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ENTREVISTA COM
SANDRO CHIGNOLA
A filosofia é feita para tomar uma posição
na luta cotidiana entre poder e liberdade.
Sandro Chignola
Ésio Francisco Salvetti*
Sandro Chignola é professor titular de Filosofia Política da Universidade de Pádova, Itália, onde é membro da direção do Programa de Doutorado
em Filosofia, também membro do Comitê Executivo da Sociedade Italiana de
Filosofia Política (SIFP). Tem mais de 80 artigos publicados em italiano, francês, inglês, alemão, espanhol, polonês e português. Entre os títulos de suas publicações destacam-se: Società e costituzione. Teologia e politica nel sistema di
Bonald (1993); Pratica del limite. Saggio sulla filosofia politica di Eric Voegelin
(1998); Fetishism with the Norm and Symbols of Politics. Eric Voegelin between
Sociology and Rechtswissenscahft (1999); Fragile cristall. Per la storia del concetto di società (2004), Sui concetti politici e giuridici dell’Europa (2005, with G.
Duso, Eds.); Governare la vita. Un seminario sui Corsi di Michel Foucault al
* Professor no IFIBE, doutorando em Filosofia na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) em cotutela com a Università degli Studi di Padova, bolsista CAPES,
responsável pela entrevista e pela tradução
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Collège de France (1977-1979) (2006, Ed.); Storia dei concetti e filosofia politica
(2008, with G. Duso); Il tempo rovesciato. La Restaurazione ed il governo della
democrazia (2011). Visitou o Brasil pela primeira vez em agosto de 2013 a convite do Instituto Superior de Filosofia Berthier, onde fez uma conferência no
VII Seminário Temático “Filosofia, ética e política em Giorgio Agamben”. Na
ocasião, concedeu a seguinte entrevista ao professor Ésio Francisco Salvetti.
Filosofazer: Em 2013 o senhor veio para o Brasil pela primeira vez, quais
foram as suas impressões, culturais e sociais do país?
Sandro Chignola: Li muito nestes últimos dois anos sobre o Brasil.
Claro, eu não posso dizer que tenho uma ideia do Brasil depois de apenas alguns dias em Passo Fundo. O que é surpreendente – mas para um
europeu é assim também na Argentina – é a estratificação da experiência: a soma vertical de espaços e tempos sociais diferentes e contraditórios. Favelas e arranha-céus; memórias de imigrações e fluxos digitais.
Um multiversum, para retomar a metáfora de Ernst Bloch. E, nesse sentido, fazendo-se metrópole do mundo ...
Filosofazer: Atualmente defende-se a tese de que um Estado de Direito
sem democracia é ilegítimo. Como o senhor avalia essa relação interna
entre Estado de Direito e democracia? Os Estados Democráticos de Direito são de fato protetores dos direitos e da vida humana?
Sandro Chignola: Acredito que a questão indica como central o problema que assola as novas tecnologias do direito global. Ou melhor, a produção do direito. O processo da modernidade política colocou no trono,
na posição de soberano democrático, o povo como detentor último do
poder legítimo. A vontade do povo, através dos seus representantes, faz
a lei e, dessa forma, se autodetermina politicamente. O Estado de Direito é a fórmula institucional adequada para exprimir esta soberania da
lei e do sujeito democrático que a produz. Agora, porém, parece-me que
podemos dizer que muitas coisas mudaram. Muitos juristas contemporâneos, cito, por exemplo, Günther Teubner, mostraram como as “fábricas da lei” não coincidem mais com os Parlamentos. Importantes seções do direito global dependem de outros agentes e mobilizam outros
atores: refiro-me, em particular, à lex mercatoria, muitas vezes fruto de
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acordos técnicos transnacionais, à legislação internacional sobre patentes ou direitos autorais produzida em alguns escritórios de advogados e
impostas por ações de lobbying ou, ainda, os processos de descostitucionalização que corroem as fronteiras entre público e privado. Trata-se,
parece-me, não de olhar para trás, com saudade, para a relação, talvez
irremediável, entre democracia e direito, mas de avançar mais na análise, de envolver novos processos constituintes capazes de atravessar este
limiar desconstrutivo.
Filosofazer: A Europa tem uma tradição cultural milenar, mas, a partir dos anos 1980, algumas mudanças estruturais começaram a ser
sentidas e observadas devido aos reflexos da globalização. Uma delas
é a formação de sociedades pluralistas e, com isso, os Estados começaram a ter dificuldades de responder aos anseios das diferentes culturas
e formas de vida. Em sua opinião a União Europeia está respondendo
satisfatoriamente a essa questão?
Sandro Chignola: Se está se referindo ao multiculturalismo, parece-me que não, não está respondendo positivamente. Crescem, em vez
disso, nas pegadas das migrações, fenômenos de intolerância e de produção de discursos racistas, sobre os quais proliferam empreendimentos políticos das paixões tristes e do medo. O multiculturalismo, no
entanto, parece-me uma perspectiva insatisfatória. Ele tende a fixar as
culturas numa identidade e trabalhar com uma ideia de cultura totalmente inadequada aos processos de hibridação que marca a produção
da subjetividade. Não existem “culturas” a quem se possa atribuir ser
sujeito, eu acho. Também não há ponto de vista “neutro”, como aquele
do multiculturalismo, capaz de ser reconhecido enquanto tal. Devemos, eu penso, nos movermos a partir desta consciência: trabalhar sobre o estatuto da subjetividade.
Filosofazer: A solução para problemas globais – riscos ecológicos, direitos humanos, problemas sociais e pobreza – passa pelos desafios de
uma ação política cooperativa. O senhor entende que a União Europeia é um modelo de integração que poderia ser seguido por outros
países?
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Sandro Chignola: Radicalmente, creio que a União Europeia é uma das
áreas nas quais, por meio daquilo que eu e alguns amigos chamamos
de “gestão da crise” econômica, vão sendo organizadas as estruturas
de comando que querem impor um rumo neoliberal para a governança
global. Desmontar o Estado de Bem-estar Social (welfare state) que foi o
produto mais próprio da social-democracia europeia, produzir insegurança e endividamento como instrumentos de governo da multidão, inventar dispositivos jurídicos para evitar a proteção à vida e ao ambiente
e implantar o biopoder na materialidade do genoma: estes me parecem
ser alguns dos exemplos para entender a finalidade da exceção europeia para se tornar o mundo do capital. Todavia, e exatamente por este
motivo, a União Europeia é um desafio. O único espaço no interior do
qual se pode inscrever lutas e objetivos de mobilização dos cidadãos europeus para uma nova e diferente cidadania europeia. É vital rejeitar a
ilusão de um retorno à Nação. Assim como é vital redefinir – à esquerda
e de baixo – o sentido e o alcance do processo da integração europeia.
Filosofazer: Nas sociedades atuais o mercado e o dinheiro são os mecanismos de integração social e passam a ter as rédeas da sociedade. Há
uma primazia do econômico em relação ao político. Diante desse novo
cenário, que papel a filosofia deve assumir?
Sandro Chignola: Sobre isso sou muito radical: eu não posso deixar de
pensar com Nietzsche e Foucault. A verdade é deste mundo. E a filosofia não é feita para entender – não existe um fora no qual refugiar-se e
desde o qual ver o mundo – mas para tomar uma posição na luta cotidiana entre poder e liberdade, entre os dispositivos de subjugação e os
processos de subjetivação.
Filosofazer: Giorgio Agamben, um dos filósofos mais influentes na atualidade, publicou uma obra intitulada Estado de Exceção. O senhor concorda com a tese de que a exceção, como técnica de governo, deixará de
ser exceção para tornar-se a regra geral?
Sandro Chignola: Aquilo que um pouco acima chamei de “gestão da
crise” tende a tornar permanente o estado de exceção. Um ex-juiz constitucional alemão, entre os mais importantes historiadores do direito
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e da constituição, Ernst-Wolfgang Böckenförde, há alguns anos atrás,
pôs em voga na Neue zürcher Zeitung exatamente o Ausnahmezustand
como um conceito para se referir às práticas de governança da Troika
(BCE, FMI e Comissão) que governa a União Europeia. Na Allgemeine
Süddeutsche Zeitung, para aludir ao estado de exceção no qual desaparecem as políticas de auto-determinação democrática, outros têm mobilizado o conceito de “ditadura comissária”, de Carl Schmitt. Contudo, é preciso entender-se. As ferramentas da “gestão da crise” não são
nem ditatoriais, nem violentas: utilizam mecanismos de soft law
[lei suave], procedimentos administrativos das best practice [boas práticas], regulações líquidas, mesmo que com o objetivo de impor o controle do capital financeiro e garantir o desenvolvimento da cooperação
produtiva. O estado de exceção tende a ser permanente, é verdade. Mas
não da forma paradigmática como aquele a que se refere Agamben. Ele
pode ser pensado como em forma de ser permanente se for em referência a um estado de normalidade a ser substituído. No entanto, faz
tempo que, para os mecanismos que colocaram em movimento a globalização das finanças, o estado de ordem e normalidade não existe. A
ordem é a crise. E é nesta perspectiva que devemos pensar. E também:
tomar uma posição.
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