Cifra e letra, ressonância e voz - Laboratório de Psicopatologia

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Cifra e letra, ressonância e voz: considerações sobre a escrita musical1
Renata Mattos de Azevedo2
A música, enquanto arte, envolve simultaneamente o sujeito e um ato, seja o da
criação, da escrita desta criação, da leitura e interpretação, ou mesmo da escuta, quando
esta se trata de uma escuta causada por um objeto artístico que convoca o ouvinte
enquanto sujeito do inconsciente. É, portanto, sempre de sujeitos e, a princípio, sujeitos
chamados a desejar, que podemos falar ao nos debruçarmos sobre a arte musical.
Ao menos é por esta via que a psicanálise pode dela se aproximar, uma vez que a
música possibilita a esta campo um modo de pensar o manejo pelo músico com o objeto
a, em especial e em primeiro plano, a voz, objeto causa de desejo. A música nos dá
igualmente pistas de localizar, pelos vestígios deste objeto impossível de ser apreendido,
como as notas musicais podem fazer função de borda no vazio que portamos, se
aproximando do conceito lacaniano de letra.
No compositor, há um ato que veicula um endereçamento e uma transmissão, do
real que ele circunda pela música, e que faz comparecer, deste modo, uma dimensão de
escrita pulsional aí presente. Esta escrita pulsional, primeiramente constitutiva e
estruturante na constituição dos sujeitos, aparece na música como uma escritura da pulsão
colocada em cena na tentativa, nunca completamente alcançada, de obter um objeto de
satisfação.
A obra, passada ao intérprete pela notação musical, exigirá deste um trabalho para
interpretar aquilo que está nela cifrado. Cifra de um gozo por parte do compositor
enquanto sujeito, ou mais propriamente, enquanto falasser que se apropria da linguagem
musical para oferecer tanto ao intérprete quando ao ouvinte uma resposta singular frente
ao enigma do desejo do Outro. E é por esta cifra de gozo, e como enigma, que o ouvinte
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Trabalho em continuidade com as idéias desenvolvidas, e aqui trazidas sinteticamente, no artigo Sobre a
dimensão de escrita na música: notação, ciframento, transmissão e enigma, apresentado no Colóquio Arte
e subjetividade, organizado pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura da
Universidade de Brasília em 25 de Outubro de 2007, cujo desdobramento originou livro homónimo que se
encontra atualmente no prelo. Ambos são frutos da pesquisa de doutorado A radicalização do real na
música pós-tonal e seus efeitos para o sujeito, por mim conduzida no Doutorado em Pesquisa e Clínica em
Psicanálise pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, sob orientação da Profªa. Drªa. Doris Rinaldi.
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Psicanalista; doutoranda em Pesquisa e Clínica em Psicanálise (UERJ), mestre em Cognição e Linguagem
(UENF/2007), com Especialização em Psicanálise e Laço Social (UFF/2004), graduada em Psicologia
(UFF/2003).
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será tocado pela obra. Isto é possível porque, tal como lalíngua, a linguagem musical traz
uma ambigüidade que transmite o real que a música circunda.
Pode-se mesmo dizer, a partir da leitura lacaniana da obra de James Joyce, feita
essencialmente no seminário O sinthoma, que a característica de uma musicalidade
presente tanto na linguagem falada como nesta linguagem propriamente musical que o
compositor confecciona, deixa transparecer a ligação entre linguagem e lalíngua. Lacan
(1971-1972/1985, p. 188), em Mais, ainda, nos diz que a linguagem é “uma elocubração
sobre alingua’.
Posteriormente, Lacan (1975/2007, p. 163) afirmará, sobre a extremamente
musicada obra joyceana Música de câmara, que nela Joyce eleva lalíngua “à potencia da
linguagem’. É por esta mesmo via que pensamos ser possível localizar e aproximar a
linguagem musical de lalíngua, sendo que, ao escrevê-la, esta relação invisível se
colocará presente não nas entrelinhas, mas nas “entrenotas”.
Pela escrita musical, enquanto ato que traz uma resposta de um sujeito ao real
feita com seu corpo e com significantes, rearranjando traços nele inscritos, e por aquilo
que dela se ouve, podemos pensar em como as funções de borda da letra e de ressonância
da voz, evidenciam o enodamento entre real, simbólico e imaginário na criação e também
em cada sujeito.
A difícil, e mesmo impossível, tarefa de escrever uma voz, de enganchar o
imaterial da voz ilustrando-a sob um material concreto, folha de papel em branco a ser
preenchida. É esta a tarefa que o compositor se propõe no ato da escrita musical,
buscando cercar e transmitir o real que escapa e insiste na música que foi feita,
inicialmente, para os ouvidos.
Cada nota traz, assim, um valor cifrado que se volta à voz ausente feita ali
presente apenas por indicação e, também, na relação entre uma nota e outra. É entre as
notas, no indizível, ou melhor, no impronunciável, que o objeto voz é contornado; a
pulsão se apresenta aí, entre notas, escrevendo a relação possível do sujeito com a voz
perdida que lhe causa. Escrevendo a música, o compositor se escreve, mas no registro de
um enigma a ser dado a ouvir a um Outro/outro.
A questão da notação musical nos coloca, de saída uma pergunta sobre a
linguagem musical e aquilo que ela pode representar, em especial para o músico que dela
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faz uso. Para este, seja o compositor ou o intérprete, a linguagem musical se apresenta
como o material a partir do qual a música será cunhada e tocada. É ela que, com seus
recurso e elementos, a saber, os sons musicais, em diferentes durações, timbres e alturas,
assim como a ausência deles, darão condições do músico transmitir pela obra algo que
toca, em todos nós, o indizível, o inaudito, o impossível.
A linguagem musical parte de um recorte no sonoro que demarca o que será
tomado como musical e aquilo que se excluirá desse campo, criando, com isso, um saber
sobre este registro. Podemos entender com isso que há um corte no real e uma construção
simbólica a partir desse ato, ou seja, assim como a própria linguagem é constituída,
também a musical porta em si um vazio e um resto que, ao ser excluído, cria o próprio
campo. Deste modo, quando pensamos em uma linguagem musical, é preciso ter em
mente que ela evidencia um saber humano em torno de um corte e de um enigma sobre
aquilo que a funda.
Permeando o musical, encontramos o silêncio, a ausência de sons. É esta
ausência, em contraponto com a presença do som musical, que promoverá o ritmo e o
fazer com o tempo. A temporalidade será costurada com fios sonoro-musicais e outros
absolutamente silenciosos. Porém, esse silêncio traz em si a possibilidade de se criar
todas as notas ainda não criadas, de se ouvir todas as notas que permanecem inauditas. O
silêncio na música remete ao impossível de ser abarcado pela linguagem musical, mas
que o compositor, sabiamente, o apresenta como um silêncio ruidoso, permeado de sons.
Compositores e musicólogos, assim como também lingüistas e, nos primórdios do
estudo da teoria musical, os matemáticos, se empenharam em estudar as relações entre os
sons de modo a criar e organizar as leis específicas que regem a linguagem musical. Seus
elementos mais elementares, as notas, desde o início desses estudos, foram sistematizadas
através de uma extração a partir da escuta de sons produzidos pelo canto ou pelos
instrumentos. Elas são, portanto, uma redução mínima que, sozinhas e isoladas, não
significam nada.
É apenas na articulação destes elementos, seguindo determinadas leis
estabelecidas, que se alternam de acordo com o momento histórico-cultural, que elas
podem construir uma estrutura musical que originará melodias, harmonias, frases,
imagens musicais, ou seja, uma obra. Com a psicanálise lacaniana, podemos entender que
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as notas musicais isoladamente encontram-se no registro da letra e que é pela articulação
que elas podem ser tomadas como significantes.
Este material de base na música é denominado pelos compositores Pierre
Schaeffer (1966, p. 95) e Pierre Boulez (1972, p. 40) de objeto sonoro. Ele engendraria a
estrutura do universo sonoro-musical, se diferenciando, porém, segundo o Boulez (Ibid.,
p. 42), dos sons brutos por serem sons trabalhados. De um caso a outro, há uma escolha
de um sujeito que tomará uma marca sonoro-musical e a situará em um conjunto em
relação a outras, formando uma cadeia significante.
Há, portanto, um corte no sonoro que tem efeitos de perda neste universo
“natural” e que somente depois de efetuado tal corte se poderá dizer que estes sons se
tornam musicais e podem ser utilizados na criação de uma música. Além disso, este corte
também produzirá efeitos temporais e espaciais para os sujeitos. Boulez (Ibid.:, p. 84)
aborda a função de corte na dialética entre o contínuo e o descontínuo, na “possibilidade
de cortar o espaço segundo certas leis” (Grifos do autor).
Em psicanálise, como fundamenta Lacan (1964/1998, p. 196), é preciso, para o
advento do sujeito, que se faça um corte entre o bebê e o Outro, produzindo uma borda. O
contínuo do bebê, enquanto organismo vivo, é perdido e este passa ao descontínuo,
lacunar e pulsante do sujeito do inconsciente.
Em que o corte de que nos fala Boulez se aproxima do corte apresentado por
Lacan? Na posição de ambos o corte de que se trata faz com que seja possível se passar
ao campo do simbólico, tratar determinados sons musicais por um conjunto de regras, de
um lado, e passar a sujeito da fala pela transmissão da Lei. Aliás, no primeiro caso, só se
pode fazer este corte entre o som bruto e trabalhá-lo posto que há um sujeito ali.
A aproximação que fazemos se dá, então, na medida em que no trabalho de
criação musical, com este material concreto musical, é preciso, como destaca Boulez
(1972, p. 84), que se escolha um padrão e que este último não é dado, é uma construção.
Nesta escolha, o sujeito que cria transmite algo pela obra de forma cifrada, fala de sua
posição e do vazio enigmático de sua constituição.
Este vazio, como ressalta Lacan (1959-1960/1997, p. 153), estará no centro do
objeto criado pela “modelagem do significante” a partir deste furo real. É porque este
furo existe que se cria e continuará criando, partindo-se de uma letra (nesse caso, uma
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nota musical com função de letra) para a criação de uma estrutura que ganhará função
significante.
Andrade (1995, p. 10) defende que a estética musical seja pensada juntamente
com a linguagem e as técnicas musicais. No entanto, não confunde a linguagem musical
com sua notação. Diz ele, ao defender uma separação necessária entre harmonia e
notação musical:
Aquela [a harmonia] é um elemento técnico da elaboração artística. A notação é
um elemento prático da objetivação da obra musical. Na técnica de uma arte temse que distinguir entre os fatores de criação da obra-de-arte e os fatores de
materialização dela. (…) A nota não tem valor estético pra Música, porém a
melodia, o acorde que a gente objetiva por meio das notas tem. (…) A extensão
dum instrumento não tem valor estético pra expressão duma inspiração musical
que em si já implica o instrumento e, portanto está contida no seu domínio
sonoro. Porém, a frase poética e a frase musical têm imenso valor estético e a
realização delas, não a objetivação prática, se presta a muitas observações
estéticas, ambas pelo ritmo, pela sonoridade, pelo conteúdo subjetivo, força
emotiva, etc. (Idem).
Em outras palavras, quando é colocada em um meio espacial concreto, como uma
partitura, uma tablatura ou uma cifra, a música está apenas sendo representada
graficamente. A música é fundamentalmente um fenômeno sonoro e não gráfico ou
pictórico (Boulez, 1992, p. 131). Porém, a escrita musical tem função tanto para o ato de
composição quanto para a transmissão da obra.
Se, portanto, falo aqui em uma dimensão de escrita na música isso se dá na
medida em que ela proporciona aos sujeitos uma certa escrita da pulsão invocante em seu
contorno do vazio do objeto voz na medida em que tenta, fracassada e repetidamente,
apreendê-lo. A música promove uma criação ex nihilo com o vazio real da voz perdida,
transmitindo inconscientemente àqueles que a tocarão, cantarão ou fruirão um saber fazer
com esse objeto perdido por parte do compositor.
Este, ao criar a obra, produzirá um ciframento duplo de sua posição frente ao real,
isto na medida de que a música é feita para ser ouvida, mas não sem portar uma grafia
que é estabelecida pela notação que o compositor escolhe para que sua obra não se
encerre em si. A notação permite que a efemeridade característica da música, que se
extingue materialmente ao terminar de ser tocada, não sem deixar vestígios naqueles que
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ouvem-na, seja ultrapassada e que, as notas musicais que a compõem sejam inscritas,
talhadas pela escrita, e dadas não mais apenas a ouvir como também a ler.
A criação musical pode, com isso, tanto ser ouvida quanto lida: ouvida e lida ao
ser interpretada, assim como ouvida e lida quando apreciada. Contudo, interpretação e
escuta não serão da mesma ordem. O que o compositor oferece aos sujeitos em cada uma
dessas posições será diferenciado e exigirá deles trabalhos distintos.
O trabalho de composição propõe, assim, um saber fazer com o “nada” que as
notas são separadas umas da outra (Stravinsky, 1999, p.89) de modo que elas possam se
relacionadas a outras, ganhando uma “posição intervalar” (Idem) em um conjunto. De
letras, elas ganham função significante, mantendo, ainda assim, a dimensão de enigma.
Elas se encontram nessa posição singular de poder articular na obra musical a
heterogeneidade do real e do simbólico. Elas propõem um enigma ao músico e exigem
dele um trabalho para que elas possam ser relacionadas a outras, ganhando um sentido
musical e único naquela obra.
Assim como a alíngua, a linguagem musical também tem em seu cerne uma
ambigüidade e é ela o que faz possível as diversas interpretações de uma obra. O trabalho
do músico, diante do escrito que porta a obra a ser tocada, é de uma leitura daquilo que,
para além das marcas gráficas, é transmitido. É no vazio da notação que o intérprete
“encontrará” e ouvirá a obra a ser tocada ou cantada.
Sobre esta característica ambígua da linguagem musical, o musicólogo Jean-Yves
Bosseur (1997: 99-100) nos diz que:
A ambigüidade dos signos de que o compositor se serve para transmitir suas
idéias musicais dá à notação uma flexibilidade que lhe permite adaptar-se a
diferentes contextos estilísticos e pessoais. Com isso, a notação cobre diversas
funções: orienta a execução do intérprete, proporciona um repertório em que o
compositor vai buscar as ferramentas necessárias para comunicar o que ainda está
só em projeto, conserva o que deve aparecer como arcabouço da obra e, dessa
forma, possibilita analisá-la, classificá-la.
É por ela, então, que se pode haver a transmissão daquilo que é mais particular à
obra, o seu cerne, assim como o vazio que a organiza. O estilo do compositor surgirá, do
mesmo modo como o intérprete também se servirá dessa ambigüidade para fazer a obra a
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partir de sua posição subjetiva.
A notação, como vimos na fala de Mário de Andrade, traz um aspecto visual da
música e da linguagem musical, da mesma forma que a letra apresenta uma visualidade
da linguagem (Rivera, 2007: 86). Nela, podemos vislumbrar como a música pode colocar
em ação não somente a pulsão invocante como também a pulsão escópica. O olhar é
convidado e convocado para buscar na grafia aquilo que dá o tom da peça, que envolve o
corpo através do gesto e da emissão da voz como ausente.
Através da notação, ouve-se a voz do compositor em resposta ao desejo do Outro
e ouve-se a si próprio no que da obra ressoa no vazio. Do mesmo modo, vê-se na escrita
das notas, ou do que as representa, coma as grafias complexas da música pós-tonal,
imagens que chamam o ouvido por portar o inaudito, assim como vê-se a si mesmo no
buraco do que é refletido.
A dimensão do olhar e da voz na notação musical remetem ao desejo do Outro e
ao endereçamento da obra a este campo, um endereçamento que retorna na escuta.
Entendo, desta forma, que a notação promove a simultaneidade da música em se colocar
em direção ao desejo do Outro e do desejo ao Outro, ou seja, há uma busca de se fazer
ouvir e de se fazer ver, e nesta busca, cunha-se uma resposta a esse desejo enigmático que
traz de maneira cifrada a posição dos sujeitos que a criaram.
Se a notação permite que isso seja feito, os modos como ela o efetua não são de
modo algum dados pelo campo musical. Ainda que haja leis e parâmetros que regulem
este fazer, há também uma liberdade de experimentação com estas mesmas regras. Há um
determinado conjunto de leis, todavia, cada obra exigirá uma análise e um saber sobre
elas a posteriori, ampliando a própria linguagem musical e trazendo aspectos até então
nunca ouvidos e trabalhados.
A história da linguagem e, mais particularmente, da notação musical podem ser
entendidas, a partir destas coordenadas, como um modo de tentar apreender aquilo que do
som musical faz surgir a obra em sua complexidade. Cada representação gráfica, em
determinado período histórico e cultural, escolherá apresentar na escrita musical
características específicas da música, seja a altura sonora, o aspecto rítmico, o timbre, a
sustentação do som, etc.
Vale destacar que as diversas representações gráficas das músicas não dão conta
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de apresentar, de uma só vez, todas as qualidades do som musical tais quais definidas
pela teoria da música. Há sempre uma escolha a ser empreendida. E essa escolha sempre
fracassa em apreender o som musical e a obra em sua complexidade.
Referências bibliográficas
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