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HUMANOS E VÍRUS: UMA UNIÃO DURADOURA
O estudo da evolução humana tem priorizado os ancestrais hominídeos e
desconsiderado os outros organismos que se desenvolveram no mesmo ambiente que
a espécie humana.
Espécies usadas na alimentação, espécies predadoras e agentes causadores de
doenças desempenharam funções importantes na evolução humana. Como causa
significativa de mortalidade e morbidade (enfermidade) e graças à sua capacidade de
atuar
como
parasitas
genéticos
moleculares,
os
vírus
ocupam
uma
posição
estratégica na evolução de seus hospedeiros.
Já faz algumas décadas que a luta contra as doenças infecciosas vem sendo
considerada um importante processo evolutivo. Uma doença que mata ou diminui a
fertilidade de determinada espécie pode ser considerada um agente seletivo. Ela pode
trazer vantagens ou desvantagens para uma espécie em competição com outras. A
maioria das espécies apresenta diversidade genética para a formação de anticorpos
que atuam na resistência a doenças. Considerando-se a velocidade com que novos
patógenos se desenvolvem (em geral muito mais rápido que as defesas do
hospedeiro), é interessante que o hospedeiro possua diversidade genética e elevada
taxa de mutação nos lócus gênicos relacionados à resistência a doenças.
Os vírus podem afetar também a evolução de seus hospedeiros, interagindo
diretamente com seu DNA. Devido a sua simplicidade estrutural e sua dependência da
maquinaria de replicação e transcrição da célula hospedeira, os vírus atuam como
parasitas genéticos moleculares, podendo alterar o genoma do hospedeiro. Os vírus
animais são agrupados em famílias, de acordo com a natureza de seu genoma viral:
existem vírus de DNA de fita dupla, vírus de DNA de fita simples, vírus de RNA de fita
dupla, vírus de RNA de fita simples. Os últimos, de acordo com sua estratégia de
replicação, podem ser de fita positiva ou de fita negativa (retrovírus).
O genoma de quase todos os vírus de DNA é constituído por DNA de fita dupla,
semelhante ao genoma das células que infectam. Essa similaridade em estrutura e
replicação propicia a esses vírus de DNA uma relação molecular muito íntima com o
genoma de seus hospedeiros, ao qual são capazes de se integrar, sendo passados
para a próxima geração como se fossem uma característica mendeliana. Comparados
com os vírus de RNA, os vírus de DNA tendem a infectar tipos específicos de células
de uma única espécie hospedeira. Muitos vírus de DNA adotam a persistência como
estratégia de vida, o que resulta em infecções crônicas e latentes do hospedeiro com
longos períodos de inatividade do vírus e também em sua capacidade de se manter
em pequenas populações de hospedeiros por períodos prolongados. Os vírus de DNA
tendem, portanto, a ser mais estáveis que os vírus de RNA.
Os primeiros hominídeos provavelmente já transportavam vários tipos de vírus
de DNA, que se diversificaram e migraram juntamente com a população humana. As
filogenias desses grupos de vírus coincidem com as relações evolutivas de seus
hospedeiros primatas, indicando um padrão de coevolução.
O genoma de aproximadamente 70% dos vírus que infectam animais se
apresenta na forma de RNA. O processo de replicação desses vírus é mais propenso a
erros, com elevadas taxas de substituição de nucleotídeos (de 10 a 100 mil vezes
maior que as dos vírus de DNA e genoma celular) pelas enzimas virais, que
tipicamente não possuem sistema de reparo (detecção do nucleotídeo emparelhado
de forma incorreta e substituição pelo nucleotídeo correto). Desse modo, os vírus de
RNA possuem elevada taxa de mutação, o que lhes confere incrível capacidade de se
adaptar a novos hospedeiros e de aumentar sua virulência. Os vírus de RNA são
menos específicos em relação ao hospedeiro que os vírus de DNA e podem se
transmitir facilmente entre diferentes espécies animais: quase todas as zoonoses
virais (doenças transmitidas por qualquer animal para o ser humano) e vírus
emergentes são vírus de RNA.
Apesar de alguns vírus de RNA causarem infecções inaparentes em hospedeiros
que são seus reservatórios naturais, a maioria realiza ciclos contínuos de replicação e
montagem de novos vírus, que afetam o hospedeiro.
A
maioria
dos
vírus
de
RNA
que
afeta
humanos
foi
adquirida
mais
recentemente, durante o período Neolítico, há aproximadamente 10 mil anos, quando
os seres humanos e os animais domésticos entraram em contato mais íntimo, e os
excedentes agrícolas e a diminuição da vida nômade atraíram os roedores
transportadores de doenças.
Os retrovírus são vírus de RNA, e esse ácido nucleico é transcrito de forma
reversa por uma enzima do próprio vírus, chamada transcriptase reversa. Com isso,
gera-se uma cópia de DNA a partir do RNA. Essa cópia, chamada provírus, incorporase ao DNA nuclear da célula hospedeira e pode ser transcrita em moléculas de RNA.
Estas passam para o citoplasma, onde comandam a síntese de proteínas virais,
gerando muitos novos vírus. As taxas de mutação dos retrovírus são ainda maiores
que as dos demais vírus de RNA.
O provírus inserido no genoma celular pode ser replicado pela DNA polimerase
da célula hospedeira com taxa de erro muito menor. Integrados ao genoma
hospedeiro, esses vírus escapam igualmente da detecção pelo sistema imunológico,
tornando-se semelhantes aos vírus de DNA. Os retrovírus que tendem a se integrar
ao genoma, como o vírus dos linfócitos T humanos (HTLV), são caracterizados por
menores taxas de mutação e menor diversidade de sequência nucleotídica, enquanto
os retrovírus que produzem ciclos contínuos de replicação, como o vírus da
imunodeficiência humana (HIV), apresentam populações geneticamente mais diversas
e taxas de mutação mais rápidas. Estima-se que exista um nucleotídeo diferente no
genoma do HIV para cada ser humano infectado.
Os provírus integrados ao genoma do hospedeiro, conhecidos como retrovírus
endógenos e que perderam a capacidade de produzir partículas infecciosas, tiveram
suas sequências nucleotídicas multiplicadas e inseridas em vários pontos do genoma
hospedeiro. Estima-se que 8% do genoma humano seja constituído por sequências de
retrovírus endógenos.
Dada sua habilidade em se inserir em regiões adjacentes aos lócus gênicos, os
retrovírus endógenos humanos podem ter afetado diretamente a expressão gênica do
hospedeiro e participado do processo evolutivo humano.
Traduzido e adaptado por Sônia Lopes e Luciano Luna Rodrigues, em dezembro de 2004, do artigo
“Role of Viruses in Human Evolution”, de Linda M. Van Blerkon, publicado no Yearbook of Physical
Anthropology, v. 46, p. 14-46, 2003.
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