Cadernos de Geografia nº 28/29 - 2009/10 Coimbra, FLUC - pp. 181-184 Contrastes topoclimáticos excepcionais associados a circulações de Leste numa cidade de relevo acidentado (Coimbra, Portugal) Nuno Ganho Centro de Estudos de Geografia e Ordenamento do Território (CEGOT), Universidade de Coimbra Contextualização Desde início dos anos de 1990 até ao presente, foram-se efectuando, em Coimbra, estudos de topoclimatologia urbana, envolvendo a comparação de dados de variáveis climáticas, especialmente de temperatura e de humidade relativa, entre estações meteorológicas do centro e da periferia da cidade, entre postos fixos de observação localizados em contextos urbanos e topográficos diferentes, e entre diferentes locais (de 20 a 40) da aglomeração urbana e da sua periferia, através de observações itinerantes efectuadas de automóvel. Os contrastes termohigrométricos espaciais evidenciados pela utilização destas metodologias e a sua análise, foram divulgados em diversos trabalhos e objecto de algumas publicações (Ganho, 1992a, 1992b, 1995a, 1995b, 1998; Marques, Ganho e Rochette, 2008; Fialho, 2009). Os resultados permitiram definir um campo termohigrométrico médio, variável em função das condições meteorológicas e variando significativamente entre os períodos diurno e nocturno. Porém, na presença de circulações de Leste, de base sinóptica e, consequentemente, com reflexos regionais, os contrastes térmicos e higrométricos locais apresentaram valores de carácter excepcional e um padrão de repartição espacial muito diferente do habitual, cuja explicação se alicerça na interacção entre os fluxos de Leste da baixa troposfera e o relevo regional e local. Enquadramento morfológico e topografia A cidade de Coimbra localiza-se (Figura 1) exactamente no contacto entre duas unidades geomorfológicas com características litológicas e morfológicas contrastantes: o Maciço Antigo Ibérico e a Orla Mesocenozóica Ocidental. O primeiro aparece representado imediatamente a Leste da cidade pelo “Maciço Marginal de Coimbra” (Birot, 1949), um conjunto de colinas com orientação geral N-S, cujas altitudes ultrapassam os 500 m, nomeadamente na Serra do Roxo (510 m) e na Serra da Aveleira (533 m). A diferença de cota entre este alinhamento montanhoso, nomeadamente entre a Serra do Roxo, e os sectores mais baixos da cidade, que marginam o rio Mondego, o qual corre, aqui, a cotas de aproximadamente 20 m, é muito significativa: quase 500 m de desnível numa distância horizontal de, aproximadamente, 5 km. A SE de Coimbra, a aproximadamente 20 km de distância, ergue-se a Serra da Lousã (1205 m), fazendo já parte da Cordilheira Central, que tem continuidade para NE através das serras de São Pedro do Açor (1342 m) e da Estrela (1993 m). A Cordilheira Central, o Maciço Marginal e a Serra do Caramulo (1071 m), limitam respectivamente a SE, a SW e a NW, uma superfície aplanada, ligeiramente inclinada para SW perdendo cotas de 500 a 200 m, sensivelmente, designada por “Plataforma do Mondego” (Ferreira, 1978), drenada pelo Mondego e seus afluentes, que transpõem o Maciço Marginal através de vales encaixados, em direcção à Orla Ocidental, dominada, aqui, pela planície aluvial do Mondego. A uma escala de pormenor, de acordo com o esquema de ordenamento da cidade (“Urbanismo, Coimbra, Anos 90”, Câmara Municipal de Coimbra, 1993, p. 18), na mancha de povoamento urbano distinguem-se três grandes zonas da cidade: a “Zona Norte”, a “Margem Esquerda” e a “Margem Direita” do Mondego. Por motivos de ordem prática, a investigação topoclimática, de maior pormenor, incidiu na “Margem Direita do Mondego”. Por isso, a caracterização local do relevo que se faz é, principalmente, desta zona da cidade que, do ponto de vista topográfico, se pode subdividir em dois sectores: sector Norte e sector Sul (maps.google.pt). O sector Norte desenvolve-se sobre uma colina dos contrafortes do Maciço Marginal cujas altitudes variam entre os 190-200 m na área do Tovim, até à cota de 90 m de uma outra colina, geminada, que lhe dá continuidade para W, de topo aplanado, onde se localiza o Polo I da Universidade de Coimbra. No seu conjunto estas colina é limitada a N pelo encaixe do vale da Ribeira de Coselhas (Tovim - Casa do Sal), profundo e de vertentes abruptas, e a W por vertentes escarpadas que “mergulham” em direcção ao Mondego. 181 Cadernos de Geografia O sector Sul da cidade ocupa uma forma deprimida “em ferradura”, proveniente de um provável braço morto do Mondego, o chamado “meandro abandonado da Arregaça” (Rebelo, 1985, p. 197). A base da forma situa-se à cota de 30-40 m e no seu centro desenvolvese uma colina alongada, de dimensões modestas (80 m no ponto mais elevado), que estabelece a separação entre dois vales amplos, o vale da Solum no seu flanco N e o vale das Flores no seu flanco S. O meandro da Arregaça é limitado a S (Pinhal de Marrocos) e a E por um conjunto de colinas que culminam a cotas de 120-140 m, prolongando-se para N até ao Tovim. As áreas mais próximas das margens do Mondego são as mais baixas, com cotas na ordem dos 20-30 m. Os maiores índices de ocupação do solo correspondem à Alta, que ocupa a vertente ocidental da colina da Universidade, à Baixa, que contorna esta colina até às margens do Mondego, e à colina do sector N da cidade (Tovim, Sto. António dos Olivais, Celas) bem como toda a forma deprimida do sector S da cidade (Solum e vale das Flores). Contrastes termohigrométricos e circulações de Leste: os dados de observação Os resultados dos referidos estudos de topoclimatologia urbana em Coimbra, evidenciaram, no contexto do campo termohigrométrico médio, uma ilha de calor polinucleada, com os núcleos na Baixa, na Alta e no topo da colina do sector Norte da área urbana, resultante da intervenção conjunta de factores como os coeficientes de ocupação do solo, a morfologia urbana e a topografia, e lagos de ar frio, de carácter nocturno, determinados pela topografia e privilegiando as áreas deprimidas, em particular o vale de Coselhas. Na forma deprimida do sector Sul da cidade (meandro da Arregaça), o forte grau de urbanização fomenta um núcleo da ilha de calor durante o dia, fortemente atenuado, durante a noite, pela acumulação de ar frio de origem catabática. Os contrastes espaciais mais comuns oscilaram entre 3 e 5ºC de temperatura, e entre 5 e 15% de humidade relativa, com nuances dependentes de condições de tempo. Porém, sob condições de tempo particulares (circulações de Leste), durante a noite, detectaram-se contrastes termohigrométricos espaciais extremados e obedecendo a uma distribuição espacial muito diferente do padrão habitual, como são exemplos os seguintes casos: 182 Nuno Ganho - 12ºC de diferença de temperatura entre a parte oriental da cidade, mais quente, e o espaço periurbano a NW, observados numa campanha de observação itinerante (Ganho, 1992, 1995b); - Temperatura 11ºC mais elevada e humidade relativa 50% mais baixa no meandro da Arregaça (vale das Flores) do que na periferia setentrional da cidade (Bencanta, no enfiamento do vale de Coselhas), valores obtidos por termohigrogramas de postos fixos de observação (Ganho, 1998); - Contrastes térmicos de 10ºC (Marques, Ganho e Rochette, 2008) e de 9ºC (Fialho, 2009), e obedecendo a um padrão espacial semelhante aos anteriores, evidenciados através de observações itinerantes. Contrastes termohigrométricos e circulações de Leste: considerações explicativas Na interpretação de tão elevados contrastes termohigrométricos num espaço de tão reduzidas dimensões não pode ser invocado o efeito urbano. Um denominador comum encontrado em todos os casos referidos foi a influência, especialmente durante a noite, de circulações mais ou menos intensas, dos quadrantes de Leste (NE, E e SE). A explicação está no efeito da intervenção, espacialmente selectiva, dos fluxos de Leste, acelerados, aquecidos e excicados por subsidência catabática ao longo das vertentes ocidentais do Maciço Marginal. O modelo explicativo do padrão original dos campos térmico e higrométrico, e dos extremados contrastes termohigrométricos espaciais, sob acção de circulações nocturnas de Leste, atribui, assim, uma importância determinante ao efeito do relevo regional e local na dinâmica topoclimática. Como se disse no enquadramento morfológico regional de Coimbra, a Cordilheira Central, o Maciço Marginal e a Serra do Caramulo, limitam a SE, SW e NW, respectivamente, a “Plataforma do Mondego”, superfície aplanada e ligeiramente inclinada para SW. Nesta superfície, assim “isolada” por relevos salientes, o ar fortemente arrefecido pela base, durante a noite, em situações de céu limpo e vento fraco, é drenado para SW, em função da sua inclinação e através do vale do Mondego (Figura 1). O facto de se tratar de um vale apertado, à passagem do Maciço Marginal, provocará uma aceleração do lento fluxo catabático, que, após a passagem do mesmo relevo montanhoso, não só continua a acompa- Notas, notícias e recensões nhar o traçado, em cotovelo, do vale do Mondego em Coimbra como, facilmente, invade o meandro da Arregaça, transpondo as modestas colinas que a S (Pinhal de Marrocos) o separam do vale do Mondego, chegando ao sector Sul da cidade e à colina do sector Norte com uma componente de SE, e ligeiramente aquecido e mais seco, não só por uma certa subsidência ao longo do seu percurso, como também por turbulência dinâmica com o solo que destrói ou atenua a sua estratificação inversa nos primeiros 100 a 150 m da camada limite1. Noutras situações de maior secura do ar e fomentadoras de um mais acentuado arrefecimento térmico nocturno, o escoamento do ar pelo apertado vale do Mondego, não é suficiente para atenuar o rápido aumento de espessura da camada arrefecida pela base, que assim acaba, após as primeiras horas da noite, por “transbordar” o Maciço Marginal em geral e a Serra do Roxo em particular, invadindo a cidade em avalanches sucessivas, com uma componente de Leste, e aquecido e excicado adiabaticamente. Este mecanismo é certamente intensificado quando a situação de escala sinóptica fomenta circulações de Leste, que são, do mesmo modo, ou de forma reforçada, aceleradas por gravidade ao longo das vertentes ocidentais da Serra do Roxo. Ora, culminando a Serra do Roxo a 510 m imediatamente a Leste da cidade e situando-se as áreas mais baixas desta, a cotas de 40 m (leito do meandro da Arregaça), ou de 20 m (sectores marginais do Mondego), isto corresponde a um desnível de quase 500 m numa curta distância horizontal (5 km), de acordo com o gradiente adiabático seco, a um aquecimento, de origem puramente dinâmica, de quase 5°C e a uma diminuição da humidade relativa de aproximadamente 30%2. No entanto, a nº 28/29 - 2009/10 topo das colinas do sector Norte da cidade (Celas, Alta), menos próximas da base das vertentes do Maciço Marginal e a cotas 80 a 100m superiores, o que retira, teoricamente, 1°C à componente advecção. Por seu lado, a Baixa, aproximadamente à mesma cota do leito do “meandro da Arregaça”, mas mais afastada do Maciço Marginal e mais abrigada pelas colinas do sector N da cidade (onde se situam Celas e a Alta), fica em situação de “abrigo” relativamente aos fluxos catabáticos. A componente advecção é então, nesta área, menor do que na parte oriental da cidade e a estratificação térmica vertical mais estável, fomentando um maior arrefecimento nocturno, mas, o elevado grau de ocultação do horizonte dificulta as perdas de energia por irradiação, logo, esta componente é aqui menor, para além de se lhes juntar o maior calor antrópico, típico do centro das cidades, com maior tráfego. Em Bencanta, na periferia NW da aglomeração urbana, a acção dos fluxos catabáticos é pequena pelo seu maior distanciamento relativamente ao Maciço Marginal e à sua posição de abrigo topográfico, e o balanço térmico nocturno fortemente deficitário por forte irradiação na ausência de ocultação do horizonte, por ausência de calor antrópico, e por atenuação da componente advecção catabática e da mistura por turbulência dinâmica. Só por combinação selectiva deste conjunto de factores, ponderados teoricamente, se podem explicar topografia da cidade impõe uma acção selectiva e diferenciada destes fluxos e da intensidade da componente advecção que somam às restantes componentes do balanço térmico nocturno. Assim, a área do vale das Flores e da Solum, porque mais baixa e próxima da base das vertentes do Maciço Marginal, é a mais fortemente atingida pelos fluxos catabáticos, que inibem o arrefecimento nocturno pela destruição da estratificação térmica inversa e pela forte componente advectiva, mais forte do que a que se junta ao balanço térmico das áreas do 1 Estas conclusões foram tiradas a partir de frequentes observações matinais do comportamento de “línguas de nevoeiro” relativamente à sua movimentação e fisionomia, de topo cumuliforme, típica de um escoamento turbulento. 2 O cálculo da diminuição da humidade relativa foi feito, por aproximação teórica, a partir dos valores das equissaturadas, para uma temperatura de 10°C a 500m e de 15°C a 20m de altitude, utilizando uma base de construção de tefigramas e como fórmula de cálculo HR=W/ Ws.100, sendo HR-humidade relativa, W-razão de mistura e Ws-razão de mistura de saturação. Figura 1 Esboço esquemático das circulações regionais, predominantemente nocturnas, geradas em situações de céu limpo e circulações sinópticas de Leste. (Fonte: Ganho, 1998: 318) 183 Cadernos de Geografia (ou pelo menos em parte) na presença de circulações de Leste - quer sejam de carácter regional, quer tenham apenas uma raiz regional, ou sejam simplesmente de carácter local - por um lado a intensidade extrema que atingem, por vezes, de madrugada, nestas situações, os contrastes termohigrométricos numa área de dimensões tão restritas, por outro lado as temperaturas muito mais elevadas (e a humidade relativa fortemente mais baixa) no Tovim, Solum e vale das Flores relativamente à Baixa e ao espaço periurbano NW da aglomeração (Bencanta), quando o regime médio se caracteriza por contrastes térmicos favoráveis à Baixa, constituindo-se assim como o núcleo principal da ilha de calor, sob influência de outras condições de tempo que não a de consistentes circulações de Leste. Esta construção teórica atribui ao relevo regional e local uma importância privilegiada na explicação da diversidade topoclimática em geral, e dos contrastes termohigrométricos entre diferentes áreas da cidade de Coimbra, em particular, com um efeito que, claramente se sobrepõe ao efeito urbano e o mitiga. O exemplo apresentado reforça o peso do factor ”relevo” na equação dos factores intervenientes na dinâmica topoclimática urbana em cidades de topografia acidentada. Nuno Ganho Ferreira, A. B. (1978) - Planaltos e Montanhas do Norte da Beira. Estudo de geomorfologia. Memórias do C.E.G., 4, Lisboa, 374 p. Fialho, J. (2009) - Poluição por Partículas e Clima Urbano. O caso de Coimbra. Dissertação de Mestrado em Geo­ ciências, área de especialização em Ambiente e Ordena­ mento do Território, apresentada à Faculdade de Ciên­ cias e Tecnologia da Universidade de Coimbra, 134 p. Ganho, N. (1992a) - O Clima Urbano de Coimbra - Aspectos térmicos estivais. Dissertação de Mestrado em Geografia apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 170 p. + 80 p. extra texto de gráficos e figuras. Ganho, N. (1992b) - “A ilha de calor de Coimbra - Resultados de observações itinerantes de temperatura no interior do tecido urbano”. Actas do VI Colóquio Ibérico de Geo­ grafia, Porto, pp. 911-920. Ganho, N. (1995a) - “A ilha de calor de Coimbra: intensidade e ritmo diário - Resultados de observações com termohi­ grógrafos em abrigo”. Actas do II Congresso da Geografia Portuguesa, Coimbra, pp. 197-209. Ganho, N. (1995b) - “A ilha de calor de Coimbra sob diferentes condições de tempo de Verão”. Territorium, 2, pp. 33-50. Ganho, N. (1998) - O Clima Urbano de Coimbra - Estudo de climatologia local aplicada ao ordenamento urbano. Dissertação de Doutoramento em Geografia apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 551 p. Bibliografia: Marques, D.; Ganho, N. e Rochette, A. (2008) - ”Clima Local e Ordenamento Urbano - O exemplo de Coimbra”. Birot, P. (1949) - “Les surfaces d’érosion du Portugal Central et Cadernos de Geografia, 26/27, 2007/2008, pp. 313-323. Septentrional”. Rapport de la Comission pour la Rebelo, F. (1985) - “Nota sobre o conhecimento geomorfológico Cartographie des Surfaces d´Aplanissement, Louvain, da área de Coimbra (Portugal)”. Memórias e Notícias, U.G.I., pp. 9-116. 100, Coimbra, pp. 193-202. 184