grandes mestres da ciência brasileira André Dreyfus (1897-1952) genética animal e evolução 1 editorial ciência brasileira: história com sujeito e predicado Projeto Genoma é um empreendimento internacional, iniciado formalmente em 1990 e projetado para durar 15 anos, com o objetivo central de identificar e mapear os cerca de milhares de genes que existem no DNA das células do corpo humano, determinando as seqüências das três bilhões de bases químicas que compõem esse material genético. Paralelamente estão sendo desenvolvidos estudos com outros organismos sele­cio­­nados, em especial microorganismos, visando desenvolver tecnologia e também como auxílio ao trabalho de interpretar a complexa função genética humana. O Brasil, que conta com cerca de 1.700 grupos de pesquisa em Biotecnologia, é um dos 15 países participantes do projeto, com um investimento de cerca de R$ 100 milhões nos últimos dois anos. “A pesquisa genética, capaz de salvar milhões de vidas em um futuro pró­ xi­mo, hoje limita-se aos países industrializados, e os países em desenvolvimento correm o risco de não ter acesso aos benefícios dessa pes­quisa, assim como ficaram à margem da revolução informática nos anos 80 e 90. As únicas exceções são o Brasil, a China, Índia e Cuba, que estão dando contribuições notáveis ao Projeto Genoma.” Essa é uma das conclusões do 1º Relatório da Organização Mundial de Saúde (OMS) sobre “Genoma Humano e Saúde Mundial”, divulgado em 30 de abril de 2002. O Brasil é citado especialmente pela decodificação completa do genoma da Xylella fastidiosa e também pelos avan­ços obtidos no Projeto Genoma do Câncer, como o desenvolvimento de uma técnica revolucionária de localização e identificação de genes – o chamado seqüenciamento – no DNA humano. A inclusão do Brasil entre os principais centros de pesquisa genômica é o reconhecimento mundial do avançado estágio em que se encontram os estudos de Genética Animal e Humana no país. Esse status atual é, em essência, fruto de uma história iniciada há exatos 80 anos, quando começa a se formar um personagem fundamental para a ciência na­cio­nal: o professor e cientista André Dreyfus (1897-1952), o pioneiro da Genética Ani­mal e da Evolução no Brasil. Fundador do primeiro curso de Biologia e da primeira escola de genética no país, numa época em que essa modalidade científica ainda dava seus primeiros passos em todo o mundo, Dreyfus foi também um dos articuladores e criadores da Universidade de São Paulo (USP), em 1934. Dreyfus foi, acima de tudo, um cientista curioso, instigante e com iniguálavel visão de futuro, além de professor apaixonado por seu ofício, conferencista prestigiado, amante das artes e da música e um dos primeiros (ou talvez o primeiro) a defender a importância da divulgação científica – ponte essencial entre a academia e o debate das questões da ciência, da ética e da moral na arena pública. Xylella fastidiosa é a bactéria causadora da Clorose Variegada de Citros (CVC), doença popularmente conhecida como “praga do amarelinho”, que causa sérios prejuízos à produção comercial de laranja. A conclusão do seqüenciamento do DNA da bactéria por pesquisadores brasileiros foi destaque na capa da revista Nature em 2001, com foto de Cristiano Mascaro. grandes mestres da ciência brasileira 2 Apesar da importância de seu trabalho para a genética, a ciência nacional e a divulgação científica junto à sociedade, Dreyfus permanece lamentavelmente incógnito para a maior parte dos estudantes, pesqui­sadores, jornalistas e do público em geral. Por isso a escolha de seu nome para iniciar a série Grandes Mestres da Ciência Brasileira, cujo objetivo é ajudar a preencher a grave lacuna que persiste na história do país, mos­trando um pouco da vida e da obra dos principais pioneiros da ciência brasileira, em suas mais diversas modalidades. A série Grandes Mestres da Ciência Brasileira é uma publicação relativa ao Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) da aluna Cely da Silva Carmo (nº USP 121.412), da graduação em Jornalismo. Edição nº 1 – Junho de 2002 (André Dreyfus). [Pesquisa, Entrevistas, Textos, Projeto Gráfico, Diagramação, Edição e Revisão] [Fotos] [Colabo­ra­ção][Orientador] [Unidade] [ A g r a d e c i m e n t o s ] primeiros passos novas fronteiras Antes de partir para as pesquisas de Genética e Evolução, André Dreyfus ajuda a fundar as bases da Biologia brasileira A história da Genética e da Evo­ amostra do autoritarismo que logo lução no Brasil se confunde com a viria a se instaurar. No meio acadêmico há uma efertrajetória do cientista gaúcho André Dreyfus, iniciada em 1922, quando, vescência em diversos campos da aos 24 anos, ele deixa sua cidade ciência. A partir de 1912, ano da natal, Pelotas, e parte para a então fundação da Universidade do Pa­raná, capital federal, onde ingressa na começam a surgir as primeiras unirenomada Faculdade de Medicina do versidades no país. Com a chegada do progresso nas mais diversas áreas, Rio de Janeiro. 1922 é um ano sintomático para o como a construção de ferro­vias, a Brasil, pois muitos fatos começam a expansão da rede de eletricidade e a prenunciar uma reviravolta na velha implantação do telefone, o Brasil vive ordem estabelecida. O Levante do um período de flores­cimento tecForte de Copacabana, a fundação do nológico, im­pulsionando a abertura de novos campos do Partido Comunista e a Primeiros conhecimento. Se­m a­n a de Arte experimentos A carreira médica Moder­na demonstram conta com forte status o esforço multilateral são feitos num no país no início do no sentido de romper século 20. Mas também com os pa­drões polítilaboratório enfrenta inúme­ros cos, cul­tu­­rais e sócioimprovisado de­safios, cujas res­ econô­micos vigentes postas dependem até o momento. As no porão de totalmente do de­sen­ questões sociais são uma residência volvimento das ciênagravadas pela cias básicas. Diversas explosão urbana e industrial, especialmente no Rio de doenças tropi­cais, como febre amarela e tifo assolam o país. A doença Janeiro e em São Paulo. A capital da República Velha vive de Chagas co­meça a ser desvendada, sob o signo da Política do Café-com- com a des­coberta, em 1909, do proleite, apagando as luzes do governo tozoário cau­sador da doença, o Epitácio Pessoa para receber Artur Trypanozoma Cruzi, pelo médico, Bernardes, representante da podero- sanitarista e cientista mi­neiro Carlos sa oligarquia mineira. A posse do Chagas (1878-1934). novo presidente, em 15 de novemVocação para a Biologia bro, é marcada pelo início de um O Rio de Janeiro é, ao lado de São interminável Estado de Sítio, que perduraria por todo o mandato, durante Paulo, o principal pólo de produção 44 meses. Censura à im­prensa, com o científica do país. Ainda no pri­mei­ro fechamento dos jornais de esquerda, ano de graduação na Facul­dade de e proibição ao fun­cionamento dos Medicina, André Dreyfus descobre sindicatos são algumas de suas sua vocação para a pes­quisa em ciênprimeiras medidas, dando uma cias biológicas, mas ainda não há no arquivo ib-usp do conhecimento André Dreyfus nasceu no dia 5 de julho de 1897, na cidade de Pelotas, Rio Grande do Sul. Seus pais, franceses, vieram para o Brasil fugindo da Guerra Franco-Prussiana, em 1870, que assolou sua cidade de origem, Estrasburgo, a qual acabou sendo transferida da França para a Alemanha, junto com as províncias Alsácia-Lorena. Os Dreyfus eram donos de uma joalheria e relojoaria em Pelotas, mas o negócio foi fechado quando o filho André resolveu seguir a carreira de medicina e prestou concurso para a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Os quatro membros da família, incluindo a irmã caçula do cientista, Jenny Dreyfus, mudaram-se para a então capital federal. Logo os pais faleceram, e a irmã começou a trabalhar no Museu Nacional do Rio de Janeiro, tornando-se especialista em cerâmica e tapeçaria. André e Jenny não tinham parentes no Brasil e nunca se casaram, não deixando descendentes. André Dreyfus faleceu em São Paulo, no dia 16 de fevereiro de 1952, e seu corpo foi enterrado no Cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro. 3 primeiros passos cronologia andré dreyfus 5 de julho de 1897 Nasce na cidade de Pelotas (RS), filho de pais franceses, naturais de Estrasburgo. 1922 Após o término do colegial, em Pe­lotas, muda-se para a então capital federal, com os pais e a irmã Jenny. Ingressa na Facul­dade de Medicina do Rio de Janeiro. 1923 Conhece Miguel e Álvaro Osório de Almeida, precursores da Fisiologia no Brasil e pesquisadores do Instituto Man­guinhos, e começa a fazer experimentos científicos em um laboratório improvisado no porão da casa deles. 1925 Monta um curso de Histologia pa­ra estudantes de Medicina, que é fre­qüentado por mais de mil alunos. Já in­clui em suas aulas noções de Genética e Evolução. Ciência no porão Logo que se instala no Rio de Janeiro e começa a cursar Medi­cina, o jovem André Dreyfus co­nhece um grupo de pes­quisadores do Instituto Man­guinhos (mais tar­de transformado em Fundação Os­waldo Cruz) e começa a participar das reuniões que Caricatura de Dreyfus, feita em 1951 1927 Forma-se em Medicina e por Pacheco para o jornal “A Manhã” torna-se professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, conquistando a cátedra efetiva poucos anos depois. 1932 Muda-se para São Paulo, como professor do curso preparatório da Fa­culdade de Medicina de São Paulo. Participa ativamente do grupo que planeja a criação da Universidade de São Paulo (USP). 1934 Ajuda a fundar a USP e a Faculdade de Filosofia, Ciências e Le­tras, tornando-se chefe do Departamento de Biologia Geral. Publica o livro Vida e Universo e Outros Ensaios pela editora Nacional, em São Paulo. 1935 Participa da criação do primeiro curso de História Natural do país, que reúne disciplinas de Biologia, Geologia e Mineralogia. 1937 Presta concurso e é efetivado na cadeira de Biologia com a tese de cátedra “Contribuição para o Estudo do Cyclo Chromosomico e da Determinação do Sexo de Rhabdias fulleborni Trav. 1926”. 1938 A Faculdade de Filosofia é transferida das dependências da Faculdade de Medicina, na avenida Dr. Arnaldo, para prédio na alameda Glete, no Centro. 1942 Recebe a visita de Harry Miller Jr., representante da Fundação Rockfeller, que está disposta a investir em laboratórios científicos no Brasil. 1943 Chegada do cientista Theodosius Dobzhansky, um dos maiores geneticistas do mundo, que fica por quatro meses no laboratório de Dreyfus e ministra um curso para pesquisadores de todo o país sobre Genética Moderna e Evolução. Inicia os estudos de citogenética com moscas do gênero Drosophila. 1944-5 Viaja para os Estados Unidos, onde estagia no laboratório de Dobzhansky, e segue para a Europa, visitando diversos laboratórios de pesquisa. 1947 Publica o livro Condições para o Trabalho Científico no Brasil. 1948-9 Recebe novamente a visita de Dobzhansky em seu laboratório. 16 de fevereiro de 1952 Morre em São Paulo, vítima de hipertensão arterial e complicações cardíacas. É enterrado no Rio de Janeiro. 4 Brasil nenhum curso es­pe­cífico para essa área. “Até o início da década de 1930, quando foram criados os primeiros cursos de História Natural, englo­ bando Biologia, Geologia e Mine­ ralogia, praticamente só existiam os cursos de Medicina, Direito e En­genharia. Por exemplo, eu sempre quis ser botânico, mas, para isso, tive de cursar Medicina. Quem qui­sesse ser astrônomo, devia fazer En­­genharia e, para ser historiador ou escritor, era preciso ir para uma fa­culdade de Direito”, lembra o ci­en­tista carioca Oswaldo Frota-Pes­soa, que trabalhou numa pes­qui­sa de sistemática de moscas no la­bora­tório de Dreyfus nos anos 40. o início No período colonial bra­sileiro, a medicina era exercida no Brasil por pajés, feiticeiros, curandeiras, par­ teiras, jesuítas e cirurgiões portu­ gueses, hispânicos e holandeses. Não havia ensino superior no país, o que era considerado uma ame­aça ao poder exercido por Por­tugal. Os poucos médicos que atuavam no país eram formados na Europa. Com a transferência da Corte por­ tuguesa para o Brasil, em 1808, fo­ram criadas as duas primeiras escolas de Medicina no Brasil, em Salvador (fevereiro de 1808) e no Rio de Janeiro. A atual Faculdade de Medicina da Uni­versidade Fe­deral do Rio de Ja­neiro (UFRJ) foi fundada por D. João VI, por meio de Carta Régia assinada em 5 de novembro de 1808, a qual determinava o estabelecimento, no Hos­pital Militar do Morro do Castelo, de uma Escola de Anatomia, Medi­cina e Cirurgia. Em 3 de outubro de 1832, du­rante primeiros passos acontecem sema­nalmente na residência dos ir­mãos Álvaro e Miguel Osório de Al­meida, precursores da Fisio­logia no Brasil. “A casa dos Osório de Almeira ti­nha um porão amplo, onde eles im­provisaram um laboratório. Toda semana, o grupo, incluindo Dreyfus, montava uma série de experimentos, que iam da Biologia à Astronomia, e passava horas e horas discutindo so­bre ciência, especialmente Fisiolo­ gia, Citologia e Histologia, matérias básica da Medicina”, diz Frota-Pessoa. Até os anos 1960, essas reuniões de intelectuais são comuns no Rio de Janeiro e em São Paulo. São grupos inspirados no tradicional chá inglês, que se encontram para dis­cutir um pouco de tudo. “Havia um grupo as­sim no Instituto Biológico, em São Paulo, que se reunia todas as sextasfeiras, do qual participaram, na dé­ca­ da de 1940, eu, Dreyfus, José Reis e Otto Bier, por exemplo”, conta o geneticista Crodowaldo Pavan. Entusiasmado com as perspectivas de desenvolvimento das ciências bio­­ lógicas, Dreyfus, ainda em seus pri­ meiros anos de graduação, abre um curso de atualização em Histo­logia e Embriologia, para dar aulas particulares para seus colegas e para estudantes de Medicina em geral. Nessa época, praticamente ainda não se fala de Genética e Teoria da Evo­lução no Brasil, mas Dreyfus – autodidata no as­sunto – já inclui em seu curso no­ções básicas dessas áreas. O curso continua quando Dreyfus se forma em Medicina, em 1927, e suas aulas são disputadas. “Mais de mil universitários freqüentaram o cur­so e, desses, muitos se tornaram grandes pesquisadores”, diz Pavan. Com o sucesso dessa empreitada, Drey­fus começa a se firmar como um brilhante professor e conferen­cista. Torna-se professor-assistente da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro assim que conclui a gradua­ção e pouco tempo depois é efetivado na cátedra de Histologia, ficando assim até o final de 1932, quando se transfere para a Faculdade de Me­dicina de São Paulo. O médico, cientista, professor e divulgador científico Miguel Osório de Almeida (1890-1953), carioca, formou-se pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, concluindo o doutorado em 1911. Um dos precursores da pesquisa científica em Fisiologia Animal e Humana, atuou no Instituto Oswaldo Cruz, no Instituto de Biologia Animal do Ministério da Agricultura, na Escola Superior de Agricultura e Medicina Veterinária e foi, ainda, professor e reitor da Universidade do Distrito Federal (hoje UFRJ). Publicou, entre outras obras, Homens e Coisas de Ciência (1925), A Vulgarização do Saber (1931) e Tratado Elementar de Fisiologia (1937), sendo eleito em 1935 para a Academia Brasileira de Letras, instituição por ele presidida no ano de 1949. da medicina brasileira a fase da Regência, foi sancionada a lei que transformava es­sas Academias Médi­co-Cirúrgicas em Faculdades de Medi­cina. O pri­meiro prédio próprio da Facul­dade de Medicina do Rio de Ja­neiro foi erguido na Praia Vermelha e inaugurado em 12 de outubro de 1918. Nesse local funcionou co­mo escola independente até 7 de se­tembro de 1920, quando foi incorporada à Uni­ver­sidade do Rio de Janeiro, cri­ada por meio de decreto. No ano de 1937, com a inauguração da Uni­versi­dade do Brasil, constituída por 15 faculdades e 16 institutos de pesquisa, a escola pas­­sou a se cha­mar Faculdade Na­cio­nal de Medi­cina. A Universidade do Brasil, por sua vez, passou a ser denominada Uni­ versi­dade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em 1965 e, no ano de 1973, foi determinada a transferência das instalações da Medi­cina da Praia Vermelha para a nova Cidade Uni­ Antigo prédio da Faculdade Nacional de Medicina, na Praia Vermelha, demolido em 1975. versitária da UFRJ, localizada na Ilha do Fundão – onde permanece até hoje. O prédio da Praia Ver­me­lha acabou sendo demolido dois anos mais tarde. A Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro formou grandes perso­na­ lidades brasileiras, que se desta­ caram não apenas na Medicina, mas também em outras áreas do conhecimento. Alguns exemplos: Carlos Chagas, Miguel Couto, Vital Brazil, Dante Pazzanese, e Edgar RoquettePinto, fundador da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, a pri­meira emissora de rádio do país. 5 universidade impulso às ciências básicas Armando de Salles Oliveira (1887-1945), engenheiro e jornalista, foi o fundador da Universidade de São Paulo em 1934, quando governava o Estado de São Paulo como Interventor Federal (21/08/1933 a 11/04/1935). Formado pela Escola Politécnica em 1905, especializou-se na instalação de usinas hidrelétricas em várias cidades paulistas. Foi diretor do jornal O Estado de S. Paulo em 1915. Após a promulgação da Constituição Estadual, em 1935, foi eleito governador de São Paulo (11/04/1935 a 29/12/1936) pela Assembléia Constituinte, mas renunciou ao cargo para disputar a Presidência da República pela União Democrática Brasileira (UDB), contra José Américo de Almeida (PRP) e o integralista Plínio Salgado (UIB). Com a implantação do Estado Novo, foi preso e exilado, voltando ao país poucos meses antes de sua morte. Escreveu, entre outros livros, Para Que o Brasil Continue: São Paulo (1937) e Diagrama de Nossa Situação Política: Manifestos Políticos do Exílio (1945). Atualmente, a Universidade de São Paulo (USP) é a maior instituição de ensino superior e de pesquisa do país, a 3ª da América Latina e está classificada entre as 100 primeiras organizações similares dentre as cerca de 6 mil existentes no mundo. Conta com 35 unidades de ensino distribuídas por 6 campi universitários: em São Paulo, Bauru, Piracicaba, Pirassununga, Ribeirão Preto e São Carlos. A Cidade Universitária Armando de Salles Oliveira, no bairro do Butantã, em São Paulo, é o maior campus, contendo a infra-estrutura administrativa da universidade e 23 unidades de ensino. Há bases científicas e museus também em outras cidades, como Anhembi, Anhumas, Araraquara, Cananéia, Itatinga, Itirapina, Piraju, Salesópolis, São Sebastião, Ubatuba e Valinhos (SP), além de Marabá (PA). 6 O clima de transformações sociais, funções téc­­nicas, políticas e culturais, econômicas e culturais prenunciado lhes faltava a universalidade e a prono começo dos anos 1920 reflete-se fundidade, que levariam à certeza do também na área educacional: diver- progresso e à cultura livre e desintersos setores da sociedade civil come­ essada”. çam a se organizar para promover a Após a publicação dos resultados do renovação do ensino no país, desde o Inquérito sobre a Instrução Pú­blica, a primário até o nível superior. Esse idéia de criação de uma universidade contexto culmina com a criação do paulista ganha ainda mais força com Ministério da Educação e Saúde e do as Conferências Nacionais de Conselho Nacional de Educação, no Educação, realizadas pela Asso­ciação ano de 1931. São instituídos também Brasileira de Edu­cação nos anos de a obrigatoriedade do ensino primá­rio 1927, 1928 e 1929, e com dois novos e o ensino profissionalizante pa­ra as estudos, O Problema Uni­versitário classes sociais menos favorecidas, e Bra­sileiro (1928) e o Inquérito do abertas as pri­meiras Rotary Clube de São univer­si­da­­des brasilPaulo (1929). Divulgação das eiras. Essas iniciativas, ciências ao grande ao lado da campa­ Em São Paulo, o jornal O Estado de S. nha patrocinada por público – ou sua Paulo inicia, em Júlio de Mes­quita “vulgarização” – é Fi­lho no Esta­do de S. 1923, uma ampla e ostensiva campanha e a chegada um dos propósitos Paulo a favor da criação de de Armando de uma universida­de da USP desde sua Salles Oliveira ao em São Paulo. A poder, como Inter­ pedido de seu dire- criação, por decreto ventor Federal de tor, Júlio de Mes­qui­ São Paulo, nomeado ta Filho, um grupo de professores e pelo presidente Ge­túlio Vargas, forpesquisado­res, liderados por Fer­ mam o contexto propício para a nando de Azevedo, desenvolvem em fundação da Uni­versidade de São 1926 o Inquérito sobre a Instrução Paulo (USP), o que finalmente ocorre Pública em São Paulo, publicado no no dia 25 de ja­nei­ro de 1934, pelo jornal durante quatro meses e res­ decreto esta­dual nº 6.283, assinado pondido por centenas de professores pelo in­ter­ventor. das escolas públicas e das faculdades de Medicina, Direito e Engenharia de A participação de Dreyfus todo o território nacional. O cientista André Dreyfus, já consaDe acordo com o professor Erasmo grado no Rio de Janeiro como profesGarcia Mendes, professor do Insti­tuto sor e conferencista e em 1933 do­cente de Biociências e conselheiro editorial da Faculdade de Medicina de São da revista Estudos Avança­dos, da USP, Paulo, na avenida Doutor Ar­nal­do, uma das conclusões des­sa pesquisa é participa das inúmeras dis­cus­sões em a de que “o ensino superior no Brasil tor­no da criação da universidade e precisava se des­prender dos limites acaba sendo convidado a integrar a estreitos da pre­paração profissional, comissão res­pon­sável pela elabora­ pois, ainda que as escolas profission- ção do texto final do decreto de ais existen­tes tivessem ocupado papel fundação da USP. de gran­de expressão, concentrando Dreyfus se transfere do Rio de universidade bob pauli- A abertura da USP e, com ela, dos primeiros cursos de Biociências e Geociências do país, dá forte impulso à pesquisa básica brasileira: essa é uma das metas de André Dreyfus, que ajuda a definir as diretrizes da nova universidade Ja­neiro para São Paulo em 1932 e atua inicialmente como professor do cha­mado “pré da Medicina”, ou seja, o curso preparatório da Faculdade de Medicina, feito pelos candidatos à carreira médica em dois anos após o término do colegial. Nesse ano, o cientista contribui pa­­ ra a fundação da Escola Paulista de Medicina (hoje Univer­sidade Fe­deral de São Paulo), inclusive com a doação de cinco contos de réis – muito dinheiro na época – e, nesse ínterim, integra o movimento pela criação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras – escola que seria um dos prin­ cipais centros de articulação pa­ra a formação da USP e que definiria seu perfil inovador, crítico e compromissado com a reflexão e a pluralidade, tornando-se o núcleo ca­­ta­­li­sador da universidade, em torno da qual se agregaram a Fa­culdade de Medicina, a Faculdade de Direito, a Escola Politécnica e as de­mais escolas incorporadas à USP (veja box na página 8). Inicialmente, de 1934 a 1937, a Fa­culdade de Filosofia, Ciências e Letras funciona nas dependências da Faculdade de Medicina da USP, no antigo prédio da avenida Dr. Ar­naldo. Ali, em 1935, Dreyfus ajuda a criar o pri­meiro curso de História Natural do país, integrando disciplinas biológicas e geológicas nos seguintes departamentos: Minera­logia e Petrografia, Geologia e Pa­leontologia, Biologia Geral, Zoolo­gia, Botânica e Fisiologia Geral e Animal. Assim que a universidade inicia suas atividades, sob o comando do reitor Reynaldo Porchat, da Facul­dade de Direito, André Dreyfus é convidado a se tornar professor ca­te­drático da História Natural O curso de História Natural da USP permaneceu com esse nome até 1957, quando foi desmembrado em Ciências Biológicas e Ciências Geológicas, mas ainda pertencentes à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Com a Reforma Universitária, em 1971, essa faculdade ganhou o nome atual – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) –, e as disciplinas de Biologia e Geologia foram, então, transferidas para novas unidades: o Instituto de Biociências e Instituto de Geociências. Atualmente, o Instituto de Biociências ocupa três prédios principais na Cidade Universitária, na rua do Matão, sendo que os Departamentos de Biologia e Botânica estão alojados no Edifício André Dreyfus (foto acima). 7 universidade o decreto de fundação da USP O decreto estadual nº 6.283, de 25 de janeiro de 1934, que criou a Universidade de São Paulo (USP), foi preparado por uma comissão de pesquisadores e intelectuais. Além de André Dreyfus, integraram essa comissão os cientistas Agesilau Bittencourt (Instituto Biológico), Almeida Júnior (Instituto de Educação), Raul Briquet (Faculdade de Medicina), Rocha Lima (Instituto Biológico) e Vicente Rao (Faculdade de Direito), bem como o diretor do jornal O Estado de S. Paulo, Júlio de Mesquita Filho. Confira, abaixo, a fundamentação da criação da USP, de acordo com os artigos 1º a 3º do documento: “O doutor Armando de Salles Oliveira, Interventor Federal do Estado de São Paulo, usando das atribuições que lhe confere o decreto nº 19.398, de 11 de novembro de 1930; e considerando que a organização e o desenvolvimento da cultura filosófica, científica, literária e artística constituem as bases em que se assentam a liberdade e a grandeza de um povo; considerando que somente por seus institutos de investigação científica de altos estudos, de cultura livre, desinteressada, pode uma nação moderna adquirir a consciência de si mesma, de seus recursos, de seus destinos; considerando que a formação das classes dirigentes, mormente em países de populações heterogêneas e costumes diversos, está condicionada a organizações de um aparelho cultural e universitário, que ofereça oportunidade a todos e processe a seleção dos mais capazes; considerando que em face do grau de cultura já atingido pelo Estado de São Paulo, com Escolas, Faculdades, Institutos, de formação profissional e de investigação científica, é necessário e oportuno elevar a um nível universitário a preparação do homem, do profissional e do cidadão, decreta: Art. 1º – Fica criada, com sede nesta Capital, a Universidade de São Paulo. Art. 2º – São fins da Universidade: a) promover, pela pesquisa, o progresso da ciência; b) transmitir, pelo ensino, conhecimentos que enriqueçam ou desenvolvam o espí­rito ou sejam úteis à vida; c) formar especialistas em todos os ramos de cultura, e técnicos e profissionais em todas as profissões de base científica ou artística; d) realizar a obra social de vulgarização das ciências, das letras e das artes, por meio de cursos sintéticos, conferências, palestras, difusão pelo rádio, filmes científicos e congêneres. Para atingir os fins acima, o artigo 3º do decreto dispôs sobre o agrupamento das seguintes instituições: Faculdade de Direito, pertencente ao Governo Federal e criada em 1827; Escola Politécnica, do Governo do Estado de São Paulo, criada em 1893; Faculdade de Farmácia e Odontologia, do governo estadual, criada em 1899; Faculdade de Medicina, do governo estadual, criada em 1913; Escola de Medicina Veterinária, do governo estadual, criada em 1934; Instituto de Educação de 1933, originário do antigo Instituto Caetano de Campos, que participaria da USP por meio de sua escola de professores; Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, criada pelo decreto em questão; Instituto de Ciências Econômicas e Comerciais, efetivamente criado em 1946; e a Escola de Belas-Artes. 8 USP e chefe do departamento de Biologia Geral. “A princípio, ele recusou esse convite, pois achava que não tinha preparo suficiente – uma modéstia, pois, na verdade, ele tinha um preparo fanstástico. Depois, acabou aceitando o car­go e, em 1937, prestou concurso, obtendo um resultado indefectível, e se tornou o primeiro professor catedrático de Biologia da USP”, conta o geneticista Antônio Brito da Cunha, livre-docente da USP e, junto com Crodowaldo Pavan e Rosina de Bar­ros, um dos primei­ros assistentes do laboratório de Dreyfus. Os demais departamentos da seção de biociências da Faculdade são ori­gi­ nalmente chefiados pelos pesqui­ sadores Felix Rawitscher (Bo­tânica), Ernst Marcus (Zoologia) e Paulo Sa­waya (Fisiologia Geral e Animal). Primeiros biólogos A primeira turma de História Na­tural da USP, iniciada em 1935, é também pioneira no ensino superior de biologia e geologia: pela primeira vez na história do Brasil, as ciências básicas ganham status de curso universitário, reunindo notáveis biológos e geólogos egressos das faculdades de Medicina, Engenharia e Agronomia do país e também vindos do exterior, o que representa um grande impulso à pesquisa científica no país. No ano de 1938, a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras é transferida para o prédio situado no Centro de São Paulo, onde as seções de Biociências, Geologia, Física e Química permanecem até a cons­tru­ção da Cidade Universitária “Arman­do de Salles Oliveira”, no bairro do Butantã, em 1955, para onde os de­partamentos vão sendo paulatinamente transferidos. As demais áreas da faculdade – os cursos de Filo­sofia, Letras e História – são insta­ladas em 1949 no prédio da USP na rua Maria Antônia, na Consolação, até a mudança defini­tiva para a Cidade Universitária, em 1968 – ano em que esse edifício é in­cendiado em represália ao mo­vi­ men­to estudantil, que lutava contra a ditadura militar. início da genética geneticistas de primeira geração fotos: bob paulino A esquina da alameda Glete com rua Guaianases foi o primeiro endereço da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da USP, onde André Dreyfus atuou em grande parte de sua carreira como professor e pesquisador. A escola foi instalada em um casarão que pertencera ao industrial Jorge Street (1863-1939), produtor de sacos de juta para grãos de café. Com a crise de 1929, a firma faliu e o palacete foi entregue ao governo estadual. As seções de Biociências e Química da FFCL funcionaram nesse local até o fim dos anos 1950, quando o prédio virou uma delegacia, sendo mais tarde vendido para o Grupo Folha da Manhã. Ficou abandonado e acabou demolido na década de 1970. Agora, o terreno, localizado bem em frente ao Terminal Princesa Isabel, dá lugar a um estacionamento, e a única coisa que sobrou da época da FFLC foi a enorme figueira, tombada pelo Condephaat por meio do decreto n° 30.443, de 20 de setembro de 1989, como patrimônio ambiental de São Paulo. Com ajuda da Fundação Rockefeller, Dreyfus cria no país a primeira escola científica de Genética e Evolução Um casarão em estilo industrial inglês, na es­quina da alameda Glete com a rua Guaianazes, no Centro de São Paulo, é o cenário onde co­meça a funcionar efetivamente a primeira escola de Genética no Brasil. Nesse endereço situa-se a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP entre 1938 e 1955, que oferece o pioneiro curso de História Natural – vinculado a essa fa­culdade até a Reforma Universitária, em 1971. Chefe do Departamento de Biologia Geral e pro­ fessor de Histologia, o cientista André Drey­fus continua incorporando, a exemplo de sua experiência no Rio de Janeiro, noções básicas de Genética e Evolução em suas aulas e nas disputadas palestras que realiza para platéias formadas por intelectuais de todo o país, mas ainda não há um departamento especializado no as­sunto, pois os estudos e a literatura na área são incipientes na maioria dos países do mundo. No Brasil, apenas algumas pesquisas em Ge­nética Ve­getal, sobretudo aquelas voltadas para o desenvolvimento da agricultura nacional, já são pratica- 9 escola de genética Antes de Dreyfus fundar a primeira escola científica de Genética no Brasil, em 1943, e de iniciar as pesquisas em Genética Animal, o pesquisador Benedito de Oliveira Paiva, da Universidade Federal de Lavras (UFLA) realizou experimentos de Genética Vegetal e chegou a publicar um livro em 1925, Apontamentos de Genética Elementar e Aplicada, sendo o pioneiro nas publicações dessa área. O cientista foi o precursor dos estudos de tolerância de plantas ao alumínio tóxico do solo, trabalhos importantes para o efetivo uso agrícola dos solos de vegetação de Cerrado da região CentroOeste. A Fundação Rockefeller foi criada pelo industrial John Davison Rockefeller (1839-1937) (foto), dono da gigante petrolífera Standard Oil Company. Nas décadas de 1930 a 1950, a instituição conduziu uma agressiva política científica, financiando uma série de pesquisas em todo o mundo. Entre 1932 e 1959, a Fundação investiu nada menos que US$ 900 bilhões em projetos nas mais diversas áreas. Quando Harry Miller procurou o laboratório do professor André Dreyfus, no Brasil, a Rockefeller tinha como chefe da Divisão de Ciências Naturais o americano Warren Weaver (1898-1978), um entusiasta da genética e criador do termo “biologia molecular”, introduzido em 1938 no texto do relatório anual da Fundação. das nessa épo­­­ca, especialmente pelos professores Benedito de Oliveira Paiva, da Universidade Fe­de­ral de Lavras (UFLA), a partir de meados dos anos 1920; o alemão Friedrich Gustav Brieger, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Quei­rós (Esalq), da USP, em 1936; e Alcides Carvalho, do Instituto Agro­nômico de Campinas (IAC), pioneiro na se­leção de variedades comerciais de café, algumas delas cultivadas até os dias de hoje. recusa, resolve mudar a proposta, oferecendo uma possibilidade oposta: a de vir ao Brasil, por seis meses, um geneticista ucraniano, naturali­zado americado, que tinha interesse em realizar estudos na mata ama­zônica: ninguém menos que Theo­dosius Dobzhansky, responsável por dar grande impulso à pesquisa mundial em Genética de Populações (um ramo da Genética Evolutiva), ciência criada em 1900 com a união das idéias de fatores hereditários de Gregor Mendel e a Teoria da Evo­lução de Charles Darwin. Outra face da moeda A grande oportunidade para que o Brasil crie seu primeiro grupo de pes­ Um escola para todos quisas em Genética Animal surge no A chegada de Dobzhansky, em 1943, início dos anos 1940, ironicamente por conta da Segunda Guerra Mundial. é o marco fundamental para a criação “Por causa da Guerra, a Fundação oficial da Genética no Brasil. “Nesse Rockefeller, dos Estados Uni­dos, teve momento, Dreyfus dá mais uma de suspender seus au­xílios à pesquisa demonstração de seu caráter e, para os países da Ásia, da África e tomando uma iniciativa que só po­deria principalmente da Euro­pa. Então, eles partir de uma pessoa altruísta: em vez resol­veram investir na América Latina”, de tirar proveito da vinda do con­ta o geneticista Cro­do­waldo Dobzhansky so­mente para seu grupo de pesqui­sas, como infelizmente é Pavan. Com esse intuito, Harry M. Miller Jr., de praxe no meio acadêmico, fez representante da Roc­kefeller, chega a questão de convidar todos os de­mais São Paulo no ano de 1942 avisando cientistas in­teressados em Genética que a po­derosa Fun­dação está dis- no país – especialmente o professor posta a ajudar os laboratórios científi- Brieger, da Esalq, e Carlos Arnaldo cos bra­sileiros, e que o de­partamento Krug, especialista em milho e café do de Biologia Geral da Faculdade de IAC – para cursos com o cientista”, Fi­losofia, Ciências e Letras da USP é conta Pavan. Dreyfus prepara o auditório do um dos escolhidos para receber fi­nan­ ciamento e promover o intercâmbio de De­partamento de Química da Facul­ dade de Filosofia, na alameda Glete, pesqui­sado­res. para que Dobzhan­ Dreyfus é, a prin­ shy possa ministrar cípio, convidado a passar uma tempo- Dreyfus fez questão o primeiro curso rada nos Estados de convidar todos os moderno de Gené­ tica e Evolução do Uni­dos, para atuar interessados em Brasil. “Suas aulas em um labora­tório estão sempre chei­ de seu interesse e Genética no país as, repletas de cienvisitar as instituições de pesquisa que para aprenderem tistas e graduandos: durante todo o cur­ desejasse – tu­do com Dobzhansky so, muitas pessoas bancado pela levam cadeiras Rockefel­ler. Qual­ dobráveis para se quer cientista teria aceito a proposta sem pestanejar, mas sentar, e outros assistem às aulas senDrey­fus, peculiaríssimo, recusa o con- tados na es­cadaria do auditório”, lemvite, sob a alegação de que não pode bra Pa­van. Junto com Dreyfus e seu aban­donar seu laboratório no Brasil, colega An­tônio Brito da Cunha, Pavan deixando seus dois jovens estagiá­rios também ajuda o russo-americano a – Crodowaldo Pavan e sua pri­meira- aprender português nos dias que assistente Rosina de Barros – sem an­tecedem o curso, e é no idioma orientação. (Confira o depoimen­to de nacional que Theodosius Dobz­hansky profere to­das as suas palestras. Pavan nas páginas 12 a 17) O curso enfatiza como tema central Harry Miller, diante da inesperada escola de genética Feodosy Grigorievich Dobzhansky (1900-1975) – cujo prenome foi mais tarde latinizado para Theodosius – foi um dos maiores geneticistas de todos os tempos, responsável pelo desenvolvimento, na primeira metade do século 20, da Genética Evolutiva, ciência que fundiu as teorias de hereditariedade do monge Gregor Mendel (1823-1884), elaboradas a partir de um estudo com ervilhas, com a Teoria da Evolução, do inglês Charles Dar­win (1809-1882). Sua presença no Brasil, em 1943, foi fundamental para a criação da primeira escola científica de Genética e Evolução do país: seu curso, organizado por André Dreyfus no auditório da Faculdade de Filo­sofia, Ciências e Letras reuniu pesquisadores que viriam a formar a recente elite acadêmica nessas duas áreas. Dobzhansky nasceu na cidade de Nemirov, na Ucrânia, e naturalizou-se norte-amerciano em 1937. Filho de um professor de matemática, graduou-se em Biologia pela Uni­­ versidade de Kiev, onde foi professor de Zoo­logia até se mudar para Leningrado (hoje São Petes­burgo) em 1924. Três anos mais tarde, emigrou para os Estados Unidos, por não concordar com a interferência política do governo soviético sobre seus estudos de genética. Nos Estados Unidos, logo se uniu, em 1928, ao grupo de pesquisas do renomado zoólogo e geneticista Thomas Hunt Morgan, na Columbia University, em Nova York, trabalhando com ele até 1936. Nesse ano, tornou-se professor de Zoologia em Pasadena, onde escreveu sua obra clássica, Genetics and the Origin of Species (1937). Em 1940 retornou à Universidade Columbia, onde pro­ pôs uma definição para população em termos de pa­tri­ mônio genético (1950). Trabalhou para a Uni­versidade Rockefeller (1962-1971) e passou seus últimos anos (19711975) como professor adjunto na Universidade da Cali­ fornia, em Davis. Autor de mais de 400 trabalhos científicos (papers), em especial sobre teorias da evolução – inclusive a evolução humana, que acreditava ser fruto não só da evolução biológica, mas também de fatores sócio-culturais – e re­ve­ o primeiro e célebre livro de Dobzhansky, Genetics and the Origin of Species (1937), cujo lançamento causa um impacto junto à comunidade científica comparável ao provocado pela obra-prima de Darwin, On the Origin of Species (1859), no século 19. “Com esse livro, Dobzhansky coloca a Teoria da Evolução e a Genética de Mendel na crista da onda, com muito sucesso. Muita gente chega a afirmar na época que o próprio Darwin gostaria de tê-lo escrito”, testemunha Pavan. Paralelamente, Dobzhansky também dá um curso de especialização em Genética de Populações para os integrantes do novo laboratório de Genética da USP: André Dreyfus, Crodo­waldo Pavan, Rosina de Barros e Antônio Brito da Cu­nha convivem diariamente com o geneticista americano durante quatro meses, dando início a diversos arquivo ib-usp o mestre dos mestres renciado pesquisador de laboratório, nunca perdeu o gosto pelo trabalho de campo: tinha orgulho de ter coletado centenas de espécimes do Alasca à Terra do Fogo e em todos os continentes, exceto a Antártica. Publicou outras obras complementares a Genetics and the Origin of Species, a exemplo de Evolution, Genetics and Man (1955), The Biological Basis of Human Freedom (1956), Mankind Evolving (1962) e Genetics of Evolutio­nary Process (1970). estudo de moscas do gênero Drosophila (popularmente co­nhecidas como moscas-das-frutas) existentes no país: essas moscas são um modelo biológico amplamente empregado nas pesquisas básicas e avançadas de Genética de Populações até os dias atuais. Com o estímulo e a visão de futuro de Dreyfus e as inestimáveis contribuições de Dobzhansky, funda-se aí a primeira escola científica de Genética e Evolução bra­ sileira, que posteriormente daria origem ao atual Depar­ta­ mento de Citologia, Genética e Evolução do Instituto de Biociências da USP e começaria a formar toda uma gera­ ção de cientistas res­ponsável pela alto padrão de qualidade hoje alcançado pelos laboratórios brasileiros de pes­ quisa genômica. 11 discípulos Os geneticistas Crodowaldo Pavan, Antônio Brito da Cunha e Osvaldo Frota-Pessoa, colaboradores diretos de André Dreyfus durante anos, relatam como foi o início da Genética no Brasil e falam da vida, do trabalho e da personalidade do grande mestre “Dreyfus era extraordinário, sob todos os aspectos: como professor, como ser humano, como pesquisador...” “Suas aulas eram absolutamente perfeitas, pois ele era apaixonado pela arte de lecionar.” As frases, declaradas respectivamente pelos professores Crodowaldo Pavan, 82 anos, e Antônio Brito da Cunha, 77 anos, dão uma pequena amostra da admiração que eles, mais o colega Osvaldo Frota-Pessoa, 85 anos – três dos maiores geneticistas da atualidade –, sempre nutriram pelo mestre André Dreyfus. Pavan e Brito da Cunha foram alunos das primeiras turmas do curso de História Natural da USP, e ambos iniciaram a carreira científica como esta­ giários de Dreyfus, tornando-se assistentes de seu laboratório e, mais tarde, professores do Instituto de Biociências. Frota-Pessoa formou-se no Rio de Janeiro, mas também estagiou no laboratório de Dreyfus, durante a estadia do geneticista Theodosius Dobzhansky no Brasil. Os três cientistas testemunharam os primórdios da pesquisa científica em Genética e Evolução no Brasil, participando ativamente dos primeiros estudos desenvolvidos nessa área, nos laboratórios da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, no antigo prédio da alameda Glete. Eles ajudaram a perpetuar o trabalho iniciado por Dreyfus, transmitindo e aprimorando seus ensinamentos e formando novas gerações de pesqui­ sadores em Genética Aanimal, Evolutiva e Humana. Hoje, mesmo apo­senta­ dos, continuam na ativa, como livre docentes da USP, colaborando com estudos essenciais para aprofundar o conhecimento sobre a vida e pa­ra o Como vocês se interessaram por Biologia e como conheceram André Dreyfus? A Vida de Louis Pasteur Filme de 1936, cujo título original é Story of Louis Pasteur. Dirigido por William Dieterle e estrelado por Paul Muni, conta a trajetória do químico francês Louis Pasteur (1822-1895), fundador da Microbiologia. Paul Muni – consagrado pela primeira versão de Scarface (1932), de Howard Hawks – ganhou Oscar de melhor ator por A Vida de Louis Pasteur e foi indicado em 1937 por outra biografia: A Vida de Emile Zola (Eu Acuso), também de Dieterle. Além desses dois filmes, Dieterle dirigiu ainda Corcunda de Notre-Dame (1939), baseado na obra de Victor Hugo; Omar Khayyam (1957), biografia do poeta persa do século 12; e Salomé (1953), história bíblica estrelada por Rita Hayworth. 12 Crodowaldo Pavan – Conheci Dreyfus em 1937, de forma muito interessante. Eu estava fazendo o “pré” da Escola Politécnica, curso de dois anos, logo após o ginásio. Antes de existir colegial, era assim. O curso era duro, puxado, mas consegui me sair bem. Queria fazer Engenharia Geológica, pois meu pai, Hen­rique Pavan, era industrial de porcelana e, na empresa, ele precisava trabalhar com materiais brasileiros, como argila, feldspato e caulim. Mas havia um pro­ble­ma no Brasil: os métodos de extração usados na Europa não funcionavam para esses materiais, e eu queria estudar novas técnicas. Eu estava muito animado com o curso, mas quando assisti ao filme sobre a vida do Pasteur, A Vida de Louis Pasteur, com Paul Muni, fiquei apaixonado pelo trabalho desse cientista. Uma semana depois de ver o filme, fui a uma palestra do André Dreyfus na Biblioteca Municipal, na qual ele falava sobre vários temas, inclusive genética. Dreyfus era um conferencista muito conhecido e suas pales­tras eram extraordinárias, ficavam cheias de gente. No fim da palestra, fui conversar com ele. Falei: “quero fazer o que o Pasteur fa­zia”. Ele perguntou o que eu estava cursando, e contei que estava na Poli­técnica, mas queria mudar de área. Ele disse que, para fazer o que Pasteur fazia, eu deveria fazer Medicina. Como fiz uma cara meio atrapalhada e disse que Medicina eu não queria fazer, ficamos conversando, e o Dreyfus disse: “você tem uma possibilidade de fazer História Natural, um curso novo da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, discípulos fiéis companheiros cely bob pauli- de jornada Os geneticisitas Crodowaldo Pavan e Antônio Brito da Cunha, primeiros assistentes de Dreyfus com uma vantagem: além de Biologia, o curso tam­bém tem Mineralogia, Petrografia, Geologia e Paleontologia. Se você desistir dessa área, pode voltar para a Politécnica e continuar a Engenharia”. Prestei vestibular no mesmo ano, tirei o segundo lugar e comecei o curso em 1938. Praticamente só havia professores estrangeiros, exceto Dreyfus, que era meu ídolo. Logo nos primeiros anos, fui estagiário dele, depois me tornei assistente. Infelizmente tive apenas 11 anos de contato direto com Dreyfus, como seu assistente, porque ele morreu em 1952. Fui contratado como funcionário do Departamento de Biologia da USP em 1951. Antônio Brito da Cunha – Comecei a me interessar pela Biologia aos 12 ou 13 anos, com leitura de dois livros: A Ciência da Vida, dos dois Wells, pai e filho, e do Julian Huxley, que foi publicado pela José Olympio; e depois “Caçadores de Micróbios”, do Paul de Kruif, uma biografia dos grandes microbiologistas, em especial Louis Pasteur. Fiquei sabendo da existência do curso de História Natural e resolvi fazer. Meu pai, Antônio Paulo da Cunha, era advogado e estranhou muito a escolha, porque naquela época a pessoa tinha que ser ou médico ou advogado ou engenheiro. Então ele foi conversar com o Julio de Mesquita Filho, um dos criadores da USP. O Julio lhe indicou o professor Paulo Sawaya, da Biologia, o qual lhe recomendou que me deixasse fazer o curso e, se eu não gostasse, teria tempo de sobra para fazer outra coisa. Prestei vestibular, entrei na universidade em 1941, aos 15 anos, e foi aí que co­nheci Dreyfus, como aluno da História Natural. Depois fui estagiário dele e, quando me formei, tornei-me assistente do laboratório, trabalhando ao lado do Pavan e da Rosina de Barros. A Ciência da Vida Publicado na Inglaterra em 1929, sob o título The Science of Life, e em 1941 no Brasil, foi escrito por H.G. Wells (um dos maiores escritores de ficção científica de todos os tempos), seu filho G.P. Wells e o amigo Julian Huxley, neto do evolucionista Thomas Huxley, defensor da Teoria da Evolução de Charles Darwin. H.G. Wells (1866-1946) publicou obras memoráveis, como A Ilha de Dr. Moreau (1895) e Guerra dos Mundos (1898). Escritor americano, Paul de Kruif (18901971) atuou como bacteriologista na Universidade de Michigan de 1912 a 1917, quando resolveu se dedicar à literatura. Em Caçadores de Micróbios (Microbe Hunters, 1926), faz crônicas sobre a descoberta dos micróbios no século 19, a partir de personagens fundamentais para a história da Microbiologia, como Louis Pasteur, Robert Koch, Emile Roux e Emile Behring. Escreveu também The Fight for Life (1938) e Hunger Fighters (1939). 13 discípulos Nessa época, ainda não havia o Regime de Tempo Integral para os professores, de modo que Dreyfus lecionava também na Escola Paulista de Medicina, na Faculdade de Odontologia, na Escola Livre de Sociologia e Política, além da Faculdade de Filosofia da USP, onde desenvolvia diversas pesquisas. O Regime de Tempo Integral só foi criado em 1947, quando o biólogo José Reis era diretor do Departamento de Administração de Serviços Públicos (Dasp), órgão do Estado que se ocupava do funcionalismo público. Até então, os professores, para sobreviver, precisavam dar aulas em diversos lugares, o que dificultava as pesquisas. Com o Tempo Integral, André Dreyfus largou as outras facul­dades e se concentrou apenas na Faculdade de Filosofia da USP, para se dedicar à pesquisa. Nascido em Angra dos Reis (RJ) em 2 de julho de 1890, Lauro Travassos formouse pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e trabalhou no Instituto Manguinhos a maior parte de sua vida. Iniciou a carreira científica depois de participar da campanha de combate à febre amarela no Rio de Janeiro e em Belém (PA). Tornou-se estagiário no Laboratório de Helmintologia de Manguinhos, sob a orientação de Gomes de Faria, com quem publicou, em 1913, uma monografia sobre ancilostomídeos, parasitas do intestino humano, causadores da ancilostomíase, verminose popularmante conhecida por “amarelão”. Em 1915 acompanhou os trabalhos da Fundação Rockefeller, em Minas Gerais, relativos ao controle dessa doença. Em 1926, tornou-se professor catedrático de Parasitologia da Faculdade de Medicina de São Paulo e, na década de 1930, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Faleceu aos 80 anos. Osvaldo Frota-Pessoa ­– Tive a oportunidade de conhecer Dreyfus em 1943, com a vinda do Dobzhanshy ao Brasil. O primeiro trabalho que eles realizaram juntos, com a participação do Pavan, foi um levantamento das espécies de Droso­phila existentes no Brasil, identificando as espécies já conhecidas e classificando as que eles iam descobrindo, por meio da Sistemática. Eles descobriram várias espécies novas. Esse episódio explica porque acabei vindo para São Paulo. Eu havia terminado os cursos de Biologia, em 1938, e de Medicina, em 1941, na Universidade do Distrito Federal, no Rio de Janeiro. O Dreyfus era amigo dos pesquisadores de Manguinhos, entre eles o Lauro Travassos, professor de Zoolo­gia, que ajudou o grupo do Dreyfus e do Dobzhansky na classificação de Drosophila. Eles fizeram uma chave de classificação para identificação das espécies e, então, queriam pessoas não pertencentes ao grupo para verificar se aquela chave funcionava bem. O Travassos, então, indicou o meu nome e do meu colega Luiz Emydio de Mello Filho (mais tarde professor de Botânica da Universidade Federal do Rio de Janeiro), porque já trabalhávamos com Sistemática de insetos no Rio de Janeiro. Viemos para São Paulo e passamos quinze dias no prédio da USP na alameda Glete, trabalhando no laboratório do Dreyfus, com ele, Dobzhansky e Pavan. Como eram as aulas do Dreyfus no curso de História Natural da USP? Pavan – Ele era extraordinário, sob todos os aspectos: como professor, como ser humano, como pesquisador... Brito da Cunha – Dreyfus era um professor fantástico e suas aulas, absolutamente perfeitas: estive em muitos lugares e nunca vi um professor tão bom. Ele tinha muito conhecimento e era capaz de expor os problemas com uma clareza fantástica. Nas aulas de Histologia, por exemplo, ele não só dava anatomia micros­cópica dos tecidos, mas também explicava o funcionamento do órgão e sua ori­gem embrionária. Ou seja, dava uma visão completa do órgão, expondo tudo com uma facilidade impressionante. Nunca deu uma aula sequer sem se preparar antes, marcando trechos dos livros e separando ilustrações para projetar. Foi o melhor professor que tive, um professor apaixonado pela arte de lecionar. Como se deu a criação do primeiro grupo de pesquisas em Genética? Pavan – Ironicamente, o Brasil teve sorte com uma desgraça mundial, a Segunda Guerra. A Fundação Rockefeller, por causa da guerra, não podia dar auxílio para a Ásia, para a África e muito menos para a Europa, então decidiram ajudar a América Latina. Em 1942, veio ao Brasil um representante da Fundação, Harry Miller Jr, diretor de Ciências Biológicas do órgão, e pude acompanhar de perto os primeiros contatos dele com Dreyfus. Recém-formado, eu trabalhava como assistente de Dreyfus e participei de dois almoços com o Miller, realizados no Automóvel Clube de São Paulo, na rua Formosa, do qual Dreyfus era sócio. Lá, o Miller explicou que a Rockefeller estava disposta a ajudar o Departamento de Biologia da USP, e o primeiro passo era uma bolsa para que o Dreyfus fosse para os Estados Unidos, para uma temporada de um ano em laboratórios de seu interesse, tudo bancado pela Fundação. Dreyfus ficou animado, e eu muito mais, pois pensei: “o Dreyfus vai agora e, depois, quem vai sou eu”. No dia seguinte, porém, o Dreyfus chega ao laboratório e diz: “um ano é muita coisa, não dá para passar tanto tempo fora, isso não vai dar certo”. Como ele era solteiro, tentamos todo jeito demovê-lo dessa idéia, dizendo que essa viagem seria importante para ele e para o laboratório. Nesse dia, o Miller havia ido à Argentina e, na volta, fizemos um novo almoço no 14 discípulos Automóvel Clube para que o Dreyfus desse sua resposta. O Miller quis saber o porquê da recusa, e ele respondeu: “O Pavan, que está aqui, e a Rosina, minha primeira-assistente, são muito jovens, e eles não podem tomar conta do la­bo­ ratório durante um ano. Um semestre a gente pode ajeitar, mas um ano não dá”. O Miller fez uma série de considerações e disse: “Vamos fazer o seguinte: tem um americano, na verdade um russo naturalizado americano, que está interessado em vir para a América Central, para ver a mata amazônica. Se vocês facilita­rem a vida dele na Amazônia, talvez eu consiga que ele venha para cá por seis meses”. O Dreyfus disse: “Isso é ótimo. Muito bem: quem é esse russo?”. O Miller respondeu, para surpresa do Dreyfus: “É o Theodosius Dobzhansky”. arquivo ib- Nós tínhamos acabado de dar um curso sobre o livro que ele havia publicado, Genetic and the Origin of Species, uma das obras mais célebres e polêmicas da época. Então o Dreyfus disse ao Miller: “Se você mandar o Dobzhan­shy para cá, eu não preciso ir para os Estados Unidos”. Ficou combinado as­sim: o Dobshansky viria passar seis meses no Brasil, depois o Dreyfus passaria uma temporada nos Estados Uni­dos. No ano seguinte, 1943, o Dobz­hansky chegou ao Brasil, dando início à pesquisa em Genética e Evolução. Frota-Pessoa – Antes da vinda do Dobz­ hansky, não existia pesquisa genética no Bra­sil. O Dreyfus conhecia o as­sunto so­mente com base nos livros. Mesmo assim, ele já havia inaugurado o Departamento de Biologia da USP dando ênfase à Genética. Tenho a im­pressão de que a Genética era, naquele tem­po, como a Biologia Molecular é hoje: fica todo mundo assanhado com as novas possibilidades. A Genética foi criada em 1900, com a redescoberta dos trabalhos de Mendel, mas as pesquisas propriamente ditas só co­meçaram a deslanchar no início dos anos 1940. O Dobzhansky era um líder internacional na área, de modo que o Brasil reuniu o que havia de melhor – Dreyfus e Dobzhansky – no momento certo, para o estabelecimento da primeira escola de Ge­nética e Evolu­ção, com estudos de moscas de gênero Drosophila. Dreyfus já fazia algum estudo em Ge­nética antes da vinda do Dobzhansky? Brito da Cunha – Sim. Em 1937, por exemplo, publicou um trabalho sobre o verme parasita Rhabdias fulleborni, intitulado “Contribuição para o estudo do cyclo chromosomico e da determinação do sexo de Rhabdias fulleborni”. Mas, embora Dreyfus tenha sido “o pai da Genética Animal” no Brasil, cri­ando uma escola científica da área, seu trabalho acadêmico mais im­por­tante não foi em Genética: foi com uma vespa chamada Telenomus fariae, que parasita o ovo do barbeiro transmissor da Dreyfus “em família” A foto foi tirada em 5 de julho de 1947, na porta de uma das salas do laboratório de Dreyfus, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. O laboratório era praticamente a segunda casa de Dreyfus, e seus colaboradores, como membros da “família”. Na primeira fila, da esquerda para a direita, encontram-se a bibliotecária Cândida Paula Souza, André Dreyfus, Ruth Morretes (hoje dona-de-casa, casada com Bussamara Neme, professor de Obstetrícia da Faculdade de Medicina da USP) e o chileno Juan Nacruz. Na fila de trás, estão Gualberto Nogueira (estagiário de Dreyfus, tornou-se dentista), Henrique Serafim de Oliveira (assistente), Anita Schrel (secretária, casou-se com o cientista Hans Burla), Crodowaldo Pavan, Marta Breuer e Newton Freire-Maia. 15 discípulos Doença de Chagas e, por is­so, tinha grande interesse para a Me­dicina e a Saúde Pública. Dreyfus descobriu coisas muito interessantes sobre essa ves­pa: por exemplo, que a fecundação das fêmeas pelo macho é feita ainda dentro do ovo do barbeiro, de modo que, quando a vespinha sai do ovo do barbeiro – que morre –, ela já sai fecundada. Esse trabalho foi desenvolvido junto com a assistente Marta Breuer. 1 2 3 A Drosophila, popularmente conhecida como mosca-das-frutas ou mosca-dovinagre, ou ainda como “fruit fly”, no meio acadêmico internacional, é um modelo biológico amplamente utilizado para análises genéticas. A espécie D. melanogaster (acima, ilustraçao 1) é a mais utilizada, mas as brasileiras D. milleri (2) e D willistoni (3) se mostraram bons modelos para os estudos de variabilidade genética propostos por Dobzhansky e estudados pela equipe de Dreyfus. Há várias vantagens na utilização de Drosophila nesse tipo de estudo: uma delas é a rapidez na reprodução da espécie. Exemplo: cruzando indivíduos que diferem em características facilmente visíveis (como o tamanho das asas e a cor dos olhos ou do corpo) e estendendo essa análise até a geração dos netos (chamada geração F2), é possível determinar, ao final de apenas um mês, quantos genes estão envolvidos, quais são os genes dominantes e os recessivos e se o padrão de herança está, ou não, ligado ao sexo. A Drosophila é intensivamente pesquisada há cerca de um século, e seu genoma foi completamente seqüenciado no ano 2000. Pavan – Esse foi um trabalho extraordinario, com re­percussão internacional. A Marta era uma pessoa in­teressantíssima: havia sido membro da Escola Bau­ haus e mulher do Marcel Breuer, o arquiteto mais famoso dessa escola. Infelizmente, vários trabalhos do Dreyfus se perderam na biblioteca do Instituto de Biologia da USP, acho que inclusive esse. Certa vez, uma bibliotecária resolveu jogar fora uma porção de trabalhos “velhos”. O material ficou jogado no corredor do Instituto, quando o Brito da Cunha soube e foi lá fazer um escândalo, mas já tinham levado muita coisa, muitos trabalhos do Dreyfus. Que trabalhos Dreyfus desenvolveu junto com Dobzhansky? Frota-Pessoa – Dobzhansky dedicava-se à Genética de Populações, ciência que une aspectos da Genética com a Teoria da Evolução. Para se estudar um animal ou uma planta por essa ciência, é preciso estudar a variabilidade da espécie, ou seja, como os genes de indivíduos da mesma espécie variam em diferentes lo­cais. Dobzhansky havia trabalhado com moscas Drosophila nos Estados Unidos, primeiro na Califórnia, depois ao longo das regiões montanhosas: estudava as diferenças genéticas que a espécie ia apresentando, e as relacionava com o me­canismo de evolução. O convite para visitar o Brasil veio a calhar para esse estudo, pois ele poderia avaliar a variabilidade genética de Drosophila da América do Sul. Já havia um estudo prévio de Sistemática de Drosophila da América do Sul, feita por um cientista alemão, e essa bibliografia era um bom começo para ajudá-lo a identificar as espécies brasileiras. Brito da Cunha – Com a chegada do Dobzhansky e a decisão de estudarmos Drosophila, o primeiro passo foi a descrição de dezenas de espécies dessa mosca no Brasil e, então, a seleção das que potencialmente tinham mais interesse para os estudos de evolução. Drosophila willistone foi a mais estudada: eu e o Pavan começamos com estudos de variabilidade genética e, mais tarde, de variabilidade cromossômica. O Pavan estudava a parte genética e eu, a citológica, e fizemos descobertas interessantes. Descrevemos também novas espécies, como D. miller e D. dreyfusi, batizadas em homenagem a Harry Miller e a Dreyfus. Paralelamente, o Pavan também estava desenvolvendo sua tese de doutoramento, sobre evolução dos bagres cegos, sob a orientação do Dreyfus. Antes de sua pes­ quisa, pu­bli­cada em 1945, os bagres cegos eram descritos como sendo de gêne­ros dife­ren­tes do bagre comum. Pavan mostrou que o bagre cego nada mais é do que o resultado de uma mutação do bagre comum: eles sobrevivem em rios de cavernas, onde a visão não é necessária, sendo naturalmente selecionados pe­lo pro­ cesso evolutivo. O Dobzhansky veio uma segunda vez ao Brasil... Pavan – Sim, mas antes disso o Dreyfus foi para os Estados Unidos, onde atuou no laboratório do Dobzhansky, em Nova York, na Universidade Columbia. Brito da Cunha – O Dobzhansky voltou ao Brasil entre 1948 e 1949. Ficou aqui por um ano, dirigindo pesquisas sobre populações naturais de Drosophila. Pes­ quisadores de vários lugares do Brasil vieram para a USP nessa ocasião, para apren­ der com o Dobzhansky, todos com bolsa da Rockefeller: o Cordeiro, do Rio Grande do Sul, o Hans Burla (da Suíça, mas que atuou também no Brasil), a Sha­na Malagovkin e o Lagden Cavalcanti, da UFRJ, além de Newton Freire-Maia, que acabou se dedicando mais à Genética Humana, montando um laboratório em Curitiba, com grande produção científica nessa área. No prédio da alameda Glete, as condições físicas eram precárias: não cabia mais gente nos laboratórios. A 16 discípulos Biologia ocupava até o sótão do prédio, que havia sido moradia dos empregados do industrial Jorge Street. Então, para receber o Dobzhansky dessa vez, eu e o Pavan conseguimos verba para escavar o porão, montando um laboratório lá, para que o Dobzhansky pudesse trabalhar com tanta gente. Frota-Pessoa – Eu estava no Rio de Janeiro nessa época e visitei o Dobzhansky em São Paulo, mas não fiquei trabalhando com o grupo. Quando ele voltou para os Estados Unidos, daí começou uma série de viagens de pesquisadores bra­sileiros para lá, todos com bolsa da Fundação Rockefeller: Pavan (1945-46), Brito da Cunha (1949-51), Lagden Cavalcanti e muitos outros tiveram essa oportunidade. Eu fui em 1953, após a morte de Dreyfus, e fiquei um ano e meio no laboratório do Dobzhansky, ainda trabalhando com Drosophila. Brito da Cunha – A Fundação Rockefeller também financiou a montagem dos laboratórios desses pesquisadores. Uma das exigências que ela fazia aos laboratórios em que aplicava recursos era a de que os professores deveriam traba­lhar em Regime de Tempo Integral, para que pudessem se dedicar à pesquisa. Antes disso, só a USP tinha o Tempo Integral e, diante dessa exigência, os Estados do Paraná, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro passaram a adotar esse regime, o que foi um ganho para a ciência. Dreyfus também foi um dos primeiros pesquisadores a defender a importância da divulgação científica. Qual foi sua contribuição nessa área? Pavan – Quem conviveu com o Dreyfus sabe que ele foi um dos mais extraordinários divulgadores da ciência no Brasil. E fez mais: como diz o Frota-Pessoa, Dreyfus divulgou a divulgação da ciência. Ele não perdia um oportunidade de divulgar o que sabia. De vez em quando, ia engraxar os sapatos só para conversar com o engraxate: contava as coisas mais incríveis do mundo, inclusive teorias de Genética, de uma forma que o sujeito entendia. Quando tinha uma novidade qualquer, contava pro ascensorista, dava uma aula para os garçons dos restaurantes que freqüentava, e todo mundo o admirava muito. José Reis Cientista e jornalista, José Reis (foto) foi o grande mestre da divulgação científica no Brasil. Nascido em 12 de junho de 1907, cursou a Faculdade Nacional de Medicina, no Rio de Janeiro, de 1925 a 1930, onde conheceu André Dreyfus, tornando-se seu amigo. Em 1929, foi contratado como bacteriologista do Instituto Biológico. Fez estágio no Instituto Rockefeller, nos Estados Unidos, entre 1935 e 1936. A partir de 1943, dirigiu o Departamento de Administração do Serviço Público do Estado de São Paulo (Dasp). Em 7 de abril de 1947, iniciou o trabalho de divulgação científica na Folha da Noite e na Folha de S.Paulo. Em 1948, participou da fundação da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Aposentou-se do Instituto Biológico em 1958 e, no mesmo ano, fundou a Editora Ibrasa, que funcionou até 1978. De 1962 a 1967, atuou como diretor de redação da Folha de S.Paulo. Recebeu o Prêmio Kalinga, da Unesco, em 1975 e, três anos mais tarde, o CNPq instituiu no Brasil o Prêmio José Reis de Divulgação Científica. Em 1992, a Escola de Comuni­cações e Artes da USP criou o Núcleo José Reis de Divulgação Científica. Escreveu a coluna “Periscópio”, na Folha, até sua morte, em 16 de maio de 2002. O que ele gostava mesmo era de dar aulas e fazer palestras. Era convidado para falar em todo canto do país, e estava sempre à disposição. Essa também é uma forma de divulgação científica, em que o cientista se expõe ao grande público. Dreyfus era capaz tanto de fazer uma palestra especializada, como fazia no Ins­ tituto Biológico e na própria Faculdade de Filosofia, quanto uma palestra popu­lar, em linguagem para leigos. Um exemplo é que ele era apaixonado pela Psicanálise, e dava belas aulas sobre o assunto, discutindo as idéias de Freud com maestria, mesmo sem nunca ter a intenção de atuar na área. Era fantástico: sua vocação natural era explicar as coisas, transmitir conhecimentos. Na imprensa, ele fazia muitos artigos para a Revista Anhembi, entre outras pu­bli­ cações de divulgação científica, mas não teve oportunidade de escrever regu­ larmente para a grande imprensa – o que começou efetivamente com José Reis. No primeiro número dessa revista, em 1951, ele escreveu um belo artigo chamado “Amas de Sangue”, no qual discorreu, pela primeira vez na história da ciência brasileira, sobre a possibilidade das barrigas de aluguel. Frota-Pessoa – Dreyfus escreveu para dois grandes jornais nas décadas de 30 e 40: em 1938, publicou o primeiro artigo de divulgação científica do país em um jornal popular: “Por que os filhos se parecem com os pais”, no Jornal do Brasil, em uma coluna chamada “A Ciência em Marcha”. Em 1948 e 1949, publicou diversos textos no jornal A Manhã , que contava com um suplemento chamado “Ciência para Todos”, no qual vários pesquisadores publicavam artigos sobre assuntos diversos. Professor Frota-Pessoa, sua especialidade hoje é a Genética Médica. Esse inte­resse surgiu na época em que trabalhou com Dreyfus? Frota-Pessoa – Não, foi depois de sua morte. Mas, sem dúvida, sem a base apreendida com o Dreyfus, eu não teria me interessado pela Genética humana. Quando voltei dos Estados Unidos para o Rio, aparentemente iria continuar a trabalhar com Drosophila. Mas com o início das pesquisas sobre cromossomos humanos, junto com o Paulo Henrique Saldanha, na USP, acabei me voltando para a Genética Médica. Estudamos doenças causadas pela falta, pelo excesso ou por alterações nos cromossomos, como a Síndrome de Down e a Doença do X Frágil, descrita por mim e que hoje continua sendo estudada na USP. Genética Médica Atualmente, há quatro laboratórios importantes de Genética humana no Instituto de Biociências da USP: os grupos coordenados por Ângela Morganti (Doença do X Frágil e Síndrome de Down), Ruth Novinsky (hemofilias), Paulo Otto (genética de populações humanas) e Mayana Zatz (distrofias musculares e Projeto Genoma do Câncer) – este ligado à Rede ONSA, que reúne centenas de laboratórios de pesquisa brasileiros ligados ao Projeto Genoma. O Projeto Genoma do Câncer no Brasil é fruto de convênio assinado em 1999 entre o Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), que destinaram até agora uma verba de US$ 20 milhões para 39 laboratórios, com o objetivo de seqüenciar genes de tumores de grande interesse científico e alta incidência no Brasil. 17 arquivo ib-usp memória turma da glete A Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP formou alguns dos maiores cientistas brasileiros das áreas de Biologia e Geologia, que em sua maioria acabaram se tornando professores dos Institutos de Biociências, Biomédicas e Geociências. Muitos desses foram alunos de André Dreyfus. Em 1948, professores e alunos que saíam de uma aula especial no prédio da alameda Glete posaram para a foto acima – um dos raros registros dos integrantes das primeiras turmas do curso de História Natural. Sentados, da esquerda para a direita: Reinaldo Saldanha da Gama (professor de Mineralogia, um dos primeiros a pesquisar o urânio no Brasil); Ettore Onorato (1899-1971, professor de Paleontologia e Petrografia, famoso na Itália); Félix Rawitcher (botânico, principal responsável pelos estudos de uso agrícola do Cerrado); Eveline Du Bois Reymond (esposa do Ernst Marcus e sua assistente); Ernst Marcus (professor de Zoologia); André Dreyfus (Chefe do Departamento de Biologia), e Paulo Sawaya (professor de Fisiologia). De pé, na primeira fila: José Camargo Mendes (assistente do professor Otaviano De Fiori); Michel Pedro Sawaya (assistente de Ernst Marcus); Rosina de Barros (assistente de Dreyfus); 18 técnica do laboratório de Marcus, nome não-identificado; Gilda Correia (mais tarde Gilda Fleury); Mercedes Rachid (assistente de Marcus); Raquel Melo Teixeira; Maria Helena Matoso; Diva Diniz Correia (assistente de Marcus); Erasmo Garcia Mendes (estagiário da área de Fisiologia Animal, falecido em 2001), e Mário Guimarães Ferri (trabalhou com Rawitcher nas pesquisas sobre Cerrado; foi reitor da USP e faleceu em 1985). De pé, na segunda fila: João Queiroz Marques; Crodowaldo Pavan (assistente de Dreyfus); Ruy Ribeiro Franco (assistente de Ettore Onorato); Domingos Valente (assistente de Paulo Sawaya; fundador do Centro de Biologia Marinha da USP); Alexandre Dias de Moraes, e Nelson Barros. herança sonho derradeiro Dreyfus economizou cada centavo nos últimos anos de sua vida para criar um prêmio de genética: incentivo à produção científica bob pauli- Há 50 anos, em 16 de fevereiro de 1952, a ciência brasileira perdia um de seus maiores entusiastas, com a morte de André Dreyfus. Vítima de hi­pertensão arterial, ele começou a sen­tir as conseqüências da doença a partir de 1946. “Dreyfus era médico, portanto sabia o que estava havendo com ele nos últimos anos”, lembra An­tonio Brito da Cunha. O pri­meiro golpe veio em 1949, quando teve he­morragias na retina, que lhe rouba­ram parte da visão. Problemas cardíacos também passaram a se manifestar. Mesmo diante das complicações de saúde, Dreyfus não parou de lecio­nar e de preparar suas aulas com a mesma dedicação de sempre. “Com dificuldades para enxergar, teve de restringir as pesquisas, mas nunca se afastou da Faculdade”, conta Brito. Devia fazer repousos ao longo do dia e, para isso, colocou um sofá-cama em sua sala, mas só descansava no in­ter­valo para al­moço, entre 12h30 e 14 horas, quando retomava suas ati­vidades de rotina. Cabeça de Dreyfus esculpida pelo amigo Bruno Giorgi Consciente de que não teria muito tempo, ainda empreendeu grande es­forço para deixar um novo legado à pesquisa genética. “Percebendo que as coisas marchavam mal, decidiu fazer um fundo para criar um prêmio de genética, e isso virou obsessão. Jun­tou todas suas economias e, com sa­cri­fício danado, passou a economizar cada centavo para deixar esse prê­mio”, conta Crodowaldo Pavan. Até então, Dreyfus nunca havia li­ga­ do para dinheiro. “Ele ajudava todo mundo, pagava chope para os amigos, dava dinheiro para os pobres”, diz. “Todos os sábados, nos reuníamos na Cantina Capri, um restaurante que ha­via na Santa Ifigênia, ele convidava cientistas amigos e pagava a conta”, completa Brito da Cunha. A partir da idéia do prêmio, a rotina mudou. “Ele, que sempre gostou de ir a bons res­taurantes, mal comia, e não tinha jeito de demovê-lo dessa maluquice”, diz Pavan. “Não trocava nem o óleo do carro, para não gastar. De vez em quando ia viajar, eu o leva­va até o aeroporto e voltava com o carro dele, daí trocava o óleo e não dizia nada. Depois ele vinha e queria me pagar, mas eu dizia que não havia feito nada. Ele estava numa situa­ção...”, relata Pavan, emocionado. Devorado pela inflação Dreyfus conseguiu juntar 1 milhão de cruzeiros, uma fortuna para a época. “Em seu testamento, indicou uma comissão para tratar do prêmio, e esse grupo não soube defender o ca­pital que ele deixou contra a in­fla­ção”, diz Brito. O país vivia um período de escalada inflacionária, e a taxa anual pulou de 11%, em 1950, para 21% em 1952. O Prêmio André Dreyfus foi concedido apenas duas vezes. O primeiro foi recebido pelo cientista Hans Kalmus, em 1953. O segundo foi oferecido pa­ra o geneticista Warwick Kerr, da Es­cola Superior de Agricultura Luiz de Queirós (Esalq/USP), em 1954. Warwick Estevam Kerr Nascido em 1926 em Santana do Parnaíba (SP), Warwick Kerr é doutor em Genética pela Esalq/USP, uma das autoridades mundiais em genética de abelhas e o primeiro cientista brasileiro eleito na Academia de Ciências dos Estados Unidos. Foi professor da UnespRio Claro e da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), diretor científico da Fapesp (1962-4), criador do Departamento de Genética da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto (1964) e diretor do Instituto Nacio­nal de Pesquisas da Amazônia (INPA). Nos anos 60 e 70, foi preso duas vezes por protes­ tar contra a persegui­ção de colegas cientistas e a violação dos direitos humanos pelos militares. Hans Kalmus Nascido em Praga, em família de origem germânica, Hans Kalmus (1906-1989) se exilou na Inglaterra durante a Segunda Guerra Mundial. Em 1940, tornou-se assistente de John Burdon Sanderson Haldane (criador, junto com Aleksandr Oparin, da teoria vigente para a origem da vida) na Universidade College de Londres, onde permaneceu até sua aposentadoria, em 1973. Fez diversas excursões científicas a países como o Brasil, a Índia, a Argentina e a Nigéria e, entre 1949 e 1950, foi professor da Universidade McGill, em Montreal, Canadá. Em 1945, publicou importante estudo, fazendo a correlação entre o olfato e o vôo dos insetos. Cinco anos mais tarde, publicou o artigo “Aspectos Cibernéticos da Genética”, fazendo uma interessante correlação entre o gene e a informação. Contudo, seu tema de pesquisa favorito, desde que se interessou pela genética, em 1923, foram os grupos sangüíneos. Publicou o livro “Odyssey of a Scientist: An Autobiography” em 1991. 19 circuito intelectual paixão pela arte bob paulino O pintor Mario Zanini (1907-1971). cely carmo Acima, Casas na Praia, pintura de Alfredo Volpi (1896-1988) de 1952. Junto com Zanini, Volpi foi um dos membros do Grupo Santa Helena, composto por artistas de origem proletária que representavam a ala moderada do Modernismo paulista. O grupo foi o embrião da chamada Família de Artistas Paulistas, dos anos 1940. Abaixo, frente e verso da tela de Pancetti resgatada por Pavan no depósito da Biologia, quando o departamento é transferido da alameda Glete para a Cidade Universitária. 20 A extremada dedicação de André Dreyfus ao trabalho e à ciência não impedia que ele se entregasse com a mesma paixão a outros interesses. o cientista foi um amante das artes e da música e, também nessa área, gostava de passar seus conhecimentos para todos que o cercavam. “Gostava mui­to de música e pintura, e fazia de tudo para que nós também aprendêssemos arte”, conta Crodowaldo Pavan. Nos anos 40 e 50, Dreyfus convive com alguns dos maiores nomes das artes plásticas nacional, como José Pancetti, Mario Zanini, os italianos Alfredo Volpi e Ernesto De Fiori e o escultor Bruno Giorgi. Reúnem-se com freqüência no apartamento de Dreyfus, uma cobertura alugada no Prédio Guajara, situada à rua Bri­ga­deiro Tobias, 55, com uma bela vista para o Vale do Anhangabaú e o Via­duto Santa Ifigênia, no centro de São Paulo. O grupo passa tardes e noites discutindo arte, política e ciência. Nesse apartamento – hoje va­­zio – há uma cúpula, e é nesse local privilegiado pela luz que Dreyfus instala sua rica coleção de pinturas e esculturas, “inclusive a cabeça feita por Giorgi, que agora encontra-se no cor­redor do Instituto de Biociências, no prédio Harry Miller”, diz Antônio Bri­to da Cunha. Os artistas nutrem grande admiração por Dreyfus, que exibe uma cultura geral e um conhecimento de artes dignos de bons especialistas. “O Pan­cetti costumava deixar alguns de seus quadros no apartamento de Dreyfus por um tempo, para depois vendê-los. Ele dizia que essas telas seriam bem vendidas, pois contavam com o ‘pedigree’ de ter pertencido à Dreyfus, figura respeitada pela elite intelectual de São Paulo”, lembra Pavan. Pavan guarda duas lembranças des­ se tempo. Ao defender sua tese de doutorado, em 1945, recebe de presente do mestre uma paisagem de An­tônio Parreiras (1860-1937), que até circuito intelectual bob paulino Apartamento de Dreyfus, no centro de São Paulo, era ponto de encontro de artistas de renome no cenário paulista, que se reuniam para falar de arte, ciência, música e política Acima, Esfinge, obra de Bruno Giorgi (1905-1993). À esquerda, caricatura do escultor nascido em Mococa, no interior de São Paulo. Na página ao lado e acima, o Prédio Guajara, na rua Brigadeiro Tobias, 155, visto a partir do Viaduto Santa Ifigênia. É na cobertura com a cúpula, alugada, que Dreyfus reside durante todo o tempo em que vive em São Paulo, de 1933 até sua morte, em 1952. A cúpula abrigava sua coleção de arte e de discos de compositores clássicos. hoje fica exposto em sua casa, no Butantã, ao lado de um quadro de Pancetti, com paisagem em um lado da tela e, no verso, um retrato inaca­bado. “Encon­trei esse quadro jogado no depósito do laboratório da Biolo­gia, e acabei trazendo para minha coleção”, diz. Na música, a predileção de Drey­fus é pelos clássicos, gênero predomi­nante em sua coleção de bolachas de 78 rotações. “Ele amava os três bês: Bach, Beethoven e Brahms. Ia a concertos no Teatro Municipal, sabia os movimentos, conhecia os libretos e da­va verdadeiras aulas de música pa­ra mim e o Brito da Cunha”, finaliza. Auto-retratos de José Pancetti (1903-1958), acima e à esquerda. No alto, Praça Clóvis Bevilácqua, quadro de 1949. 21 testemunha ocular dreyfus por dobzhansky André Dreyfus recebeu uma homenagem póstuma na Biblioteca Municipal de São Paulo em 1952, promovida por iniciativa da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Theodosius Dobzhansky foi um dos cientistas que participaram da cerimônia. A seguir, a transcrição de parte de seu discurso: “O professor Dreyfus era um ativo pesquisador no campo entes é a mais promissora, para seu tempo e para seu da Biologia Geral. A lista de seus trabalhos de pesquisa trabalho. Dreyfus conseguiu tal decisão e o mínimo que impressiona pela extensão. Todavia, a pesquisa biológica se poderia dizer é que ela foi sustentada por, e esteve de cons­titui uma só parte – e a parte relativamente menos acordo com o que havia de mais progressivo. importante – da contribuição de Dreyfus ao progresso da Alguns cientistas preferem trabalhar sós. Sentem-se ciência biológica. O trabalho mais importante deixado por mais felizes quando podem se fechar em seus laboratóriDreyfus não foi pu­blicação alguma, foi a ativa escola de os e gastar todo o tempo e energia em seu trabalho prepesquisa biológica que criou e o Departamento de Biologia dileto. Outros desejam não só transmitir seus conheciGeral da Universidade de São Paulo por ele organizado. mentos a outrem, mas preferem desenvolver um trabalho A magnitude dos feitos do professor Dreyfus só pode cria­dor ­– não como indivíduos, mas como membros de ser aprecia­da com a lembrança de que ele era em grande um grupo. parte um autodidata em biologia. Sua formação não era a Tais cientistas tendem a atrair colabora­dores e a se de um biologista, mas a de um médico. tornar fundadores de escolas. Uma escola Era muito justamente orgulhoso de ter, científica, se baseada em uma idéia imporDreyfus detes­tava tante por si mesmo, desenvolvido seu interesse e viável, pode durar por muito em biologia, sobrepujando as muitas difi- estar só ou trabalhar tempo após o desaparecimento de seu culdades de iniciação nesse campo. Mais fundador. Na verdade, os feitos mais isolado; sentia-se importantes de uma escola científica tarde, Dreyfus visitou vários laboratórios bioló­gicos na França e, em 1944, nos podem apa­recer uma geração depois de mais Estados Unidos. No entanto, não permansua fundação. eceu por tem­po suficiente longo em nenDreyfus definitivamente detestava feliz como hum desses laboratórios para deles se estar só ou trabalhar isolado; sentia-se tornar um membro ou adquirir as mem­­bro de uma mais feliz co­mo membro de uma coletivitradições das escolas bio­lógicas desses dade. Reuniu ao redor de si um grupo de coletividade países. pesquisadores que se tornou a escola Sua filosofia científica e, especialbrasileira de Biologia e Genética e que mente, sua filosofia biológica, foram desenvolvidas por adquiriu repu­tação e reconhecimento mundial. Eu disse ele mesmo e em completa independência. Em vista disso, propositadamente que Dreyfus reu­niu um grupo de o mais notável é que os pontos de vista científicos de colaboradores, não um gru­po de alunos. Isso porque Dreyfus fossem completamente livres de qualquer coisa Dreyfus não era desses professores que usam os alu­nos que pudesse ser chamada de provincialismo. Até os últiem seu próprio trabalho, como instrumento altamente mos anos de sua vida manteve-se bem informado das eficiente. Ele era a escola, e essa foi a razão de ter sido pesquisas biológicas em andamento no mundo científibem sucedido. O trabalho de uma escola é fruto da comco. binação harmoniosa dos esforços criadores de vários Ainda mais notável, seu julgamento de importância cien­tistas, e não o de um único cientista ajudado por relativa dos diferentes tipos de pesquisa biológica era vários auxiliares sem personalidade própria. admiravelmente agudo e perspicaz. Seus julgamentos O trabalho inicial de Dreyfus sobre citologia comparaeram muitas vezes expressos com um grau de veemência da de vermes, de mamíferos e de himenópteros colocou-o que poderia, talvez, ser considerado excessivo. De face a face com os problemas da genética de populações qualquer forma, é o futuro que deve dar a decisão final a e da evo­lução. Ele viu claramente que o comportamento respeito dos méritos re­lativos das diferentes correntes do dos cro­mossomos só pode ser compreendido na base da pensamento científico em um determinado tempo. função que desempenham nos processos evolutivos. Todavia, nada é mais importante para um cientista Os cromossomos existem não para a distração dos criador do que decidir por si mesmo qual dessas corrcitologistas: o comportamento deles é uma parte da 22 arquivo ib-usp testemunha ocular André Dreyfus e Theodosius Dobzhansky em foto de 1943, no Departamento de Biologia da USP adaptação do organismo a seu modo de vida. Dreyfus viu ainda mais que um grupo de biologistas trabalhando no Brasil seria muito mais bem sucedido se explorasse as tremendas vantagens oferecidas pelas notavelmente ricas fauna e flora de sua terra natal. Existem, na verdade, certos materiais de trabalho e certos problemas que poder ser igualmente bem estudados em São Paulo, Nova York, Londres ou Calcutá. Um biologista de São Paulo pode estudar fisiologia de bactérias ou de coelhos ou de cobaias, ou ainda genética de Drosophila melanogaster, tão bem como um biologista em Estocolmo ou Tóquio. Mas um biologista no Brasil leva enor­me vantagem se usar como material para seu trabalho as espécies brasileiras de Drosophila, ou animais do mar tropical ou plantas dos campos cerrados ou das florestas tropicais. As moscas do gênero Drosophila mostram ser o material mais favorável para pesquisas dos problemas da genética de populações e da evolução. Dreyfus percebeu, todavia, que não seria interessante tentar desenvolver trabalho em São Paulo com a espécie clássica para tais estudos, a Dro­sophila mela­nogaster. Parecia provável que a fauna bra­sileira contivesse espécies nativas não menos favo­ráveis do que D. melano­gaster, mas elas ainda eram completamente desconhecidas. Ocorria que o único trabalho sobre Drosophila na América do Sul era o do cientista alemão O. Duda, baseado somente no estudo de material conservado em museus europeus e coletados diversas vezes por cole- tores de insetos diferentes, principalmente na Bolívia, no Peru e Paraguai. O trabalho de Duda men­ciona apenas três espécies de Drosophila como existentes no Brasil. Ou seja, um trabalho preliminar era necessário como base para qualquer trabalho futuro sobre genética e evolução de Drosophila no Brasil. Esse trabalho foi iniciado no laboratório do professor Dreyfus em 1943, pelo então doutorando Crodowaldo Pavan. O primeiro trabalho, contendo descrições e chaves para a classificação de 27 espécies brasileiras, foi publicado por Pavan e por mim mesmo nesse ano. Desde então, Pavan, Brito da Cunha, Nacrus e Magalhães, do laboratório de São Paulo, descreveram muitas espécies adicionais. Recentemente, esse trabalho passou a ser desenvolvido também no Instituto de Pesquisas Genéticas do Rio de Janeiro, pelos Drs. FrotaPessoa e Hans Burla, que foram introduzidos nesse tipo de trabalho no laboratório do professor Dreyfus. Como era de se esperar, a fauna de Drosophila no Brasil mostrou-se imensamente rica – talvez a mais rica do mundo. A descrição dessa fauna está ainda longe de ser completada, mas está agora muito avançada. Logo se viu que várias das espécies brasileiras oferecem grandes oportunidades como material para estudos de genética e evolução. Com o auxílio fornecido pela Fundação Rockefeller ao laboratório do prof. Dreyfus, tornou-se possível em 1948 iniciar os estudos gené­ticos básicos sobre essa espécie.” 23 nos próximos fascículos: Zacuto Lusitano Romão Mosia Reinhipo Filogônio Lopes Utinguassu Carlos Finlay Oswaldo Cruz Carlos Chagas Eurycledes de Jesus Zerbini Adolfo Lutz Zeferino Vaz Mário Schenberg Gleb Wataghin Cesar Lattes José Goldemberg Gabriel Soares de Souza Roberto Landell de Moura Emílio Marcondes Ribas Vital Brazil Amoroso Costa Santos Dumont Manuel Augusto Pirajá da Silva Ernst Marcus Alberto Loefgren Carlos Arnaldo Krug Friedrich Gustav Brieger Miguel Osório de Almeida Simão Mathias Maurício Peixoto Graziela Maciel Barroso Herman Lent Nise da Silveira Paulo Emílio Vanzolini Fernando Lobo Carneiro Otto Gottlieb Joaquim Mattoso Camara Florestan Fernandes Boris Fausto Anísio Teixeira Antônio Houaiss Giberto Freyre Peter Lund Aziz Ab’Sáber Lauro Travassos José Gomes de Faria Benedito de Oliveira Paiva Crodowaldo Pavan Newton Freire-Maia Osvaldo Frota-Pessoa Antonio Carini Reinaldo Saldanha da Gama Antônio Brito da Cunha Félix Rawitcher José Reis Ettore Onorato Paulo Sawaya e outros