A MULHER PACIENTE DE CÂNCER E SEUS DIREITOS

A MULHER PACIENTE DE CÂNCER E SEUS DIREITOS
Valéria de Cássia Lopes*
“A vida é como um desfiladeiro, onde partem tiros
disparados a esmo. As balas podem acertar um, mas
derrubam com freqüência os velhos, as crianças, os
debilitados, os que não têm privilégios.”
(Drauzio Varella, em Por um fio)
RESUMO
O alto custo do tratamento de câncer de mama dificulta o atendimento médico
público ou privado. As perícias do Estado, não têm reconhecido o direito de
aposentadoria, auxilio doença, isenção de impostos, e retiradas de fundos de
garantia e previdência. As perícias privadas impedem o levantamento de prêmios
das apólices de seguro em casos de invalidez, e a perda do emprego póstratamento , contribui para empobrecimento, depressão e recidiva de câncer.
A incidência, prevalência e taxa de mortalidade em casos de câncer de mama
representam grave problema de saúde da mulher, portanto, de saúde coletiva,
atingindo as classes menos favorecidas, maiores vítimas de falta de informação,
acesso e desrespeito aos seus direitos básicos. O Estado mostra-se incapaz e
omisso em custear a implantação de Programas de Prevenção, Diagnóstico e
Tratamento Precoce efetivos, ainda que a Constituição garanta ao Cidadão o
Direito à Saúde. A busca da tutela jurisdicional representa alternativa única na
garantia dos direitos da paciente.
Palavras-chave: câncer de mama, tutela jurisdicional; direitos das mulheres.
* Advogada, especialista em Direito de Família, especialista em Direito Médico, Membro da
Comissão da Mulher Advogada da OAB-PR, advogada da Associação Amigas da Mama-PR.
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INTRODUÇÃO
Quando consideramos a “Declaração Universal dos Direitos do
Homem” reconhecendo a dignidade inerente à pessoa humana e seus direitos
iguais e inalienáveis como fundamento da liberdade, da justiça e da paz no
mundo e o essencial respeito aos direitos, que devem ser protegidos pela
Lei, devemos ressaltar o art. 1: “Todos os homens nascem livres e iguais em
dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em
relação uns aos outros com espírito de fraternidade”.
Não podemos também deixar de lembrar o art 5º da Constituição
Federal do Brasil, quando nos referimos às portadoras de câncer e de doenças
degenerativas crônicas, problemas considerados, hoje, como de Saúde Pública
no Brasil.
É notório que, quando se adquire uma doença grave, o patamar de
igualdade entre cidadãos apresenta um novo quadro, uma nova categoria,
pois agora o doente, além de buscar a manutenção da vida, tem muitos
encargos, o afastamento do seu cotidiano, o tratamento muitas vezes agressivo
às funções do seu organismo, os medicamentos, uma alimentação
diferenciada, seu novo papel no âmbito familiar, a dependência de outras
pessoas e até sistema de terapia psicológica para o enfrentamento da doença.
Se nós todos somos iguais perante a lei, o fator doença determina
um desequilíbrio na ordem social de acordo com a teoria do direito, e deve
ser re-equilibrada. Não falamos aqui em benefícios, mas em uma
compensação na ordem jurídica, onde a mesma fixou leis, no intuito de
minimizar essas diferenças, oferecendo ao cidadão portador de doença
degenerativa crônica um respaldo para o atendimento dessas necessidades
e mantendo seu equilíbrio psíquico enquanto o cidadão permanecer nesta
condição de fragilidade, hipo-suficiência perante o Estado e os outros cidadãos.
Historicamente, desde a filosofia grega discute-se a noção objetiva e
subjetiva de direitos; a noção subjetiva tomou corpo na filosofia Platônica, na
busca da idéia de valor ontológico de Homem e Estado perfeitos. A justiça
objetiva tem sua gênese em Pitágoras, no século V a.c., em que a idéia
fundamental é de que a justiça é uma relação do tipo matemática, concebida
como igualdade pela distribuição de bens e pela retribuição do que se recebe.
Cabe também citar o gênio Aristóteles que introduziu um princípio de
equilíbrio na rigidez matemática da justiça. Falamos da eqüidade, que deve
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atender não somente aos méritos, mas equiparar a exata proporcionalidade
entre o fator permissivo e coercitivo, sem a provocação de nenhum risco
interpretativo ou discriminatório que venha a omitir nenhum direito consagrado
do ser humano e determinar nenhum fator que exponha a risco ou provoque
diferenciação entre iguais, e que agrida, assim, um direito maior do ser humano,
de sua liberdade de usufruir seus direitos ditados pelo ordenamento jurídico e
outorgados pelo Estado.
A questão caberia para todo e qualquer portador de patologia grave,
mas em especial a uma classe que, embora em números se represente
estatisticamente maior nos censos populacionais brasileiros, pode ser
classificada como minoria, pela própria condição social imposta às mulheres;
sim, às mulheres, que, por sua trajetória na história, foram relegadas às
atividades no lar e à procriação. Quando essas mulheres, no mercado de
trabalho, sofrem um sortilégio de discriminação em forma de salários e
hierarquia inferiores aos masculinos, assédio moral, dentre outros, motivos
estes que contribuem para um número crescente de mortes e incapacidade
total para o trabalho de mulheres atingidas por doenças graves, degenerativas,
em especial o câncer no aparelho reprodutor e mama, responsáveis por
mortes prematuras em mulheres na faixa etária a partir dos 30 anos de idade.
O impacto do diagnóstico de câncer é capaz de transformar física e
psicologicamente qualquer ser humano, e principalmente aqueles que têm
o papel social de manter a família. O desencadeamento deste acontecimento
no seio familiar tem efeito cascata, nos âmbitos psicológico, físico e financeiro,
e torna-se fato jurídico quando busca a saúde através do SUS ou do sistema
privado de saúde, quando se lança mão da Previdência Social, FGTS, PIS/
Pasep, isenções de impostos, direitos trabalhistas, direitos de consumidora,
recebimentos de seguros privados, quitação de financiamento imobiliário,
andamento prioritário na justiça, transporte urbano e interestadual gratuitos,
cirurgias reparadoras gratuitas, cuidados paliativos domiciliares gratuidade
de medicamentos de uso contínuo, dentre outros direitos dos pacientes de
doenças degenerativas descritas em Lei, mas que na maioria dos casos, para
efetivá-los e garanti-los, temos que buscar a Tutela judicial.
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1 DA GARANTIA DE MEDICAMENTOS DE SAÚDE PELO ESTADO
Apesar da filosofia de que o medicamento compõe um direito à vida, e
a contraposição à realidade de tratar de produto lucrativo de interesse comercial,
a paciente de câncer (principalmente as portadoras de câncer de mama, devido
ao crescente número, e pelo fato de que, após a quimioterapia, radioterapia e
cirurgias, há a necessidade de uso contínuo de medicamentos, que representam,
em média, valores referentes, quando pouco, a dois ou mais salários mínimos
mensais). Este fato é responsável pelo abandono do tratamento por parte da
paciente ou pela busca de entidades não-governamentais, quando o hospital
em que fez o tratamento não lhe fornece os medicamentos.
A questão vem sendo suprida em nosso Estado e na capital, mas
somente para aquelas mulheres que realizaram o tratamento pelo Sistema
Único de Saúde (SUS). Percebemos que fatores de risco, como a falta de
informação e as dificuldades burocráticas criadas pelos postos de saúde,
representam encargo por demais honeroso para a paciente, sendo comum
constatar o sofrimento pela doença associado à falta de recursos financeiros,
o que constitui, muitas vezes, motivo para uma aceleração no processo da
morte do seu portador.
Para a parcela de mulheres que possuem plano de saúde ou tiveram
seu tratamento feito em hospitais particulares, a regra tem sido que o
tratamento é custeado por elas próprias, por parentes ou por alimentantes.
Ressalte-se, em primeiro lugar, que a Lei n° 9.313/96 não estabelece
qualquer distinção econômica entre os portadores do HIV: todos têm acesso ao
recebimento gratuito dos medicamentos, independentemente da demonstração
de necessidade, miserabilidade ou qualquer outra circunstância subjetiva.
A lei estabelece que os medicamentos tornados disponíveis serão
aqueles constantes de relação padronizada do Ministério da Saúde, relação
esta que deverá ser atualizada anualmente, ou sempre que novas descobertas
científicas o recomendarem; nesta relação não constam medicamentos em
fase de aprovação pela Anvisa e/ou medicamentos importados. Ela prevê
que os recursos para a aquisição dos remédios serão oriundos dos orçamentos
da seguridade social da União, dos Estados e dos Municípios, “conforme
regulamento”. Com efeito, aprovada a lei, nem por isso Estados e Municípios
réus deixaram de se escusar invocando a falta de precisão no texto da norma
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e sustentando a necessidade de que os regulamentos previstos fossem
baixados. A falta de clareza quanto ao titular do dever jurídico fazia com que
Estados e Municípios alegassem um a responsabilidade do outro, e, não raras
vezes, que pedissem a intimação da União para intervir no feito, o que, na
hipótese de deferimento, carrearia a incompetência da Justiça Estadual,
atrasando a prestação jurisdicional e, desta forma, colocando em risco a
sobrevivência dos autores.
Circunstâncias as mais variadas, porém, fizeram com que o argumento
da insuficiência do texto legal, outrora fatalmente admitido, não obtivesse mais
a acolhida dos tribunais, que, invertendo a tendência anterior, passaram a
condenar o Estado não apenas à entrega de medicamentos, mas também à
prestação dos serviços médicos necessários ao tratamento da síndrome.
Impulsionadas por essa mudança no padrão decisório, ações versando o
fornecimento de medicamentos para outras doenças foram se tornando cada
vez mais freqüentes e com maior porcentagem de êxito. O sucesso dos
soropositivos impulsionou o reconhecimento do direito aos medicamentos por
parte de outras classes de doentes, a despeito da inexistência de estatuto legal
que amparasse esta extensão. Deve-se frisar a existência, em certas unidades da
federação, de diplomas que consagravam o fornecimento de medicamentos
mesmo antes da Lei Federal nº 9.313/96. Nesta trilha, sobressai o exemplo do
Rio Grande do Sul, onde a Lei Estadual nº 9.908/93, determinando o fornecimento
gratuito de medicamentos excepcionais a pessoas carentes de recursos, já
impulsionava a propositura e o acolhimento de ações do gênero.
Sobretudo nossas associações e ligas de combate ao câncer ainda
encontram-se pouco organizadas e/ou articuladas com as políticas de saúde
pública, e se por um lado auxiliam pequena parcela de portadores com
procedimento de auxílio psicológico e assistencial, pecam pela falta de
representatividade junto ao Ministério da Saúde, Poder Judiciário, e
principalmente não conseguem dissociar-se da garantia financeira dos grandes
laboratórios que monopolizam o mercado de medicamentos oncológicos.
Essa falta de força reivindicatória traduz a realidade da maioria das
ONGs existentes em nosso país, e ao mesmo passo que tentam crescer com
a ajuda de voluntariado e boa vontade da comunidade atingida e solidária
ao problema, assumem um dever do Estado precariamente, e de certa forma
maquiam a atuação do mesmo, pois órgãos governamentais e políticos usam
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o trabalho de ONGs como propaganda, fachada, para esconder uma obrigação
que não tem sido cumprida para com a sociedade.
A implantação de uma rede reivindicatória de ONGs, Associações e
comunidade organizada, contra patentes estrangeiras, que são o principal motivo
dos altos valores de medicamentos para o tratamento de câncer, somada à política
pública austera – não somente assistencial mas que, através de Leis severas,
puna autoridades responsáveis pela saúde e medicamentos –, seriam um começo
para a moralização da atuação do Estado em relação à saúde.
O que se pretende é garantir o direito de continuar vivo até que o
criador imponha sua vontade e permita que o destino já traçado seja
cumprido, sem interferências externas.
Como já disse, lá das Minas Gerais, o pranteado Evaldo D’assunção,
médico-cirurgião plástico: o suicídio, o aborto, a eutanásia são intromissões
do homem em seu tempo de vida e no tempo de vida de seu semelhante, e,
como o homem não é capaz de criar a vida do nada, não pode tirar a vida
como se nada fosse.
As omissões do Estado, atuando contrariamente ao interesse do doente
e da medicina, atuam de forma semelhante à prática da eutanásia, pois
abreviam a vida do doente, de forma ativa ou de forma passiva.
O filósofo cínico Antístenes, quatro séculos a.C., dizia: a felicidade
não se encontra na riqueza, no poder, na beleza, e como não se encontra nas
coisas externas, casuais e efêmeras, a felicidade pode ser alcançada por todos.
A Justiça pode conceder um tempo de felicidade Rogo quantas vezes
for necessário, ao Sistema Judiciário Brasileiro, que conceda dias, meses ou
anos de felicidade aos portadores de câncer, pois sua vida, seu tempo de
vida, sua felicidade dependem de prolongar sua saúde, e a medicina e o
direito são os instrumentos para isto, mas depende de cada um de nós,
também, verdade magistralmente expressa por Fidel Castro: “o conceito de
justiça está acima do que pensam os filósofos, os juristas, os teóricos; o
povo tem dela um sentido profundo”.
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2 DA GARANTIA DE TRATAMENTO POR PLANOS PRIVADOS DE
SAÚDE E A CONFIGURAÇÃO DE CONTRATO DE CONSUMO
Nos casos em que a doença incide sobre aqueles que gozam de
maior privilégio econômico na sociedade, e que buscam nas operadoras de
plano da saúde a eficiência de tratamento, tem-se que os contratos dos
mesmos criam uma ilusão de suporte na doença, o que significa que nem
sempre há a garantia total de tratamento nos casos de câncer.
Muitas vezes o tratamento atinge somas elevadas, seja pelo número
contínuo de exames complementares, procedimentos e cirurgias, seja pelo
tratamento de quimioterapia, que demanda medicamentos considerados
caros. Assim, ao atingir determinado patamar de procedimentos com elevado
custo, é comum os planos privados de saúde negarem a liberação do
procedimento a ser realizado, através de análises de auditorias médicas,
quando o critério deixa de ser técnico a passa a ser financeiro.
Esquecem as operadoras que atuam nesse mercado com concessão
do Estado por previsão constitucional que essa delegação pretende sempre
oferecer saúde dentro do princípio da eqüidade, e jamais ser um instrumento
que objetiva apenas o lucro desmedido.
Entre os recursos valorizados pela sociedade está a saúde, mas
infelizmente sua distribuição é injusta, desigual e sem critérios humanísticos.
Algumas pessoas recebem mais que outras.
Estamos em um mercado capitalista, onde o lucro é o objeto, mas
quando se trata de saúde o lucro deve ser uma conseqüência natural dentro
do princípio da proporcionalidade. Contudo, a finalidade principal de quem
tem a delegação do Estado é atuar como se o Estado fosse.
As justificativas, por parte dessas operadoras, estão sempre de acordo
com pequenas brechas das cláusulas contratuais, que são estabelecidas com
base nas Leis que regulam a atuação dos planos privados de saúde no Brasil.
Apesar de trazer a garantia de tratamentos como o de quimioterapia e
radioterapia, o que se nota é que os planos têm negado tais procedimentos,
tornando-se mais compensador, aos mesmos, estar munidos de um setor
jurídico especializado nas defesas das possíveis ações judiciais que buscam
o tratamento, em vez de liberarem em primeira mão os medicamentos
considerados por demais onerosos, afinal nem todos os pacientes buscam a
Tutela judicial para efetivar seus direitos.
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Desse modo, o que por certo resulta em uma economia aos planos
privados demonstra um total desrespeito ao paciente como ser humano,
contratante, expondo-o ao risco da própria vida ou a danos físicos
irrecuperáveis sem o devido tratamento.
Sobretudo os danos não se limitam somente ao plano físico. O aspecto
psicológico do paciente de câncer é preponderante às respostas do
tratamento. Imaginar um paciente oncológico privado de seu tratamento,
quando este representa a única chance de vida ao seu portador, é por demais
agressivo e ofende ao direito natural de sobreviver, o que demandaria não
somente a reparação no âmbito civil, mas também na esfera criminal.
No momento de consciência da gravidade da doença, passada a fase
de revolta, incompreensão e frustração, o ser humano adquire uma vitalidade
ímpar e faz de sua luta real sobrevivência seu objeto de vida, e não raro
sobrevive mais do que se prevê nas estatísticas. Mas isso só é possível se tiver
um apoio integral: família, amigos e suporte médico terapêutico multidisciplinar.
O oncologista Drauzio Varella nos ensina: “o apego à vida é uma
força selecionada impiedosamente pela natureza nas gerações que nos
sucederam. O desejo de viver é instinto tão arraigado que os seres humanos
só se entregam à morte depois de exaurido o último resquício de forças”.
O Estado tem que oferecer os meios de continuidade desta luta. É
este o principal compromisso que deve ter o Estado em seu dever de oferecer
saúde, o que se aplica também àqueles aos quais o Estado divide ou delega
sua tarefa.
A relação jurídica entre o plano privado de saúde e a paciente de
câncer é avençada, por obediência à Constituição de 1988 e ao Código de
Defesa do Consumidor, e caracteriza-se como uma relação de consumo
disciplinada por normas de ordem pública e interesse social, inderrogáveis
pela vontade das partes.
Atende, portanto ao princípio da autonomia da vontade e ao pacta
sunt servanda, o acordo iuris em questão – Contrato de Adesão – subordinase também às normas objetivo fixadoras de direitos fundamentais do cidadão,
a saber: o direito à vida e à saúde. Se há liberdade contratual em tais contratos,
esta deve permanecer ao lado do consumidor e não daquele detentor da
autonomia de impor cláusulas, condições e o conteúdo do negócio: o
fornecedor dos serviços. Impõe-se, pois, a tais contratos e às relações jurídicas
deles decorrentes a observância de princípios obrigatórios para o efetivo
equilíbrio e harmonia da relação, v.g., a boa-fé.
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Malfere, assim, as normas constitucionais e do CDC por vedar o
tratamento quimioterápico, frustrando a contraprestação dos serviços médicos
hospitalares e a indisponibilidade do objeto do pacto jurídico, qual seja, o
direito à saúde.
Em nosso Estado, e principalmente nas Varas Cíveis de Curitiba, os
julgadores de 1ª Instância e Tribunal têm decidido sempre em favor do doente,
no que tange ao direito ao tratamento. No entanto, nas restituições de valores
pagos indevidamente por procedimentos de urgência ainda encontramos
alguns entraves, o que não resolve a questão ao direito à saúde, pois o doente
e sua família são obrigados a custear tratamentos que vão além de sua
condição econômica, surgindo os encargos da doença, inesperados, não
planejados, contraindo dívidas oriundas de empréstimos para que o doente
não permaneça sem o tratamento.
As famílias fazem um esforço sobre-humano para prolongar a vida
de seu ente querido, quando este dever é do Estado ou do plano privado de
saúde contratado para fazê-lo.
Quando em ação judicial se decidir que o procedimento não está
incluso no contrato, ou a medicação não pode ser coberta, então cabe ao
plano buscar os meios legais para cobrar do Estado, e nunca do particular.
Neste tocante já existem decisões e jurisprudências no sentido de delegar
ao Estado a obrigação de cobertura de procedimento que não está coberto
pelo plano privado de saúde, e nunca ao particular, que já possui o fardo da
doença e seus encargos.
Cabe também ao médico fazer de tudo para evitar que especulações
pessimistas sobre o futuro de seus doentes contaminem os momentos de
otimismo vividos por eles, e neste ponto também é um compromisso solidário
do Estado e de seus concessionários oferecer os meios disponíveis ao seu
alcance em benefício do doente, como prevê o Código de Ética Médica, e
para isso não há como retroagir.
Retroagir significa alcançar situações já consolidadas, exauridas. Nesse
sentido, pode-se considerar um contrato de consumo, onde figura um assistido
obrigado mensalmente a uma prestação pecuniária e uma empresa vinculada
a prestar, quando preciso, serviços médicos e hospitalares como uma relação
jurídica exaurida? A pensar na resposta afirmativa, nem contrato nem
obrigação subsistiriam mais, sendo despiciendo qualquer discussão ou ação
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que busque o direito da paciente. Configuram-se, pois, tais contratos como
de execução diferida e as relações dele decorrentes como de trato sucessivo,
renovando-se mês a mês, devendo, em cada iter, ser respaldadas no direito
vigente, sob pena de nulidade.
Pretende-se, na busca do direito de tratamento, não só a tutela
declaratória de nulidade de cláusula contratual, mas, cumulativamente, a
constituição de obrigação de fazer, da parte dos planos de saúde. E ainda, a
necessidade do pedido de Tutela antecipada nestes casos se fazem juz, pois
o doente depende da garantia judicial ao tratamento, uma vez que sem o
mesmo há o perigo da perda maior a vida do requerente.
Embora tal seja defeso no processo, não se descaracteriza a certeza
e a existência do fato sobre o qual incide o Direito. Mas, imaginar uma
enferma portadora de câncer carente de tratamento quimioterápico
pressupõe necessariamente, mesmo aos não afeitos à área médica, o perigo
iminente da morte, à míngua de tratamento médico atenuante e paliativo
dessa fatal enfermidade. Recusar a terapêutica contra o câncer constitui um
vil abuso da promovida, obstando o direito fundamental à saúde da autora.
Correndo o dano iminente da morte, a prestação jurisdicional poderá
restar sem efeito, pois há a possibilidade inequívoca, ante a ausência da
terapêutica, de a postulante vir a falecer. Eis aí o receio fundado de um dano
irreparável, o dano à própria vida em si mesma considerada.
Outro ponto que não deve ser esquecido é a pena pecuniária, uma
vez desrespeitada a ordem mandamental no caso de deferimento da tutela
antecipada, o que prevê o descumprimento, a demora em atendimento ao
paciente de câncer, por isso a aplicação de multa diária a cada dia ou,
dependendo do caso, a cada hora do descumprimento. Isto se faz necessário
vez que evita o descumprimento da decisão judicial favorável ao doente de
câncer, e, mesmo que o plano de saúde recorra da decisão do juízo “a quo”
lançando mão do agravo de instrumento, no intuito de burlar sua obrigação,
a multa garantiria o valor do tratamento, se fosse arbitrada sob o valor da
ação e/ou não menor que cada aplicação do medicamento.
Por mais que nos custe admitir, sabemos que o vigor físico é uma
dádiva aleatória atribuída pela natureza em consignação confiscável, sem
aviso prévio, nas palavras de Dráuzio Varella.
O paciente com câncer é antes de tudo um vulnerável, em geral
incapaz de proteger seus próprios interesses, frágil, sujeito às mais diversas
formas de exploração, e, pela sua condição, tem como conseqüência prática
a desigualdade.
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Essa vulnerabilidade de saúde pode pelo menos ser atenuada através
do acesso igualitário ao sistema público ou privado, e não raro é o sistema
jurídico o único instrumento para fazer valer esse direito.
Sobretudo a luta em favor do tratamento aos pacientes de câncer, está
longe de atingir o ideal de justiça, porque nosso Judiciário ainda se mantém
muito acanhado no que tange aos valores das indenizações, seja de danos
morais seja de danos materiais, o que não deixa de ser um incentivo ao abuso
contratual dos planos de saúde e à manutenção de grandes grupos econômicos
que monopolizam o mercado vendendo a expectativa de garantia à saúde.
3 O DIREITO A ANDAMENTO JUDICIAL PRIORITÁRIO
A Lei Federal nº 10.173, de 9 de janeiro de 2001, que alterou o Código
de Processo Civil, acresceu ao mesmo os seguintes artigos: 1.211-A e 1.211-b.
Não resta dúvida de que a alteração legislativa tem como escopo
que o autor de ação judicial tenha possibilidade de conhecer e usufruir em
vida da decisão do Poder Judiciário. Há casos em que os portadores de câncer
não preenchem o requisito, pois contam com menos de 60 anos de idade,
porém são portadores de doença de base degenerativa Neoplasia Maligna,
o que reduz de forma categórica a possibilidade de vida. A ciência comprova
que a probabilidade de recidiva tumoral e de aparecimento de metástase
são bastante freqüentes, o que confere uma perspectiva de vida ainda menor
do que para os indivíduos de 65 anos de idade.
A integração analógica, a eqüidade, a isonomia fazem com que a
nova redação do Código de Processo Civil, com seu acréscimo dos artigos
1.211-A e 1.211-b, deva ser aplicado aos casos.
Sobretudo, observa-se quase sempre o receio de dano irreparável,
uma vez que se trata de doença degenerativa, tendo câncer a eminência do
perigo vitalício da recidiva e metástase. Ademais, oferece risco de morte
para o portador, sob pena de ter a própria existência ameaçada. E, pelo alto
custo da doença, faz juz ao andamento prioritário, pois o contrário (demora)
põe em risco o objeto da ação pleiteada, perdendo sua eficácia.
São comuns, em nossa jurisdição, processos que envolvem questões
referentes a câncer – em que não haja caráter de urgência, apesar de ser
pedido andamento prioritário – não ocorrerem, e seu resultado muitas vezes
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não alcança a paciente com vida. Refiro-me aos processos que demandam
perícia médica para se fazer provas, como, por exemplo, as aposentadorias
por invalidez, aquisição de veículos com isenção e cobrança de apólices de
seguro em casos de invalidez. Por esse motivo, a prioridade no andamento
processual e em todas as diligências é primordial para que se faça justiça.
Já nos casos de garantia de medicamentos ou tratamentos, seja contra o
SUS, seja contra Planos Privados de Saúde, uma vez invocada a Tutela de urgência,
a corregedoria do Sistema Judiciário do Paraná tem garantido agilidade.
Além do andamento prioritário, podem ser requeridos justiça gratuita
ou recolhimento das custas processuais ao final do pleito, alegando-se tratar de
caráter alimentar e de subsistência, afinal trata-se da manutenção da vida, pois
a questão da doença e de seus encargos remetem à fragilidade do ser humano
perante o Estado, que deve atendê-lo facilitando o acesso ao Sistema Judiciário.
Em nosso Estado os pedidos de justiça gratuita têm sido considerados
pela corregedoria, assim como a distribuição tem sido imediata, com decisões
judiciais e intimação dos réus em que demandem urgência em poucas horas.
Neste sentido, os juízes da capital e do interior do Estado têm posição
unânime em proteção à vida do tutelado.
4 AQUISIÇÃO DE VEÍCULO COM ISENÇÃO DE IMPOSTOS
A luta das mulheres mastectomizadas pelo direito de adquirir veículos
com isenção de impostos em nosso Estado não tem sido fácil, pela falta de
informações, pelo preconceito dos órgãos responsáveis pelo deferimento da
isenção, pela demora do processo.
Refiro-me, especificamente, à isenção de impostos, em que o CNT
Código Tributário Nacional prevê em seu artigo 179:
A isenção, quando não concedida em caráter geral, é efetivada, em cada
caso, por despacho da autoridade administrativa, em requerimento com o
qual o interessado faça prova do preenchimento das condições e do
cumprimento dos requisitos previstos em lei ou contrato para sua concessão.
Somente para fins metodológicos, a doutrina jurídica distinguiu dois
tipos de isenção de tributos: o real e o pessoal. O real é aquele descrito em
leis, que abrange determinada categoria ou classe de forma genérica, sem a
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necessidade de avaliação em conjunto para se obter a isenção, a exemplo
da isenção concedida na compra de veículo para taxistas.
Já a isenção pessoal é a que se refere o artigo 179, nos casos da Lei
nº 10.182/2001, que dispõe sobre a isenção do Imposto sobre Produtos
Industrializados (IPI) na aquisição de automóveis destinados ao transporte
autônomo de passageiros e ao uso de portadores de deficiência física, reduz
o imposto de importação.
Art. 1º Ficam isentos do Imposto sobre produtos industrializados (IPI) os
automóveis de passageiros de fabricação nacional de até 127 HP de potência
bruta (SAE), de no mínimo quatro portas, inclusive a de acesso ao bagageiro,
movidos a combustíveis de origem renovável, quando adquiridos por:
IV - pessoas que, em razão de serem portadoras de deficiência física, não
possam dirigir automóveis comuns.
A lei acima referida vem compensar o doente de determinados tipos
de câncer que, pelo seu tratamento, venham a trazer seqüelas irreversíveis,
como também pessoas portadoras de outros tipos de deficiências congênitas
ou resultantes de doenças degenerativas. Esta compensação não se refere a
“benefício”, como erroneamente insistimos em repetir, mas ao caráter
humanitário e social que o ordenamento jurídico imprimiu a esta situação,
uma questão de JUSTIÇA.
A referência a esses princípios se faz necessária, pois sua divulgação
vem trazer auxílio a uma classe inteira de mulheres mastectomizadas,
que em virtude de diagnóstico de câncer de mama submeteram-se a cirurgias
mutilantes que vieram a comprometer a função do membro superior,
impossibilitando a totalidade de movimentos e a função dos mesmos. Muito
embora não perceptíveis, em virtude de reconstrução mamária, as seqüelas
são irreversíveis e incapacitantes na maioria dos casos.
A isenção a que se refere a Lei acima citada deve, portanto, ser provada,
ou seja, para se adquirir veículo com isenção total de IPI (imposto sobre produtos
industrializados), ICMS (imposto sobre circulação de mercadorias e serviços) e
IPVA (Imposto sobre propriedade de veículos automotores), é necessário que
se faça prova do preenchimento das condições e do cumprimento dos requisitos
previstos em resoluções internas de cada órgão competente, o que desestimula,
e muitas vezes impossibilita, que o deficiente e a mulher mastectomizada
adquiram veículo com as especificações próprias ao seu tipo de deficiência,
declinando, assim, o direito líquido e certo de conduzir veículos adquiridos
com a devida isenção.
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O órgão que possui competência para atestar a condição do portador
de deficiência em conduzir veículos comuns ou adaptados é o Detran, que
o faz atendendo à Resolução nº 80 do Contran, mediante perícia médica
realizada por junta de três médicos. A perícia deve atestar o tipo de
deficiência física e a incapacidade em conduzir veículos comuns, e emitir
Carteira Nacional de Habilitação com a especificação do tipo de veículo,
com suas características especiais.
A responsabilidade da perícia do Detran é de preponderante
importância nesta avaliação, uma vez que, concedendo carteira comum a
pessoa portadora de deficiência física, mesmo que não aparente, pode colocar
em risco o próprio indivíduo, terceiros, assim como bens.
O que tem ocorrido em nosso Estado é o não reconhecimento,
pela perícia do Detran, das seqüelas deixadas pela cirurgia e tratamento
das portado ras de neoplasia maligna. Os peritos alegam que as requerentes
não são deficientes, e que estão aptas a conduzir veículo mecânico.
Em muitos casos já ocorridos, os laudos vão de encontro à própria
Resolução de nº 80 do Contran, que exige junta de no mínimo três médicos
para a avaliação, o que não tem se dado no Detran de Curitiba. Outras
vezes o laudo afirma que a condutora tem condições de conduzir veículo
mecânico quando seu teste de força descrito só acusa 15 kg, e a Resolução
prevê no mínimo 30 kg força.
Há também o fato de que nos laudos feitos pelo órgão citado não
consta a capacidade de força das periciandas mastectomizadas, não há a
verificação dos documentos apresentados, nem mesmo se mede a diferença
entre membros para se detectar a presença de linfedema, ou seja, o resultado
dos laudos emitidos pela perícia, na maior parte pode ser invalidado, pelas
nulidades neles contidas.
Essa postura da perícia do Detran-PR discrimina a mulher
mastectomizada, coloca em risco a vida, a propriedade da condutora e de
outrem, e muitas vezes impossibilita a portadora de neoplasia mamária de
conduzir, vez que os encargos próprios da doença oneram demais à portadora,
impossibilitando-lhe adquirir veículo com as especificidades que sua
deficiência exige, como câmbio hidramático e direção hidráulica. Nestes
casos, faz-se necessário que se adquira veículo com isenção, mas, para isto,
o Detran deve reconhecer a deficiência e fragilidade da condutora, que
não pode conduzir veículo comum.
Com a retirada total da mama, comprometem-se os músculos peitorais
responsáveis pela total mobilidade dos membros superiores, além do
434
Ordem dos Advogados do Brasil - Seção do Paraná
esvaziamento axilar, que compromete as defesas do membro, ocorrendo, na
maior parte dos casos, complicações relacionadas à restrição articular e
linfedema1 O diagnóstico de linfedema é obtido através da anamnese e exame
físico (fonte retirado documento de consenso do Instituto Nacional de Câncer).
O linfedema requer uma série de cuidados, que se iniciam a partir
do diagnóstico de câncer de mama. As pacientes devem ser orientadas
quanto aos cuidados com o membro superior homolateral à cirurgia,
visando prevenir quadros infecciosos e linfedema. Os cuidados incluem
evitar micoses nas unhas e no braço, bem como traumatismos cutâneos (cortes,
arranhões, picadas de insetos, queimaduras, retirada de cutícula e depilação
da axila); banheiras e compressas quentes, saunas; exposição solar; apertar
o braço operado (uso de blusas com elástico, relógios, anéis e pulseiras
apertadas, aferir pressão arterial), receber medicamentos por via subcutânea
intramuscular e endovenosa e coleta de sangue, movimentos bruscos,
repetitivos ou de longa duração, carregar objetos no lado da cirurgia e
deitar sobre o lado operado.
Dentre as seqüelas deixadas pela cirurgia e pelo tratamento
quimioterápico não é incomum ocorrer lesões resultantes do enfraquecimento
e fragilidade das veias, pela agressividade da quimioterapia, quando, devido
ao número elevado de quimioterapia, as pacientes são obrigadas a usar
cateter para inserção de medicamentos.
Outro sintoma dos mais estudados em cuidados paliativos constitui o
quinto sinal vital, ocorrendo em 60% a 90% dos pacientes com câncer
avançado. Sendo assim, torna-se mandatário o uso da “Escala Visual Analógica
- EVA” durante a avaliação da dor em paciente com câncer de mama avançado.
Entre as principais causas da dor encontram-se: complicações do próprio
tratamento curativo (cirurgia, radioterapia e quimioterapia), metástase óssea,
linfedema e compressão radicular pela doença.
Neste sentido, torna-se necessário abrir a discussão com os órgãos
oficiais responsáveis, para que se reconheçam os problemas das doenças
degenerativas, e principalmente da mulher mastectomizada, para que se
legisle em favor da causa, para que se coloque fim a tantas injustiças e
discriminações que configuram um quadro reincidente em nosso Estado.
1
Considera-se linfedema a diferença de pelo menos cm entre os membros, em um ou mais
pontos, obtidos através da perimetria ou volume residual de ml obtido de forma direta
(volume de água deslocada) ou indireta (perimetria).
Pela Conquista de uma Justiça sem Fronteiras
435
5 CLÁUSULAS ABUSIVAS REFERENTES À QUITAÇÃO
DE FINANCIAMENTO IMOBILIÁRIO EM CASOS DE
INVALIDEZ POR DOENÇA
Torna-se comum, atualmente, um número cada vez maior de pessoas
que buscam financiamento de imóvel, sendo a probabilidade prevista em
contrato de seguro, casos de invalidez permanente, acarretada por acidentes
ou doenças graves posteriores à assinatura do contrato. Quando tais
imprevistos acontecem, a dificuldade de exercer os direitos descritos nos
contratos muitas vezes torna-se impossibilidade, fazendo com que os
contratantes desistam de seus direitos.
A falta de eficiência na informação, em conjunto com cláusulas
abusivas, constituem fatores objetivos de atribuição de responsabilidade para
mutuários do sistema financeiro da habitação. Tal atitude infringe o dever
acessório de conduta, e apresenta-se como violação da legislação vigente,
além de fazer com que as pessoas paguem ou se tornem inadimplentes, pelo
que não devem, ou deixem de usufruir de seus direitos.
Por isso, faz-se mister a discussão dos aspectos de natureza jurídica
contratuais das apólices de seguro da habitação, para que se redimam os
desníveis entre contratantes, perpetuando o princípio da bilateralidade e
igualdade nos contratos.
As questões acima descritas tornam-se muito mais graves quando a
família que tem seu imóvel financiado pelo sistema financeiro de habitação
perece com doente de câncer, ou de qualquer doença degenerativa, pois
os encargos da doença fazem com que se apresente novo quadro, sobretudo
no aspecto financeiro.
Quando, no contrato, a paciente figure como parte contratual, estará
certamente garantida pelo contrato acessório de seguro em caso de
deficiência ou doença incapacitante. Apesar de o câncer estar incluído nesta
categoria e muitas vezes a parte contratual já se encontrar aposentada por
invalidez, ainda assim o recebimento do seguro, na maioria dos casos de
financiamento imobiliário, não quita a parte ou o todo do financiamento,
quando pedido é administrativo junto ao banco que financiou o imóvel,
somente através de ação judicial.
436
Ordem dos Advogados do Brasil - Seção do Paraná
O procedimento das seguradoras, em relação às pacientes de câncer,
tem sido de total discriminação e descumprimento, e todas as dificuldades
impostas aos pacientes de doenças degenerativas com certeza agravam seu
estado de saúde física e mental, o que demanda, em quase todos os casos
descritos, ressarcimento por danos morais.
6 EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS DA PACIENTE DE CÂNCER
Por fim, e em geral, o problema em efetivar os direitos da mulher
paciente de câncer de mama, aparelho reprodutor, estômago e pulmão está
em que tais dificuldades não são visíveis ou detectadas ao primeiro olhar, e
parece que, em nosso país, nossos direitos são reconhecidos somente quando
a paciente torna-se terminal, ou faz uso de cadeira de rodas.
Ter as chances de vida reduzidas à metade, ou menos que isso, não
tem garantido direitos às pacientes. As perícias médicas da Previdência Social,
dos órgãos do Estado, do Detran, das Seguradoras não têm reconhecido o
câncer como doença incapacitante.
Enquanto isso, as mulheres brasileiras atingidas por câncer continuam
sofrendo discriminação. Até mesmo quando têm sua vida prevista por mera
expectativa médica, continuam retornando ao trabalho, após o tratamento,
sem ter garantida sua aposentadoria por invalidez.
Essas mulheres continuam sofrendo assédio no trabalho por não
conseguirem ter o mesmo desempenho anterior à doença e acabam sendo
despedidas por justa causa ou, no máximo, mediante acordos forjados.
Continuam perdendo seus imóveis financiados, pois os encargos da
doença lhes retiram o padrão de vida anterior à enfermidade, sem que tenham
quitado o imóvel como de direito.
Muitas sequer conseguem sacar seu fundo de garantia, pois as agências
da Caixa Econômica só o fazem quando a pessoa está em estado terminal.
Muitas delas têm seu contrato de seguro de vida cancelado pós doença,
pois uma vez acionadas para conseguir o prêmio pela incapacidade – cujo
pagamento de pronto é negado – as seguradoras encontram formas de rescindir
o contrato de seguro preverem que, se não pagaram pela incapacidade da
paciente de câncer, deverão em breve pagar o prêmio por seu óbito.
Pela Conquista de uma Justiça sem Fronteiras
437
Muitas continuam sem condições de ir e vir conduzindo, pois não
mais podem dirigir veículos comuns e não têm possibilidade de adquirir
outro veículo mediante o benefício garantido pela lei, pois encontram
entraves no Detran e na Receita Estadual do Paraná.
O lamentável é que as mulheres que ingressam com ações judiciais
buscando seus direitos ainda assim encontram entraves, continuam
enfrentando a vagarosidade no andamento dos seus processos judiciais, sem
a prerrogativa em tê-los terminado antes de sua morte. Ainda que tenham
deferidos seus pedidos de andamento prioritário, a morosidade dos prazos
processuais e o vício dos cartórios dificultam a prioridade e a rapidez do
trânsito em julgado.
Nesse quadro, ainda que o infortúnio da doença possa ser aceito e
superado, a discriminação, a falta de informações, as barreiras impostas pelos
órgãos do Estado e os entraves judiciais causam desconforto e desânimo
àquelas que têm o encargo de lutar pela vida.
A dor emocional de enfrentar uma doença grave já é bastante grande
ao ser humano. Em face disso, a garantia da Lei ou sua interpretação favorável
à paciente de câncer são o mínimo que se espera do Estado e do Sistema
Jurisdicional.
Espero que este trabalho possa servir para divulgar as dificuldades
vividas por pacientes de câncer, e para que cada vez mais profissionais do
Direito possam atender a esta parcela da sociedade que, associado ao
sofrimento inerente à doença, sofrem também com as dificuldades em garantir
seus direitos.
Cabe aqui citar John Rawls (1921-2002), cuja teoria de justiça baseada
no princípio da eqüidade como proposta de ordenamento social se assenta
em dois princípios: o princípio da diferença e o princípio de igualdade. O
princípio da igualdade significa o direito ao mais largo sistema de liberdade de
bases iguais para todos; o princípio da diferença significa que, existindo as
desigualdades sociais e econômicas, que se garanta a maior vantagem possível
aos menos favorecidos.
Com esse mesmo intuito, em 2005 elaborei um documento a ser
discutido em Fórum, em que buscava, a priori, a divulgação do problema
enfrentado por portadoras de câncer, contendo os principais problemas da
mulher paciente de câncer e algumas medidas que iniciariam o processo de
diminuição de injustiças à paciente oncológica.
438
Ordem dos Advogados do Brasil - Seção do Paraná
Dei o nome inicial ao documento de Projeto Maria, por ter sido
testemunha da luta e da busca valente do direito de tantas Marias, Anas,
muitos nomes de flores, e tantos outros tão bonitos e cheios de esperança,
interceptados pela incapacidade não reconhecida e, depois, pela morte.
Partilho este desabafo, algumas vezes de forma solitária, outras com
amigas, muitas amigas que fiz. Hoje dedico este artigo às mulheres advogadas
do Estado do Paraná, convidando-as a lutar em favor da mulher paciente de
câncer, ingressando com Ações Cíveis, nas Varas da Fazenda, na Justiça
Federal, Criminal, lançando mão dos Juizados Especiais e Tribunais para
garantir a justiça e o respeito ao que se encontra frágil perante o Estado.
7 DOCUMENTO DE REPRESENTATIVIDADE DE MULHERES
PORTADORAS DE CÂNCER DO ESTADO DO PARANÁ
“Direitos Saúde e Cidadania das
Portadoras de Câncer de Mama.”
Projeto Maria
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Considerando que a incidência, prevalência e taxa de mortalidade
de câncer de mama representam um dos principais problemas de
saúde da mulher e, portanto, de saúde coletiva; e, por conseqüência,
as classes menos favorecidas são as maiores vítimas de falta de
informação, acesso e desrespeito aos seus direitos básicos;
Que devido à falta de notificação obrigatória da doença, tornamse imprecisos os dados estatísticos da doença, o que, por sua vez,
dificulta ação de prevenção e tratamento;
Que os tetos de alta complexidade não atendem à demanda
populacional, permitindo que pacientes sejam subtratados ou que
não tenham acesso a Centros de Referência Oncológicos;
Que o Estado tem se mostrado incapaz e omisso em custear a
implantação de novos Centros e de estabelecer Programas de
Prevenção e Diagnóstico Precoce efetivos;
Que a Constituição garante ao Cidadão o Direito à Saúde, mas
não estabelece orçamento compatível, nem tratamento integral
ao paciente oncológico;
Pela Conquista de uma Justiça sem Fronteiras
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Que muitos centros oncológicos que atendem pelo Sistema Único
de Saúde não possuem imunidade tributária e, por isso, os valores
destinados ao tratamento sejam destinados a pagamento de
contribuição social, dentre outros, dificultando a administração e
manutenção hospitalar;
Que a fiscalização contábil dos Cacons (Centros de Alta
Complexidade) é precária e permite coberturas de procedimentos
ou destinos diversos, sem priorizar o tratamento oncológico;
e POR FIM:
Que devido à falta de disciplina obrigatória sobre paciente
oncológico nos currículos de graduação de profissionais da saúde
e direito;
Que devido à falta de reconhecimento do trabalho de entidades
filantrópicas, de iniciativas privadas, que exercem o papel do Estado,
estas interrompem sua atuação nos primeiros anos pelas dificuldades
e falta de recursos financeiros;
Que devido ao desconhecimento das doenças crônicodegenerativas as perícias do Estado não reconhecem o direito de
aposentadoria, auxílio-doença, isenção de impostos, e retiradas
de fundos de garantia e previdência, bem como levantamento de
apólices de seguro;
Que embora o câncer de mama atinja mulheres de todas as idades
e classes, seja reconhecido como problema de minoria social,
encarado com desigualdade e preconceito;
Que devido às patentes e pipe-lines estarem entre as causas de
majoração de preços dos medicamentos oncológicos, os
medicamentos adjuvantes contra câncer encontram barreiras para
servir mais pacientes, seja através de planos privados de saúde
seja pela falta de acesso dos pacientes do SUS;
Que a perda do emprego pós afastamento por tratamento de saúde
tem sido causa constante entre ex-pacientes, o que contribui para
empobrecimento, depressão e recidiva de câncer;
Que a negativa de pagamento de procedimento oncológico por
planos privados de saúde tem representado verdadeira indústria
da criação e contratação de câmaras técnicas, sem valor e causa
constante de restrição do tratamento adequado.
Ordem dos Advogados do Brasil - Seção do Paraná
Propomos:
1. Tornar o câncer doença notificável, e a criação urgente de registros
de câncer em base populacional;
2. Incluir obrigatoriamente a disciplina de Oncologia nos cursos de
graduação em Medicina;
3. Ao atingir trinta anos de idade, todas as mulheres paranaenses, através
do Instituto de Identificação do Paraná, em convênio com a Secretaria
de Saúde do Estado, sejam notificadas de exame de mamografia, com
data e local agendados em unidades centrais de exames;
4. Majoração dos Tetos de Alta Complexidade e cronograma de
majoração que acompanhe a taxa de incidência e prevalência e
de avanços tecnológicos;
5. Revisão da Tabela APAC e que os procedimentos não
contemplados sejam considerados extrateto;
6. Que a Constituição seja cumprida no artigo: Saúde-Direito do
Cidadão, Dever do Estado;
7. Que haja um processo de reorientação por estratégias de ação,
com o conceito de risco, atenção ao sadio e construção de parcerias
com o setor privado e o terceiro setor, com o objetivo de atenção
e controle das doenças crônico-degenerativas: diagnóstico precoce
e pronto tratamento;
8. Que o Terceiro Setor tenha assento em todos os Fóruns deliberativos,
inclusive no Conselho de Saúde, sejam federal, estadual e/ou
municipais, e que possa viabilizar parcerias nas áreas em que o
Estado não consiga dar cobertura;
9. Que o Estado do Paraná faça previsão orçamentária de aquisição
de unidades móveis contendo mamógrafos e equipamento de
punção de alta precisão em exames de biópsia, bem como
contratação de equipes com enfermeira, oncologista e técnicos
radiologistas, motoristas, recepcionistas, para atuação em
programas em cidades do interior do Paraná onde não exista
acesso a esses serviços;
10. Que seja criado o serviço de “disque-denúncia”, como forma de
acompanhamento e fiscalização a órgãos do Estado que não garantam,
discriminem ou lesionem direitos dos portadores de câncer;
Pela Conquista de uma Justiça sem Fronteiras
441
11. Que Conselhos Profissionais atuem conjuntamente de forma a
denunciar fiscalizar o abuso de direitos das portadoras de câncer
de mama, bem como através de parcerias com universidades,
incentivem a capacitação de profissionais com cursos de extenção;
12. Que o câncer de mama tem cura e que esta cura passa por: educação
continuada, diagnóstico precoce, e tratamento precoce e adequado.
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