à legião saída de Tarento, nem que as tropas de Aníbal estavam cheias de disposição e confiança, e nem lembrando, pelos fatos passados, que somente os ignorantes e tolos tratariam a presença de Aníbal sem o devido cuidado, Marcelo e seu companheiro cônsul Crispino decidiram sair a cavalo e dar pessoalmente uma olhada na colina. Talvez as notícias da Espanha e a situação geral do Mediterrâneo tenham insuflado neles uma descuidada confiança. Levando não mais do que duzentos e vinte cavaleiros com eles, junto com uns poucos homens de infantaria e alguns oficiais da equipe, inclusive Marco Marcelo, filho do cônsul, eles cavalgaram para fora do campo. Quando deixaram o acampamento, Marcelo deu ordens para que os soldados ficassem preparados e, se a colina fosse considerada adequada para o estabelecimento de um acampamento ou posto de observação, deveriam deslocar-se para lá imediatamente. O sinal para que fizessem isso jamais viria. 306 Os númidas, esperando poder capturar uns poucos homens que saíssem em busca de forragem ou lenha, ficaram atónitos ao verem os mantos militares vermelhos e as brilhantes armaduras de oficiais graduados movendo-se através da pequena planície na sua direção e adentrando as rudes escarpas. Imaculadamente disciplinados, esperaram até que todo o grupo estivesse ao seu alcance e, então, como sombras à retaguarda dos romanos e nos seus flancos, os cavaleiros da África do Norte fizeram seu movimento. "Aqueles que, de frente para o inimigo, teriam de irromper da encosta não se mostraram antes que os que isolariam a estrada em sua retaguarda voltassem para os flancos do inimigo. Então, surgiram ao mesmo tempo, de todos os lados e, com um grande brado, fizeram seu ataque". Marcelo foi quase de imediato atingido por uma lança e caiu morto de seu cavalo; Crispino, ferido por duas azagaias, conseguiu escapar, enquanto o jovem filho de Marcelo, também ferido, juntou-se a ele na fuga dos sobreviventes — uns poucos oficiais da equipe e um punhado de 307 cavaleiros etruscos que parecem ter tido pouca coragem para o confronto. O súbito alarido vindo da colina colocou ambos os exércitos em alerta, sendo os romanos os primeiros a saber de seus ensanguentados sobreviventes o que acontecera naquele dia ensolarado de verão. Aníbal, tão logo soube das notícias por um dos númidas, moveu seu exército adiante e ocupou a colina. Ele próprio cavalgou pelos arbustos até encontrar o corpo de Marcelo; cremou-o com as devidas honras e enviou as cinzas para o filho do falecido em uma urna de prata. Ele havia respeitado Marcelo como oponente enquanto estava vivo e prestoulhe, depois de morto, como sempre foi de seu costume para com oponentes abatidos, os sinais de respeito devidos a um homem digno de honra. Enquanto Crispino, seriamente ferido, encarregava-se dos exércitos consulares e deslocava-se pelas montanhas "para um lugar alto que fosse seguro de todos os lados", Aníbal cogitava seu próximo movimento. Ele tinha agora, em seu poder, o anel do cônsul morto: seu selo e 308 autoridade para qualquer mensagem enviada. Aníbal imediatamente pensou em Salápia na costa adriática da Apúlia; Salápia, que havia rompido sua aliança cartaginesa e se bandeado para Roma. Ele precisava de uma guarnição segura na costa leste, já que aparentemente soube que Asdrúbal, seu irmão na Hispânia, pretendia a qualquer momento cruzar os Alpes e juntar-se a ele para uma investida final contra Roma. Os acontecimentos daquele ano iriam confirmar o pessimismo de Asdrúbal quanto à posição cartaginesa na Espanha e ele via claramente que somente uma combinação de Aníbal com ele próprio, e seus dois exércitos, um cheio de sangue novo e ávido por conquistas, outro talhado pela experiência, poderiam salvar Cartago por meio de um ataque direto ao coração de Roma. Para Salápia, então, Aníbal enviou um mensageiro com a autenticação do selo de Marcelo dizendo que este chegaria na noite seguinte e que os portões da cidade deveriam ser abertos para recebê-lo. Era um artifício engenhoso e poderia ter funcionado, não fosse o fato de Crispino, mesmo estando à morte, ter-se antecipado 309 a ele e enviado mensageiros para todas as cidades próximas dizendo que Marcelo estava morto, e que não se confiasse em qualquer mensagem que ostentasse o seu selo. Os homens de Salápia enviaram de volta o mensageiro de Aníbal, um desertor romano, dizendo que tudo estaria preparado para Marcelo quando ele chegasse. Quando Aníbal aproximou-se de Salápia à noite, enviou adiante um grupo avançado de desertores romanos, todos falando latim e portando armas romanas, marchando como os legionários que haviam sido um dia, de modo a convencer o povo de Salápia de que o cônsul estava chegando. As sentinelas dos portões, ouvindo seu chamado, fingiram estar preparadas para darem as boas-vindas e levantaram a porta de grade levadiça. Mas quando várias centenas dos desertores haviam adentrado a cidade, a porta de grade fechou-se atrás deles e o grupo avançado foi massacrado. Derrotado pela primeira vez por uma inteligência tão aguçada quanto a sua própria, Aníbal abandonou a tentativa de tomar a cidade para a esperada chegada de seu irmão e retirou-se para o sul. Tinha 310 descoberto que Lócris estava novamente sitiada e era muito importante para ele manter aquela linha de comunicação com Cartago aberta. A sempre versátil cavalaria númida chegou à frente das colunas de Aníbal em marcha, surpreendeu o exército romano que fazia o sítio pela retaguarda, e Lócris foi salva. Tito Quíncio Crispino morreu pouco tempo depois devido aos ferimentos recebidos naquela emboscada fatal na colina. "Assim, dois cônsules — e isso nunca acontecera numa guerra anterior — perdendo a vida sem ser numa batalha notável, haviam deixado o Estado, por assim dizer, despojado". Em Trasimeno e em Canas, Aníbal matara um dos cônsules então no cargo, e já havia matado muitos generais romanos, cavaleiros, inúmeros oficiais de Estado-Maior e outros valorosos cidadãos de Roma. Mas agora, no ano que parecia ter iniciado com a mais tenebrosa das perspectivas, ainda cavalgava pela paisagem da Itália — uma figura implacável, vingadora, que os romanos nunca haviam derrotado. 311 Cipião e Asdrúbal na Hispânia[editar | editar código-fonte] Do outro lado do Mediterrâneo, na península Ibérica, seu irmão Asdrúbal, ávido para reunir-se a Aníbal na Itália há vários anos, teve sua escolha resolvida por ele. Se vacilara, no passado, dividido entre a necessidade de preservar o império cartaginês e auxiliar no ataque de Aníbal, agora receberia o golpe que traria a decisão. Em Bécula, guardando as importantíssimas minas de prata de Cástulo, Asdrúbal foi colocado em apuros por Cipião. A guerra anibálica, como todas as outras, girava em torno de metais e dinheiro — metais para os materiais de guerra e dinheiro para manter as tropas em campo e pagar pelo apoio dos aliados. Amílcar havia fundado seu império ibérico para reabastecer os cofres de Cartago depois da desastrosa paz que se seguiu à Primeira Guerra Púnica, e foi a riqueza mineral da península Ibérica o que encorajara Cartago a apoiar a assombrosa aventura de Aníbal contra o Estado romano. A última batalha de Asdrúbal na Hispânia foi significativa pelo fato de que ele foi derrotado pela utilização, por Cipião Africano, de uma tática de 312 aproximação na qual nenhum outro comandante romano no passado teria pensado, e possivelmente nem mesmo o próprio Cipião Africano, se ele não tivesse estado presente em Canas. Asdrúbal se posicionara abaixo da cidade de Bécula, numa cordilheira que tinha um pequeno rio abaixo dela. Para chegar até o inimigo, Cipião Africano teria que vencer o rio e então fazer um ataque frontal subindo por uma escarpa: duas desvantagens que comandantes romanos anteriores teriam enfrentado, contando com o peso das legiões para abrir caminho através das defesas do inimigo. Contudo, Cipião Africano tinha observado que, em qualquer dos lados do platô, havia valas secas descendo desde o topo. Depois de suas tropas cruzarem o rio, subitamente deslocou o peso principal de seu ataque, enviando uma grande corporação de tropas leves escarpa acima para enfrentar o inimigo de frente, enquanto ele e seu segundo-no-comando levavam as legiões pesadamente armadas pelas valas de ambos os lados. Ao fazer isso, imitou Aníbal em Canas, com suas tropas ligeiras e aliados espanhóis retendo o choque no 313 centro, enquanto seus veteranos armados com armas pesadas cerravam fileiras nos flancos para a matança. "E não mais", escreve Lívio,[37] "restou espaço aberto, nem mesmo para fuga (…) a entrada do acampamento foi obstruída pela fuga do general e oficiais-chefes e, mais ainda, pelo pânico dos elefantes, aos quais, quando apavorados, eles temiam muito mais do que ao inimigo. Cerca de oito mil homens foram mortos". Restou o fato de que Asdrúbal, colocado à prova em muitos campos de batalha, conseguiu evadir-se com o núcleo principal de seu exército — todas as suas tropas pesadas, assim como a cavalaria e também trinta e dois elefantes. Como o próprio Aníbal, e como Cipião Africano, ele era impiedoso no sacrifício de suas tropas locais quando chegava à ação principal. E para Asdrúbal, tendo decidido que a Espanha deveria ser finalmente abandonada, mesmo que apenas a curto prazo —o mais importante ato seria deslocar suas forças para a Itália. Asdrúbal parte para a Itália No outono de 208 a.C., Asdrúbal levou suas tropas pela Gália, tendo escapado dos 314 romanos na Hispânia oriental seguindo os vales altos do Tejo e do Ebro. A fama subsequente de Cipião Africano parece ter obscurecido o fato de que ele deixara Aníbal escapar e, em consequência, permitiu que seu país ficasse mais exposto ao perigo do que em qualquer outra ocasião desde que Aníbal cruzara os Alpes. Ele deve ter sabido — pois os rumores haviam se espalhado aos quatro ventos — que o objetivo de Asdrúbal era deixar a Hispânia e cooperar com seu irmão na Itália: o primeiro objetivo do general romano, consequentemente, deve ter sido certificar-se de que Asdrúbal não o enganaria; se não estava suficientemente forte para atacar o inimigo, certamente deveria ter encalçado seu avanço para os Pirenéus e não tê-lo deixado chegar à Gália intacto e sem ser vigiado. Ele não fez nada parecido; cometeu um imenso engano e simplesmente não é verdade que tenha sido obrigado a confrontar os cartagineses com grande força no Ebro, pois Magão e Asdrúbal Gisgão, quando Asdrúbal partiu, deslocaram-se, o primeiro para as Ilhas Baleares e o outro 315 para Portugal, centenas de milhas distante; eles eram claramente incapazes de enfrentar os romanos na Hispânia. — O'Connor Morris[41] É uma infelicidade que nossos estudiosos antigos não tenham comentado mais aprofundadamente essa marcha feita por Asdrúbal, a segunda maior realizada pela "ninhada do leão", os filhos de Amílcar, que por tanto tempo ameaçaram e aterrorizaram Roma. Foi uma jornada épica digna de seu irmão. Escapando de Cipião Africano, deixou os romanos vigiando em vão os desfiladeiros dos Pirenéus enquanto ele, a sua infantaria cartaginesa, os iberos, a cavalaria númida e os laboriosos elefantes africanos moviam-se a oeste, passando pela baía de Biscaia e o grande oceano acinzentado que poucos homens mediterrâneos jamais haviam visto. Antes de partir para a Gália reuniu-se com Magão, e este seu irmão mais jovem foi para as Baleares a fim de levantar uma força daqueles formidáveis "fundibulários" que mais tarde cruzariam o mar rumo à Itália. Os três filhos de Amílcar Barca, assim foi planejado, iriam então encontrar-se pela primeira vez em muitos anos e executar a vingança sobre 316 Roma que os votos feitos ao seu pai e aos enfumaçados altares de Cartago há muito demandavam. Aníbal e Asdrúbal sabiam que, com sua situação em declínio na Hispânia, o ano de 207 a.C. deveria ser decisivo na guerra contra Roma. Somente pela união de seus exércitos e a total derrota dos romanos — algo mais devastador até mesmo do que em Canas — poderia ser atingido o objetivo da longa guerra. Desde o início, o grande empreendimento iria mostrar-se arriscado e, numa posterior reflexão, quase impossível. Comandando o centro da Itália, os romanos tinham o benefício de linhas internas de comunicação e eram capazes de posicionar suas forças de modo que uma parte mantivesse os olhos sobre Aníbal ao sul enquanto a outra vigiasse o norte e a esperada chegada de Asdrúbal. Naqueles dias de comunicações primitivas, o grande obstáculo entre os dois irmãos era a extensão territorial da Itália. Asdrúbal invernou na Gália, bem ao oeste, onde não havia qualquer amigo de Roma ou de Massala, e então provavelmente cruzou o rio Ródano comodamente acima, 317 perto de Lyon. Embora não fosse segredo que Asdrúbal pretendia reunir-se ao seu irmão na Itália, nenhuma tentativa, em qualquer caso, poderia ser feita para detêlo, uma vez que ele tivesse cruzado os Pirenéus e penetrado na Gália. Massala era distante e os chefes gauleses estavam como nunca hostis a Roma. Segundo Lívio, apesar de Asdrúbal ter escapado de Bécula com não mais do que quinze mil homens é provável que ele tenha chegado aos Alpes com quase o dobro desse número.[37] Aníbal, bem distante ao sul, devia ser capaz de reunir um exército de quarenta a cinquenta mil homens, a maioria, porém, de tropas de qualidade bem baixa. Na primavera de 207 a.C., assim que a neve derreteu, Asdrúbal partiu: ele não demorou nem um pouco, como seu irmão havia feito, e nem aparentemente foi incomodado por tribos hostis. Cruzando o território do Arverno seguiu provavelmente o curso do rio Isère e quase certamente não tomou a difícil rota seguida por Aníbal. Tanto Lívio quanto Apiano afirmam que ele o fez,[37] mas parece muito improvável, uma vez que a 318 bacia do Isère segue pelo desfiladeiro do monte Cenis e o historiador romano Caio Terêncio Varrão parece, sem dúvida, descrever o desfiladeiro de Asdrúbal como sendo distinto do de Aníbal, e ao norte dele. O Passo do Monte Cenis corresponde perfeitamente à descrição, e a ideia de que Asdrúbal tenha seguido as pegadas do irmão não é mais do que metáfora. Em todo caso, como Lívio aponta, as tribos alpinas que antes pensaram ter Aníbal intenções quanto ao seu pobre território já haviam tomado conhecimento da "Guerra Púnica, devido à qual a Itália estivera em chamas por onze anos, e perceberam que os Alpes não eram mais do que uma rota entre duas poderosíssimas cidades em guerra uma com a outra (…)". 37 Logo, não havia motivos para atacarem os cartagineses em marcha, nem enganá-los com informações que poderiam levá-los a altos e traiçoeiros desfiladeiros. Asdrúbal rumou para a Itália no tempo exato de um ano, com uma segurança que se traduz pelo fato de nenhum contratempo ter sido atribuído à sua expedição. Os romanos estavam bem cientes de que aquele ano era crucial. A República 319 Romana fortaleceu-se e, sem dúvida, revestiu-se de tão nobre disposição que, mesmo após gerações, isso foi rememorado como inspiração. Embora a notícia de que Asdrúbal estava em marcha tenha produzido cenas em Roma remanescentes do pânico inspirado por Aníbal nos primeiros estágios da guerra, o Senado nunca hesitou em tomar medidas sábias e sensíveis para defender o Estado. Os homens já estavam então acostumados com a guerra, enrijecidos e treinados a ponto de enfrentarem todas as vicissitudes. Em alguns aspectos, também poderiam confortar-se com a situação geral: Cipião Africano, indubitavelmente, obtivera a vantagem na Espanha; não havia ameaça na Sardenha, e a guerra na Sicília havia finalizado satisfatoriamente. O aliado inativo de Aníbal, Filipe V da Macedônia, permanecia na defensiva na Grécia e preparava-se para negociar a paz; por todo o mar Mediterrâneo, a marinha romana navegava triunfante. Os aliados romanos farejaram a mudança dos ventos, e aqueles que antes haviam se mostrado covardes ou traiçoeiros agora tinham aprendido a lição. Logo, era com alguma confiança que, a despeito da dupla ameaça 320 de Aníbal e Asdrúbal, os romanos encaravam aquele ano. Prova disso, e de seu poderio humano disponível, é dada pelo fato de que não menos de vinte e três legiões tinham sido recrutadas. Dessas, somente oito foram requisitadas para serviço fora do país: duas na Sicília, duas na Sardenha e quatro na Hispânia. As quinze restantes ficaram todas na Itália, representando setenta e cinco mil cidadãos romanos aos quais se somava uma igual quantidade de aliados. Não é surpresa, contudo, Lívio observar que o número de jovens aptos para o serviço estivesse começando a decair.[37] Mais difícil do que reunir tropas era encontrar homens para comandá-las. Quinto Fábio Máximo estava agora muito velho e Marcelo, a "Espada de Roma", morto. As perdas sofridas através dos anos, e particularmente em Canas, eram por demais perceptíveis nas fileiras dos líderes de Roma. Após muito debate, Cláudio Nero e Marco Lívio foram finalmente eleitos cônsules, o primeiro assumindo o comando do exército do sul frente a Aníbal em Venúsia, e o outro o comando do exército do norte em Sena 321 Gálica, na costa adriática. Fúlvio Flaco, vitorioso em Cápua, apoiou Nero com um exército no Brútio, e um outro exército estava em Tarento. No norte, Lúcio Pórcio Licino comandava um exército na Gália Cisalpina, enquanto Caio Terêncio Varrão (ainda popular junto ao povo, apesar de tudo) detinha a instável região da Etrúria. No começo daquela primavera, Asdrúbal rumou para o sul, quase certamente antes do esperado. Se o exército que ele trouxe consigo da Hispânia não estava exausto como o de Aníbal, nem necessitando do mesmo tempo para descanso, também não era da mesma qualidade nem tão forte naquela arma que havia causado tanto estrago aos romanos, a soberba cavalaria da África do Norte. Mesmo assim, reforçado por vários milhares de lígures que haviam se juntado a ele, e agitando uma vez mais o espírito rebelde dos gauleses cisalpinos, Asdrúbal movia-se como uma tenebrosa nuvem de tempestade pela terra da Itália. Cruzando o rio Pó e transpondo o desfiladeiro de Estradela, ele marchou contra Placência. Ali hesitou e perdeu tempo, demorando para sitiar a colónia fiel aos romanos que fechara os portões diante dele, tendo notado que, 322 como Aníbal, ele não possuía equipamentos para executar um sítio. Asdrúbal tem sido criticado, por alguns historiadores, por se demorar em Placência, ao invés de contorná-la e marchar adiante para se encontrar com seu irmão antes que os romanos pudessem concentrar todas as suas forças. Contudo, ele estava diante do fato de que Placência parecia ser uma guarnição forte demais para deixar em sua retaguarda e de que — talvez ainda mais importante — as tribos gaulesas locais demoraram para vir em seu favor. Ele precisava esperar até que número suficiente de lígures tivesse se juntado a ele e tantos gauleses quantos possíveis tivessem sido recrutados. Finalmente, desviando de Placência, ele marchou pelo caminho de Arímino rumo à costa oriental. Pórcio, que não tinha tropas suficientes para resistir a ele, retirou-se. Tais foram os lances iniciais daquela primavera no norte. Aníbal, que tinha passado o inverno na Apúlia como de costume, foi primeiro para a Lucânia levantar mais tropas e então voltou para a sua fortificação no Brútio, sem dúvida para obter a maior quantidade 323 possível de reservas dessa região há tanto tempo fiel à sua causa. De acordo com Lívio, as tropas romanas de Tarento caíram sobre as suas levas enquanto eles estavam em marcha, e no combate que se seguiu ele perdeu cerca de quatro mil homens, com os sobrecarregados cartagineses sendo mortos pelos legionários livres de carga.[37] Enquanto isso, o cônsul Cláudio Nero, com um exército de quarenta e dois mil e quinhentos homens, deslocava-se de Venúsia para barrar a marcha de Aníbal do Brútio para a Lucânia. "Aníbal esperava", diz Lívio, "recuperar as cidades que haviam sucumbido pelo medo aos romanos",[37] mas também tinha que marchar para o norte de modo a encontrar-se com o irmão. A confusão dos movimentos cartagineses se devia às comunicações primitivas da época: Aníbal nada mais sabia além de que Asdrúbal deveria, naquela altura, ter cruzado os Alpes, e Asdrúbal, que já se encontrava na Itália, não sabia nada além de que Aníbal estava em algum lugar ao sul. Os romanos, por outro lado, trabalhando com suas linhas interiores de comunicações e sistemas de suprimentos, achavam-se 324 numa posição admirável para manter os dois inimigos separados e atacá-los um por vez com suas forças superiores. Em Grumento, na Lucânia, os exércitos de Nero e Aníbal se enfrentaram pela primeira vez, algo notável pelo fato de que o cônsul romano, "imitando as artimanhas de seu inimigo", escondeu parte de suas tropas atrás de uma colina de modo a cair sobre a retaguarda cartaginesa no momento adequado do confronto. Era nessas horas que Aníbal sentia a necessidade de suas treinadas tropas púnicas e iberas e cavaleiros númidas, que nunca chegaram a ele de Cartago. Seu agrupamento, forças semitreinadas — superadas numericamente pelos romanos — não foram páreo para as disciplinadas legiões de Nero. Ainda mais, foi a utilização pelo cônsul do estilo tático próprio de Aníbal, embora desdenhado como "não romano" por Lívio,[37] que lhe assegurou a vitória. Aníbal perdeu, como nos é dito, nove mil homens, nove estandartes e seis elefantes. Ainda assim, não parece ter sido um combate decisivo, pois, ao invés de retroceder, Aníbal continuou sua marcha 325 para o norte em direção a Canúsio, na Apúlia, e é significativo que Nero, enquanto o perseguia, era incapaz de impedir que ele se movimentasse quando e como lhe conviesse. Batalha de Metauro A Batalha do Metauro, travada em 207 a.C., próximo ao rio Metauro, na região italiana das Marcas, foi uma batalha da Segunda Guerra Púnica, na qual o comandante cartaginês Asdrúbal, irmão de Aníbal, foi derrotado e morto pelos exércitos romanos combinados dos cônsules Marco Lívio Salinator (que posteriormente receberia o cognome de Salinator, e Caio Cláudio Nero. Após Metauro Com a morte de seu irmão, Aníbal perdera a última esperança de derrotar Roma. A cabeça decepada significava o fim do bravo empenho para colocar o maior poderio militar do Mediterrâneo de joelhos por meio de um ataque ao coração da terra romana. Pela primeira vez em doze anos, Aníbal tinha perdido a iniciativa na guerra. Retrocedeu para o Brútio (atual Calábria), região selvagem e montanhosa 326 da qual havia retirado a maioria de seus recrutas nos últimos anos e onde ainda detinha os dois pequenos portos de Crotona e Lócris Epicefíria. A tentação de retornar a Cartago deve ter sido quase irresistível, pois Aníbal podia ver que a perda de Asdrúbal e seu exército significava que a guerra na Itália estava chegando ao fim. Sabia, também, que a península Ibérica provavelmente sairia do controle cartaginês, e que o golpe seguinte dos romanos após aquele seria a invasão da terra natal cartaginesa. Ao mesmo tempo, evidentemente concluiu que a sua presença na Itália, mesmo que enfraquecido e com seu exército praticamente ineficaz, restringiria muitas legiões e evitaria que os romanos concen-' trassem seu poder e sua frota em um ataque à própria Cartago. Deveria permanecer onde estava, representando uma permanente ameaça a Roma. A notícia da batalha do rio Metauro foi recebida com uma alegria que a cidade não havia conhecido em todos aqueles longos anos. Era, como observa o poeta Horácio, o primeiro dia, desde que Aníbal irrompera dos Alpes, em que a vitória sorria para o povo romano. Ambos os 327 cônsules foram recebidos em triunfo, com maior aclamação merecidamente dada a Cláudio Nero do que a seu companheiro, pois estava claro que sua iniciativa e brilhante decisão — em desobediência a todas as regras e regulamentos — havia lhes proporcionado uma vitória de imensas consequências. A ameaça a Roma estava eliminada e já se tinha evidenciado que Aníbal, por si só, embora general inigualável, não possuía homens ou equipamento para colocar a cidade em perigo. Quatro legiões foram desmobilizadas e nenhuma outra ação realizada naquele ano, a não ser manter vigilância e guarda sobre o cartaginês em sua toca na Calábria. Filipe V da Macedônia, sentindo que a cortina descia sobre o grande empreendimento anibálico, acertou a paz com os etolianos, encerrando, assim, sua curta e trabalhosa aliança com o cartaginês. O ano de 206 a.C. não viu maiores operações na Itália, e os dois cônsules, Quinto Metelo e Lúcio Filo, contentaramse em manter Aníbal encurralado na Calábria. O centro principal da guerra encontrava-se agora na Hispânia, onde 328 Cipião Africano continuava a demonstrar seu costumeiro brilhantismo, derrotando decisivamente o irmão mais novo de Aníbal, Magão, e Asdrúbal Gisgão em Bécula. Na guerra anterior, outros exércitos sob o comando de Hanão e Magão haviam sido vencidos e estava claro que a Hispânia inteira, todo aquele império cartaginês fundado por Amílcar, fugia do seu domínio. Isso ficou bastante evidente para os próprios iberos e celtiberos, que rapidamente se aliaram quase todos à causa romana. Para os que resistiram, assim como o poderoso chefe tribal Indíbilis, a reação romana foi rápida e sangrenta. Cidades fortificadas, como Áspata e Ilirúrgia, foram destruídas, tribos que haviam conspirado contra o pai e o tio de Cipião foram dizimadas, e Cástulo, a fortaleza onde se diz que Aníbal, muitos anos antes, encontrara uma esposa, rendeu-se às máquinas de sítio e espadas romanas. As ações de Cipião Africano na Hispânia anteciparam a posterior história do Império Romano (que ele tanto ajudou a fundar) como "sendo misericordioso para com os derrotados, porém massacrando os 329 revoltosos". Sua disciplina não foi aplicada somente às tribos selvagens da Hispânia, pois quando irrompeu um motim em uma de suas legiões, este foi esmagado com igual rigor, e seus líderes prontamente aniquilados. Em breve ficaria claro que, com a partida de Asdrúbal para a Itália a fim de se juntar ao seu irmão, a mão unificadora cartaginesa na Hispânia havia sido retirada. A perda do controle cartaginês sobre o país aconteceu ainda mais rapidamente do que sua imposição. Somente Gades (atual Cádis) permanecia como um último posto avançado do poder cartaginês e, antes do fim de 206 a.C., mesmo esse antigo posto de trocas dos povos púnicos preparava-se para dar as boas-vindas aos romanos. Embora isso tenha ocorrido muitos anos antes que todas as tribos da selvagem e montanhosa península Ibérica fossem pacificadas (um eufemismo para a espada), toda a Hispânia, com efeito, estava em mãos romanas. Após cerca de trinta anos, o domínio estabelecido pela família Barca chegara ao fim. Ainda que Aníbal permanecesse na Itália por mais três anos e nunca fosse derrotado 330 em solo italiano, agora se encontrava privado da base de onde havia partido para sua longa marcha. Além disso ele e seu país perderam a prata e a riqueza mineral da península Ibérica, e mesmo o material humano que abastecera sua gigantesca aventura. Descobriria que a estratégia usada contra os romanos quando ele havia decidido invadir o país seria voltada contra os cartagineses. Todo o tempo Cipião Africano percebera que privar o inimigo de sua fonte de poder era a melhor maneira de derrotá-lo, e tinha atingido seu primeiro objetivo com o sucesso na Hispânia. Ele agora se preparava para seu segundo objetivo — a África. Lívio escreve que Cipião Africano "considerou a conquista da Hispânia algo insignificante comparado com tudo o que imaginava em suas magnânimas esperanças. Seus olhos já estavam sobre a África e a grande Cartago, e para a glória de tamanha guerra (…)". 37 Sua política não ficou sem oposição no Senado e está claro que havia dois partidos principais no debate: um pressionando pela paz primeiro na Itália e pela remoção de 331 Aníbal; e o outro para que se levasse a guerra mar afora. Os fabianos, liderados pelo filho do velho ditador, eram a favor de uma política italiana — colocando sua própria casa em ordem antes de estender a guerra — enquanto Cipião Africano era pela expansão. Seu pai e seu tio haviam morrido na Espanha, e ele finalmente conseguira conquistá-la, mas olhando mais adiante considerava a conquista da África mediterrânea. A maioria do Senado foi contra ele. Naquele décimo terceiro ano da guerra, o país inteiro achava-se exausto, suas terras devastadas, seu poderio humano definhando, e cada cidadão e aliado cambaleava sob uma intolerável carga de impostos. A razão pela qual Cipião Africano conseguiu êxito em seu ambicioso plano foi que seu triunfante retorno a Roma, precedido por centenas de libras de prata e muitos nobres cativos como evidência de seu sucesso, obscureceu os argumentos de seus oponentes. Numa onda de entusiasmo popular ele foi eleito para um mandato consular para o ano de 205 a.C.. Em todo caso, ele já havia começado a fazer sondagens na África, antecipando, assim, a reação dos oponentes. 332 Cipião propõe invadir a África Alguns meses antes de seu retorno a Roma, confiante de que tudo estava terminado na Hispânia, Cipião Africano cruzara rumo à África para encontrar Sífax, o rei númida, com a intenção de trazê-lo a uma aliança com Roma contra Cartago. No porto de Cirta (Constantina), vizinho ao território cartaginês, Cipião Africano encontrou navios de guerra inimigos e ninguém menos que Asdrúbal Gisgão, o qual, junto com filho de Amílcar, Magão, havia recentemente travado combate com ele. Foi um estranho encontro (possivelmente engendrado pelo ardiloso rei númida), mas, uma vez que aconteceu em território neutro, não havia a possibilidade de qualquer demonstração de hostilidade entre os visitantes romanos e cartagineses. Lívio escreve[37] que "para Sífax pareceu esplêndido — como certamente o era — que os generais dos dois povos mais ricos daquela época tivessem vindo no mesmo dia para pedirem sua paz e amizade". Ele convidou a ambos para jantar com ele, e "(…) na mesmíssima poltrona, assim 333 disposto pelo rei, Cipião Africano e Asdrúbal se sentaram. Além disso, tais eram as galantes maneiras de Cipião Africano, sua esperteza inata em enfrentar cada situação, que com seu modo eloquente de se portar conquistou não apenas a Sífax, o bárbaro ignorante das maneiras romanas, mas também o seu mais amargo inimigo. Asdrúbal mostrou claramente que, ao encontrá-lo face a face, Cipião Africano] pareceu-lhe ainda mais admirável do que em suas atividades na guerra, e que ele não duvidava de que Sífax e seu reino deveriam em breve estar em poder dos romanos; tal era a habilidade daquele homem em converter indivíduos à sua causa". Logicamente, o fato é que o inteligente númida perceberia a direção em que o vento soprava no Mediterrâneo. "Então, Cipião Africano, após fazer um tratado com Sífax, navegou para fora da África (…)" Durante aquele inverno, enquanto Cipião Africano era aclamado em Roma, o irmão de Aníbal, Magão, encontrava-se nas ilhas Baleares. Após realizar uma ousada, porém ineficaz, tentativa de capturar Nova Cartago, ele se desesperara com a situação 334 na Hispânia. Deixara Gades e levara a frota cartaginesa, antes de mais nada, para Pitiússa (Ibiza), uma velha colónia cartaginesa, pretendendo recrutar soldados de infantaria e os famosos fundibulários baleárides entre os ilhéus. Mesmo nessa tardia etapa da guerra, fica claro que Cartago não havia perdido a esperança de vencê-la na Itália. Magão havia recebido ordens de "contratar o maior número possível de jovens gauleses e lígures para se juntarem a Aníbal e não permitir que uma guerra, que havia começado com o maior vigor e ainda maior boa sorte, declinasse agora". O Senado em Cartago havia lhe enviado uma grande soma de dinheiro para esse propósito. A frota de Magão também foi abastecida com ouro e prata de Gades, onde saqueara os templos e o tesouro antes de partir. Havia pilhado até mesmo o famoso e imensamente rico templo de Melcarte, durante séculos, o último onde os marinheiros fenícios faziam as suas oferendas antes de suas jornadas pelo grande oceano. Um cartaginês, descendente dos fenícios fundadores daquele relicário sagrado há cerca de novecentos anos, profanando-o agora, 335 evidenciava o desespero que Magão e seus homens devem ter sentido com a perda da Espanha. Durante aquele inverno, embora repelido em Mallorca, Magão conseguiu recrutar cerca de doze mil soldados e dois mil cavaleiros em Minorca. Com essas tropas faria um ataque na costa lígure na primavera de 205 a.C., no decorrer do qual capturou as importantes cidades de Savo (Savona) e Genoa (Génova). Naquele estágio de complexidade da guerra anibálica, que envolvia todo o Mediterrâneo central e ocidental e todas as terras adjacentes, é relativamente fácil ver o objetivo de Cipião Africano|Cipião. Seu colega para o ano era Públio Lícino Crasso, a quem foi confiada a guarda sobre o Brútio e Aníbal, enquanto Cipião Africano ficou na província da Sicília com a previsão de que dali poderia cruzar para a África "se ele julgasse vantajoso para o Estado". Este, a despeito da objeção do partido fabiano a mais envolvimentos além-mar, era um claro convite para que levasse a guerra até as portas de Cartago, pois toda a Sicília estava agora tranquila e subserviente a Roma. Ao mesmo tempo, seus oponentes no Senado fizeram tudo o 336 que podiam para evitar que ele agisse — negando-lhe o direito de levar para alémmar quaisquer legiões da própria Itália por causa da ameaça do Brútio ("Onde está Aníbal, ali está o centro da guerra"). Foi deixado para o próprio arbítrio de Cipião Africano se ele levaria a guerra à África do Norte. Se fracassasse, seria considerado culpado de exceder-se em suas instruções. Enquanto é possível discenir os objetivos romanos naquela altura do longo conflito, é extremamente difícil entender os dos cartagineses. Não existem registros, e Lívio não poderia conhecê-los; Políbio — que bem pode tê-lo feito e é mais confiável como historiador — não pode ajudar, pois essa seção de sua história está perdida. As instruções para Magão avançar até a costa lígure após alistar um pequeno núcleo de um exército nas ilhas Baleares, e então seguir até a Gália Cisalpina alistando mais gauleses, como o fizera Asdrúbal, sugerem que algum tipo de operação duplicada estaria planejada — um voo do norte para juntar-se a Aníbal surgindo do sul. Por outro lado, embora pobres como eram as comunicações naqueles dias, seria 337 surpreendente se o Senado cartaginês não tivesse evidências suficientes de como essa estratégia havia fracassado com Asdrúbal. Eles certamente também devem ter sabido (já que havia espiões cartagineses em toda parte) que a Etrúria estava descontente e potencialmente pronta para uma rebelião contra seus antigos inimigos, os romanos. Se o irmão de Aníbal, Magão, pudesse levantar tropas suficientes entre os lígures e os gauleses cisalpinos para aumentar essa revolta etrusca — e então consolidála reunindo-se com os etruscos — Roma, com certeza, estaria ameaçada como nunca desde que Aníbal havia cruzado os Alpes. Em tal momento, Aníbal, deslocando-se do Brútio, revelaria o poder de sua estratégia contra os exércitos que o vigiavam no sul. Cartago e seus governantes (e eles, como Roma, sempre possuíam dois partidos conflitantes, um demandando a paz negociada e o outro a guerra) não falharam a Aníbal ou a Magão mesmo nessa hora tardia. No decorrer daquele ano de 205 a.C., dois grandes comboios foram despachados da África do Norte para a Itália, um destinado a Magão e 338 outro a Aníbal. Era uma evidência da capacidade de construção naval de Cartago que, mesmo depois da sua humilhação desde a Primeira Guerra Púnica, ainda podia enviar frotas para os mares. O comboio designado para reforçar Aníbal no sul jamais chegaria até ele: oitenta navios cartagineses foram capturados naquele verão quando navegavam através dos tranquilos mares da Sardenha. Uma vez mais os romanos mostravam sua superioridade naval e demonstravam o quanto eles compreendiam bem a importância do poderio naval. O comboio para Magão, contudo, alcançou-o e trouxe o reforço de vinte e cinco navios de guerra, seis mil homens de infantaria, oitocentos de cavalaria e sete elefantes. Ele também recebeu uma soma adicional de dinheiro para comprar os serviços de tropas mercenárias. Enquanto seu irmão reunia tropas no norte, Aníbal continuava retido e inativo no Brútio e pouco tomou parte nessa frente, exceto por esparsas pilhagens em território romano. A qualidade dos homens de Aníbal agora era tal que é 339 duvidoso que pudesse ter apresentado um exército capaz de um combate maior. Prova disso pode ser vista nas circunstâncias sob as quais ele perdera Lócris Epicefíria, um de seus dois únicos portos (e de longe o melhor), para um ataque marítimo lançado por Cipião Africano de sua base na Sicília. Embora Lócris estivesse tecnicamente fora de sua esfera de comando, Cipião Africano percebeu que seu companheiro cônsul ao norte não poderia nunca abrir caminho através do Brútio para capturar a cidade, e então sabiamente agiu por seu próprio julgamento. Três mil homens foram despachados do Régio sob o comando de um dos oficiais de Cipião Africano, Quinto Plemínio, para atacarem Lócris por terra, ao mesmo tempo que — da maneira usual — um grupo de dissidentes dentro da cidade se preparava para traí-la. O pequeno porto de Lócris ficava protegido entre duas elevações, ambas defendidas por cidadelas. Os romanos conseguiram tomar uma delas, enquanto os cartagineses recuavam para dentro da outra. Ao ouvir as notícias, Aníbal imediatamente marchou do norte, mandando antes dizer aos cartagineses 340 que saíssem com ferocidade assim que vissem seu exército se aproximando. Cipião Africano, prevendo que Aníbal se deslocaria para o resgate da cidade, veio por mar de Messina na Sicília e desembarcou tropas, que esperaram na cidade até que o exército cartaginês fosse avistado. Ao invés de ser recebido pela guarnição cartaginesa, Aníbal encontrou uma frota romana no porto, tropas revigoradas e prontas para a batalha. Sua confiança em Lócris foi frustrada, e suas tropas inexperientes foram batidas em um primeiro confronto. Nada mais lhe restava a não ser retroceder. Havia perdido Lócris Epicefíria, e agora o único porto que lhe restava era Crotona. Nos dois anos restantes de Aníbal na Itália, essa antiga cidade grega tornou-se sua principal base. Outrora lar do filósofo Pitágoras e do famoso atleta Milo (seis vezes vencedor da luta romana nos jogos olímpicos), Crotona era agora pouco mais do que uma cidade provincial sem importância, com uma pequeno ancoradouro. Sua mais famosa atração era o grande templo da deusa Hera, conhecido como Hera Lacínia por causa 341 do promontório onde se localizava. Por séculos aquele havia sido um dos principais pontos de referência para marinheiros quando se aproximavam da Itália vindos da Grécia, ou quando partiam do sul do golfo de Taranto rumo às ilhas Jónicas. Ali, no meio dos ex-votos de marinheiros, Aníbal mais tarde erigiria a grande placa de bronze (mencionada por Políbio) na qual deixara gravado, em púnico e em grego, a força de seu exército ao cruzar os Alpes e suas ações durante os quinze anos que passou na Itália. Foi em Lócris que Aníbal e Cipião Africano encontraram-se pela primeira vez como comandantes. Muitos curiosamente, era com os contingentes de sobreviventes ao desastre romano em Canas (Cipião era um deles) que Cipião Africano agora começava a preparar seu ataque à África. Na Sicília, que ele pretendia utilizar como sua base de invasão, o excelente porto de Lilibeu (Marsala) no oeste era o mais próximo ponto de partida para a região de Cartago. As duas legiões na província tinham sido formadas a partir daqueles desacreditados soldados de Canas, mandados para ali em 342 desgraça após sua derrota, e como a facção anti-Cipião do Senado que se opunha a Cipião Africano sem dúvida pensou, iriam mostrar-se inadequados para qualquer projeto ambicioso que Cipião Africano arquitetasse. Contudo, aqueles legionários, reforçados pelos veteranos de Marcelo vitoriosos em Siracusa, ainda se condoíam por sua humilhação e não queriam outra coisa senão esquecer o passado e levar a guerra ao campo inimigo. Cipião Africano, que sofrera com eles, compreendia seus sentimentos e era o homem certo para liderá-los. Mais do que isso, apelando ao desejo de vingança de seus antigos inimigos, Cipião Africano excitou a ajuda voluntária de várias comunidades da Itália, muitas das quais, tais como os etruscos, sem dúvida ávidas para provarem a Roma sua lealdade, agora que parecia claro que a causa cartaginesa estava arruinada. Lívio relaciona os lugares e detalhes onde o auxílio espontâneo foi prestado ao jovem e ambicioso cônsul quando se preparava para levar a guerra ao território inimigo: "Primeiro, as comunidades etruscas 343 disseram que ajudariam o cônsul, cada qual segundo os seus recursos. Os homens de Cere prometeram alimento para as tropas e suprimentos de todo tipo; os homens de Populônia, ferro; os Tarquínios, linho para as velas; Volaterras, o equipamento do interior dos navios e também grãos (…)". 37 Arécio forneceu três mil escudos e um igual número de elmos; cinquenta mil azagaias, arpões curtos e lanças; também machados, pás, foices, cestos e moinhos manuais suficientes para equipar quarenta navios de guerra; cento e vinte mil sacas de trigo, e pagamento suplementar para suboficiais e remadores. Uma grande quantidade de grãos veio de Perúgia, Clúsio e Ruselas, assim como madeira de pinho para a construção naval. A Úmbria e o distrito Sabino forneceram soldados, enquanto os marsos, pelígnos e marrucinos ofereceram-se voluntariamente em grande número para a frota. A cidade de Caméria enviou uma coorte de seiscentos homens totalmente armados. Vinte quinquerremes e dez quadrirremes, prontos e equipados, foram lançados ao mar "no quadragésimo quinto dia após a madeira ter sido trazida das florestas". 344 Na primavera de 204 a.C., Cipião Africano embarcou em Lilibeu com trinta mil homens em quatrocentos transportes escoltados por quarenta navios de guerra. Não mais cônsul, mas procônsul com comando sobre a Sicília, Cipião Africano levava a vingança da República Romana para dentro da África. A invasão de Cipião e a estadia de Aníbal na Itália Durante seu último ano no continente europeu, Aníbal fora capaz de fazer pouco mais do que assegurar que as legiões romanas permanecessem na Itália. Nada além do medo ao próprio Aníbal retinha tantos milhares de homens, pois seu exército, naquele momento, era tão paliativo que, em quaisquer outras mãos, não representaria qualquer ameaça a Roma. O foco de interesse da guerra fora dirigido, primeiramente, para a Espanha e, então, depois que a brilhante estratégia de Cipião Africano desbaratou os cartagineses, voltara-se para a África. Quando se tornou patente que a própria Cartago em breve seria objeüvo de ataques e que o poder cartaginês enfraquecia por 345 toda parte, as várias tribos habitantes da linha costeira do Mediterrâneo no continente africano começaram a se preparar para romper com sua fidelidade aos seus antigos senhores. Quando Cipião Africano deixou a África, após seu encontro com o rei númida Sífax, pôde ter o gosto de saber que atingira o seu objetivo e que Sífax era agora um aliado de Roma. Cipião Africano sabia, através da guerra na Hispânia e Itália, que uma temível e eficiente parte dos exércitos cartagineses era representada pelos cavaleiros númidas. Esperava poder contar com essa aliança para dar ao seu próprio exército invasor a cavalaria na qual os romanos eram sempre deficientes. Mesmo antes de deixar a Sicília, entretanto, ouviu de Sífax que não poderia contar com qualquer apoio dele e, com certeza, Sífax cautelosamente o advertiu para que não invadisse ou ele encontraria o desastre. O que aconteceu foi que, durante a ausência de Cipião Africano em Roma e na Sicília, Asdrúbal Gisgão havia reconquistado a fidelidade de Sífax a Cartago, oferecendo-lhe em casamento sua bela filha Sofonisba. O rei númida, 346 "enquanto sob a influência do primeiro êxtase do amor", abandonou sua aliança romana e tornou-se um fiel servo de Cartago. Masinissa, outro poderoso rei númida e inimigo mortal de Sífax, após longa luta pelo trono do reino númida, foi derrotado por Sífax e forçado a fugir. Somente uma coisa era certa quando Cipião Africano partiu com sua força de invasão para o norte da África: havia perdido o apoio de Sífax, com o qual contava, mas tão grande era o ódio entre o rei e Masinissa, que este último bem poderia vir a ajudar os romanos, se isso significasse vingança sobre o homem que o havia humilhado. Na primavera de 204 a.C., as tropas de Cipião Africano desembarcaram no cabo Farina (o promontório de Apoio), cabo que formava o braço ocidental da grande baía na qual se situava Cartago. Bem perto, ficava a cidade de Útica, que Cipião Africano esperava utilizar como sua principal base e porto para a campanha africana. A chegada da frota e do exécito romano tão perto de sua cidade causou tal pânico entre os cartagineses que pode ter excedido até mesmo o estado ao qual 347 Roma foi lançada pelas primeiras façanhas de Aníbal. Ao contrário dos romanos, eles não tinham um grande exército fixo, sempre dependendo demasiadamente de mercenários; não possuíam aliados confiáveis, e nenhum grande general para conduzi-los, com Aníbal tão longe, do outro lado do mar, no Brútio. Suspeita-se que mesmo neste início da guerra africana devem ter havido vozes pedindo para chamar de voltar o filho de Amílcar. Os cartagineses só conheciam a reputação dos feitos de Aníbal na Europa, mas devem ter se lembrado de como seu pai os havia salvo antes. Nesse meio tempo, Asdrúbal Gisgão começou a levantar um exército (de qualidade medíocre), enquanto Sífax, ainda enamorado de sua noiva e consequentemente de Cartago, preparavase para auxiliar com sua cavalaria. Como era de se esperar, seu arquiinimigo, Masinissa, surgiu no acampamento de Cipião Africano, prometendo a ajuda de seus próprios cavaleiros númidas. Diz-se que o ódio entre os dois reis norteafricanos havia aumentado ainda mais porque Masinissa também tinha sido pretendente da filha de Asdrúbal Gisgão, 348 Sofonisba, e, citando Lívio, "os númidas ultrapassam todos os outros povos bárbaros na violência de seu apetite".[37] Parece que o sexo, assim como o política, desempenhou seu papel na guerra. Tendo atingido seu objetivo, a invasão do território cartaginês com exército e frota adequados, era de se esperar que Cipião Africano agisse com o mesmo ímpeto e determinação que lhe havia rendido Nova Cartago e depois toda a península Ibérica. Em vez disso, parece ter hesitado, quase como se tivesse sido intimidado pela terra estranha e pela vastidão da África do Norte. Ao contrário de Aníbal em sua travessia dos Alpes, Cipião Africano conseguira transportar equipamentos de sítio em seus navios desde a Sicília, e tinha muitos engenheiros treinados para sitiar entre os homens que auxiliaram na captura de Siracusa. Mas Cartago, em sua cintilante baía, era indubitavelmente muito mais assombrosa, e talvez ele não soubesse do miserável estado moral no interior da cidade e desconhecesse suas inadequadas forças. Parece nunca ter considerado a hipótese de atacá-la, mas, em lugar disso, iniciou o sítio a Útica. 349 Também é possível que Cipião Africano estivesse tomado pela lembrança do famoso Régulo que, após um sucesso inicial na mesma região durante a Primeira Guerra Púnica, tinha sido decisivamente derrotado e morrido sob tortura nas mãos dos cartagineses. Fora advertido sobre o destino de Régulo pelos fabianos no Senado e ele sabia quantos dos seus inimigos em Roma ficariam felizes em ver os seus planos desmoronarem. De qualquer modo, Cipião Africano decidiu assegurar sua base em Útica antes de considerar um ataque à capital. Mesmo nesse objetivo, entretanto, não foi bemsucedido: por aproximadamente quarenta dias, as torres e muralhas de Útica foram atacadas por terra e mar, e ainda assim os defensores resistiram. Então, as forças de resgate, comandadas por Asdrúbal Gisgão e Sífax, chegaram — um exército maior do que o de Cipião Africano e com uma formidável quantia de cavaleiros.[19] Obrigado a levantar o sítio, Cipião Africano retrocedeu suas forças para um acampamento no cabo, onde montou seu quartel-general de inverno. A campanha 350 do primeiro ano em terra inimiga não fora um sucesso e ele ainda estava retido na cabeça-de-praia onde desembarcara tão confiante naquele ano. Enquanto Cipião Africano continuava engajado na África, os dois cônsules para o ano estavam na Itália; um, Cornélio Cetego, vigiando a Etrúria e o norte, no caso de Magão fazer algum movimento, e o outro, Semprônio Tuditamo, guardando o Brútio e Aníbal. Semprônio, ambicioso e ávido para tentar uma definição com o cartaginês, marchou para ameaçar a última fortificação de Aníbal, a cidade de Crotona. No primeiro e confuso embate, enquanto ambos os exércitos pareciam estar em marcha, os romanos foram surrados, perdendo cerca de mil e duzentos homens. Não desejando correr mais nenhum risco, Semprônio convocou o procônsul Públio Lícino com suas duas legiões. Havia, então, quatro legiões romanas e quatro aliadas movendo-se sobre Crotona, e Aníbal, cujas forças naquele momento deveriam consistir em apenas metade dessa quantia, preparou-se para responder à batalha, pela simples razão de que não poderia, naquela altura, 351 abandonar a cidade e o porto. Com uma cavalaria númida insuficiente e praticamente nenhum soldado de infantaria treinado da Hispânia ou de Cartago, seu inábil exército foi forçado a retroceder para dentro dos muros da cidade, perdendo cerca de quatro mil homens.[37] Talvez o cônsul pudesse alegar que fora ele o primeiro a ter expulsado Aníbal do campo de batalha durante todos os seus anos na Itália, mas seu objetivo, Crotona, permanecia nas mãos de Aníbal, que continuava atrás dos portões fechados. Ele só poderia esperar. Tivesse Aníbal sido capaz de se retirar naquele ano com quaisquer exércitos e navios que pudesse angariar e sua aparição na costa da África teria mudado o curso da guerra. O Senado e o povo de Cartago teriam seu ânimo revigorado; apenas seu nome teria reanimado os homens das tribos e cavaleiros em seus milhares; o moral romano teria desmoronado. Cipião Africano havia sido malsucedido em Útica e feito pouco mais do que assolar o campo ao redor; a chegada de Aníbal pelo mar por detrás dele teria colocado os romanos em tal 352 desvantagem que eles poderiam ter sido forçados a se evadir. Porém, nenhuma palavra chegou convocando Aníbal de volta à cidade. O papel de Magão, naquela fase da guerra, não está bem documentado, mas, nas informações disponíveis, consta que Magão não pretendia fazer uma conjunção com Aníbal, e, sim, desviar a atenção romana para o norte, evitando o deslocamento de uma força de invasão romana para a África do Norte. Foi bemsucedido no recrutamento de líderes para a sua causa, principalmente depois de mostrar como poderia dominar todo o golfo de Génova pela ocupação dos dois maiores portos e como estava a atividade de sua frota naquela região. Os gauleses cisalpinos, contudo, um tanto relutantes em se unirem a Asdrúbal quando ele descera pelos Alpes, estavam ainda menos desejosos de se juntar a uma causa que já viam como em declínio. Seus pais haviam brandido armas após Aníbal, esperando ver Roma destruída, mas apesar dos sucessos de Aníbal, haviam tombado por toda a Itália, e os poucos que permaneceram com ele continuavam 353 encurralados, centenas de milhas distante, no selvagem Brútio. Os gauleses testemunharam o fracasso de Asdrúbal no rio Metauro, e aquele irmão caçula da família, Magão, dificilmente poderia persuadi-los a enfrentar a fúria de Roma. Eles também tinham visto os benefícios das áreas de agricultura possibilitados pelos romanos, e a guerra homérica de seus pais tornara-se menos atrativa. No verão de 203 a.C., Magão parece ter cruzado a região do Pó, assim concentrando a atenção das legiões romanas ao norte. Esperava evidentemente por um levante na Etrúria contra os romanos. Qualquer que losse a sua intenção, Magão engajara-se numa grande batalha cornos romanos em solo italiano em 203 a.C.. Parece ter sido uma luta feroz, com perdas consideráveis de ambos os lados, mas com as forças cartaginesas levando a pior. Durante essa ação, o próprio Magão foi seriamente ferido e retirou-se com os outros sobreviventes para a Ligúria. Este seria o último grande combate na Itália entre cartagineses e romanos no decorrer da guerra. Em sua chegada à Ligúria, 354 aguardavam por Magão instruções para que retornasse com seus navios e homens a Cartago. A cidade-mãe, ameaçada por Cipião Africano, estava agora na defensiva. A aventura italiana, para todos os efeitos, seria abandonada. Magão morreu, devido aos ferimentos, quando sua frota passava pela Sardenha — a ilha repleta de madeira e minerais, agora sob controle romano, mas, outrora, uma das maiores das muitas ilhas-colônia cartaginesas que haviam ameaçado Roma. Durante o inverno de 204-203 a.C., enquanto Aníbal permanecia em Crotona e seu irmão Magão preparava-se para a ofensiva de primavera que o levaria à morte, Cipião estava ocupado na África do Norte. Fracassara na captura de Útica, e a abertura de sua campanha não obtivera o sucesso que ele devia ter esperado após sua experiência com os cartagineses na Hispânia, mas nunca deixou de trabalhar em sua estratégia geral — a derrota de Cartago com a incorporação, como derradeiro objetivo, do império norteafricano da cidade ao império de Roma. Nenhum homem pode reclamar para si maior crédito — ou culpa — pela 355 fomentação do império romano do que Cipião Africano, aclamado no século XX pelo historiador militar britânico B. H. Lidell Hart como "maior do que Napoleão". Percebendo que o númida Sífax possivelmente era mais importante do que Masinissa, comandando mais forças — forças das quais Cartago dependia bastante — Cipião decidiu tentar demovêlo de sua aliança. Durante todo o inverno, enviados se deslocaram para lá e para cá entre o romano e o númida, com Cipião Africano fingindo ter uma autoridade que nunca possuíra — a de fazer um tratado de paz sem qualquer consulta a Roma, e Sífax sugerindo um fim para a guerra por meio de um acordo entre Cipião Africano e Aníbal em que um deveria deixar a África e outro a Itália. As negociações foram prolongadas, pois Cipião Africano podia facilmente pressentir que Sífax queria apenas os romanos fora do caminho para que pudesse finalmente destruir seu odiado rival Masinissa e tomar todo o seu reino. Quando os enviados romanos iam visitar os acampamentos de seus inimigos, eram 356 frequentemente acompanhados por centuriões experientes, disfarçados como lacaios e servos, que aproveitavam a oportunidade, enquanto seus "senhores" se reuniam em conferências, para fazerem um cuidadoso estudo dos acampamentos e da disposição dos inimigos. Ao retornarem, relataram que a disciplina estava relaxada, o moral baixo e que os cartagineses estavam abrigados em cabanas de madeira, enquanto os númidas estavam em tendas de junco, muitas das quais nem mesmo ficavam no interior da paliçada do acampamento. No início da primavera de 203 a.C., Cipião Africano estava preparado para sua ofensiva. Enviou uma mensagem para Sífax de que estava prestes a concluir um tratado, embora ainda sofresse alguma oposição — que esperava vencer — por parte de seus oficiais graduados. Isso significava que, no momento, deveria interromper as negociações. Sífax e Asdrúbal Gisgão entenderam isso como se, no devido tempo, Cipião Africano pudesse convencer seus companheiros do bom senso de um tratado, e enviaram uma resposta pela qual, da parte deles, 357 desejavam muito aceitar os termos discutidos. Cipião Africano agora conhecia não apenas a disposição do inimigo, mas também sabia que seu moral estava baixo e que eles ansiavam pela paz. Todo o seu procedimento estava longe de ser conforme a velha tradição romana de boa-fé, que seus historiadores gostavam de contrapor, injustamente, à assim chamada "fé púnica". Com certeza, parecia que os cartagineses com frequência se comportavam mais escrupulosamente do que os romanos. A concepção de Aníbal sobre as honras no campo de batalha, por exemplo, sempre assegurou a prestação das honras devidas ao inimigo morto, enquanto Cláudio Nero, após sua vitória no rio Metauro, havia descido ao ponto de cortar a cabeça do irmão de Aníbal, e guardá-la, para então jogá-la nas linhas de Aníbal na calada da noite. Cipião Africano, tendo induzido um sentimento de relaxamento da guarda entre seus inimigos, começou a se movimentar. Reiniciou o sítio de Útica por terra e mar, enviando sua frota — recémlançada, após o inverno — para o bloqueio, enquanto as máquinas de guerra 358 principais foram trazidas de seu acampamento para o ataque terrestre. Isso tudo apenas para desviar os cartagineses de sua verdadeira intenção, e possivelmente convencer Sífax e Asdrúbal Gisgão de que ele continuava a atuar numa guerra que não os ameaçava, enquanto esperava que a sua oposição romana fosse convencida de que um tratado de paz deveria ser conseguido. Sua esperta distração funcionou, e os cartagineses e númidas sentiram-se seguros de que ele não mais do que repetia suas táticas do ano anterior. Então Cipião Africano atacou. Numa noite, os oficiais romanos começaram a deslocar seus homens do acampamento assim que o toque de clarim anunciando o cair da noite soou. Havia umas sete milhas entre eles e os acampamentos do inimigo, aonde chegaram por volta da meia-noite. O homem que era o braço direito de Cipião Africano, Lélio, foi designado junto com Massinissa e seus cavaleiros, para atacar o acampamento númida enquanto Cipião Africano atacava os cartagineses. Com as atenções dos líderes cartagineses e 359 númidas concentradas sobre Utica, e relaxando em seus deveres esperando pelas demoradas negociações de paz, como demonstrava o seu despreparo, os acampamentos eram alvos vulneráveis. Os númidas de Massinissa não tiveram dificuldade para invadir o acampamento de Sífax e atear fogo às tendas de junco — eles próprios estavam acostumados a viver nelas e sabiam com que facilidade queimavam. O vento soprava, possivelmente um meridional, naquela época do ano, e logo todo o acampamento ficou em chamas. Quando os sonolentos ocupantes das tendas saíram correndo para fora, pensando tratar-se de não mais que um acidente, eram abatidos pelos cavaleiros de Masinissa. Alertados pelas sentinelas sobre o holocausto no acampamento vizinho, os cartagineses começaram a sair de suas cabanas de madeira — apenas como espectadores desarmados. Assim que o fizeram, os romanos de Cipião Africano (muitos ainda com a lembrança de Canas) caíram sobre eles. O acampamento cartaginês também foi totalmente incendiado, e os cartagineses foram mortos aos milhares. 360 Com este duplo golpe, tão brilhante, ainda que traiçoeiramente executado, Cipião Africano destruíra as forças combinadas do exército cartaginês. Asdrúbal Gisgão e Sífax conseguiram escapar levando apenas uns poucos milhares de homens com eles. Asdrúbal, como comandante geral, tinha sido culpado de grave negligência ao se deixar enganar por um sentimento de segurança. Suas experiências em combates contra Cipião Africano na Hispânia deveriam tê-lo alertado para o fato de que o romano não somente era um grande estrategista, mas também um astuto e duro comandante em campo. Ele, então, prosseguiu com seu ataque noturno, perseguindo Asdrúbal Gisgão e os remanescentes de'seu exército, expulsando-o da cidade em que haviam se refugiado e devastando vários povoados locais. Houve medo e confusão em Cartago mas, apesar dos clamores do partido da paz, tomaram a resolução de que a guerra prosseguisse. Imensa riqueza de Cartago foi empregada no envio a Asdrúbal e Sífax do dinheiro necessário para a formação de outro exército. A chegada de quatro mil celtiberos, recrutados na Hispânia, proporcionou um 361 núcleo de combate para a nova força, e em um curto espaço de tempo, Asdrúbal e Sífax haviam levantado um exército de cerca de trinta mil homens que eles reuniram em uma região conhecida como Grandes Planícies no rio Bagradas. Cipião Africano não perdeu tempo e, deixando uma força de sítio ao redor de Útica, marchou rapidamente ao encontro do inimigo. Quando se bateu contra eles, destruiu esse segundo exército em uma magnífica batalha. Mais uma vez, Asdrúbal e Sífax escaparam na confusão geral, o primeiro para Cartago e o outro para Cirta. Cipião Africano, mais do que Aníbal, nunca relaxava após um sucesso, mas procurava consolidar sua vantagem. Avançou sobre um número de cidades da África do Norte, algumas das quais sucumbiram por temor e outras por antigas pendências com Cartago. Depois, Cipião começou o sítio a Útica — dessa vez para valer — com metade de seu exército, enviando a outra metade comandada por Lélio e Massinissa, ao longo da costa norte-africana até a Numídia. Masinissa estava ansiso para 362 acertar as contas novamente com seu inimigo Sífax, tanto para capturar para si Sofonisba quanto para retomar Cirta que, embora fosse agora a capital de Sífax, já havia pertencido ao pai de Masinissa. Numa batalha duramente disputada, ele e sua cavalaria, mais os vigorosos legionários romanos, não apenas destroçaram o exército de Sífax como ainda o capturaram vivo. O triunfo de Masinissa foi completo, pois ele não só reconquistou Cirta mas também, demonstrando um senso de vingança verdadeiramente norte-africano, tomou a esposa de seu inimigo, Sofonisba, para si. Cipião Africano, mais tarde, repreendeu-o por isso, uma vez que Sífax e sua esposa eram prisioneiros de Roma, e para Roma deveriam ir. Sofonisba, para não cair prisioneira e abrilhantar um triunfo romano, envenenou-se. A história dessa jovem da nobreza cartaginesa, enredada pelas guerras e políticas, é curiosa e movimentada. Guardando algumas semelhanças com as histórias de Dido e Cleópatra, essa é outra das tragédias norte-africanas. 363 Os sucessivos desastres na primavera e começo do verão de 203 a.C. haviam alarmado muito toda Cartago. O mesmo Hanão que havia comandado a cavalaria pesada de Aníbal em Canas foi totalmente encarregado da defesa, e emissários cartagineses foram enviados a Roma para tentarem negociar os termos da paz. Como derradeiro golpe na sorte cartaginesa, uma tentativa de livrar Útica falhou. Todos esses desastres sucessivos geraram um clamor em todos os níveis, desde o conselho de Birsa até os lares, oficinas e armazéns da cidade — "Chamem Aníbal de volta!". Infelizmente, como os eventos demonstrariam, eles o haviam feito tarde demais. A despeito da superioridade naval de Roma, três frotas cartaginesas conseguiram cruzar o Mediterrâneo entre a Itália e a África do Norte durante aquele ano. Uma conduzia o moribundo Magão de volta da costa lígure com sua força mista de tropas baleárides, lígures e gaulesas; a segunda foi despachada de Cartago para evacuar Aníbal; e a terceira foi essa mesma frota, aumentada pelos navios que Aníbal possuía em Crotona, 364 trazendo-o de volta para defender Cartago em seu momento de necessidade. O mar é vasto, e nos dias de comunicações primitivas era bastante difícil para os romanos vigiar todas as rotas de navegação. Séculos mais tarde, até mesmo Nelson, que procurava avidamente pela frota de Napoleão, fracassou em avistá-lo enquanto ele navegava triunfantemente em direção ao Egito. A frota de Aníbal, inadequada para suas necessidades, e o exército que finalmente trouxe consigo de volta para a África provavelmente somava não mais do que quinze mil homens (as estimativas se situam entre doze mil e vinte e quatro mil). O exército da Itália era um estranho composto. Deviam existir poucos dos veteranos que cruzaram os Alpes com ele cerca de quinze anos atrás. Os brútios, gauleses e desertores romanos que então compunham a maior parte de suas tropas claramente não eram da mesma qualidade, mas ainda seguiam de bom grado o mesmo homem, seu general cartaginês de um só olho. É evidente que não possuía muitos meios de transporte, pelo fato de que não pôde levar de volta os 365 cavalos que o ajudaram em tantas de suas vitórias e de que ele tanto necessitaria no ano seguinte. Todos tiveram de ser sacrificados para que não ficassem para os romanos. No outono de 203 a.C., Aníbal viu pela última vez o pequeno porto de Crotona e, além da velha cidade, as escarpadas elevações da cordilheira de Sila, cobertas de árvores, uma paisagem de lobo selvagem. Durante os poucos anos antes de partir, teve que fazer daquela região seu lar, mas antes já havia percorrido toda a Itália; do vale do Pó, no extremo norte, à sorridente Etrúria, até a costa oeste e a baía de Nápoles, onde as cidades gregas estavam incrustadas, e daí muitas vezes até as mais selvagens praias do Adriático. Ele conhecia a terra e seus povos como poucos italianos jamais conheceriam: cidades e povoados, as carrancudas muralhas de Roma — as quais nunca havia penetrado — planícies quentes, como Canas, vales domesticados, a indolente Cápua, camponeses e carvoeiros, rudes montanheses e disciplinados romanos — todo um mundo que ele quase havia feito seu. Agora, ele estava indo embora, para 366 uma cidade da qual ele mal podia lembrarse. Ainda assim, era por Cartago que havia lutado por tanto tempo e sofrido tanto — por Cartago e por um juramento feito por um menino diante de um altar enevoado. Conclusão da Segunda Guerra Púnica (203–201 a.C.) No outono de 203 a.C., antes de Aníbal deixar a Itália, os termos de um tratado proposto por Cipião aos cartagineses já haviam sido aceitos por eles e enviados a Roma para discussão. Em vista da longa amargura da guerra, e da desolação que causaram a grandes regiões da Itália, foram moderados. Primeiramente, todas as forças cartaginesas deveriam deixar a Itália, e a Hispânia deveria ser abandonada. Todos os desertores, escravos fugitivos e prisioneiros de guerra deveriam ser enviados de volta a Roma. Todos os navios de guerra cartagineses, exceto vinte, deveriam ser entregues. Uma quantidade muito grande de trigo e cevada seria fornecida para alimentar as tropas romanas e, finalmente, uma pesada indenização seria paga. Não é surpresa que Cartago aceitasse tais termos, que 367 eram favoráveis se comparados aos da Primeira Guerra Púnica, e um armistício fosse concluído, restando uma ratificação do tratado por parte de Roma. Cipião também enviou Massinissa para Roma em companhia de Lélio, o primeiro para obter o reconhecimento de seu reinado númida e o outro, que conhecia as ideias de Cipião Africano, para aumentar os termos propostos e agir como porta-voz dos interesses de Cipião no tratado. É significativo que Masinissa fosse a Roma para a confirmação de seu reinado. No passado, Cartago havia sido o centro natural de autoridade para todos os reis locais e suas tribos. A ação de Cipião Africano já havia garantido o domínio de Roma sobre a África do Norte. Mais ainda, ele presenteava seus inimigos fabianos com um fait accompli, e tornava Roma responsável pelos assuntos norteafricanos. No mesmo ano em que Aníbal deixou a Itália, seu velho e honorável oponente Quinto Fábio Máximo faleceu, o homem que havia feito mais do que qualquer outro para ensinar aos romanos que o 368 único modo de desgastar — e finalmente derrotar — tamanho génio militar era à maneira do "Protelador". Os romanos, exceto em umas poucas desastrosas ocasiões, haviam seguido os seus preceitos até manter Aníbal confinado na selvagem terra do sul, e, por fim, em uma estreita área ao redor de Crotona. A notícia de que Aníbal havia finalmente deixado sua terra naturalmente trouxe regozijo a Roma e uma efusão de esperança, mas ainda persistia uma grande ansiedade, como relata Lívio: Os homens não sabiam se começavam a regozijar-se por Aníbal ter-se retirado da Itália após dezesseis anos, deixando o povo romano livre para apossar-se dela, ou se ficavam ainda apreensivos com o fato de ele ter seguido para a África com seu exército intacto. Sem dúvida, mudara o local, pensavam eles, mas não o perigo. Prenunciando aquele poderoso conflito, Quinto Fábio Máximo, recentemente falecido, havia frequentemente predito, não sem razão, que em sua própria terra Aníbal seria um inimigo mais terrível do que em um país estrangeiro. E Cipião teria que lidar (…) com Aníbal, que nascera, 369 pode-se dizer, no quartel-general de seu pai, o mais bravo dos generais, e fora criado e educado em meio às armas; aquele que ainda na infância já era um soldado e na tenra mocidade um general; que, envelhecendo como um vitorioso [Aníbal tinha cerca de quarenta e cinco anos], havia coberto as terras espanholas e gálicas, e a Itália dos Alpes aos Estreitos, com a evidência de suas poderosas façanhas. Ele estava no comando de um exército cujas campanhas se igualavam às suas próprias em quantidade; endurecerase por esforços tão grandes que dificilmente pode-se acreditar que seres humanos tivessem resistido; havia sido salpicado por sangue romano centenas de vezes e carregado os espólios, não só de soldados -mas de generais. Muitos homens que enfrentariam Cipião em batalha haviam matado com suas próprias mãos pretores, generais comandantes, cônsules romanos; haviam sido condecorados com coroas por bravura ao escalar muralhas de cidades e de acampamentos protegidos; haviam vagueado por campos e cidades capturadas dos romanos. Todos os magistrados do povo romano juntos não tinham, naqueles tempos, tantas faces 370 (símbolos de autoridade) quanto Aníbal poderia ostentar à sua frente, por tê-los capturado de generais caídos. — Tito Lívio[37] Esse relato, ao mesmo tempo que revela o grande pavor que Aníbal ainda infligia aos romanos, engana-se na descrição de seu exército. Lívio, ou suas fontes, fala do exército que marchou pelos Alpes, e que há muito tinha desaparecido.[37] Aníbal agora tinha sob seu comando a esfarrapada e mista força que ocupara Crotona durante os poucos anos passa dos. Todavia, sua chegada à África, trazendo qualquer exército que fosse, teve tanto efeito sobre o moral cartaginês que o partido bárcida começou quase imediatamente a buscar um recomeço da guerra. Aníbal desembarcou em Léptis, perto de Adrumeto, onde montou acampamento para o inverno e começou a reorganizar suas forças e recrutar mais soldados e cavaleiros. Ali foi reforçado pelos remanescentes do exército de Magão e soube que seu irmão caçula estava morto. Deve haver pouca dúvida de que Aníbal tivesse aceitado os termos de paz de Cipião 371 como a melhor coisa para Cartago, muito embora pouco soubesse das facções políticas e intrigas da cidade. Porém, era astuto demais para não ver que a situação geral cartaginesa era sem esperança, em vista da perda da Hispânia, do crescente poder de Roma por mar e terra e do poderio humano nativo que abastecia suas legiões. Havia derrotado os romanos muitas vezes em batalha, é verdade, mas sabia que os romanos eram vigorosos e bravos soldados e que eles já estavam — perigosamente — começando a aprender suas táticas, adotando métodos mais flexíveis no campo de batalha. Em seus primeiros anos na Itália, tirara proveito dos desatualizados sistemas por meio dos quais os cônsules eram automaticamente encarregados das legiões e, uma vez que eles eram mudados a cada ano, nunca tinham tempo para aprender a perícia profissional ou adaptar suas táticas. Ele também tinha sido capaz de fazer uso de conhecidas divisões e diferenças de temperamento entre dois cônsules. Mas viu claramente no surgimento de Cipião a sombra do futuro, onde outros generais;, à sua própria maneira surgiriam — homens totalmente dedicados à guerra, 372 aprendendo pela experiência em campo de batalha e familiarizando-se não somente com a natureza do terreno de batalha, mas com a qualidade e caráter racial de seus adversários. Seja lá o que Aníbal possa ter pensado sobre aceitar as condições de paz, a facção de guerra de Cartago, fazendo uso de seu nome e fama, havia agora assumido o controle. Recomeça a guerra No inverno de 203 a.C., um comboio de provisões da Sicília destinado às forças de Cipião Africano foi colhido numa tempestade e encalhou na região de Cartago, e navios de guerra cartagineses foram enviados para capturá-lo e trazer as provisões para a cidade. Isso era totalmente contrário à trégua, e Cipião Africano despachou enviados por mar para registrar um protesto. Em sua viagem de volta, os navios transportando os enviados foram traiçoeiramente atacados por trirremes cartagineses, mandados para esperá-los e por pouco escaparam com vida. Cipião Africano acertadamente viu isso como uma declaração de que a trégua estava acabada e a guerra reiniciada. Aqui, certamente, se evidenciava a fé 373 púnica, embora seja muito duvidoso que Aníbal, setenta milhas distante em Adrumeto, tivesse qualquer conhecimento disso. Foi uma ação tola, algo a que ele não era propenso. Cipião Africano recomeçou a guerra e atacou todos os povoados da região ainda sob jurisdição de Cartago. Por todo o verão de 202 a.C., enquanto Aníbal, percebendo que uma batalha maior era agora inevitável, continuava a reunir e treinar mais recrutas para o seu exército, Cipião sitiava as cidades cartaginesas, não demonstrando qualquer piedade quando elas sucumbiam, e escravizando os habitantes. Estava determinado a mostrar aos cartagineses que aqueles que quebravam tratados colocavam-se fora das considerações normais da guerra. Também estava ciente de que o teste final ainda estava por vir, e que Cartago não poderia ser forçada a se render até que ele e Aníbal se enfrentassem no campo de batalha, estabelecendo conclusivamente o resultado da guerra. Masinissa, tendo retornado de Roma com a confirmação de seu reinado, estava longe, na Numídia, consolidando seu poder sobre o país; 374 recebeu uma convocação urgente de Cipião Africano para arregimentar todos os homens que pudesse e reunir-se aos romanos. Aníbal, então, recebeu ordens de Cartago para marchar e desafiar Cipião antes que fosse tarde demais. O conselho e a cidade estavam profundamente preocupados com a devastação de sua terra, que ocorria desenfreadamente, e com a perda de cidades e povoados pagadores de tributos: testemunhavam a destruição de terras férteis que por séculos haviam sustentado a grande cidade mercantil. Aníbal recusou-se a se apressar e respondeu que lutaria quando estivesse preparado. Tinha um bom motivo para tal resposta, uma vez que ainda aguardava reforços de sua cavalaria, ainda muito deficiente, e ele sabia suficientemente bem que grande parte de suas ações bem-sucedidas se devia aos númidas. Ele tentava suprir aquela deficiência com o treinamento de elefantes e, à época da batalha final, possuía cerca de oitenta deles em seu exército. Eram, contudo, animais novos, que nunca haviam estado em ação e, como os fatos mostraram, constituíam mais um 375 risco do que um recurso. A verdade é que, muito embora os próprios romanos viessem a utilizar elefantes séculos mais tarde, essa já era uma arma de guerra obsoleta. Os elefantes haviam obtido sucesso no passado através do pavor que causavam quando soltos em grandes bandos sobre povos primitivos e fileiras indisciplinadas de infantaria. Mas os romanos na Itália já haviam tomado suas providências e descoberto que, quando atacados por chuvas dos formidáveis piíum, eles quase sempre se voltavam para trás e disparavam para dentro de seu próprio exército. Elefantes semitreinados, que eram tudo o que Aníbal tinha sido capaz de conseguir, iriam provar essa verdade na batalha crucial. Alguns historiadores têm comentado que Aníbal cometeu um erro tático ao contar com eles, mas a verdade é que ele fora obrigado a fazê-lo em vista da falta de cavalaria. Ele, todavia, recebera no fim daquele verão alguns reforços úteis na forma de dois mil cavaleiros de um príncipe númida, Tiqueu, rival de Masinissa e que, sem dúvida, esperava fazer a Masinissa o que este havia feito a 376 Sífax, e então tomar o reino para si próprio. Essas rivalidades e intrigas norteafricanas, ainda que difíceis de se decifrar depois de tanto tempo, não obstante desempenharam um grande papel na batalha que estava por decidir o destino do mundo ocidental. O exército que Aníbal finalmente conduziu para combater Cipião era ainda mais heterogéneo do que de costume: baleárides, lígures, brútios, gauleses, cartagineses, númidas, e (muito estranhamente nesse momento tardio) alguns macedônios enviados pelo rei Filipe que, talvez, por fim, tenha percebido que a derrota de Roma era importantíssima para a liberdade de seu próprio país. Deixando Adrumeto, Aníbal marchou para oeste na direção de uma cidade chamada Zama, que provavelmente se identifica com a posterior colónia romana Zama Régia, noventa milhas a oeste de Adrumeto. Chegaram até ele relatos de que Cipião Africano incendiava vilarejos, destruindo colheitas e escravizando os habitantes de toda aquela fértil região da qual Cartago dependia para seus cereais e outros alimentos. Só pode ter sido tal 377 necessidade imperiosa o que fez Aníbal marchar atrás de Cipião, pois aparentemente seria mais lógico que ele levasse seu exército na direção de Cartago e se interpusesse entre Cipião e a cidade. Mas a sistemática destruição de cidades e vilarejos por este último, e suas atividades no interior cartaginês, claramente impediam que a cidade pudesse alimentar um adicional de quarenta mil ou mais homens, junto com seus cavalos e elefantes, bem como as suas próprias e prolíferas massas. Logo, a principal causa para que a batalha tivesse lugar onde ocorreu surgiu de uma urgência de suprimentos para a capital. Cipião sabia o que estava fazendo, e havia deliberadamente atraído Aníbal para longe da cidade de modo a decidir o resultado da guerra numa região escolhida por ele próprio. É irónico que o grande cartaginês não conhecesse seu próprio país, nada tendo visto dele desde os nove anos de idade, ao passo que Cipião e os romanos, a essa altura, já estavam bem familiarizados com o terreno cartaginês. Mas Cipião não deixava de ter suas preocupações: seu exército, provavelmente um tanto menor que o de 378 Aníbal, embora bem treinado e experiente no clima e condições da África do Norte, ainda carecia de uma arma de cavalaria. Ele aguardava desesperadamente a chegada de Masinissa e seus númidas, sem os quais dificilmente poderia engajar-se numa batalha maior — particularmente contra um adversário como Aníbal. Ao alcançar Zama, Aníbal, como era bastante natural, enviou adiante espiões para tentarem descobrir a natureza e quantidade do exército romano: em particular, deve ter se preocupado em tentar descobrir quão forte era a cavalaria de Cipião Africano. Esses homens foram descobertos e levados perante o general romano, que os recebeu, mostrou-lhes todo o acampamento, e então libertou-os para que reportassem tudo ao seu chefe. Alguns historiadores têm colocado em dúvida a veracidade disso, mencionando entre outras coisas que a mesma história é contada por Heródoto sobre Xerxes I e os espiões gregos, anterior à grande invasão persa da Grécia. Não há nada propriamente improvável nisso, porém, e o fato é atestado por Políbio,[19] o que lhe dá uma certa autenticidade. Cipião 379 Africano, sem dúvida, desejava deixar seu inimigo saber que ele estava supremamente confiante no resultado da batalha iminente. Havia outra coisa que aquele astuto romano deve ter desejado revelar a Aníbal: Masinissa e seus númidas não se encontravam no acampamento. Era isso, logicamente, o que Aníbal desejava descobrir mais do que tudo, e a notícia de que Cipião estava enfraquecido em sua cavalaria deve ter sido encorajadora. O que ele desconhecia, é claro, e Cipião indubitavelmente sabia muito bem, era que Masinissa e seus númidas encontravam-se a apenas dois dias de cavalgada. Sem desconfiar que Masinissa se aproximava, e pensando que ele ainda se ocupava em estabelecer seu domínio um tanto precário sobre o reino númida, Aníbal possivelmente sentiu que estava numa posição de superioridade frente aos romanos. Aquele seria um bom momento, então, para tentar negociar e ver se ele poderia obter condições favoráveis para Cartago — termos similares àqueles que Cipião Africano havia dado previamente aos cartagineses porém, se possível, algo 380 melhorados. Assim, enviou uma mensagem para Cipião solicitando-lhe um encontro pessoal para discutirem termos, com o que este concordou. À parte de qualquer outra coisa, deve ter existido considerável curiosidade de ambos os lados a respeito da natureza e mesmo da aparência do adversário. Os dois homens nunca haviam visto um ao outro antes, embora em três ocasiões, nos últimos anos, tivessem ficado próximos no campo de batalha. Primeiro, o jovem Cipião havia estado presente na batalha de Ticino, logo depois de Aníbal irromper na Itália (quando Cipião havia logrado salvar seu pai ferido do campo de batalha); depois, estivera em Canas e testemunhara toda a ira e a genialidade do cartaginês como tempestade contra as legiões romanas; por último, havia iniciado o bem-sucedido avanço contra o porto de Lócris Epicefíria no sul da Itália, quando frustrara as tentativas de Aníbal para recuperá-lo. Tivera três oportunidades, assim, de confrontar o grande inimigo de Roma, e em cada ocasião havia tido a perspicácia de observar exatamente como Aníbal reagia perante cada situação determinada. O cartaginês, por outro lado, nunca se 381 conscientizara do penetrante par de olhos de um jovem a observá-lo nas proximidades. Era como se um velho mestre de xadrez estivesse para encontrar, em breve, um aluno que por anos estudara seus "lances", detectado suas fraquezas, decidindo implementar as jogadas do mestre. Aníbal, por sua vez, só conhecia por meio de relatos os triunfos do jovem na guerra ibérica, embora fosse suficientemente estrategista e tático para reconhecer como era brilhante aquele que capturara Nova Cartago e vencera vários combates contra homens tão capazes quanto seu falecido irmão Asdrúbal, seu falecido irmão Magão e Asdrúbal, o filho de Gisgão. Ele havia observado como os romanos estavam mudados, aprendendo a se mover sem o velho comando consular e adquirindo flexibilidade no campo de batalha, e estava provavelmente tão curioso quanto Cipião para encontrar seu oponente cara a cara. Os relatos factícios, tanto de Políbio quanto de Lívio, compostos muitos anos após os eventos, devem ser considerados suspeitos, mas não deve restar dúvidas quanto ao resultado do encontro entre os 382 comandantes — dois dos mais distintos soldados não só do mundo antigo, mas de todos os tempos. Aníbal, além da habilidade de falar púnico, vários dialetos ibéricos e gálicos, também sabia falar grego e latim fluentemente; Cipião Africano, além de falar latim, foi também educado no grego. Os dois homens bem poderiam ter escolhido tanto latim quanto grego como linguagem de conversação, mas (como muitos líderes modernos) eles preferiram fazer uso de seus intérpretes de modo a terem flexibilidade e tempo para elaborarem suas respostas. Se nós ignorarmos a retórica de Lívio, o conteúdo de seu encontro foi breve e direto. Aníbal ofereceu a Cipião Africano "a entrega de todas as terras outrora em disputa entre as duas potências, especialmente a Sardenha, Sicília e Hispânia", juntamente com um acordo segundo o qual Cartago nunca mais faria guerra contra Roma. Ele também ofereceu todas as ilhas "localizadas entre a península Itálica e a África", isto é, as ilhas Égadi ao largo da Sicília ocidental as ilha Lípara, lugares como Lampedusa, Linosa, Gozo e Malta — mas não incluiu as ilhas Baleares ocidentais, que haviam se mostrado tão 383 úteis a Cartago. Ele não fez menção de indenizações, nem de controle sobre quase toda a frota, nem de retorno de prisioneiros e fugitivos romanos. Cipião dificilmente se impressionaria com a oferta, e disse "se, antes de os romanos rumarem para a África, você tivesse se retirado da Itália, haveria esperança para suas proposições. Mas agora a situação está manifestadamente mudada (…) Nós estamos aqui e você foi relutantemente forçado a deixar a Itália (…)". Cipião Africano não poderia aceitar termos inferiores para a rendição cartaginesa àqueles que haviam sido aceitos por Cartago antes da recente traição do tratado. Nada mais havia para ser dito. Cipião havia ganho um inestimável tempo com o seu encontro com Aníbal: sabia que Masinissa e seus cavaleiros númidas vinham cruzando o terreno rapidamente para estar ao seu lado quando o grande embate acontecesse. O retardamento havia propiciado a garantia da chegada de Masinissa a tempo para a batalha. Era Aníbal quem estava aturdido com a imensidão da África, e não Cipião 384 Africano, e era Aníbal — acostumado por tantos anos ao relativo tamanho da Itália — que tivera seu serviço de inteligência enganado pela ausência da cavalaria de Masinissa no acampamento de Cipião, e pela falta de conhecimento sobre os eventos na Numídia. O encontro entre Aníbal e Cipião tem sido comparado àquele entre Napoleão Bonaparte e Alexandre I da Rússia, dois mil anos mais tarde. "A admiração mútua deixou-os mudos", escreveu Lívio.[37] É duvidoso que Aníbal tivesse ficado mudo, pois ele certamente sentia-se confiante, enquanto Cipião, por seu lado, sabia que o grande expatriado cartaginês estava desejoso de fazer a paz, e saber que o adversário tem algo mais em seu coração do que a vitória é sempre um considerável conforto em qualquer disputa. A Batalha de Zama A Batalha de Zama, travada em 19 de outubro de 202 a.C., foi uma batalha decisiva da Segunda Guerra Púnica. O exército da República Romana, liderado por Cipião Africano, derrotou as forças de Cartago lideradas por Aníbal. Logo após essa derrota, o senado de Cartago assinou 385 um tratado de paz, terminando assim uma guerra de quase vinte anos. A rota da invasão da Europa por Aníbal. Aníbal correu de Adrumeto para Cartago para comunicar ao conselho que, o que quer que se dissesse, não haveria mais esperança de sucesso em prolongar a guerra. Muitos dos cartagineses, cientes de que sua cidade ainda era a mais rica do mundo e permanecia relativamente intocada pela guerra, acharam difícil de acreditar que tudo estava perdido. Uma história típica conta que Aníbal, presente em uma reunião na qual um jovem nobre incitava seus concidadãos para que guarnecessem suas defesas e recusassem os termos romanos, subiu no palanque do discursante e atirou-o ao chão. Desculpou-se imediatamente, dizendo que estivera longe por muito tempo e, acostumado à disciplina dos acampamentos, não estava familiarizado com as regras de um parlamento. Ao mesmo tempo, pediu-lhes, agora que estavam à mercê dos romanos, que aceitassem "termos tão clementes quanto os que lhes foram oferecidos, e orassem para os deuses que o povo romano 386 ratificasse o tratado". Achava que os termos que Cipião Africano propusera quando de sua chegada diante das muralhas de Cartago eram melhores do que se poderia esperar de um conquistador que lidava com um povo que já havia traído um tratado anterior. O conselho reconheceu as palavras de Aníbal como "sábias e acertadas, e eles concordaram em aceitar o tratado nas condições romanas, despachando emissários com ordens de concordar com ele".[19] Vendo que o grande general dos cartagineses e seu último exército estavam derrotados, e que a cidade jazia indefesa — muito embora o sítio tenha sido longo e difícil, como a Terceira Guerra Púnica um dia iria mostrar — as condições de Cipião Africano para a paz eram razoáveis. Como antes, todos os desertores, prisioneiros de guerra e escravos deveriam ser entregues, mas dessa vez os navios de guerra seriam reduzidos a não mais do que dez trirremes. Cartago, por outro lado, poderia manter seu território inicial na África, e suas próprias leis dentro dele, mas Masinissa teria total controle de seu reino, e Cartago nunca mais poderia fazer guerra com 387 quem quer que fosse, tanto dentro da África quanto fora, sem permissão romana. Isso efetivamente garantia que o reino númida cresceria às custas de Cartago, algo que um dia provocaria a última Guerra Púnica. Uma vez que haviam quebrado a trégua, a indenização de guerra original foi dobrada, embora lhes fosse permitido pagar em parcelas anuais durante cinquenta anos. Todos os elefantes cartagineses deveriam ser entregues, e nunca mais treinados, enquanto, ao mesmo tempo, uma centena de reféns, escolhidos por Cipião Africano, seriam despachados para Roma. Desse modo, ele se garantiria contra quaisquer atentados a traição. Como antes, o exército romano deveria ser suprido com cereal por três meses e receber seu pagamento durante o tempo em que o tratado de paz era ratificado. Poderia se esperar que Roma exigisse a rendição do próprio Aníbal, considerando tudo o que ele havia causado por tantos anos. Não teria sido uma condição incomum após a conclusão de uma guerra como aquela, e o fato de não ter sido feita só pode ser atribuído ao próprio Cipião 388 Africano que, como muitos generais sob circunstâncias de algum modo similares, havia adquirido uma enorme admiração e respeito por seu oponente. Em todo caso, deve ter ficado claro para Cipião Africano que a condição de Cartago era tal que, sem um homem forte no comando, todo aquele edifício mercantil iria se transformar em ruínas. Viria o tempo, dentro de pouco mais de cinquenta anos, em que esse seria o desejo de Roma, mas no momento a república estava exaurida demais para juntar os pedaços. Para garantir que Cartago cumpriria os termos, pagaria as reparações e se acomodaria tranquila outra vez na África do Norte, era necessário um homem que reconhecesse totalmente como a cidade havia sido afortunada por lhe serem permitidos termos tão aceitáveis. Esse homem era Aníbal. Havia, com certeza, considerável oposição em Roma aos termos aparentemente brandos impostos aos derrotados. Isso era bastante compreensível, pois Roma, na primavera de 201 a.C., quando o tratado foi finalmente ratificado, sofrera dezessete anos de guerra incessante. Cipião 389 Africano, um jovem, desaprovado por muitos de seus oponentes, o homem que havia conseguido suas vitórias em países estrangeiros muito distantes da desolação da Itália, dizia aos desolados e quase falidos senadores que eles não deveriam pressionar Cartago — na frase de uma guerra de séculos mais tarde — "até o último grito". Mas pela instigação dos partidários de Cipião Africano|Cipião]], a decisão foi encaminhada do senado para a Assembleia Popular, e o povo quis a paz. Em Cartago, as coisas seguiram quase o mesmo padrão; os ricos do conselho se apavoraram quando perceberam que o dinheiro para a primeira parcela das reparações teria que vir de seus próprios bolsos; e o povo, sentindo que Cartago havia sofrido o suficiente, queria mais do que tudo um fim para a guerra. Eles eram extremamente afortunados por terem encontrado em Aníbal um estadista capaz e incorruptível em tempos de paz, assim como havia sido um grande líder na guerra. Enquanto Cipião Africano e seu exército embarcavam para Roma, Aníbal, que tinha sido indicado Magistrado Chefe de 390 Cartago, começou sua gigantesca tarefa de reconstrução. Apesar de todos os anos de guerra, a prosperidade comercial da cidade nunca havia sido colocada em perigo seriamente, mesmo depois da perda da Espanha. Uma das razões para isso era que o comércio entre o Levante e o Mediterrâneo ocidental sempre havia continuado a fluir ao longo da costa norteafricana, onde os romanos pouco podiam interferir. Inevitavelmente, desde o começo de sua tarefa Aníbal defrontou-se com o ódio de seus inimigos — o partido da paz, que sempre havia declarado que o comércio, e não a guerra, era o negócio de Cartago. Eles ignoravam deliberadamente o fato de que a expansiva Roma nunca deixaria sua cidade em paz. Ironicamente (algo que tem acontecido em guerras posteriores), os vencidos se encontravam na posição de não terem nada para se preocupar, a não ser reconstruir suas fábricas e fortunas, enquanto os vitoriosos se confrontaram imediatamente com uma série de problemas que exigiam quase toda a sua atenção. Roma iria, agora, envolverse numa guerra contra Filipe V da Macedônia, com problemas no Egito, revoltas entre muitas das tribos da 391 Hispânia e a crescente resistência dos gauleses na Itália, bem como na própria Gália. Haviam descoberto que um império não é algo que possa ser facilmente controlado, e sim um vulcão em irrefreável expansão até que alguma fraqueza em suas bordas permita que o fogo transborde — vindo, em seguida, um derradeiro colapso e inércia. Quando Cipião Africano retornou a Roma naquele ano, foi naturalmente recebido em triunfo. Seus feitos na África haviam sido formidáveis, e nem mesmo seus inimigos poderiam negar que ele havia levado a guerra a uma conclusão triunfante. À frente de suas tropas conquistadoras, ele cavalgou através de ruas enfeitadas, enquanto os elefantes de guerra da África, que haviam sido trazidos de Cartago, assombravam o povo com sua estranheza e seu barrido. A Cipião foi dado o cognome "Africano", "O primeiro general que era distinguido por um nome derivado do país que ele havia conquistado". Compreensivelmente, era o herói do momento e provavelmente teria sido feito cônsul perpétuo ou mesmo ditador, como Júlio César, cento e cinquenta anos mais tarde. Sabiamente, recusou quaisquer dessas honrarias e 392 parece ter se contentado em viver a vida de um cavalheiro ocioso, entregando-se à sua paixão pela literatura grega e pela boa conversação, ambas características que devem ter ficado evidentes quando esteve em Siracusa e que o haviam tornado suspeito para uma geração mais velha e mais obstinada de romanos. Desde o fim da guerra e pelos sete anos que se seguiram, Aníbal dedicou-se aos assuntos de seu país e a reconstruir a prosperidade mercantil de Cartago. Não sendo mais o grande expatriado, devotava-se exclusivamente aos assuntos domésticos cartagineses e a garantir que seu país mantivesse sua palavra junto aos romanos. Pode-se questionar se ele ainda nutria ou não pensamentos de vingança, pois a base de poder de Cartago na península Ibérica estava perdida, eles não tinham marinha, e os romanos controlavam o mar, bem como dominavam a bacia do Mediterrâneo por terra. Ao mesmo tempo, deve ter mantido um olho sobre o progresso romano no leste, onde a batalha de Cinoscéfalas, em 197 a.C., deu a Roma sua grande vitória sobre Filipe V da Macedônia, destruindo o poder macedônio para sempre. Filipe foi forçado 393 a entregar sua frota, suas possessões na Grécia, e a pagar uma grande indenização de guerra, como Cartago havia feito e ainda fazia. Foi provavelmente a habilidade financeira de Aníbal que garantiu que Cartago saldasse os seus compromissos — compromissos que os romanos esperavam não serem cumpridos, o que lhes daria motivos para uma invasão — e isso fez com que o ódio dos romanos por ele revivesse. Tinha, também, muitos inimigos entre os cidadãos ricos da casa, pois havia denunciado muitos oficiais de altos postos cujo peculato descobrira. Aníbal deixa Cartago A família Barca, por todos os seus serviços a Cartago, sempre havia tido rivais e inimigos, e também havia aqueles que se apraziam em colocar a culpa pela recente guerra inteiramente sobre Aníbal. O reaquecimento comercial de Cartago, inspirado e dirigido por ele, havia então levantado ciúmes e ressentimento em Roma. Não seria surpresa, assim, que essas duas facções se aliassem no desejo de vê-lo removido do cargo. Foi Cipião Africano quem interveio em favor de seu antigo inimigo, lembrando a eles que não 394 lhes diziam respeito os assuntos puramente cartagineses, mas o ressentimento contra Aníbal não poderia ser contido permanentemente. Em 195, uma comissão foi enviada de Roma a Cartago alegando que Aníbal estava favorecendo um inimigo de Roma. Esse inimigo era Antíoco, o Grande, da Síria, cuja ambição era recriar o império oriental de Alexandre, o Grande, e que quase havia estabelecido seu domínio sobre a Palestina, Fenícia e Chipre. E mais do que provável que Aníbal vira em Antíoco o único governante do leste capaz de desafiar Roma e de restaurar um equilíbrio de poder no Mediterrâneo que permitiria a Cartago, uma vez mais, assegurar sua antiga supremacia sobre a península Ibérica, a Sicília e as outras ilhas centrais do mar. Se houve ou não qualquer correspondência entre eles é algo que nunca será conhecido. Certamente os romanos afirmavam que sim, e foi por isso que seus enviados rumaram para Cartago. Catão, o Ancião, que havia servido a Cipião Africano na Sicília e que invejava profundamente sua fama e posição, era agora cônsul e estava determinado a arrastar Aníbal para Roma. 395 Quando soube do que se passava, Aníbal não teve qualquer ilusão de que seus inimigos em Cartago não viessem a traí-lo junto aos romanos. Conseguiu deixar o país através de uma série de evasões notáveis, fruto de sua habilidade no campo de batalha. Tendo recebido os enviados romanos e os escoltado aos seus quartéis em Birsa, ele foi visto pela cidade, como de costume, durante o dia. Ao cair da noite, contudo, sob pretexto de sair para uma cavalgada no frescor da noite, ele escapuliu para uma vila sua não muito longe de Adrumeto, onde tinha um navio preparado, com seus pertences pessoais e fortuna particular já embarcados, e uma tripulação fiel aguardando por ele. Chegando no dia seguinte à ilha de Cercina, não muito distante da costa, Aníbal foi surpreendido com a presença de outros navios ali a caminho de Cartago, e ele logicamente foi reconhecido pelas tripulações dos navios. Tendo convidado os capitães e tripulações dos navios para jantar consigo, sugeriu que eles, então lisonjeados pelo convite, trouxessem para a terra as velas e mastros de seus navios 396 para que fossem usados como proteção para o sol. O entretenimento durou todo o dia e adentrou a noite, quando Aníbal silenciosamente embarcou e se pôs a caminho. Quando os convidados acordaram no dia seguinte, seu anfitrião havia partido, e, mesmo se eles tivessem alguma intenção de segui-lo e soubessem de seu destino, teriam levado algum tempo para reequipar os navios e segui-lo. Algumas semanas mais tarde, Aníbal desembarcou no velho lar dos fenícios, Tiro, berço de Dido e cidade-mãe de Cartago. Os treze anos restantes da vida de Aníbal são tristes de se contemplar, embora não tão vazios quanto os últimos anos de Napoleão, pois Aníbal permaneceu em liberdade até o dia em que deu cabo de sua própria vida. Foi no ano de 195 a.C., quando o grande herói do Mediterrâneo oriental colocou os pés no berço de sua raça, para ser aclamado por todos aqueles do Levante e da Ásia Menor que viram sua liberdade ameaçada pela sombra de Roma. Logo após a derrota de Filipe V da Macedônia, Roma proclamou-se protetora da Grécia — um ato judicioso que 397 agradou aos gregos e ao mesmo tempo garantiu sua servidão. Somente em Antíoco Aníbal podia ver alguma esperança para o ressurgimento de uma guerra contra a Itália. Antíoco, porém, não desejava envolver-se numa guerra distante no Mediterrâneo central; só estava preocupado em assegurar e ampliar seu império oriental. Ambicionava ser reconhecido na Grécia, mas uma pequena força que enviou para lá foi severamente castigada naquele desfiladeiro de memória clássica, Termópilas, e ele mal conseguiu assegurar a Ásia Menor para si. A reputação de Aníbal não o fazia popular entre os militares e conselheiros que cercavam o rei sírio, e nunca lhe foram dadas a frota e as tropas que pedira para invadir a Itália. Antíoco, com certeza, possuía muitos homens e armas, mas não eram do calibre dos romanos sob nenhum aspecto. Em 189, na Batalha de Magnésia, ele foi conclusivamente derrotado e forçado a desistir da maior parte da Ásia Menor, deixando-a para os romanos e seus aliados. Numa prévia revista ao exército do rei, ainda que fosse aproximadamente duas vezes maior que o 398 exército do inimigo, Aníbal respondera secamente quando perguntaram sua opinião sobre tal grande hoste: "Sim, isso será suficiente para os romanos, mesmo ávidos como eles devem estar". Umas poucas anedotas sobre Aníbal sobreviveram nesses anos em que partiu como exilado de seu próprio país e um declarado "inimigo do povo romano", através das cortes e insignificantes reinos do leste. O seu estilo era lacónico, o imperatoria brevitas, revelado antes em observações como "Roma tem seu Aníbal em Fábio" e "Marcelo era um bom soldado, mas um general imprudente". Convidado em certa ocasião para escutar uma conferência de um velho académico especializado em estudos militares, ele não fez qualquer comentário até que sua opinião fosse especificamente solicitada, quando ele observou tranquilamente: "Em minha vida eu tenho tido que ouvir alguns velhos tolos, mas esse supera a todos eles". Houve um segundo encontro entre Aníbal e Cipião Africano algum tempo antes de Antíoco começar a guerra no leste. Foi enviada uma missão a Éfeso, vinda de 399 Roma, para tentar descobrir a atitude do governante sírio e suas intenções. Cipião Africano, que a liderava, mandou perguntar a Aníbal se ele desejava encontrá-lo, ao que este prontamente assentiu. Os relatos a esse respeito descrevem os dois homens falando de velhos tempos, e Cipião Africano perguntando a Aníbal quem ele pensava ser o maior general da história. "Alexandre, o Grande", Aníbal respondeu, acrescentando que com somente uma pequena força ele derrotou exércitos muito maiores em quantidade do que o seu próprio, e que ele chegara até as mais remotas regiões da Terra. Perguntado sobre quem ele achava ser o próximo, Aníbal pensou por um momento e respondeu: "Pirro" (o rei do Épiro, que havia invadido a Itália em 280), citando seu brilhante julgamento ao escolher o terreno e a cuidadosa disposição de tropas. O romano (era visível que Cipião Africano buscava um elogio) insistiu: "E o terceiro?" "Eu mesmo, sem dúvida." Cipião Africano riu: "E o que você teria dito se tivesse me vencido?" "Então", replicou o cartaginês, "eu teria me 400 colocado como o primeiro de todos os comandantes". Isso se tornou um agradável elogio que sem dúvida deleitou Cipião Africano, o que é o provável motivo de ter sido citado tanto por Lívio[37] quanto por Plutarco.[38] Desses dois grandes soldados-estadistas Arnold comenta que Cipião Africano parecia "o Aquiles de Homero, a mais alta concepção do herói individual, confiante em si e eficiente. Mas o mesmo poeta que concebeu o caráter de Aquiles também concebeu o de Heitor; do herói verdadeiramente nobre porque altruísta, que emprega seu génio para o bem de outros, que vive para suas relações, seus amigos e seu país. E como Cipião Africano vivia para si mesmo, assim como Aquiles, então a virtude de Heitor é merecidamente representada pela vida de seu grande rival, Aníbal, que, da sua infância até a última hora, na guerra ou na paz, através da glória e do esquecimento, entre vitórias e desapontamentos, sempre se lembrou do propósito ao qual seu pai o havia devotado, e não se rendeu a qualquer pensamento, desejo ou feito que o 401 desviasse do serviço que prometera ao seu país". Esses dois destacados homens, tão semelhantes em muitos aspectos, tão dessemelhantes em outros, terminaram suas vidas no exílio. Cipião Africano, a quem Catão havia sempre odiado — por seu amor pela cultura grega quase acima de tudo — foi acusado por esse último e seus amigos no senado de negligência nos fundos públicos. Cipião Africano, em resposta, trouxe seus livros de anotações perante o senado, rasgou-os e disse aos seus acusadores que rastejassem procurando provas entre os pedaços. Ele, então, disse que milhares de talentos de prata haviam adentrado o erário público sob sua representação, e que suas vitórias haviam dado a Roma não somente a Hispânia, mas a África, e agora a Ásia (pois ele também havia atuado em Magnésia). Ele deixou Roma com grande amargura e nunca mais retornou. Aníbal, após a derrota de Antíoco e a conclusão de um tratado de paz entre o rei e Roma, sem dúvida presumiu, e acertadamente, que tal tratado conteria 402 uma cláusula exigindo a sua entrega aos vitoriosos. Rápida e secretamente, partiu de navio para Creta, então uma ilha selvagem e indomada, lar de piratas e de homens que não reconheciam qualquer monarca ou Estado. Ainda ali, não seria deixado em paz. Roma, à medida que se expandia para o leste, e que suas rotas de navegação se tornavam mais extensas, preocupava-se crescentemente com a segurança de sua marinha mercante. Era natural que, no devido tempo os romanos ficassem interessados naquela grande ilha entre o Egeu e o Egito, potencialmente próspera e útil, mas àquela época infestada de piratas. Aníbal havia se estabelecido em Cortina, uma antiga cidade, só perdendo em importância para Cnossos, nos tempos antigos, e situada perto de um pequeno rio cerca de três milhas distante da costa sul. Uma divertida, mas possivelmente apócrifa história, conta como Aníbal, quando ali construiu seu lar, fez questão de depositar abertamente seu tesouro no templo local de Ártemis. Corretamente suspeitando da honestidade cretense (como o apóstolo Paulo, alguns séculos mais tarde), o 403 "tesouro" que ele enviou para ser guardado no templo era não mais que uma decepção; grandes vasos de argila cheios de chumbo com um punhado de moedas de ouro espalhadas bem visivelmente por cima. O grosso de sua fortuna restante foi escondido em algumas estátuas de bronze ocas no jardim de sua casa. No devido tempo, um esquadrão romano visitou Creta em disfarces de piratas, investigando o potencial dos recursos e portos da ilha. Aníbal, em seu retiro, permanecia imperturbável, mas sabia que era questão de tempo até que os romanos soubessem do rico cartaginês vivendo em retiro em Cortina, e descobrissem seu nome. Como ele havia feito em Cartago, e como fizera na corte de Antíoco, Aníbal partiu secreta e rapidamente. Com ele foram as estátuas do seu jardim. Quando os sacerdotes cretenses de Artemis ou os soldados romanos abriram os jarros guardados no templo, pode-se imaginar sua risada irónica ecoando ao vento. Então, Aníbal foi para a remota Bitínia, para o reino de Prúsias I. Mesmo a sua morte não colocou fim à sua influência. Sua memória iria atormentar Roma por 404 todos os séculos da existência do império. Certa vez, estivera próximo aos portões da cidade; certa vez, chegara perto de subjugar o Estado que agora comandava praticamente todo o mundo conhecido. Historiadores e poetas nunca o esqueceram; mesmo os mais ásperos, como Juvenal, lembravam-se daquele horrendo brado: "Aníbal está aos portões!" Lista de batalhas 218 a.C. Novembro: Batalha de Ticino - Aníbal derrota os romanos sob Cipião Africano numa pequena luta de cavalaria. Dezembro: Batalha do Trébia - Aníbal derrota os romanos sob Tibério Semprônio Longo, que atacou de forma inconsequente. 217 a.C. Batalha do Lago Trasimeno - Aníbal destrói o exército romano de Caio Flamínio numa emboscada, matando Caio. 216 a.C. Agosto: Batalha de Canas - Aníbal destrói o exército romano liderado por Lúcio Emílio Paulo e Caio Terêncio Varrão 405 naquilo que foi considerada uma das obras-de-arte em estratégia militar. Primeira Batalha de Nola - O general romano Marco Cláudio Marcelo contém um ataque de Aníbal. 215 a.C. Segunda Batalha de Nola - Marcelo repulsa novamente um ataque de Aníbal. 214 a.C. Terceira Batalha de Nola - Marcelo trava nova batalha, desta vez inconclusiva, contra Aníbal. 212 a.C. Primeira Batalha de Cápua - Aníbal derrota os cônsules Q. Fúlvio Flaco e Ápio Cláudio, mas o exército romano consegue escapar. Batalha do Sílaro - Aníbal destrói o exército do pretor M. Centênio Pênula. Primeira Batalha de Herdónia - Aníbal destrói o exército romano do pretor Cneu Fúlvio. 211 a.C. Batalha de Bétis - Públio e Cneu Cornélio Cipião Calvo são mortos na batalha com os cartagineses sob o irmão de Aníbal, Asdrúbal. Segunda Batalha de Cápua - Aníbal falha em quebrar o cerco da cidade de Roma. 406 210 a.C. Segunda Batalha de Herdónia - Aníbal destrói o exército romano de Fúlvio Centúmalo, que morre em batalha. Batalha de Numistro - Aníbal derrota Marcelo mais uma vez. 209 a.C. Batalha de Ásculo - Aníbal derrota novamente Marcelo, numa batalha indecisiva. 208 a.C. Batalha de Bécula - Na Hispânia, os romanos sob Cipião Africano derrotam Asdrúbal Barca 207 a.C. Batalha de Grumento - O general romano Caio Cláudio Nero trava uma batalha indecisiva contra Aníbal, e marcha para norte para confrontar-se com o irmão, Asdrúbal, que entretanto invadiu a Itália Batalha do Metauro - Asdrúbal é derrotado e morto pelos exércitos combinados de Lívio e Nero. 206 a.C. Batalha de Ilipa - Cipião Africano destrói as forças cartaginesas que restavam na Hispânia; nesta batalha usou a versão inversa da formação usada por Aníbal na batalha de Canas. 407 204 a.C. Batalha de Crotona - Aníbal trava uma batalha inconclusiva com o general Semprônio, no Sul da Itália. 203 a.C. Batalha de Bagbrades - Os romanos sob Cipião Africano derrotam o exército cartaginês de Asdrúbal Gisco e Sífax. Aníbal é chamado a África. 202 a.C. Batalha de Zama (19 de outubro) - Cipião Africano derrota definitivamente Aníbal no Norte de África, terminando a Segunda Guerra Púnica. Legado Cinema e televisão Ano Filme Notas 2008 Hannibal the Conqueror Filme estadunidense dirigido e protagonizado por Vin Diesel no papel de Aníbal.[42] 2006 Hannibal - Le pire cauchemar de Rome Filme produzido pela BBC com Alexander Siddig no papel de Aníbal.[43] 2005 Hannibal V Rome Documentário televisivo produzido por Richard Bedser e veiculado pelo National Geographic Channel[44] com Tamer Hassan no papel de Aníbal.[45] 408 2005 The True Story of Hannibal Documentário televisivo produzido por Mark Hufnail com Benjamin Maccabee no papel de Aníbal.[46] 2001 Hannibal: The Man Who Hated Rome Filme britânico produzido por Patrick Fleming.[47] 1997 The Great Battles of Hannibal Documentário britânico.[48] 1959 Annibale Filme italiano produzido por Edgar George Ulmer e Carlo Ludovico Bragaglia com Victor Mature no papel de Aníbal.[49] 1955 Jupiter's Darling Produzido por George Sidney com Howard Keel no papel de Aníbal.[nota 2] 1937 Scipione l'africano Filme italiano.[50] 1914 Cabiria Filme mudo produzido por Giovanni Pastrone com Emilio Vardannes no papel de Aníbal.[51] Notas Ir para cima ↑ A famosa frase latina da última sentença da conversa é a seguinte: "Vincere scis, Hannibal; victoria uti nescis." Ir para cima ↑ Neste filme, o personagem de Aníbal tem uma participação secundária. 409 Ir para cima ↑ A data de morte de Aníbal costuma ser citada com maior frequência como sendo 183 a.C., porém existe a possibilidade de que ela tenha ocorrido no ano anterior.‖ (https://pt.wikipedia.org/wiki/An%C3%ADbal ) 410