o amor à verdade: um posicionamento ético na inserção da

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O AMOR À VERDADE: UM POSICIONAMENTO ÉTICO NA INSERÇÃO DA
PSICANÁLISE NAS INSTITUIÇÕES
Rafaela Santos Kamaroski1
A transferência do paciente para com o analista constitui elemento fundamental
para o início de um tratamento psicanalítico, ressaltou Freud no texto “Sobre o Início do
Tratamento” (1913/1996). No contexto de inserção da psicanálise como fundamento
para intervenções em instituições, a relação do psicanalista com o saber que fundamenta
sua prática pode surgir como obstáculo.
Renato Mezan no livro “Interfaces da Psicanálise” de 2002 ao discorrer sobre a
psicanálise na universidade, especificamente sobre a produção acadêmica oriunda da
inserção de psicanalistas em instituições, delimita uma especificidade ao diferenciar tal
prática da psicanálise aplicada. Propõe como categorias: a psicanálise aplicada e a
atividade psicanalítica stricto sensu. A psicanálise aplicada, segundo este autor, abrange
as reflexões que fundamentadas na psicanálise abordam fatos sociais e obras da cultura.
A atividade psicanalítica stricto sensu compreende uma dimensão prática, visando a
elucidação e a transformação do que ocorre entre o analista e seu paciente.
Na continuidade da tentativa de elucidar a especificidade da inserção da
psicanálise como fundamento para intervenções em instituições, Mezan (2002) descreve
como semelhanças entre a função do psicanalista inserido em uma instituição e a função
do psicanalista em um consultório: a escuta, o contato direto com o sofrimento psíquico
(sintomas, defesas, fantasias e transferências) e a sensibilidade clínica concretizada em
intervenções para modificar relações que constituem uma situação. Cita como exemplo
de tal concretização a tese de Rubens Hazov Coura de 1996 intitulada “A psicanálise no
hospital geral” que aborda a necessidade vivenciada pelo autor de trabalhar com as
transferências que a equipe possuía com os pacientes, assinalando uma problemática
distinta da que ocasionava a solicitação de atendimento para o paciente.
Distinguir o que advém de uma trama que se consolida no âmbito institucional e
efetivamente poderia ser abordado a partir de uma perspectiva da psicanálise não
constitui tarefa simples. A proposta, realizada por Freud no texto “Recomendações aos
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Psicóloga e Bacharel em Psicologia pela Universidade Federal do Paraná, Mestranda em Psicologia pela
UFPR. Membro do Laboratório de Psicanálise (UFPR). E-mail: [email protected]
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médicos que exercem psicanálise” (1912/1996), de abandonar as ambições terapêuticas
passíveis de consolidação em promessas de cura e em tendências educativas parece
aplicar-se de modo significativo na inserção institucional. A concordância com as
finalidades da instituição na qual o psicanalista está inserido pode culminar na
deturpação do que constitui a especificidade da psicanálise. Apesar da inserção
institucional, fundamentar uma prática na psicanálise implica em um posicionamento
distinto do que se apresenta aparentemente como demanda e do que, frequentemente,
coincide com as finalidades da instituição.
Freud no texto “Análise terminável e interminável” de (1937/1996) fornece um
direcionamento para as práticas fundamentadas na psicanálise ao afirmar que: “... não
devemos esquecer que o relacionamento analítico se baseia no amor à verdade – isto é,
no reconhecimento da realidade – e que isso exclui qualquer tipo de impostura ou
engano”, (Freud, 1937/1996, p.265). As imposturas ou enganos poderiam advir do
equivocado encontro entre as expectativas do psicanalista de alcançar suas ambições
terapêuticas e os objetivos da instituição. Deste modo, a vinculação realizada por Freud
entre o reconhecimento da realidade e o amor à verdade abrange o possível de ser
abordado a partir da psicanálise.
Freud ressalta em dois momentos distintos uma dimensão impossível no
analisar. No
“Prefácio à ‘Juventude desorientada de Aichhorn”
(1925/1996) afirma
ter aceito a proposta de que existem três profissionais impossíveis: educar, curar e
governar. Por ter se dedicado à segunda, o curar relacionado ao analisar, não pôde se
dedicar as demais. Em “Análise terminável e interminável” (1937/1996) ao discorrer
sobre a influência da individualidade do analista no tratamento psicanalítico afirma:
“Quase parece como se a análise fosse a terceira daquelas profissões ‘impossíveis’
quanto às quais de antemão se pode estar seguro de chegar a resultados insatisfatórios.
As outras duas, conhecidas há muito tempo, são a educação e o governo”, (FREUD,
1937/1996, p. 265).
Cifali na versão do seu texto intitulado em português “Ofício ‘impossível’? Uma
piada inesgotável” publicado em 2009 compreende que os três ofícios são aproximados
por Freud pelo impossível por que possuem em comum algo de possível consolidado no
posicionamento que define a especificidade da psicanálise enquanto fundamento para
uma atuação. Cifali (2009) aponta como traço comum nos três ofícios um
posicionamento: “... uma maneira particular de conceber o “terreno” como lugar de
produção de conhecimentos, pelas qualidades exigidas do investigador, obrigação que
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ele tem de pensar sua subjetividade e sua posição face à verdade”, (CIFALI, 2009, s/p).
Trata-se, portanto, da relação daquele que fundamenta suas ações na psicanálise com o
saber. O que exige, conforme destacou Cifali, pensar a posição subjetiva perante a
verdade. Esta não se consolida como algo a ser encontrado na dimensão de
conhecimentos teóricos e aplicados em uma prática ou como o que proporcionará a
satisfação do analista ao atingir suas ambições terapêuticas que podem confundir-se
com os objetivos da instituição.
Cifali (2009) afirma que na intervenção fundamentada na psicanálise: “O
“objeto” não está lá desde o início, senão de maneira vaga. Sua construção é lenta. É na
aproximação cotidiana, no confronto paciente, que pouco a pouco se desenham a
hipótese e a originalidade”, (CIFALI, 2009, s/p). Construir a hipótese e,
consequentemente, a originalidade demanda uma implicação subjetiva por parte daquele
que realiza a ação. Uma implicação pautada em um conhecimento da psicanálise
enquanto teoria e enquanto posicionamento ético expresso por Freud no amor à verdade.
O amor à verdade não é algo simples de se vivenciar. Os mecanismos de defesa,
aos quais o ego está relacionado, constituem uma estratégia complexa que torna o
trabalho psicanalítico um tanto quanto peculiar: “O aparelho psíquico não tolera o
desprazer; tem de desviá-lo a todo custo, e se a percepção da realidade acarreta
desprazer, essa percepção – isto é, a verdade – deve ser sacrificada”, (FREUD,
1937/1996, p.253). Portanto, quando na inserção institucional é desprazeroso ao
psicanalista constatar que a psicanálise não se constituirá em um aliado para atingir os
objetivos da sua ambição terapêutica e/ou da instituição o próprio estudo teórico pode
ser deturpado, conforme descreveu Freud (1937/1996, p. 250) sobre a leitura de textos
psicanalíticos: “O leitor é ‘estimulado’ apenas por aquelas passagens que sente se
aplicarem a si próprio – isto é, que interessam a conflitos que estão ativos nele na
ocasião”.
Colocar-se à disposição para ouvir o que o paciente diz, construindo uma
intervenção fundamentada na psicanálise a partir de pequenos passos implica, portanto,
em um constante questionamento de si mesmo. Apesar da existência da psicanálise
enquanto teoria, vivenciar algo de uma experiência psicanalítica implica em uma
construção a partir do encontro com o que é peculiar ao outro. Implica em sustentar uma
posição fundamentada na cautela e na persistência. Portanto, o que a psicanálise pode
oferecer como fundamento para uma prática em instituições é o amor à verdade
desdobrado em um posicionamento ético.
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Referências Bibliográficas
CIFALI, M.. Ofício "impossível"? Uma piada inesgotável. Educ. rev. [online]. 2009,
vol.25, n.1,s/p. ISSN 0102-4698. Disponível em: www.scielo.br
FREUD, S. (1996) Recomendações aos médicos que exercem psicanálise. Em: S.
FREUD. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira
(J. Strachey, Trad. pp. 121-134, vol. XII). Rio de Janeiro: Imago. (Obra originalmente
publicada em 1912).
FREUD, S. (1996) Sobre o início do tratamento. Em: S. FREUD. Obras psicológicas
completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira (J. Strachey, Trad. pp. 130160, vol. XII). Rio de Janeiro: Imago. (Obra originalmente publicada em 1913).
MEZAN, R. (2002) Interfaces da Psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
FREUD, S. (1996) Prefácio à ‘Juventude desorientada’ de Aichhorn. Em: S. FREUD.
Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira (J.
Strachey, Trad. pp. 303-310, vol. XIX). Rio de Janeiro: Imago. (Obra originalmente
publicada em 1925).
FREUD, S. (1996) Análise terminável e interminável. Em: S. FREUD. Obras
psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira (J. Strachey,
Trad. pp. 223-270, vol. XXIII). Rio de Janeiro: Imago. (Obra originalmente publicada
em 1937).
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