MARTA’S QUEST – CHILDREN OF VIOLENCE COMO BILDUNGSROMAN Cíntia Schwantes (UnB) A série Filhos da violência, de Doris Lessing, é considerada por parte da crítica como um Bildungsroman. Há argumentos contra a leitura que considera apenas o primeiro, ou o primeiro e o último livro da série como romances de formação. Parece bastante óbvio que, se o primeiro e o último livros da série são romances de aprendizagem, os romances que medeiam também devem ser – não há porque considerar o primeiro livro como um Bildungsroman clássico e o último como uma novel of awakening e isolar os volumes restantes como se não fizessem parte da trajetória de formação da protagonista. Além disso, um número significativo de estudiosas de gênero concorda que a formação de uma personagem feminina em uma sociedade patriarcal que a impossibilita em larga medida, demanda um tempo maior para se completar do que a formação de um personagem masculino. A edição brasileira de O sonho de Martha Quest (em inglês, Martha Quest) ressalta, na orelha, que o livro faz parte de uma série e que, como os outros romances, pode ser lido separadamente. Isso é parcialmente verdade. O sonho de Martha Quest termina claramente em aberto, após a cerimônia de casamento de Martha com Douglas; sua seqüência, o segundo livro, A proper marriage (em português, Um casamento perfeito), versa sobre o curto período em que a protagonista permanece casada. O terceiro livro da série, A Ripple from the Storm (em português, O eco distante da tormenta) colocaria problemas de entendimento para o leitor que não tivesse lido os volumes anteriores, ou, ao menos, o primeiro. Os cinco romances da série guardam relações estreitas entre si, evidentemente – quando menos que seja, porque narram o processo de formação de sua protagonista. Em termos de gênero literário, poderíamos afirmar que o primeiro livro da série constitui de fato um Bildungsroman no sentido clássico (o que aparentemente já é consenso, uma vez que essa afirmativa aparece até mesmo em um site sobre a obra de Lessing). No entanto, para abarcar a formação de uma protagonista feminina em um país periférico, o romance, como veremos, é obrigado a proceder a adaptações diversas. Os segundo e terceiro livros da série poderiam mesmo ser entendidos como uma novel of awakening. Os dois últimos livros (Landlocked e The Four-Gated City) podem ser lidos como parte de uma novel of awakening ou, como sugere Bárbara Frey Waxman, configurar um novo gênero, o Reifungsroman, sobre o aprendizado de envelhecer. Para que possamos considerar Martha Quest um Bildungsroman no sentido clássico, precisamos destacar os pontos do romance que permitem estabelecer a filiação genérica. Em primeiro lugar, a protagonista é uma adolescente e a narrativa gira em torno de seu processo de aprendizagem. O conflito de gerações torna-se patente desde as primeiras páginas, uma vez que a aspiração da senhora Quest (educar a filha adequadamente dentro dos padrões ingleses de bom comportamento) colide com as aspirações da própria Martha. Além disso, como o romance deixa claro, a África do Sul certamente não é o lugar ideal para levar a cabo esse ideal de educação (embora não seja muito mais propício aos planos de Martha tampouco). A formação intelectual (parte importante de um Bildungsroman), no entanto, vai sofrer com as restrições do meio. Martha é, em alguma medida, autodidata, aprendendo através de suas leituras. A figura do mentor, importante tanto no aprendizado acadêmico quanto no de vida, encontra-se apenas imperfeitamente personificada pelos irmãos Cohen. Eles têm um acesso, que parece a Martha ilimitado, aos “livros certos”, mas tem a mesma idade que ela e encontram-se, igualmente, na posição de autodidatas. Eles contam com a vantagem (nada desprezível) de serem homens, nascidos em uma família que preza o conhecimento. É apenas isso que os coloca em posição relativamente privilegiada e portanto em condições de exercerem a função de mentores da protagonista. Acresce-se a isso o fato de que Martha não terá outros mentores a seu alcance. No entanto, a idade de ambos acaba por constituir um empecilho ao processo de aprendizagem de Martha, uma vez que a proximidade dela com os rapazes Cohen, Joss e Solly, suscita fofocas (a Sra Van Rensberg, uma vizinha, afirma que Joss tem uma queda por Martha. Em virtude desse comentário, Martha afasta-se de ambos, embora sinta muita falta da única interlocução com a qual conta). Então, a figura do mentor, como a própria formação acadêmica de Martha, sofre severamente com as restrições impostas pelo meio. Por outro lado, não cabe na trajetória da personagem a figura do mentor do Bildungsroman feminino doméstico, o homem que educa a protagonista pra tornar-se sua esposa. Tanto que, apesar de perceber que os irmãos passam a crer q ela aderira ao anti-semitismo velado da população local, Martha continua afastada deles. É pelas mãos dos irmãos Cohen que Martha realiza outro passo importante de sua formação, e na constituição de um Bildungsroman. Eles conseguem para ela um emprego como datilógrafa no escritório do tio advogado, cumprindo o requisito da viagem do protagonista a uma cidade maior para fins de formação. A viagem, no entanto, é para a pequena cidade próxima à fazenda de seus pais, que não oferece de fato grandes oportunidades de formação acadêmica para Martha. O curso no qual ela se matricula, na Escola Politécnica, é de estenografia, e dificilmente poderia ser considerado um passo importante na formação acadêmica da protagonista. As idéias de esquerda, compartilhadas com os irmãos Cohen, encontram pouco espaço no Clube do Livro de Esquerda, cujos membros, como afirma Joss, “só falam”. Se levarmos em conta que a intelectualidade de esquerda da primeira metade do séc. XX foi intensamente militante, a decepção de Martha será mais facilmente entendida. Após a primeira reunião a que comparece, e na qual um dos membros, que é casado, faz um convite mais ou menos equívoco para um jantar a dois, ela se afasta do grupo. No quesito educação sentimental, novamente, Martha não tem como seguir o padrão do Bildungsroman tradicional, que prevê dois casos de amor, um mal e um bem sucedido, de modos que o protagonista aprenda a lidar com sucesso e fracassos sentimentais igualmente (o uso do masculino é proposital, uma vez que o Bildungsroman clássico prevê um protagonista masculino, e em especial no que tange à educação sentimental). Donovan, o filho de uma amiga da senhora Quest, seu primeiro parceiro, é homossexual e em certos momentos, francamente hostil em relação à Martha. Ele jamais faz amor com ela; antes, usa-a como uma tela branca onde ele exercita seu senso estético. Seu segundo parceiro é Adolph King, o saxofonista de um dos bares que a juventude dourada da cidade freqüenta, e, embora tenha se concretizado em termos sexuais, é um relacionamento complicado: o rapaz (que é judeu) é patologicamente ciumento em relação a Martha. Donovan e o resto do grupo pressionam o rapaz, que acaba desistindo do relacionamento com Martha. Aliás, de um modo geral, as relações amorosas passam pelas relações de grupo, às quais, de fato, são subordinadas. A juventude é uma tribo com suas próprias leis, que se sobrepõem aos interesses amorosos de seus membros. Após esse rompimento, Martha conhece Douglas, um dos membros da juventude dourada da cidade. Ele professa, com a discrição esperável de um inglês, idéias de esquerda. Esse fato desperta o interesse de Martha (mais tarde o ideário liberal de Douglas provará ser bem mais ineficaz e superficial do que parecera em um primeiro momento). Mesmo acreditando que está cometendo um erro, e de certa forma empurrada pelo espírito do momento, aquele imediatamente anterior à eclosão da Segunda Grande Guerra, Martha casa-se com Douglas. Novamente, o final esperado de um Bildungsroman feminino – o casamento com um bom partido – acontece, mas desfocado, fora do que seria esperado. O romance termina em aberto com uma nota pessimista provida pelos pensamentos do juiz Maynard sobre quantos daqueles “casamentos de guerra” terminariam em divórcios. Assim, o romance se encerra com todos os passos de um Bildungsroman cumpridos e, no entanto, em aberto. O anseio de Martha por formação, evidente ao longo de toda a narrativa, se concretiza sempre de forma imperfeita. Seu meio não tem como sustentar suas aspirações. Dessa forma, seu aprendizado não é impossibilitado apenas pelas limitações que uma sociedade patriarcal impõe a uma protagonista feminina, mas também pelas limitações próprias de um país periférico que, se são colocadas para a consecução de uma formação de classe média inglesa como deseja a senhora Quest, o são também para uma formação libertária, de esquerda, como deseja Martha. Ao fim e ao cabo, sua trajetória será aquela possibilitada por seu meio e sua época – que é muito mais próxima ao ideal da senhora Quest que ao da própria Martha. Não é portanto de estranhar que o processo de aprendizagem da personagem precise continuar. Nos segundo e terceiro volumes da série, Martha completará a trajetória de uma novel of awakening, aquela em que a protagonista cumpre um destino de mulher (casar-se, ter filhos, ocupar um lugar no grupo social, de acordo com a posição do marido), apenas para descobrir-se profundamente insatisfeita e procurar outras realizações. É menos o adultério do marido do que as limitações impostas pelo casamento e pela maternidade que movem Martha para fora do casamento, e a decisão de abandonar a filha prende-se menos a motivos práticos (facilitar o processo de divórcio, além do peso do encargo de criar a filha sozinha) do que a convicção da personagem de que não está em condições de maternar a criança. Assim, em A Ripple from the Storm, nós a encontramos, sozinha, retomando o emprego no escritório do senhor Cohen, parcialmente banida da sociedade e prosseguindo sua formação em outras condições, aquelas criadas pela guerra, dentro da célula do partido comunista, em convivência com pessoas que compartilham de seu ideário. Em alguns romances, a vivência de determinados eventos históricos fazem parte do coração da narrativa, e esse é o caso de A Ripple from the Storm. Esse não é um romance histórico, no entanto, eventos de conhecimento geral são narrados em certo detalhe, para que o próprio enredo possa ser entendido. Por exemplo, uma informação necessária para o entendimento do romance é a de que Hitler havia preparado a Alemanha para uma guerra rápida, a ser vencida em pouco tempo. Por isso, a principal tarefa dos aliados nos primeiros dois anos da guerra foi ganhar tempo, e as primeiras vitórias aliadas foram em território africano, e não europeu (não é por acaso que Casablanca é um dos mais famosos dos filmes sobre a Segunda Grande Guerra). Igualmente, as vitórias aliadas na Rússia ajudaram a comprar tempo e mudar o curso da guerra. Assim, embora o Reino Unido, a França e a URSS fossem aliados circunstanciais, as vitórias em território russo granjearam simpatia aos membros do Partido Comunista que lutavam no front ou esperavam ser chamados em acampamentos militares. É o caso, por exemplo, de Jackie Bolton, o amante de Jasmine, e William, de Martha, aviadores e membros do partido. O fato de que Stalin assinara, em 1939, um pacto de não agressão com Hitler (fato que Churchill nunca esqueceu nem perdoou) não obliterava a importância das vitórias do Exército Vermelho. No grupo de Martha, Jackie, Andrew McGrew, William Brown, Bill Bluet e Jimmy são rapazes ingleses, filhos da pequena burguesia ou do proletariado urbano. O líder do grupo, Anton Hesse, é um exilado alemão que, apesar de ter tido que fugir da Alemanha por sua oposição à política do Reich, enfrentava alguma desconfiança por ser um dos “inimigos”. Sua militância, ao invés de servir como salvaguarda, o torna ainda mais suspeito para as autoridades sul-africanas. A União da África do Sul, à época da II Guerra Mundial, fazia parte da Commonwealth, e ainda carregava uma memória muita viva da Segunda Guerra dos Bôeres, que anexara o território colonizado por africânders ao império britânico. Leis de reassentamento da população rural negra e de configuração do espaço urbano já se encontravam em vigor. Além disso, a guerra estava sacudindo aquela sociedade periférica, que mudava muito rápido, e ainda assim, não rápido o suficiente. Acampamentos da RAF, intensa discussão de qual deveria ser a participação do país na guerra, como membro da Commonwealth, (o país juntou-se à Grã-Bretanha na guerra na primeira semans de sua declaração) trânsito de idéias novas trazidas por pessoas, por jornais, por livros que chegavam ao país com mais facilidade, exatamente por causa da guerra, pareciam estar varrendo a África do Sul permanentemente. É nesse momento de muitas possibilidades que Martha e seu grupo procuram construir uma sociedade mais justa, menos preconceituosa, mais moderna. Não precisamos ler o romance para saber que eles falharam, e que as forças conservadoras ganharam terreno e impuseram leis e relações de trabalho e propriedade cada vez mais opressivas para a população negra. O romance, no entanto, faz parte de um esforço de entendimento das razões por que as forças progressistas falharam. A primeira, e mais evidente, embora nunca seja explicitamente apontada na narrativa, é o simples fato de que a quantidade de pessoas engajadas com as mudanças era quase insignificante. Os conservadores detinham a maior parte dos cargos públicos e dos cargos eletivos, a população de classe média, toda branca, não desejava mudanças porque temia a população negra, em parte por preconceito de classe e em parte por preconceito étnico. E a população proletária, que poderia se engajar na luta de classes, não apenas temia a autoridade e, portanto, via com algum distanciamento os militantes, que eram brancos, como também falava o inglês pouco e mal, de modos que a possibilidade de comunicação se via restrita não só pelas barreiras de classe como também por barreiras lingüísticas. Além disso, era uma população tão despossuída que o próprio vagar necessário para pensar em sua situação teria sido um luxo impensável para seus membros. Não bastasse estarem em tão evidente desvantagem numérica, os grupos engajados com as mudanças sociais também entretinham relações de rivalidade. Assim, os membros do Clube do Livro de Esquerda eram vistos como social-democratas que “só falam”, o grupo trotskista competia abertamente com os membros do Partido Comunista, de orientação stalinista, e vice-versa, e os sindicalistas, mesmo quando lutavam a favor de direitos trabalhistas para a população negra, eram encarados por todos os outros grupos como moderados em excesso, reformistas que poderiam ser apenas aliados contingenciais. Esse não será o único problema a ser enfrentado. Dentro do próprio grupo do partido, disputas por poder são constantes. Jackie se comporta, segundo os companheiros, como um anarquista; Anton insiste, em horas evidentemente não apropriadas, em reunir o grupo para aulas de ideologia marxista ministradas por ele, uma forma evidente de concentrar poder em suas mãos; a hostilidade entre Andrew e Anton é visível. O que Martha descobre nessa etapa de sua formação é que nem sempre as ações acompanham as convicções, e que os membros do partido são apenas humanos, movidos pelas mesmas paixões que assombram o comum dos mortais. Alianças valiosas com forças progressistas são inviabilizadas por questões de vaidade pessoal, relações de gênero revolucionárias em sua origem são contaminadas por ciúmes e sentimentos de posse, a luta por poder acontece no interior do próprio grupo, antes de acontecer em um cenário social mais amplo. O advento da guerra, por outro lado, quebrou vários paradigmas, e esse seria o momento propício para que as forças políticas progressistas tomassem a dianteira – o que é impossibilitado por suas divisões internas (sabemos que, ao contrário, na África do Sul o pós-guerra trouxe o fortalecimento da direita, com a aprovação progressiva de leis racistas que culminou no apparheit). Por esse motivo, a formação de Martha precisará se estender por mais dois volumes – ela deixará a África do Sul para radicar-se na Inglaterra. Landlocked, o quarto volume da série, a encontra morando na Inglaterra e revisitando alguns clássicos do romance de formação feminina inglesa. Ela se torna governanta de um professor cuja esposa enlouqueceu e, reescrevendo o enredo de Jane Eyre, resgata a esposa louca, com quem vai morar em um pequeno apartamento em um porão. Com toda a carga simbólica ligada ao porão, lócus do inconsciente, o que Martha descobre é que Linda não é de fato louca – o que ela tem são premonições muito vívidas de desastres vindouros. Essa é a primeira aparição de um toque de misticismo que marcará o último volume da série, The Four-Gated City. É apenas nele que a vamos encontrar, como uma protagonista de Bildungsroman, em um meio social mais aberto, capaz de sustentar suas aspirações. BIBLIOGRAFIA BUTCHER, Margareth K. 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