temporalidade em orações completivas infinitivas

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TEMPORALIDADE EM ORAÇÕES
COMPLETIVAS INFINITIVAS
SUBCATEGORIZADAS POR VERBOS
CAUSATIVOS E PERCEPTIVOS
ANÁLISE DE UM CORPUS DO PORTUGUÊS
MEDIEVAL
Raquel Mendes da Silva Oliveira
___________________________________________________
Dissertação de Mestrado
em Ciências da Linguagem
JULHO DE 2008
Dissertação apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à
obtenção do grau de Mestre em Ciências da Linguagem, realizada sob a
orientação científica da Profª Maria Francisca Xavier.
AGRADECIMENTOS
Agradeço antes de mais à Professora Maria Francisca Xavier, orientadora desta
dissertação, que se manifestou disponível e paciente em todos os momentos.
Merecem ainda uma palavra de apreço a Professora Clara Nunes Correia, a
quem agradeço a total disponibilidade e simpatia na troca de algumas impressões e o
Doutor Luís Filipe Cunha pela diponibilização de materiais imprescindíveis ao presente
trabalho.
Quero deixar ainda uma palavra de apreço a todos os colegas do DLPM, em
especial à Alexandra Fiéis pela leitura atenta, ao João Loureiro pelas sugestões e
percurso partilhado, ao Miguel Magalhães pela boa disposição e ao Sandro Dias pela
constante disponibilidade.
A todos os outros que, de uma maneira ou de outra, contribuíram com
importantes estímulos, agradeço igualmente.
Aos meus pais e irmão, que desde sempre fizeram tudo para facilitar a jornada a
que me propus. Não podendo exprimir a importância do seu contributo, limito-me a
dedicar-lhes esta dissertação.
RESUMO
TEMPORALIDADE EM ORAÇÕES COMPLETIVAS INFINITIVAS
SUBCATEGORIZADAS POR VERBOS PERCEPTIVOS E CAUSATIVOS
ANÁLISE DE UM CORPUS DO PORTUGUÊS MEDIEVAL
Raquel Mendes da Silva Oliveira
PALAVRAS-CHAVE: Infinitivo, interpretação temporal, aspecto, verbos perceptivos e
causativos.
O objectivo da presente dissertação consistiu em estudar as relações temporais
que se estabelecem entre as orações completivas infinitivas e os verbos perceptivos e
causativos que as seleccionam.
O nosso corpus foi constituído de textos medievais portugueses dos séculos XII,
XIII e XIII/XIV.
A análise incidiu, por um lado, sobre os verbos perceptivos ver e ouvir, por
outro, sobre os causativos fazer, mandar e leixar.
Começou-se por definir noções gerais, tais como Tempo, Aspecto e Modalidade,
passando depois para uma descrição sobre o Infinitivo em Português contemporâneo e
em Português Medieval. Destacámos em seguida a proposta de Cunha & Silvano (2006)
que argumentam favoravelmente à existência de marcas de temporalidade associadas ao
Infinitivo.
No segundo capítulo descrevemos a metodologia usada para constituir o corpus,
bem como os métodos e ferramentas utilizados para tratar os dados recolhidos para
análise. Para além disto, referimos ainda algumas dificuldades inerentes a este tipo de
investigação sobre textos medievais.
Seguidamente, no capítulo III apresentamos a análise da localização temporal
das completivas infinitivas introduzidas por verbos perceptivos e causativos. Esta tarefa
é conseguida através do estudo das frases em que estes dois tipos de verbos ocorrem
subcategorizando orações infinitivas e pelo seu tratamento individual. Para cada um dos
grupos, apresentamos uma conclusão acerca das similaridades e diferenças entre os
valores temporais das orações que subcategorizam os verbos estudados.
No presente trabalho pretendeu-se investigar se as características semânticas do
verbo principal têm influência na interpretação da oração infinitiva subordinada.
Através desta abordagem, esperamos aferir se a informação atrelada à forma infinitiva é
condicionada por aquela veiculada pela oração subcategorizada.
Procurámos, para além disso, determinar se o tipo aspectual do verbo contido na
oração subordinada interfere de forma activa na interpretação temporal dos infinitivos.
Para além destes factores, investigámos ainda a influência de outros, como os
tempos verbais, eventualidades durativas e pontuais, a presença de adjuntos adverbiais e
o carácter eventivo ou estativo do verbo contido na oração completiva.
Por fim, concluímos que a interpretação temporal da completiva de infinitivo
regida por verbos perceptivos e causativos é determinada por uma interacção complexa
de muitos factores que não podem ser disjuntos, nomeadamente, a natureza semântica
dos verbos das duas orações, o valor modal da oração matriz e a natureza do argumento
externo da oração regente.
ABSTRACT
TEMPORALITY IN INFINITIVE COMPLETIVE CLAUSES
SUBCATEGORIZED BY PERCEPTION AND CAUSATIVE VERBS
ANALYSIS OF A MEDIEVAL PORTUGUESE CORPUS
Raquel Mendes da Silva Oliveira
KEYWORDS: Infinitive, temporal interpretation, aspect, perception and causative
verbs.
The main purpose of this dissertation was to study the temporal relations
between Infinitival completive clauses and the perception and causative verbs that select
them.
Our corpus is built by Medieval Portuguese texts from the XIIth to the XIVth
century.
Our analysis focused on both perception verbs, such as ver (see) and ouvir
(hear), and causative verbs, such as fazer (make), mandar (order) and leixar (let).
We started by defining the relevant concepts of Time, Aspect and Modality.
Then, we presented a synthesis of the descriptions on the Infinitive in both
Contemporary and Medieval Portuguese literature, which considers this verbal form as
neutral as far as temporal information is concerned. Next, we have put in evidence
Cunha & Silvano’s (2006) proposal arguing that this verb form has temporality marks
attached.
In chapter II we have described the methodology used to build the corpus, as
well as the methods and the tools used in order to treat the data. We also showed the
difficulties of this type of investigation.
In chapter III we presented the analysis of the temporal location of non finite
clauses selected by perception and causative verbs. We accomplished this task studying
the sentences in which this two types of verbs subcategorize infinitival clauses. For each
of these groups we presented a conclusion about similarities and differences between
the temporal value of each verb studied.
In this study we investigated whether the semantic characteristics of the main
verb have influence in the interpretation of the embedded infinitival clauses. With this
approach we expected to find out if the temporal information related to the infinitival
form is determined by the main clause.
We also investigated if the aspectual type of the verb contained in the
subordinated clause has an active role in the temporal interpretation of the infinitive.
Beside these factors, we examined the influence of others, such as verbal tenses,
durative and punctual activities, the presence of adverbial adjuncts and eventive or
stative character of the verb contained in the complement clause.
Finally, we conclude that the temporal interpretation of the infinite complement
governed by perception and causative verbs is determined by a complex interaction of
several factors that cannot be disconnected, in particular the semantic nature of the
verbs, the modal value of the main clause and the nature of the main clause’s external
argument.
ÍNDICE
Introdução ...................................................................................................... 1
Capítulo I: Revisão da literatura ..................................................................... 4
I. 1. Categoria Tempo: Considerações gerais ..........................................4
I. 2. Categoria Aspecto: Considerações gerais ........................................6
I.3.
Categoria Modalidade: Considerações gerais ................................ 13
I. 4. Interpretação temporal dos Infinitivos............................................ 14
I. 4. 1. Descrições actuais ............................................................ 14
I. 4. 2. Descrições do Português Antigo ....................................... 17
I.4.2.1. Dias (1970) ....................................................... 17
I.4.2.2. Huber (1986) .................................................... 17
I.4.2.3. Mattos e Silva (1989) e (1993) ......................... 18
I. 4. 3. Proposta de Cunha & Silvano (2006) ............................... 20
Capítulo II: Metodologia ............................................................................... 23
II. 1. Constituição do corpus ................................................................ 23
II. 2. Metodologia de extracção e tratamento de dados ......................... 25
II. 3. Outras considerações ................................................................... 27
Capítulo III: Análise do valor temporal das infinitivas subcategorizadas por
verbos perceptivos e causativos ..................................................................... 28
III. 1. Verbos Perceptivos...................................................................... 30
III. 1. 1. Verbo Ver ...................................................................... 30
III. 1. 2. Verbo Ouvir ................................................................... 36
III. 2. Conclusões parciais – Verbos Perceptivos .................................. 41
III. 3. Verbos Causativos . .................................................................... 44
III. 3. 1. Verbo Fazer ................................................................... 44
III. 3. 2. Verbo Mandar ................................................................ 49
III. 3. 3. Verbo Leixar .................................................................. 53
III. 4. Conclusões parciais – Verbos Causativos ................................... 57
Conclusão ...................................................................................................... 60
Referências Bibliográficas ............................................................................. 63
Corpus – Textos utilizados ............................................................................ 68
INTRODUÇÃO
O estudo das fases primitivas de uma língua parece-nos de vital
importância para qualquer que seja a temática abordada. Sendo ainda
parcos os trabalhos que se debruçam sobre a determinação temporal das
subordinadas infinitivas, facto que poderá ser explicado pelo pressuposto da
gramática tradicional acerca da total privação dos Infinitivos em termos de
marcas de temporalidade, este assunto tem sido descurado até estudos
bastante recentes1.
Considerado uma mera forma nominal do verbo, o Infinitivo Simples tem
sido relegado para um plano de somenos importância. Nomeadamente, a
temporalidade do Infinitivo tem sido pouco estudada, uma vez que, numa
perspectiva tradicional, as orações infinitivas são consideradas como
desprovidas de marcas de localização temporal. Afigura-se, a nosso ver,
seguindo Cunha & Silvano (2006; 2007), necessário o desenvolvimento de
estudos que contemplem uma análise do Infinitivo Simples sob diversas
perspectivas e no contexto de orações completivas seleccionadas por verbos
de diferentes tipos. Só assim será possível aferir os mecanismos que regem a
sua determinação temporal.
É neste contexto que a dissertação aqui apresentada se insere,
pretendendo observar e descrever o comportamento a nível da localização
temporal de completivas de tipo infinitivo. Devido às contingências de um
trabalho deste tipo, seleccionámos para análise cinco verbos pertencentes a
dois tipos com características semânticas distintas.
A presente dissertação apresenta um estudo sobre as relações
temporais que se estabelecem em construções com orações completivas de
tipo infinitivo no Português Medieval. Mais especificamente, pretendemos
investigar os mecanismos linguísticos que regem a determinação da
localização temporal das orações completivas infinitivas seleccionadas por
1
Cf. CUNHA & SILVANO (2006) e CUNHA & SILVANO (2007: comunicação apresentada ao XXIII
Encontro da APL, Évora).
dois conjuntos de verbos com características semânticas diferentes – os verbos
causativos fazer, leixar (forma arcaica do verbo deixar) e mandar e os verbos
perceptivos ouvir e ver.
Este estudo contempla exclusivamente dados atestados num corpus
textual português dos séculos XII, XIII e XIII/XIV, constituído a partir do CIPM Corpus Informatizado do Português Medieval.
O enquadramento teórico inicial formulado no Capítulo I baseia-se
essencialmente em Lyons (1967), Moens & Steedman (1988), Cunha (1998a) e (2004) e
Mateus et al. (1989) e (2003), tentando elucidar acerca das categorias gramaticais
Tempo, Aspecto e Modalidade, contendo ainda uma breve descrição da proposta de
Reichenbach (1947), essencial para a localização temporal. Segue-se a revisão da
literatura no que concerne ao Infinitivo, que se divide em três etapas: primeiramente
explicitamos as descrições presentes em gramáticas contemporâneas das Línguas
Portuguesa, Espanhola, Inglesa e Francesa; de seguida, expomos as descrições
existentes para o Português Medieval, recorrendo aos únicos estudos que conhecemos
para este período que abordam, ainda que de forma superficial, esta temática, a saber:
Mattos e Silva (1988) e (1993), Huber (1986) e Dias (1970); por fim, apresentamos a
proposta de Cunha & Silvano (2006), uma vez que o estudo em questão segue, em
grande parte das sugestões expressas na mesma.
Procurámos, portanto, aplicar os pressupostos apresentados no referido artigo à
análise dos verbos causativos e perceptivos no Português Medieval, ainda que com as
devidas salvaguardas, uma vez que a proposta de Cunha & Silvano se refere
exclusivamente a dados do Português Contemporâneo.
O segundo capítulo descreve a metodologia adoptada nesta análise.
Assim, descrevemos o modo como o corpus foi constituído, quais os métodos e
ferramentas utilizados no tratamento dos dados, extracção das informações e
apresentação das abonações, bem como abordamos ainda as dificuldades
acrescidas que a análise de dados do Português Medieval implica.
No
capítulo
III
debruçamo-nos
efectivamente
sobre
os
verbos
seleccionados, analisando as frases em que estes seleccionam orações
infinitivas.
Nas duas secções em que dividimos o capítulo III, tratamos, por um
lado, os verbos perceptivos e, por outro, os causativos. O comportamento das
orações completivas de infinitivo introduzidas pelos verbos já referidos é
analisado
primeiramente,
de
forma
individual.
Somente
depois
de
devidamente descrita a marcação da localização temporal das orações
subordinadas de infinitivo para cada um dos cinco verbos, se passa então às
conclusões. No mesmo capítulo há ainda lugar para a explanação de
conclusões parciais para cada um dos tipos de verbos, reservando um
confronto entre os dois tipos para o capítulo final.
A partir desta análise, pretendemos ser capazes de realizar uma
descrição
mais
fina
das
estruturas
argumentais
e
respectivas
subcategorizações dos verbos da oração matriz, do que aquela que se
encontra no Dicionário de Verbos do Português Medieval2, descrição de onde
partimos. Procurámos ainda determinar os valores semânticos das construções
subordinadas de causativos e perceptivos, verificando quais as semelhanças e
diferenças de realizações.
Esta investigação teve sempre em conta a descrição dos mesmos
verbos para o Português actual, socorrendo-nos para isso tanto do nosso
conhecimento lexical como do recente Dicionário Gramatical de Verbos
Portugueses3.
Os aspectos que pretendemos investigar ao longo deste trabalho foram os
seguintes:
(i) a possibilidade do tipo semântico do verbo da oração matriz influenciar ou
mesmo condicionar a interpretação temporal das orações completivas, ou
seja, verificar se a informação veiculada pela forma verbal infinitiva da oração
completiva será preterida em relação à orientação conferida pelo verbo
realizado na oração matriz;
(ii) a relação entre o tipo de verbo da subordinada e o valor temporal do
verbo matriz;
2
3
Cf. DVPM.
Cf. CASTELEIRO (2007), indicado doravante como DGVP.
(iii) os valores temporais das subordinadas infinitivas com os diferentes verbos,
verificando se, como tradicionalmente é descrito, as formas de Infinitivo serão
completamente desprovidas de informação temporal.
CAPÍTULO I
REVISÃO DA LITERATURA
I. 1. CATEGORIA TEMPO: CONSIDERAÇÕES GERAIS
O Tempo é a categoria que permite localizar as situações descritas (que
podem ser instantes ou intervalos de tempo) através do seu posicionamento
num eixo linear que se direcciona do passado para o futuro.
Assim, e sabendo que todos os acontecimentos são localizados em
relação a um tempo, isto é, que o Tempo é uma categoria relacional, todas as
línguas dispõem de marcas para localizar determinada eventualidade na
dependência de outro tempo, informação essa que pode ser veiculada com
recurso a diferentes processos linguísticos.
No caso do Português, existem formas verbais com marcas distintivas
que cumprem esta função de diferenciar os valores temporais.
Para além dos tempos verbais, podemos contar entre as formas de
marcar a localização temporal das situações em Português, os advérbios ou
locuções adverbiais, os sintagmas preposicionais de tempo e as orações
adverbiais temporais.
No entanto, como lembrado anteriormente, o Tempo é uma categoria
relacional, sendo a sua função primeira a de localizar uma situação sempre
em relação a um outro tempo ou intervalo de tempo. Esta dependência
relativamente a um intervalo externo ao tempo do acontecimento linguístico,
representado doravante como ponto E (tempo do evento), pode ser de tipo
deítico ou anafórico, consoante se reporta ao tempo da fala, doravante
como ponto F, ou a um outro marcado na frase, o tempo intermédio
localizador (ponto R).4
Existem,
portanto,
vários
processos
de
localização
temporal,
decorrentes do modo como essa marcação é feita.
Assim, a localização temporal simples ou primária é feita tendo como
referente o momento da enunciação ou ponto da fala e recorre a meios
verbais, mais especificamente afixos verbais e verbos auxiliares, como nota
Lyons: “Tense (...) is part of the deictic frame of temporal reference: it
grammaticalizes the relationship which holds between the time of the situation
that is being described and the temporal zero-point of the deictic context.”
(Lyons 1978: 678).
No caso deste tipo de marcação, pode ser estabelecido um de três
tipos de relação entre os dois momentos (E e F) – anterioridade, sobreposição
ou posterioridade.
Outro importante processo de localização é aquele em que, em casos
mais complexos, a localização em relação ao ponto da fala não é suficiente,
recorrendo por isso ao chamado ponto de referência (R). Este parâmetro tem
em conta meios lexicais que podem incluir localizadores adverbiais,
preposicionais, outras expressões temporais e ainda o nosso conhecimento do
mundo (entrando aqui em jogo os factores contextuais).
Em qualquer um dos casos, os acontecimentos linguísticos são
focalizados exclusivamente a partir do exterior e em função de parâmetros
que lhes são extrínsecos, uma vez que o tempo de uma situação nunca pode
ser achado autonomamente, estando sempre dependente da localização
temporal de um outro acontecimento, que lhe serve de ponto de ancoragem.
A perspectivação interna do acontecimento linguístico cabe a uma
outra categoria - o Aspecto.
Adoptaremos, tal como CUNHA (2004) a terminologia de Reichenbach (1947).
Encontramos ainda uma alternativa ao ponto R presente em CUNHA (2004) que,
seguindo Kamp & Reyle (1993) adopta a designação de PPT ou TPpt (Ponto de
Perspectiva Temporal). Utilizamos ambos os termos indistintamente.
4
I. 2. CATEGORIA ASPECTO: CONSIDERAÇÕES GERAIS
Sendo o Aspecto uma categoria longe de gerar consenso, a definição
hoje mais comummente aceite é a de noção que veicula informações sobre a
perspectivação
ou
focalização
da
estrutura
temporal
interna
das
predicações.
Apesar de intimamente relacionada com o Tempo e o Modo (o que se
deve ao facto de centrar a perspectivação de determinado acontecimento
linguístico tendo em conta uma cronologia temporal), a categoria Aspecto
distingue-se de forma clara das categorias supracitadas essencialmente na
forma como o acontecimento linguístico é perspectivado.
Assim, o Aspecto foca-se estritamente na cronologia temporal interna
de uma situação linguística, tendo em conta os seus detalhes qualitativos e
quantitativos, ao contrário do Tempo, que, para localizar determinada
eventualidade, o faz tendo como referência o tempo da enunciação ou
outras situações decorrentes do contexto. Por outro lado, não contempla a
apreciação subjectiva do sujeito da enunciação em relação à situação
narrada, expressa pela modalidade.
O Aspecto é uma categoria gramatical universal, embora manifestada
com conteúdos semânticos e modos de expressão diversos em diferentes
línguas. A categoria existia no verbo indo-europeu, no grego, no latim e é
muito importante ainda hoje no sistema verbal das línguas eslavas, em que a
distinção entre Perfectivo e Imperfectivo é marcada morfologicamente
através de afixos associados ao verbo que são especificamente aspectuais.
No caso do Português, as informações aspectuais são veiculadas
através de diversos elementos de ordem morfológica, sintáctica e semântica,
uma vez que esta língua não possui um sistema afixal que lhe seja dedicado.
Assim, a estrutura interna das predicações é obtida através da combinação
de variadíssimos elementos que se conjugam e interagem. É por este motivo
que não só o verbo deve ser tido em conta no estudo da constituição do perfil
aspectual das frases do Português, mas sim a totalidade da predicação.
Tradicionalmente, alguns linguistas defendem a divisão do Aspecto em
modo da acção e aspecto, ou seja, considera-se que a informação aspectual
é veiculada através de dois canais distintos, um de natureza lexical (o aspecto
lexical, modo de acção ou Aktionsart no original) e outro gramatical (o
aspecto gramatical, ou aspecto somente).
Num primeiro nível, o aspecto lexical estabelece a classe aspectual
básica de uma predicação através de diversos elementos, todos eles
lexicalizados na predicação, como são os casos do verbo e dos seus possíveis
complementos, podendo eventualmente contar com o contributo de
determinadas propriedades semânticas do sujeito.
No entanto, existem outros factores a considerar para além da
informação lexical na obtenção da classe aspectual de uma predicação, que
podem contribuir para a sua alteração. Estes elementos são os tempos
gramaticais, os verbos de operação aspectual e/ou os adverbiais temporais e
de frequência, que, em conjunto, vão alterar as classes aspectuais básicas,
criando desta forma situações de tipo variado. Assim, o aspecto gramatical
resulta da conjugação dos vários elementos supracitados, realizados nas
frases.
Logo, e apesar da diversidade de propostas, a composicionalidade do
Aspecto, ou seja, a existência de diversos elementos constitutivos e a sua
necessária correlação, vem a ser o factor comum nas diferentes teorizações
acerca do tema. Perfeita, na nossa opinião, é a proposição de que o
“Aspecto não deverá ser considerado como uma simples “soma” de
contribuições dispersas, mas antes como um “produto” coeso e estruturado de
“forças” actuando em conjunto.” (Cunha 2004: 53)
Por não se encontrar sob o escopo deste estudo uma investigação mais
apurada acerca da categoria Aspecto, referir-nos-emos sempre a esta
categoria no seu sentido mais lato, isto é, como a categoria semântica cuja
função consiste em mostrar a forma como é constituído, organizado e
perspectivado o acontecimento linguístico descrito pela predicação. Por
outras palavras, sendo o Aspecto resultante da combinação de uma
multiplicidade de factores de várias ordens, optámos por não distinguir entre
processos exclusivamente lexicais e aqueles que são unicamente morfológicos
ou flexionais, convergindo assim na proposta de Cunha (2004).
A tipologia aspectual mais conhecida e, ao mesmo tempo, aquela que
serviu de base a todos os posteriores desenvolvimentos é indiscutivelmente a
de Vendler.
Zeno Vendler (1967), na tipologia que estabeleceu e que herdou o seu
nome, defende a existência de quatro categorias aspectuais distintas,
agrupadas em dois sub-
-grupos consoante a possibilidade ou não de
ocorrerem no progressivo (continuous tense). Assim, apresenta de um lado
estados (states) e eventos instantâneos ou acções (achievements) e de outro
actividades
(activities)
e
eventos
prolongados
ou
processos
(accomplishments). É também de salientar a distinção dentro do grupo dos
estados, ainda que incipiente, entre estados genéricos e específicos,
adoptando a terminologia de Ryle (1949). As distinções entre todas estas
classes aspectuais são depois apresentadas atendendo a critérios como a
dinamicidade, a telicidade, a duratividade e a homogeneidade. Muito
sucintamente, a dinamicidade designa a existência de um conjunto de fases
sucessivas, capazes de provocar uma mudança de estado, a telicidade
considera a existência de uma conclusão marcada por uma fronteira final, a
duratividade reporta-se à duração dos acontecimentos linguísticos, enquanto
que a homogeneidade remete para a capacidade das partes constitutivas de
uma situação apresentarem as mesmas características que o todo.
Todavia, este esquema demasiado redutor, poder-nos-á confinar a uma
visão demasiado simplista desta problemática, como o próprio autor aponta:
“In indicating these schemata, I do not claim that they represent all possible
ways in which verbs can be used correctly with respect to time determination
nor that a verb exhibiting a use fairly covered by one schema cannot have
divergent uses, which in turn may be described in terms of the other schemata.
(...) Thus my intention is not to give rules about how to use certain terms but to
suggest a way of describing the use of those terms.” (Vendler, 1967: 98)
Outras propostas se seguiram na tentativa de aperfeiçoar e desenvolver
este esquema. A que reuniu mais consenso e tem sido adoptada (e/ou
adaptada) por muitos linguistas é a de Moens (1987). Distingue-se da de
Vendler, fundamentalmente por, para além de incluir outro evento atómico
(os
pontos), propor
um
sistema
baseado
nas
noções
de
causa
e
consequência, em detrimento de critérios puramente temporais, o que vem a
dar origem ao conceito de núcleo aspectual, um composto de três fases
(processo
preparatório,
culminação
e
estado
consequente),
cuja
combinação explicaria a variedade de categorias aspectuais. A distinção
entre estas classes assentaria então, basicamente, tanto no contraste entre
pontualidade e extensão temporal como na combinação com um estado
consequente. Quanto ao que respeita à classe dos estados, não existe
qualquer sub-divisão registada.5
Decorrente do facto de se afigurar mais consistente e tão específica
quanto este estudo exige, assumimos a classificação aspectual básica
adoptada por Cunha (2004). Relativamente à de Vendler, esta classificação
inclui, na classe dos eventos, os pontos de Moens (1987) e subdivide os estados
em quatro categorias, como poderemos observar mais nitidamente através do
esquema seguinte.
Tipologia aspectual ou Classes aspectuais básicas:
1. Eventos
1.1. Durativos
1.1.1. Processos
1.1.2. Processos culminados
1.2. Atómicos
1.2.1. Culminações
1.2.2. Pontos
Para uma descrição detalhada desta classificação, consultar MOENS & STEEDMAN
(1988).
5
2. Estados
2.1. Faseáveis
2.2. Não faseáveis
2.3. De indivíduo
2.4. “De estádio”
São estas as classes aspectuais básicas de predicações, que podem no
entanto ser modificadas devido à acção de outros elementos portadores de
informação aspectual (não só o verbo e o seu tempo gramatical, mas
também os argumentos internos e externos do verbo, adverbiais temporais e
de frequência, operadores de negação, quantificadores e outras construções
temporais), dando origem a predicações derivadas, uma vez que, lembramos,
trata-se de uma categoria composicional.6
Apresentaremos em seguida uma súmula das características
distintivas destes acontecimentos linguísticos, tomando primeiramente a
distinção entre eventos e estados.
Começando
pelos eventos7,
esta
classe é constituída por quatro tipos básicos de predicações, que partilham
a especificidade de serem situações dinâmicas, podendo ser ainda
reagrupadas recorrendo a um dos seguintes critérios – telicidade e
duratividade. Assim, teremos processos culminados e culminações do lado
das situações télicas e processos e pontos pelas atélicas, enquanto que os
processos e processos culminados se distinguem das culminações e dos
pontos pela presença de duratividade.
Devido à constrição espacial deste tipo de trabalho e, paralelamente, por não ser o
objecto de estudo directo, mas somente um conceito com que operámos para a
análise de dados, considerámos que a prossecução dos nossos trabalhos não seria
afectada pela economia descritiva por que optámos quanto à apresentação das
classes aspectuais básicas. Todavia, sobre este assunto, cf. CUNHA (2004).
6
Note-se que aqui, o termo evento é usado num sentido mais lato, designando o
conjunto constituído pelas situações não estativas, enquanto que outros autores
restringem o seu uso às situações télicas.
7
Os processos culminados têm uma duração razoavelmente longa,
não possuem evolução interna, são heterogéneos, compostos por fases
sucessivas e têm uma culminação associada, decorrendo ainda uma
mudança de estado.
As culminações são situações com uma duração muito breve ou
mesmo
nenhuma,
são
eventos
instantâneos,
pontuais,
heterogéneos,
terminados, não contendo por isso fases sucessivas e associando-se sempre a
um estado consequente.
Os processos caracterizam-se por ser acontecimentos em curso,
prolongados,
não
delimitados
por
natureza,
com
evolução
interna,
homogéneos e desprovidos de conclusão.
Os pontos ocorrem num único momento de tempo, sendo portanto
indivisíveis, e não têm qualquer estado consequente adstrito.
Podemos representar as classes aspectuais, de acordo com a sua
composição tendo em conta os traços aspectuais, no seguinte quadro
adaptado de Cunha (2004), com inclusão do traço "homogeneidade",
referido.
Classes
aspectuais
básicas
Dinamicidade Duratividade Telicidade Homogeneidade
Traços
distintivos
Culminações
+
-
+
-
Pontos
+
-
-
-
+
+
+
-
+
+
-
+
Processos
Culminados
Processos
ESTADOS
-
+
-
+
Tabela 1 - Descrição das classes aspectuais básicas quanto aos traços aspectuais.
Passando aos estados, este grupo parece ocupar uma posição
secundária em muitas tipologias, uma vez que se apresenta como um classe
fechada e homogénea, definida quase por oposição ao grupo heterogéneo
dos eventos. Os estados têm sido definidos então como situações não
dinâmicas, sem evolução interna, atélicas, não delimitadas por natureza,
dotadas de duração interna e homogéneas, não admitindo qualquer pausa
ou intervalo no todo homogéneo.
Remetemos
a
subclassificação
adoptada
para
Cunha
(2004),
apresentando aqui somente um pequeno esboço sumário das quatro
categorias consideradas.
Antes de mais avançamos dois conceitos fundamentais para a
subdivisão proposta: “Os estativos podem, pois, ser classificados segundo dois
"vectores" principais, um de índole predominantemente temporal, que vai dar
origem à oposição entre estados de indivíduo e de "estádio", e outro de cariz
essencialmente aspectual, que vai conduzir à distinção entre estados
"faseáveis" e "não faseáveis".” (Cunha, 2004: 383)
Consideraremos, por conseguinte, uma divisão em dois grupos
organizados segundo dois critérios: por um lado a faseabilidade e por outro a
homogeneidade.
Cunha (1998a) defende a integração do critério de faseabilidade na
distinção
dos
estados, reportando-se
este
factor
à
possibilidade
de
determinado estado comportar na sua estrutura a presença de fases
sucessivas.
Através desta distinção vamos obter duas classes de estativos –
faseáveis e não faseáveis. Assim, os estados faseáveis partilham com os
eventos a possibilidade de se combinarem com traços denotadores de
dinamismo, ao contrário dos estados não faseáveis.
Por
outro
lado,
o
critério
da
homogeneidade
propicia
o
estabelecimento de outras duas categorias – estados de indivíduo e estados
de “estádio”.8
Quando o estado se predica directamente sobre um indivíduo ou
entidade, temos um estado de indivíduo, ao contrário do que acontece
quando somente é descrita uma “porção” temporalmente delimitada da
entidade, obtendo assim um estado de estádio.
Para além destas classes básicas de estados, existem depois as
derivadas, resultantes da acção de outros elementos, podendo originar
estados frequentativos, habituais, progressivos, frequentes, consequentes,
cessativos e continuativos.
Todas as classes aspectuais supracitadas se encontram profusamente
descritas em Cunha (2004) sendo apresentada, inclusivamente, uma bateria
de testes úteis para a sua distinção, tendo em conta critérios como a
(in)compatibilidade com marcas de agentividade, construções adverbiais,
formas progressivas, operadores aspectuais, entre outros.
No caso do nosso objecto de estudo, sendo um corpus constituído
unicamente por textos medievais (séculos XII, XIII e XIII/XIV), estes testes, ainda
que aplicados com as devidas cautelas, não seriam produtivos ou pelo menos
totalmente conclusivos, uma vez que não nos é possível manipular livremente
os exemplos, por falta de falantes a consultar. Assim, as normas por que nos
regeríamos seriam as do Português actual, não podendo nunca saber com
certeza se a aplicação dos testes obedeceria aos critérios correctos e,
consequentemente, se os resultados obtidos corresponderiam à realidade
linguística da época.
Terminada esta breve apresentação das categorias aspectuais básicas,
lembramos que qualquer situação pode ser alterada, dando origem a classes
derivadas, através de transições ocasionadas por derivações no núcleo
aspectual.
8
Adaptação da distinção entre “individual-level” e “stage level predicates” em Carlson (1977), cf. Cunha
(2004).
Para além do Tempo e Aspecto, existe uma outra categoria que se
institui como construtora da referência – a Modalidade.
I. 3. CATEGORIA MODALIDADE: CONSIDERAÇÕES GERAIS
A expressão da modalidade tem uma grande amplitude, na medida
em que é uma categoria transversal a todo o discurso e existem diversificadas
maneiras de expressá-la. A forma mais comum é através dos verbos modais,
mas pode também ser marcada através de elementos tão diversos como
advérbios, adjectivos, determinados afixos derivacionais e mesmo alguns
tempos verbais, como o Imperfeito, o Futuro e o Condicional.
Definida como “a gramaticalização de atitudes e opiniões dos
falantes”9, a modalidade expressa a atitude, expressão ou avaliação
subjectivas do sujeito em relação ao seu próprio enunciado.
Existem basicamente três tipos de modalidade, com as suas gradações
possíveis – a epistémica, a deôntica e a apreciativa.
A este estudo interessa exclusivamente a modalidade deôntica, que
expressa a intenção do locutor em agir sobre o seu interlocutor.
Esta modalidade pode exprimir fundamentalmente dois tipos de valores:
de obrigação, quando o locutor define e impõe uma única orientação, quer
manifeste um valor de imposição, quer de proibição; e de permissão quando
faculta ao seu interlocutor a possibilidade de escolha, manifestando assim um
valor de autorização.
Em todos os casos supracitados, pressupõe-se uma relação hierárquica
entre locutor e interlocutor, sendo que o primeiro é investido de um poder que
lhe confere a capacidade de decidir sobre as acções de outrem. Assim, o
locutor apresenta sempre um traço semântico agentivo, podendo este
manifestar-se mais ou menos forte, conforme a intensidade da causalidade
que provoca.
9
Mateus et al (2003: 245).
I. 4. INTERPRETAÇÃO TEMPORAL DOS INFINITIVOS
I. 4. 1. DESCRIÇÕES ACTUAIS
O Infinitivo não flexionado é, como poderemos constatar em seguida,
tradicionalmente encarado como uma forma neutra relativamente às
categorias gramaticais, ou seja, tempo, modo, aspecto, número e pessoa.
Segundo Câmara Jr. (1976: 102) o Infinitivo é “a forma mais indefinida do
verbo (...) a forma que de maneira mais ampla e mais vaga resume a sua
significação, sem implicações das noções gramaticais de tempo, aspecto e
modo.”
O termo infinitivo deriva do étimo latino infinitivus, isto é, (o modo) não
definido, que não tem contornos ou limites precisos. Partilhando esta
etimologia comum, observemos agora algumas descrições constantes em
gramáticas de referência para as Línguas Espanhola, Inglesa e Francesa,
concentrando particular atenção no que toca às propriedades de marcação
temporal do infinitivo:
Unlike finite verb phrases, non-finite verb phrases have no
tense distinction or imperative mood, and cannot occur in
construction with a subject of a main clause. (Alexander &
Close 1988: 75).
Los infinitivos constituyen, junto a los participios y los
gerundios, las formas no personales del verbo (tambiém
denominadas ‘no flexivas’ o ‘nominales’). Al igual que
estos, se oponen a las formas conjugadas del paradigma
verbal en que se hallan desprovistos de morfemas de
persona y de tiempo. Ello los inhabilita doblemente en el
plano sintáctico : por un lado, no pueden entablar
relaciones de concordancia con un sujeto; por otro, son
incapaces de expressar por sí mismos una referencia
temporal específica. (Bosque & Demonte 1999: 2201).
La grammaire traditionnelle présente l’infinitif
comme une forme verbale dépourvue des indices
gramaticaux qui marquent habituellement la personne, le
nombre et le temps, et qui, n’exprimant du procès que son
contenu conceptuel le plus général et ne possédant
aucune valeur modale particulière, ne peut s’inscrire dans
le temps chronologique que par référence au contexte.
(Le Galliot 1975: 57).
O ponto comum nestas descrições do Infinitivo em diversas línguas é o
facto de se considerar que este tempo não contém informação temporal. No
entanto, para além disto, ressalta ainda a concisão de todas estas descrições.
De facto, a dificuldade em encontrar uma descrição mais extensa do
que um mero parágrafo acerca do Infinitivo não flexionado, no que toca ao
seu valor temporal (ou, neste caso, à indeterminação do mesmo) é, por si só,
representativa da escassez de trabalhos que abordem a temática, relegando
o Infinitivo impessoal para o plano das formas nominais.
Esta assunção está tão vulgarizada, que verificamos o desaparecimento
progressivo deste tema das gramáticas tradicionais, como acontece numa
das gramáticas de referência para a língua portuguesa (Mateus et al.)10 em
que podemos observar o desaparecimento de um subcapítulo sobre a
localização temporal do infinitivo, gerúndio e particípio passado. Assim,
registava-se na segunda edição:
“O infinitivo, o particípio passado e o gerúndio são formas
morfologicamente ligadas ao verbo mas com funções
nominais, adjectivais e adverbiais que, sintacticamente,
ocorrem em regra em orações dependentes de uma
10
Cf. MATEUS et al (1989) e (2003).
oração finita. Não exprimem, em si mesmas, qualquer dos
tempos naturais, sendo a sua função de localização
temporal
subsidiária
da
da
oração
finita
de
que
dependem.” (Mateus et al. 1989: 84).
É com alguma surpresa que constatamos a presença de uma (ainda
que breve) descrição das possíveis leituras temporais das formas simples do
Infinitivo que, segundo aquela Gramática, se manifestam geralmente
simultâneas ou posteriores ao estado de coisas descrito na oração regente,
sendo ainda apresentados dois exemplos:
Vejo os miúdos a esconderem-se da polícia.
Eles decidiram ir à festa.
De estranhar é, pois, que este subcapítulo seja apagado de futuras
edições, manifestando desta forma uma perda de interesse quanto ao estudo
destas construções completivas infinitivas e, mais precisamente, o valor
temporal que desencadeiam.
I. 4. 2. DESCRIÇÕES DO PORTUGUÊS ANTIGO
A escassa literatura sobre o Infinitivo é por si só um indício da sua
complexidade e deixa entrever a dificuldade da interpretação temporal para
completivas infinitivas. Este panorama agrava-se ainda mais quando tentamos
reunir a literatura relativa ao Infinitivo no Português Arcaico e Medieval. De
facto, muito pouco ou nada tem sido produzido nesta área, tendo sido este
um dos factores decisivos na escolha do tema para o estudo aqui
apresentado.
Os escassos estudos existentes sobre esta época da Língua Portuguesa
debruçam-se principalmente sobre a morfologia verbal, realizando algumas
descrições de determinadas sequências verbais.
Senão, vejamos o que as obras de referência para o Português Antigo
nos dão a conhecer acerca do Infinitivo e do seu uso.
I. 4. 2. 1 Dias (1970)
Dias (1970) refere-se ao uso do Infinitivo, realizando a descrição dos
contextos em que esta forma verbal ocorre e qual a sua função sintáctica.
Identifica a forma verbal infinitiva das orações com a função de complemento
directo, seleccionado por verbos de percepção e causativos:
“Aos verbos deixar (ou leixar arch.), mandar, fazer (causar, arch.), liga-se
um simples infinitivo attribuido ao compl. directo d’aquelles verbos (...) A
mesma construcção tem os verbos ver, ouvir, sentir e (no port. arch.) achar”11.
Nada mais refere de relevante ao presente estudo.
I.4.2.2. Huber (1986)
A Gramática de Huber (1986), no que respeita a este assunto, centra as
suas atenções na elaboração de uma detalhada descrição da morfologia
11
Cf. DIAS (1970: 225-226).
verbal, sem descurar a evolução do Latim para o Português antigo, expondo o
que se manteve da Língua Latina e as alterações tanto a nível de novas
formas como de derivações que se registaram nesta passagem. Embora útil e
de valor acrescido por ter sido a primeira gramática descritiva do Português
antigo, diz pouco sobre o objecto do presente estudo, uma vez que, embora
contendo uma secção sobre o Infinitivo, a forma impessoal conta apenas com
uma descrição morfológica, enquanto que, sintacticamente, só o Infinitivo
pessoal
ou
flexionado
merece
referência.
No
entanto,
o
capítulo
imediatamente a seguir, sobre o gerúndio, conta com a descrição das
perífrases aspectuais em que ocorre esta forma verbal. Algumas perífrases de
Infinitivo são apresentadas ao longo da obra, enquanto faz a descrição dos
tempos com que ocorrem, sem se referir, no entanto, ao seu valor temporal ou
aspectual.
I.4.2.3. Mattos e Silva (1989) e (1993)
Apresentando-se como o mais completo estudo sobre a estrutura do
Português Antigo até à data, Mattos e Silva (1989) contribui de forma decisiva
para a descrição da Língua Portuguesa.
No capítulo dispensado ao valor dos morfemas verbais, Mattos e Silva
dedica uma secção ao estudo do Infinitivo. Nesta altura classifica o Infinitivo
como o modo genérico, que pode substituir tanto o modo Imperativo em
frases que expressam ordens ou instruções, como os modos Indicativo e
Conjuntivo no contexto de orações completivas e subordinadas adverbiais e
adjectivais.
Refere ainda a possibilidade de o Infinitivo ser usado como substantivo,
uma vez que expressa unicamente o conteúdo lexical do verbo. Considera
então que o “infinitivo, modo genérico, não apresenta as oposições temporais
(...) como as formas do modo indicativo e do subjuntivo; é, portanto, nãomarcado quanto ao tempo verbal.”12
12
Cf. MATTOS E SILVA (1989: 409).
É ainda realizada a enumeração dos verbos que subcategorizam uma
oração infinitiva, distinguindo depois entre aqueles em que esta oração figura
como complemento directo e os que a apresentam como sujeito, admitindo
que nestas construções não funcionam como verbos auxiliares. Na lista do
primeiro tipo de verbos figuram os causativos fazer, mandar, enviar e leixar e os
perceptivos ouvir e ver.
Numa tentativa de descrição das sequências verbais, Mattos e Silva
(1993) apresenta os dados registados quanto aos verbos que se associam às
formas nominais (Particípio Passado, Gerúndio e Infinitivo), tentando descrever
o seu comportamento sintáctico-semântico.
No que às sequências com um verbo na forma infinitiva diz respeito,
apresenta as perífrases verbais aver de e aver a + Infinitivo, como
estabelecedoras de uma obrigação ou necessidade. Indica ainda a
construção ir + Infinitivo como usada para expressar uma intenção projectada
no futuro.
Por fim, destaca a falta de consenso entre os diferentes autores que
abordam esta temática, relativamente ao conjunto de verbos que admitem a
completiva infinitiva. Propõe então que os verbos causativos, perceptivos,
aspectuais e modais possam figurar no leque daqueles que subcategorizam
subordinadas em que o verbo selecciona uma oração complemento na
forma infinitiva, regido ou não de preposição. Entre aqueles que importam ao
nosso estudo refere no elenco dos perceptivos os verbos ouvir e ver e, no dos
causativos, os verbos fazer, mandar, enviar e leixar.
O estudo da temporalidade em orações completivas infinitivas
subcategorizadas por verbos causativos e perceptivos revela-se ainda
incipiente no contexto do Português contemporâneo. Quanto ao Português
Medieval verificamos a total inexistência de qualquer tentativa de descrição.
Podemos atribuir esta falta de interesse à complexidade de uma análise deste
teor,
em
virtude
das
dificuldades
inerentes
a
um
estudo
baseado
exclusivamente em testemunhos escritos, enumeradas adiante em (III. 3.). O
nosso trabalho parte, portanto, do zero no que toca a descrições prévias
quanto ao Português Medieval, relativas às categorias que abordamos,
pretendendo ser uma contribuição que funcione como ponto de partida para
o estudo desta problemática.
I. 4. 3. PROPOSTA DE CUNHA & SILVANO (2006)
As descrições do Infinitivo em gramáticas tradicionais apontam para
que esta forma verbal seja totalmente privada de marcas de localização
temporal, predizendo que a mesma faculta apenas a indicação da acção
verbal propriamente dita (sem situá-la no tempo), encarada de um modo
geral, ou seja, como uma simples ideia, o processo verbal em si mesmo, de
modo abstracto ou virtual.
Recentemente, Cunha & Silvano (2006) apresentaram uma proposta
refutando a clássica assunção de que o Infinitivo, quando usado em orações
completivas, não comportaria qualquer informação temporal. Assim, tentam
demonstrar que este tempo apresenta marcas de temporalidade, em
particular de sobreposição ao Ponto de Perspectiva Temporal (TPpt)
seleccionado.
Para alcançar este propósito, analisam as construções em que o
Infinitivo é seleccionado por verbos cujas propriedades não influenciam o perfil
temporal das encaixadas que introduzem. É então apresentado um conjunto
de exemplos retirados de corpora do Português actual, em que diversos tipos
de eventualidades são introduzidas pelos verbos dizer e afirmar, apontados
como relativamente “neutros” quanto à marcação temporal das situações
com que se combinam.
Desta análise resulta a conclusão de que os estados, quer sejam básicos
ou derivados, manifestam uma leitura de sobreposição relativamente à
informação temporal do verbo presente na oração principal, enquanto que os
eventos
apresentados,
embora
não
resultem
agramaticais,
parecem
ocasionar anomalias semânticas.
Com o intuito de verificar se aquela distinção é de facto significativa no
contexto da marcação da localização temporal do Infinitivos, os autores
promovem através do Progressivo, a comutação das situações eventivas em
estativas. Deste teste resulta a conclusão de que a classe aspectual das
eventualidades é de suma importância quanto à marcação temporal das
situações, já que todos os exemplos anteriormente agramaticais enquanto
eventos, se manifestam agora aceitáveis depois de passarem a estados.
Cunha & Silvano justificam esta diferença registada quanto ao
comportamento de estados e eventos, através da hipótese sugerida por Kamp
& Reyle (1993). Esta proposta postula que os estados estabeleceriam uma
relação de sobreposição com o seu TPpt, ao passo que os eventos teriam que
ser incluídos neste intervalo de tempo. Esta explicação permite perceber que
os eventos anteriormente apresentados, não possuindo marcas de localização
temporal específica, não podem ser incluídos no seu Ponto de Perspectiva
Temporal, condição necessária à sua interpretação. Por sua vez, os estados
não necessitam de uma localização específica, já que, sendo eventualidades
alargadas, têm sempre a possibilidade de começar antes e estender a sua
duração para além dos limites da situação descrita pelo verbo regente.
Porém, se esta justificação parece explicar a anomalia semântica
patenteada nas primeiras situações apresentadas a análise, num conjunto
posterior de exemplos, os eventos regidos pelos mesmos verbos “neutros”
apresentam uma gramaticalidade que só poderá ser explicada se atribuirmos
marcas de temporalidade ao Infinitivo encaixado.
Partindo deste pressuposto e sabendo que os tempos finitos localizam as
eventualidades em relação a um determinado TPpt, enquanto que este TPpt
se localiza tendo em conta o tempo da enunciação, Cunha & Silvano
defendem que as formas de infinitivo se manifestam “defectivas em termos
temporais, fornecendo unicamente indicações respeitantes ao primeiro tipo
de relação mencionada.”13 Concomitantemente, não sendo o Infinitivo capaz
de estabelecer qualquer tipo de relação temporal com o ponto F (o tempo da
fala ou enunciação), a única forma de fornecer qualquer indicação temporal
será relativamente ao seu TPpt14 que, no contexto destas construções
coincidirá com o evento expresso pelo verbo regente.
No entanto, e para justificar as anomalias observadas anteriormente,
Cunha & Silvano destacam a obrigatoriedade de uma leitura composicional
13
14
Cf. CUNHA & SILVANO (2006: 306).
Ou ponto R, na terminologia de Reichenbach (1947).
das eventualidades, tendo sempre em consideração a interacção dos traços
aspectuais.
Da análise até aqui exposta, ressalta a hipótese de que o Infinitivo
Simples compreende em si mesmo algumas marcas de temporalidade, em
particular de sobreposição com o respectivo TPpt.
No entanto, são apresentados casos em que o Infinitivo Simples remete
para um intervalo posterior ou anterior ao tempo de localização descrito pelo
verbo da oração introdutora.
Nestes casos, os autores defendem o predomínio da influência das
características semânticas dos verbos introdutores, sobre a informação
temporal veiculada pelo Infinitivo.
São apresentados exemplos em que a Infinitiva é introduzida por
diferentes tipos de verbos, verificando-se que a informação semântica por eles
veiculada se sobrepõe à do Infinitivo. A presença de adverbiais temporais
pode
ainda
alterar
o
condicionamento
da
leitura
temporal
das
eventualidades.
Destacamos ainda neste estudo um outro ponto que nos interessa
particularmente, relacionado com a ambiguidade semântica do verbo
introdutor. Neste caso, é referida a possibilidade de o mesmo verbo introdutor
licenciar duas interpretações temporais distintas, consoante subordine orações
finitas ou infinitivas. A justificação apontada para tal comportamento reside no
facto de que as características semânticas do verbo regente mudariam
consoante o tipo aspectual do verbo presente na oração subordinada.
Por fim, Cunha & Silvano reafirmam a sua proposta de que as formas de
Infinitivo Simples comportam alguma informação temporal, em particular de
sobreposição com o TPpt fornecido pelo verbo regente. No entanto, para que
esta informação temporal se mostre “visível” ou “activa”, é necessário que os
verbos introdutores sejam relativamente “neutros” quanto à codificação deste
tipo de informação.
Emerge desta forma a necessidade de considerar diversos factores na
determinação temporal das orações completivas infinitivas, que requerem
uma leitura composicional da frase, tendo em conta não só o tipo semântico
do verbo introdutor, o tipo aspectual do verbo subcategorizado, o tipo de
predicado e ainda a presença de advérbios temporais.
CAPÍTULO II
METODOLOGIA
II. 1. CONSTITUIÇÃO DO CORPUS
A análise desenvolvida no presente estudo incidiu sobre dados extraídos
do corpus textual português dos séculos XII, XIII e XIII/XIV, do CIPM - Corpus
Informatizado do Português Medieval.
Abrangendo três séculos de produção escrita em Português, a
constituição do corpus em análise atendeu ao interesse em integrar textos de
diversos géneros literário- -discursivos, procurando vir a obter a maior
diversidade possível de relações predicativas, uma vez que, como sabemos,
tendo cada tipo de texto uma função específica e um público-alvo distinto, o
seu vocabulário e as suas construções são muito limitadas, em particular, nos
textos antigos.
Compreendendo tanto poesia, prosa literária como prosa não literária
e, contemplando textos tão díspares em termos de conteúdos, informação
linguística e construção estilística como são os notariais e as cantigas,
passando
por
textos hagiográficos, religiosos, didácticos,
narrativos e
testamentos, listamos em seguida os textos submetidos a análise por séculos,
apresentando a designação do texto e entre parênteses a sigla pela qual
serão referidos doravante:
Séc. XII:
- Diplomas Particulares (DP)
- Documentos Notariais (DN)
- Textos Notariais in Clíticos da História do Português (CHP)
Séc. XIII:
- Cantigas de Santa Maria (CSM)
- Cantigas de Amigo (CAmi)
- Cantigas de Amor (CAM)
- Cantigas de Escárnio e Maldizer (CEM)
- Chancelaria D. Afonso III (CA)
- Documentos Notariais (DN)
- Dos Costumes de Santarém (CS)
- Foro Real, Afonso X (FR)
- Foros de Garvão (FG)
- Notícia de Torto (NT)
- Tempos dos Preitos (TP)
- Testamento de D. Afonso II: Ms. L (TL)
- Testamento de D. Afonso II: Ms. T (TT)
- Textos Notariais do Arquivo de Textos do Português Antigo
(Oxford) (TOX)
- Textos Notariais in Clíticos da História do Português (CHP)
- Textos Notariais in História do Galego-Português (HGP)
Séc. XIII/XIV:
- Cantigas de Escárnio e Maldizer (CEM)
- Vidas de Santos de um Manuscrito Alcobacence (VS)
II. 2. METODOLOGIA DE EXTRACÇÃO E TRATAMENTO DE
DADOS
Uma vez que os textos seleccionados já reuniam as condições para ser
trabalhados conjuntamente, ou seja, todo o tratamento a nível de anotações
e comentários com o intuito de obedecerem aos mesmos critérios editoriais
estava concluído, foi possível desempenhar as tarefas basilares para este tipo
de projectos.
Assim, a primeira etapa consistiu em agrupar estes textos e proceder à
elaboração de listagens das palavras e de concordâncias das mesmas. A
concordância é um mecanismo que consiste em, perante um corpus textual,
extrair automaticamente os contextos à esquerda e à direita, com uma
extensão previamente definida e por ordem alfabética, de todas as palavras
presentes no corpus, permitindo assim um acesso mais facilitado aos textos,
bem como a possibilidade de um estudo comparativo dos lexemas.
Após a tarefa supracitada, foi então possível proceder à lematização
dos verbos seleccionados, atestados no corpus textual deste estudo. A
lematização dos verbos consistiu na identificação (de forma manual) de todas
as formas verbais, incluindo as respectivas variantes gráficas, e no seu
consequente agrupamento sob a cabeça ou vedeta de cada verbo, de
forma a identificar mais facilmente o lexema em apreço.
Para tal, foi necessário, em primeiro lugar, realizar uma limpeza geral
das listagens, permanecendo somente as formas pertencentes aos cinco
verbos em estudo, o que implicou um tratamento integral das listagens, uma
vez que a eliminação de todas as formas dos outros lexemas só é possível após
a sua verificação individual. Este trabalho moroso e necessariamente
meticuloso permitiu seleccionar as formas verbais relevantes para este estudo
e agrupar as variantes gráficas, o que facilitou o trabalho posterior de análise
das construções por elas subordinadas.
Todavia, o tratamento do corpus não terminou por aqui, uma vez que
nas lematizações permanecia ainda a totalidade das ocorrências das formas
verbais referentes aos verbos causativos e perceptivos em análise, não
havendo ainda lugar para uma distinção das construções em que ocorrem.
Esta foi a etapa seguinte, um trabalho também necessariamente demorado
em virtude da complexidade e minuciosidade que acarreta a análise
individual de todas as ocorrências para um levantamento exaustivo, devido à
extensão do corpus seleccionado – um total de 46 444 palavras em 581 017
ocorrências distribuídas por séculos como infracitado:
Século XII
-
Século XIII
-
692 palavras em
1 994 ocorrências;
38 223 palavras em 542 063 ocorrências;
Séculos XIII/XIV - 7 529 palavras em
36 960 ocorrências;
À execução de tal tarefa acresce ainda uma dificuldade adicional,
atendendo ao facto de que todo este trabalho de selecção de abonações é
efectuado de forma manual, sendo os excertos retirados das concordâncias,
obedecendo a dois requisitos fundamentais – os excertos têm de ser frases
completas e com uma extensão razoável, de modo a que o contexto seja
perceptível.
As abonações são precedidas da informação da data de produção do
texto ou, no caso desta ser desconhecida, da informação possível que poderá
ser um intervalo de datas ou somente o século e em seguida é colocada a
sigla referente à edição e o número do texto, nos casos em que este se
encontra
subdividido.
Toda
esta
informação
será
apresentada
entre
parênteses rectos, conforme exemplificado em seguida:
[1264-1284 CSM053]
Na apresentação dos excertos, adoptámos uma sinalética reduzida,
que passamos no entanto a descrever:
(...) Corte na citação
/ Marca de verso
// Marca de estrofe
Negrito Marca para as construções em estudo
II. 3. OUTRAS CONSIDERAÇÕES
O maior obstáculo com que nos deparamos neste tipo de estudos é
sem dúvida de natureza temporal, com todas as implicações e dificuldades
que uma análise desta ordem acarreta. Uma distância temporal que chega a
totalizar nove séculos levanta problemas de diversas ordens, que passamos a
enunciar:
i.
A documentação escrita, ainda que escassa, constitui-se como o
único testemunho remanescente de um sistema linguístico que,
como sabemos, não é um retrato fiel da coloquialidade dos
falantes da época, mas tão somente a sua representação, tendo
em conta a finalidade de cada texto, estando aqui em causa a
representatividade
deste
corpus
relativamente
ao
sistema
linguístico da época;
ii.
Tendo em conta a inexistência de falantes, a impossibilidade de
testar as produções escritas inviabiliza qualquer
juízo de
gramaticalidade;
iii.
A inexistência de uma norma ortográfica e gramatical única
para a altura dificulta a leitura e a análise das predicações,
considerando a variação registada;
iv.
A multiplicidade de autores, tradutores e copistas, bem como a
existência de cópias tardias e ainda as limitações inerentes aos
esquemas métrico e rimático no caso das cantigas, provocam
consequências de ordem prática, tais como a mistura dialectal,
os erros de escrita (erros humanos do escriba), a hipercorrecção,
a supressão ou introdução de vocábulos e ainda trocas na
ordem de palavras.
Equacionados todos estes factores, afigura-se-nos problemática uma
sistematização ou generalização de regularidades para este período, pelo
que nos remetemos única e exclusivamente à observação dos dados do
corpus constituído para este estudo, de forma que ressaltamos que todas as
conclusões advindas deste trabalho se referem estritamente àquilo que nos foi
dado observar através da análise que a seguir se apresenta.
CAPÍTULO III
ANÁLISE DO VALOR TEMPORAL DAS INFINITIVAS
SUBCATEGORIZADAS POR VERBOS
PERCEPTIVOS E CAUSATIVOS
Tendo em conta os resultados obtidos pela investigação de Cunha &
Silvano (2006), pretendemos averiguar quais as relações temporais que
determinadas construções com orações completivas de tipo infinitivo
estabelecem com o seu TPpt, num corpus dos séculos XII, XIII e XIII/XIV. Mais
especificamente, examinámos os mecanismos linguísticos que possibilitam a
determinação da localização temporal da situação descrita pelas orações
completivas infinitas relativamente ao estado de coisas descrito na oração de
que dependem. O nosso objectivo passa, portanto, por descrever o que
ocorre neste corpus relativo a um período específico da Língua Portuguesa
(não podendo nunca afirmar que será representativo do que aconteceria na
oralidade), quando o Infinitivo é seleccionado por dois conjuntos de verbos
com características semânticas diferentes – verbos perceptivos (ouvir e ver) e
verbos causativos (fazer, leixar e mandar). Evidentemente conscientes de que
os verbos da matriz, pertencendo a duas classes cujas informações semânticas
condicionam necessariamente a interpretação temporal das eventualidades
por eles subcategorizadas, pretendemos averiguar precisamente de que
forma essa leitura temporal é licenciada.
Consideramos, como Cunha & Silvano (2006) que o Infinitivo é defectivo
em termos de localização temporal, pretendendo a nossa análise descrever
precisamente quais as relações temporais estabelecidas entre a forma
infinitiva da completiva e o seu TPpt, que no caso do presente estudo, será um
dos verbos perceptivos ou causativos seleccionados.
Neste capítulo pretendemos analisar individualmente cada um dos
cincos verbos seleccionados, fazendo depois, no final da descrição de cada
tipo de verbos, uma conclusão em que apresentamos um estudo comparativo
dos verbos da mesma categoria.
Ao contrário daquilo que acontece com os verbos denominados
causativos, com os perceptivos não ocorre a manipulação do referente-sujeito
da completiva por parte do referente-sujeito da matriz. No que aos verbos
perceptivos diz respeito, restringimos a nossa investigação àqueles que, em
orações complexas, seleccionam complementos oracionais que indicam algo
que resultou da percepção sensorial ou intelectual do referente-sujeito da
matriz – neste caso, seleccionámos os verbos ver e ouvir.
Verbos causativos são aqueles que expressam uma relação de
causalidade entre dois eventos, o primeiro é provocado por um sujeito
causador, que actua sobre o causado do evento subordinado. Esta relação
de causatividade entre o causador da matriz e o causado da encaixada
pode ser de várias ordens, manifestando-se essa distinção relevante para a
análise que desenvolvemos.
No presente estudo, limitámos a nossa análise aos verbos causativos
mandar, fazer e leixar (que deu origem ao contemporâneo deixar) presentes
na oração principal, que implicam os eventos descritos na completiva.
Do conjunto de todos os verbos perceptivos e causativos, a razão para
restringir o presente estudo aos verbos mandar, fazer e leixar, por um lado, e
ver e ouvir, por outro, prende-se com o facto destes verbos serem os mais
frequentes no corpus proposto, sendo que a ocorrência de outros, tais como
sentir, enviar e causar não é significativa, o que tornaria a sua análise
inconsistente.
III. 1.
VERBOS PERCEPTIVOS
III. 1. 1.
VERBO VER
O verbo perceptivo ver apresenta um total de 3196 ocorrências no
corpus dos séculos XII, XIII e XIII/XIV, sendo que 452 delas têm como
complemento uma oração infinitiva.
Pudemos apurar através do levantamento destas construções que o
verbo ver ocorre nos seguintes tempos verbais: Presente do Indicativo, Pretérito
Perfeito do Indicativo, Pretérito Imperfeito do Indicativo, Pretérito Mais-QuePerfeito do Indicativo, Futuro do Indicativo, Condicional, Presente do
Conjuntivo, Pretérito Imperfeito do Conjuntivo, Futuro do Conjuntivo e Infinitivo.
Não se registam, no entanto, construções com Imperativo e Gerúndio.
É curioso verificar numa perspectiva comparativa que, no DGVP15, a
construção em que o verbo ver subordina uma completiva infinitiva como
complemento directo tem apenas uma leitura, que seria neste caso “concluir”:
“Concluir”
[GN[Suj] V F NãoFinita [C. dir.]]
O polícia viu ter sido ela a instigadora do crime.
No entanto, ao atentarmos na descrição do Português Medieval16,
observamos a existência de uma maior diversidade de significações para esta
construção:
15
Cf. CASTELEIRO (2007), pp. 775.
“Ver, observar, verificar”
alguém vê fazer/acontecer
[ — Vinf ]
[1280 FR] ou se o matar accurr do a seu senhor que
ueya
matar ou que queyrã matar
Sabendo que os verbos perceptivos são predicados binários que
seleccionam um argumento experienciador e um argumento proposição e,
tendo em consideração esse papel passivo do sujeito, partimos do pressuposto
de que o estado de coisas percebido, expresso pela infinitiva, terá sempre
uma interpretação de sobreposição temporal em relação à eventualidade
presente na oração principal, independentemente do tipo de situação
representado na oração encaixada.
Vejamos então se esta assunção se comprova no corpus:
(1) [séc.13/14 VS6] Quando Esmarado tam fortemente vio chorar Panunçio
e que nom rreçebia cõforto nehũũ. disse-lhe: - por que te contorvas por que
te matas per ventura he fraca ou he cara cousa de fazer a Deos qual quer
cousa leixa ja a tristeza
(2) [1264-1284 CSM426] Pois est' ouve dito, nas nuves subiu, / e a gent' aos
ceos subi-lo viu, / que a voz dos angeos logo oyu / que lles diss' assi:
"Varões galileus, / Subiu ao ceo o Fillo de Deus ... / Ena maneira que o
veedes dacá / subir ao ceo, ben assi verrá / joyga-lo mund' e os mortos fará
/ resurgir, que non creen os fariseus."
16
Cf. DVPM.
(3) [séc.13/14 VS5] E de hũu cabo do mõte ao outro estava por ponte hua
tavoa ẽ que avya cinquo mil passadas em longo e hũu pee em ancho. Polla
qual nõ podya nẽhũu passar que nõ ouvesse de cayr ẽ fundo. salvo o que
fosse muito escolheito e muy boo. E vyo muitas almas cayr em fundo.
(4) [séc.13/14 VS7] Quando o santo homẽ ouvio estas palavras foy mui
espantado e mui torvado porque sse vyo chamar per sseu nome quem o
nunca vira nẽ houvira sse lhe nõ ffosse demostrado per Nosso Ssenhor
A observação dos dados parece atestar a suposição acima, uma vez
que, apesar dos diferentes perfis aspectuais das situações apresentadas
(respectivamente processo, processo culminado, culminação e ponto), todas elas
manifestam uma interpretação de sobreposição relativamente àquelas
descritas na oração matriz.
Contudo,
existem
outras
situações
que
parecem
contradizer
a
generalização avançada:
(5) [séc. 13 CEM363] Todos dizem que Deus nunca pecou, / mais
mortalmente o vej’eu pecar: / ca lhe vej’eu muitos desemparar / seus
vassalos, que mui caro comprou; / ca os leixa morrer com grand’amor,
/ desemparados de bem de senhor / e já com’estes mim desemparou.
Apesar de não ocasionar qualquer anomalia semântica, (isto, tendo em conta a nossa
competência linguística para o Português contemporâneo) a leitura já não é a mesma dos
exemplos anteriores, em que existe uma clara sobreposição entre a acção do sujeito
experienciador e o evento percebido da encaixada. Como explicar então a leitura de não
sobreposição em (5)?
Os processos que figuram na subordinada, sendo subcategorizados por uma forma do
Presente do Indicativo ganham uma extensão suficientemente longa, não delimitada e
homogénea para ocorrer uma comutação para estado habitual. Logo, a ausência tanto de uma
culminação como do seu respectivo estado consequente inviabiliza a leitura de sobreposição
verificada nos casos anteriores, permitindo desta feita estabelecer assim uma relação de não
sobreposição com a frase matriz com que co--ocorre.
Parece ser, então, a acção do Presente do Indicativo que actua como estativizador e
confere a leitura habitual, que permite a interpretação de não sobreposição das orações.
Consideremos então o verbo perceptivo no Presente do Indicativo:
(6) [1264-1284 CSM261] E os outros que oydes leer / loando a Deus e
aposto cantar, / angeos son que o sempre veer / poden; e aqueles dous
que chegar / veedes, Jhesu-Cristo sen dultar / ést' e sa Madre, onde foi
nacer."
Se
atentarmos
em
(6),
a
culminação
é
interpretada
como
temporalmente sobreposta à eventualidade expressa na oração matriz. Dado
que as infinitivas em (5) e (6) contemplam classes aspectuais diferentes
podemos questionar se este não será um indício de que o tipo semântico do
verbo da completiva influencia a sua interpretação temporal relativamente à
situação descrita pelo verbo da oração principal.
Obrigará o carácter pontual da completiva infinitiva a uma leitura de
sobreposição (ou mais concretamente, de inclusão), enquanto que o estado
habitual, prolongando-se no tempo e podendo extrapolar os limites temporais
do seu Tempo de Localização, rejeitará (ou pelo menos não implicará) esta
interpretação?
(7) [séc.13/14 VS7] E cada huũ delles tomava sua rregra propria em ssua
vida. a qual nom mudava e nom ssabia parte huũ do houtro como vivia
nẽ que hobrava e partian-sse cada huũ a ssua parte pella rribeyra do
rriio de Jordam e ally moravam em o deserto apartadamente que nunca
sse ajuntavam em toda a quareesma E sse acontiçia que alguũ delles
visse viír o houtro a lõge de ssy logo leixava aquella carreyra per que
viinha e hia per outra carreyra soo cantando e dando graças a Nosso
Ssenhor
Retomando ainda o exemplo (2) e investigando o exemplo (7), aferimos
que não depende da duratividade da situação a sua leitura de sobreposição
relativamente ao estado de coisas descrito na oração regente, uma vez que
os processos culminados apresentam a mesma interpretação temporal que a
culminação em (6). De notar é ainda a alternância do Presente do Indicativo
com o Pretérito Imperfeito do Conjuntivo, o que demonstra que o tempo
verbal não é decisivo para uma leitura de sobreposição.
Neste ponto, tudo indica que será crucial a diferença aspectual entre
situações estativas e eventivas para a interpretação temporal destas orações.
Propomos como hipótese, portanto, que os outros estados manifestem o
mesmo comportamento de não sobreposição patente em (6).
(8) [séc.13/14 VS7] Aquelle homem a que eu preguntava a que logar hia
aquela conpanha quando ouvio as pallavras torpes que eu dizia sorriosse E eu fui-me mui toste ao mar e vy emtom dez homẽes mançebos
estar na rribeira do mar jogando e ffazendo cousas de vaidade de
mãçebia e aguardavã os sseus conpanheiros que andavã ẽ os navios ca
muitos estavom ja no navio
Desta feita o estado de estádio licencia claramente uma leitura de
sobreposição relativamente à eventualidade da oração matriz. Cai assim por
terra a nossa hipótese de que seria o carácter estativo das situações
subcategorizadas a conferir a interpretação de sobreposição temporal quanto
ao evento da oração regente.
Recapitulando, a diferença entre as leituras de sobreposição e não
sobreposição temporal entre as orações com o perceptivo ver e as respectivas
orações completivas infinitivas não depende de nenhuma das seguintes
contingências:
i.
O tempo verbal em que ocorre a oração principal;
ii.
O tipo semântico do verbo da completiva, podendo esta distinção
ter em conta um de dois factores:
a.
Alternância entre eventualidades pontuais e eventualidades
durativas;
b.
Alternância entre eventos e estados.
Observemos então outros exemplos que ilustrem este valor de não
sobreposição:
(9) [séc. 13 CAM282] E ja eu non posso chorar, / ca ja chorand'
ensandecí, / e faz-mh-amor andar assí / como me veedes andar: /
catando per cada logar, / assí and' eu, assí and' eu, / assí and' eu, assí
and' eu.
(10) [séc. 13 CAmi425] Par Deus, amigo, non sei eu que é, / mais muit’ á
ja que vos vejo partir / de trobar por mi e de me servir, / mais ũa
destas é, per bõa fe: / ou é per mi, que vos non faço ben, / ou é sinal de
morte que vos ven
(11) [séc. 13 CAM386] E muytus vej' a Deus rogar / que lhe-la mostre
ou que lhis dê / mort', e juran per bôa fe / que esta coyta non á par: /
non a veer; ca ja quit' é, / hu a non vir, d' en al cuydar / nen de pagarsse d' outra ren.
(12) [séc. 13 CAM291] "Senhor, veedes-me morrer / desejando o vosso
ben, / e vós non dades por en ren, / nen vos queredes en doer!" / "Meu
amigu', en quant' eu viver, / nunca vos eu farey amor / per que faça o
meu peyor."
Podemos observar que, em todos os casos anteriores (de (9) a (13)), tal como
em (5) não existe uma relação temporal marcada entre as duas eventualidades, uma vez que o
verbo ver não expressa neste caso uma percepção sensorial, parafraseável pela expressão
“perceber pela visão, enxergar” e por isso passível de ser confirmada ou rejeitada por outro
sujeito quando exposto à mesma situação. Pelo contrário, a percepção manifestada parece ser de
outro tipo oposto ao sensitivo – uma percepção intelectual (ou racional) exclusiva ao sujeito por
ser subjectiva, correspondente a “tomar conhecimento, dar-se conta, perceber, sentir”. O mesmo
será dizer que o experienciador, de forma intuitiva e devido à observação de alguns casos, se
apercebe de um padrão, facto que o leva a estender os resultados da repetição de uma dada
situação, retirando daí uma conclusão generalizadora. A situação representada na oração
completiva é sempre alargada, apresentando-se muitas das vezes como um estado de coisas
iniciado no passado, que se vai repetindo (ou estendendo) ao longo do tempo, e que embora o
experienciador não presencie na íntegra, apercebe-se da sua extensão através da observação
(ainda que não contínua) de diferentes “etapas” da situação em curso, ao longo do tempo.
Concluímos então que os estados de coisas que figuram nas infinitivas complementos
do verbo perceptivo ver podem ter duas interpretações temporais relativamente aos estados de
coisas representados na oração principal: sobreposição ou não sobreposição.
Estas duas possibilidades quanto ao estatuto temporal das completivas infinitivas
oscilarão, não devido ao tipo de eventualidade representada na oração encaixada, mas pelo
contrário, decorrentes da ambiguidade semântica do verbo introdutor.
III. 1. 2.
VERBO OUVIR
O verbo ouvir conta com 136 construções em que subcategoriza
orações infinitivas, entre um total de 886 ocorrências no corpus dos séculos XII,
XIII e XIII/XIV.
A análise individual destas construções revelou a ocorrência do verbo
perceptivo nos seguintes tempos: Presente do Indicativo, Pretérito Perfeito do
Indicativo, Pretérito Mais-Que-Perfeito do Indicativo, Futuro do Indicativo,
Presente do Conjuntivo, Pretérito Imperfeito do Conjuntivo e Infinitivo. Não se
verificou a existência desta construção com Pretérito Imperfeito do Indicativo,
Condicional, Imperativo, Futuro do Conjuntivo e Gerúndio.
No DGVP
17,
a descrição deste verbo no que toca a esta construção,
em que o seu objecto directo é uma oração infinitiva, aponta apenas um
significado para este verbo, nomeadamente “ter percepção dos sons”:
“Ter percepção dos sons”
[GN[Suj] V F NãoFinita [C. dir.]]
A mãe não quer ouvir falar do acampamento.
No âmbito desta construção, o verbo teria precisamente esta mesma
leitura no Português Medieval, a única descrita no DVPM:
“Ouvir”
17
Cf. CASTELEIRO (2007), pp. 585-586.
alguém ouve fazer
[ — Vinf ]
[1260 CHP031] Conuzuda. cousa. seia. a todos. aqueles. que. este.
prazo uirẽ. e léér. ouuirẽ
Tendo como base as descrições referidas acima, contando com a
vantagem de serem confluentes numa única interpretação semântica, a
nossa proposta inicial terá que apontar para uma leitura de sobreposição
entre o tempo da percepção e a situação percebida. Esta hipótese é ainda
reforçada pela ideia de que, sendo um verbo de dois lugares, ouvir apresenta
um experienciador como argumento externo e uma proposição como
argumento interno, o que implicará a sobreposição dos dois estados de coisas,
como condição necessária para que ocorra a percepção.
Atentemos nos seguintes exemplos retirados do corpus segundo a
necessidade de fazer representar diversas classes de eventualidades:
(1) [séc. 13 CAM038] Oí og' eu ûa pastor cantar / du cavalgaba per ûa
ribeira, / e a pastor estava senlleira; / e ascondi-me pola escuitar, / e dizia
mui ben este cantar: / "Solo ramo verd' e frolido / vodas fazen a meu
amigo; / ¡choran ollos d' amor!"
(2) [1278 HGP025] Garsia Domĩguez d’Oleiros, filo de Sancha Paiz, testis, &
outros muytos que o uirõ e o oyron fazer esta carta
(3) [séc. 13 CAM383] Senhor fremosa, oy eu dizer / que vus levaron d' u
vus eu leixei / e d' u os meus olhos de vós quytey: / aquel dia fora ben de
morrer / eu, e non vira atan gran pesar / qual mi Deus quis de vós amostrar.
(4) [séc. 13 CAmi201] E a pastor parecia mui ben / e chorava e estava
cantando / e eu mui passo fui mi achegando / pola oír e sol non falei ren / e
dizia este cantar mui ben: / “Ai estorninho do avelanedo, / cantades vós e
moir’ eu e peno / e d’ amores ei mal” // E eu oí a sospirar enton / e
queixava se estando con amores
De facto, tanto processos, como processos culminados, bem como
culminações e pontos sugerem a interpretação da completiva como
sobreposta à oração matriz.
Apesar desta aparente regularidade, no decurso da análise individual
de todas as relações predicativas entre o perceptivo ouvir e a completiva
infinitiva subcategorizada, notamos um desvio em determinados casos, em
que a leitura parece deixar de ser a de sobreposição:
(5) [séc. 13 CEM320] Eu, em Toledo, sempr’ouço dizer / que mui maa vila
de pescad’é; / mais nõn’o creo, per bõa fé, / ca mi fui eu a verdad’en saber:
/ ca, noutro dia, quand’eu entrei i, / bem vos juro que de mi / ia vista vi / a
Peixota su um leito jazer.
Em (5), o advérbio sempre marca desde logo uma leitura habitual, o
que provoca de imediato a alteração do perfil aspectual da eventualidade
expressa por dizer, que passa assim de culminação a estado habitual. Neste
caso, parece ser do conhecimento comum que em Toledo não haveria bom
peixe, facto repetido frequentemente ao longo do tempo.
A situação representada por “ouço” relativamente ao estado de coisas
expresso por “dizer que mui maa vila de pescad’é”, parece ser experienciada ao
longo do tempo, várias vezes, embora não se verifique todas as vezes que a
situação da encaixada ocorre. Logo, não se verifica a sobreposição dos
estados de coisas, uma vez que não há uma observação directa, mas sim
uma relação que referiremos doravante como uma relação de não
sobreposição.
Concluímos então que será a acção do advérbio sempre a responsável
por modificar a significação da predicação, atribuindo habitualidade ao
estado de coisas descrito pelo Presente do Indicativo. Devemos, contudo,
confirmar se a presença do advérbio é necessária para que a leitura habitual
ocorra:
(6) [séc. 13 CAM148] O ouç' eu dizer hûu verv' aguysado: / que bem e mal
sempre na face vem; / e verdad' é, per com' end' a my avem / d' hûa dona,
hu tod' est' ey osmado, / ca de quanto bem na sa face vy / vem end',
amigos, tanto mal a mim, / per que o verv' em meu dan' é provado. (...) E
des entom, amigos, entendi / que este vervo, que eu senpr' ouvi, / hé com
verdad' em meu dan' acabado.
Embora à primeira vista possamos atribuir à situação em (6) o valor de
sobreposição, verificamos através do contexto que, pelo contrário, esta
predicação apresenta um valor temporal em tudo semelhante a (5). De facto
a eventualidade descrita em “dizer hûu verv' aguysado” apresenta-se como um
provérbio característico do discurso de alguém, pela frequência com que é
proferido.
Verificamos assim que a presença do advérbio sempre não é
obrigatória para que ocorra a leitura de não sobreposição.
Neste ponto podemos questionar a relevância do tempo verbal da
oração
matriz
para
a
atribuição
desta
interpretação
temporal
da
eventualidade da encaixada, dado que uma das possíveis leituras do Presente
do
Indicativo
quando
subcategoriza
eventos
é
precisamente
a
de
habitualidade, comutando desta feita a situação eventiva em estativa.
Seria por isso interessante verificar se esta interpretação ocorre com
mais algum tempo verbal:
(7) [séc. 13 CEM155] Maior Garcia sempr’oiu dizer / por quem quer que se
podesse guisar / de sa mort’e se bem maenfestar, / que nom podia perdudo
seer; / e ela diz, por se de mal partir, / que, enquant’houver per que o
comprir, / que nom quer já sem clérigo viver.
(8) [séc. 13 CAmi244] Por que oí sempre dizer, du ome muit’ amou molher,
/ que se non podia end’ ir, pesar mh á, se eu non souber: / se mi vós
queredes gran ben, como podedes ir daquen?
(9) [séc. 13 CEM132] Pero d’Ambroa, sempr’oí cantar / que nunca vós
andastes sobr’o mar / que med’houvéssedes, nulha sazom; / e que havedes
tam gram coraçom, / que tanto dades que bom tempo faça / bem como mao
nem como bõaça / nem dades rem por tormenta do mar.
Em primeiro lugar, podemos concluir que o Presente do Indicativo não detém o
exclusivo, no que toca à leitura de não sobreposição quanto à eventualidade da oração
subcategorizada. Em (7)-(9) obtemos esta mesma interpretação com o Pretérito Perfeito do
Indicativo, podendo no entanto atribuir esta leitura à influência do advérbio sempre, que se
manifesta em ambos os casos.
Para confirmar esta suposição, resta-nos observar o que acontece com
frases em que o Pretérito Perfeito do Indicativo não sofre a interferência do advérbio
sempre:
(10) [séc. 13 CEM028] E ar oí-vos eu dizer que a quem quer que chagassem /
com estas vossas espadas que nunca se trabalhassem / jamais de o
guarecerem, se o bem nom agulhassem.
(11) [séc. 13 CEM138] Meu senhor Rei de Castela, / venho-me vos querelar: /
eu amei ũa donzela, / por que m’ouvistes trobar; / e com quem se foi
casar, / por quant’eu dela bem dixi, / quer-m’ora por en matar.
(12)
[1264-1284 CSM079] O padre e a madre, quand' aquesto viron, /
preguntaron Musa; e poys que ll' oyron / contar o que vira, merçee
pediron / á que nos manten.
Verificamos que nestes casos em que o perceptivo ouvir comparece no
Pretérito Perfeito a interpretação da eventualidade expressa na completiva
pela forma infinitiva é de sobreposição, tal como é comum neste tipo de
predicações.
Assim, concluímos através da análise contrastiva entre (7)-(9) e (10)-(12)
que, enquanto que com o advérbio sempre o Pretérito Perfeito ocasiona uma
leitura de não sobreposição, pelo contrário, quando o advérbio não ocorre a
leitura é a regular para este tipo de predicações que têm como regente o
verbo perceptivo ouvir, isto é, ocasiona uma interpretação temporal de
sobreposição relativamente à eventualidade da subordinada.
Recapitulando, os estados de coisas que figuram na subordinada
infinitiva podem ter dois tipos de interpretação temporal relativamente à
eventualidade da matriz: sobreposição na maior parte dos casos, e não
sobreposição verificada no corpus com dois tempos verbais distintos, o
Presente do Indicativo e o Pretérito Perfeito do Indicativo. No primeiro caso, o
Presente parece licenciar por si só uma leitura habitual quando a situação na
oração subcategorizada é pontual e se verifica repetidamente ao longo do
tempo (informação atribuída pelo contexto). Por outro lado, quando o
advérbio sempre opera sobre um estado de coisas que figura no Presente, é a
sua presença que determina de imediato a comutação para um estado
habitual. No segundo caso, também o Pretérito Perfeito do Indicativo pode
originar uma leitura habitual, precisando no entanto do advérbio sempre para
sugerir esta leitura de uma situação que se desenvolve ao longo do tempo, de
modo repetido.
Parece-nos, por tudo o que foi observado, que a distinção entre as
leituras de sobreposição e não sobreposição possíveis para o perceptivo ouvir
decorrem
sobretudo
das
características
semânticas
da
situação
subcategorizada, mais concretamente do seu carácter habitual ou repetitivo
ao longo do tempo. É da observação desse estado de coisas, não na
totalidade das suas ocorrências, mas sim pontualmente, que o experienciador
retira a generalização descrita pela oração infinitiva.
III. 2.
CONCLUSÕES PARCIAIS – VERBOS PERCEPTIVOS
Quando partimos para a análise de cada um dos verbos que
constituem a classe dos perceptivos, a nossa intuição apontava para que, em
todo e qualquer contexto, a situação descrita na oração complemento tivesse
uma interpretação de sobreposição relativamente à eventualidade patente
na oração principal.
Ao considerar que isto ocorreria em todo e qualquer contexto,
desvalorizamos a acção de quaisquer diferenças decorrentes do tipo de
situação subcategorizada, da sua classificação aspectual e do tempo verbal
da oração matriz.
Esta tese procede do facto de que, independentemente de todas as
constrições acima, a percepção deriva da existência de dois estados de
coisas: o da percepção e o percebido. A relação entre estas duas
eventualidades teria de resultar, quanto a nós, do contacto directo (através
da visão ou da audição) entre o argumento externo do verbo perceptivo e a
acção expressa pelo infinitivo. É precisamente neste ponto que a nossa
dedução falha, descurando a existência de um outro tipo de percepção que
não necessita de contacto directo para que se verifique – uma percepção de
tipo intelectual.
Ambos
os
verbos
perceptivos
analisados
admitem
estas
duas
interpretações (sobreposição e não sobreposição) quanto à localização
temporal das subordinadas com que se combinam. Podemos considerar que,
tanto ver como ouvir, seleccionam uma leitura básica, que será de
sobreposição, quando a percepção é directa. Por outras palavras, quando se
trata
de
uma
percepção
sensorial,
essa
impressão
só
poderá
ser
experimentada ao mesmo tempo que ocorre a eventualidade expressa na
encaixada e nunca antes ou depois. Assim, quando alguém diz que viu outrem
chorar, a situação descrita pelo perceptivo ver só pode ocorrer ao mesmo
tempo que a acção expressa por chorar decorre; o mesmo se passa com
ouvir
suspirar,
que
não
admite
interpretações
de
anterioridade
ou
posterioridade, parafraseáveis por expressões como “ouvir suspirar meia hora
antes de ter suspirado” ou então “ouvir suspirar depois de suspirar”. A presença
do experienciador no momento em que ocorre a situação percepcionada é,
pois, condição essencial para que a percepção ocorra.
Falamos em leitura básica para referir a interpretação de sobreposição,
uma vez que, oposta a esta interpretação do verbo de percepção, que
resulta do contacto directo entre o experienciador da percepção e aquilo
que é percebido, ocorre no corpus uma outra, que poderemos considerar
indirecta.
Consideramos indirecta esta leitura uma vez que a percepção apreendida não passa por
uma sensação física, mas sim por uma experiência intelectual parafraseável por “chegar a
determinada conclusão” ou “perceber, sentir”.
As eventualidades que desencadeiam esta leitura descrevem o estado
de
coisas
percebido
como
uma
acção
durativa,
contínua,
em
desenvolvimento ou incompleta, ou, melhor dizendo, uma acção de carácter
habitual ou frequentativo, que vai acontecendo ao longo do tempo, e à qual
o experienciador não assiste na totalidade, não estando presente em todos os
momentos em que a situação se verifica, mas da qual toma conhecimento
esporádico.
Nestes casos não é estabelecida uma relação temporal marcada entre
o momento da percepção e a eventualidade percepcionada. Assim, e
devido à leitura de habitualidade ou frequentatividade dos estados de coisas
subcategorizados (que nunca poderiam ser considerados como anteriores ou
posteriores à percepção) consideramos a relação que se estabelece entre as
duas eventualidades como de não sobreposição, por oposição à leitura de
sobreposição.
Encontradas as duas leituras possíveis para os infinitivos seleccionados
pelos verbos perceptivos, importa esclarecer quais os mecanismos que
contribuem para que ocorra a leitura de não sobreposição, uma vez que a
leitura básica será de sobreposição.
Através
da
observação
dos
dados
do
nosso
corpus
e,
mais
concretamente, da análise individual das ocorrências, é fácil verificar
recorrendo ao método de tentativa e erro quais os factores que não
influenciam esta interpretação.
Por um lado, observámos a acção do advérbio sempre que remete
para a duratividade da situação. No entanto, mesmo quando este
modificador não comparece, verificamos a existência de casos em que a
leitura de não sobreposição pode ocorrer. Desta feita, atribuímos o facto à
capacidade do Presente do Indicativo de comutar situações eventivas em
estados habituais. No entanto, a hipótese foi abandonada devido à presença
de outros tempos verbais evidenciando a mesma interpretação.
Voltando então as nossas atenções para o verbo da completiva,
supondo que neste residiria o factor determinante, analisámos a sua
contribuição a diversos níveis.
Concluímos que não só o tipo semântico do
verbo subcategorizado não tem qualquer influência para a leitura de
sobreposição, como esta também não decorre da duratividade ou
pontualidade das situações. A análise contrastiva entre eventos e estados
revelou-se também infrutífera neste campo.
Uma vez que o argumento externo do verbo introdutor é, em todos os
casos, um experienciador que nunca actua como controlador da acção
presente na subordinada, nada podemos inferir também daqui.
Tendo explorado todas as vias possíveis, nada mais resta senão concluir
que a temporalidade da situação expressa pela oração encaixada estará
relacionada com as especificidades semânticas do verbo introdutor. De facto,
a duplicidade das suas leituras poderá ocasionar importantes diferenças
temporais quanto à oração que subordina.
O que importa ressaltar é que, quando se refere a uma percepção
sensorial,
o
verbo
perceptivo
(seja
ele
o
ver
ou
o
ouvir)
implica
necessariamente a sobreposição das situações; diferentemente, quando a
percepção é intelectual, veicula uma interpretação de não sobreposição, em
virtude do carácter durativo ou frequentativo da eventualidade descrita pela
completiva com infinitivo.
III. 3.
VERBOS CAUSATIVOS
III. 3. 1.
VERBO FAZER
Somando um total de 7883 ocorrências no corpus dos séculos XII, XIII e
XIII/XIV, o verbo fazer é (com uma larga margem) o mais produtivo de todos os
verbos estudados em termos de construções em que subcategoriza
completivas infinitivas, ao apresentar 713 ocorrências.
De realçar é ainda o facto de termos verificado que, nesta construção,
o verbo causativo pode aparecer em todos os tempos verbais, a saber:
Presente do Indicativo, Pretérito Perfeito do Indicativo, Pretérito Imperfeito do
Indicativo, Pretérito Mais-Que-Perfeito do Indicativo, Futuro do Indicativo, Condicional, Imperativo, Presente
do Conjuntivo, Pretérito Imperfeito do Conjuntivo, Futuro do Conjuntivo,
Gerúndio e Infinitivo.
Para o Português contemporâneo, o DGVP18 mostra que a construção
em que o verbo fazer subcategoriza uma oração complemento na forma
infinitiva (sem preposição) teria uma única leitura como verbo pronominal
reflexo:
“Levar outrem a”
[GN[Suj] V-se F NãoFinita [C. dir.]]
Acho que não me fiz compreender.
A professora faz-se respeitar.
18
Cf. CASTELEIRO (2007), pp. 463-464.
A descrição para o Português Medieval indica também um único
significado para a construção em estudo, diferente no entanto daquela que
existe actualmente:
“Fazer, mandar, obrigar”
alguém faz (a) fazer/acontecer
[ — (a) Vinf ]
[1214 TT] que u quer que eu moira, quer en meu reino quer
fora de meu reino, facan aduzer meu corpo per mias custas a
Alcobacia.
[1269 FG6] que Ante que o preyto seía contestado que lo
pode toller fazendóó saber áá parte cõtra e despoys qu?e o
preyto cõtestado nõ lo pode toller senõ en Joyzo
Atendendo a esta classificação preliminar e, sabendo que, enquanto
verbo causativo, fazer deverá apresentar um argumento externo com o papel
temático de agente que actuará sobre uma proposição, ocasionando o
estado de coisas descrito na oração encaixada, a nossa intuição aponta para
que o complemento infinitivo tenha uma interpretação consistente de
posterioridade.
Muitos são os exemplos capazes de demonstrar que esta proposta se comprova de facto,
dos quais destacamos:
(1) [1295 HGP108] & eu Pedro Martins, notario de Tebra & de seu
alffoz, a isto presẽte ffuj & esta carta en mia presença ffiz escreuer &
pugi meu nume & meu sinal & en testymuno de uerdade que esste tal.
(2) [1214 TT] E rogo que cada uno destes añiuersarios facan sempre en dia
de mia morte e facan tres comemoraciones en tres partes do ano e cada
dia facan cantar una missa por mia alma por sẽpre.
(3) [1271 CA012] E sse pela uetura uos ele fezer mal. ou força.
ou eixerdamento a uos ou a uossos successores; dizedelyo
& frotadelyo ou lyo fazede dizer e frotar per algue uos ou
uossos successores en sa Corte conuçudamete ata tres
uezes que uos alçe força ou mal ou eyxerdameto que uos
fezer.
(4) [séc.13/14 VS6] E Paunuçio no podya ssofrer a coyta e ho
pesar e nom achava cossollaçom e ffoy-sse ao abbade
daquel moesteyro de que ffallamos e lançou-sse aos seos
pees e disse-lhe: - rrogo-te padre que nom quedes de
horar a Nosso Ssenhor. que a minha filha que eu ouve per
trabalho de tuas horaçoes sseja achada ca nom ssey que
lhe aconteçeo. Quando esto ouvyo ho abbade ficou mui
triste e fez chamar todollos frades e disse-lhes: - hirmaaos
mostrade carydade. rrogemos e demandemos a Noso
Senhor que lhe praza de nos mostrar que he da filha deste
nosso amigo Paunuçio
A observação integral do corpus e a análise individual das relações
predicativas fez emergir paralelamente a esta interpretação futura do
complemento infinitivo, uma outra que parece ser de sobreposição:
(5) [séc.13 CAM040] Amor faz a min amar tal señor / mais fremosa
de quantas og' eu sei, / e faz-m' alegre e faz-me trobador /
cuidand' en ben senpr'; e mais vos direi: / u se pararon de trobar /
trob' eu, e non per antollança, / mais pero sei mui lealmente
amar.
(6) [séc. 13/14 CEM415] Ua donzela coitado / d’amor por si
me faz andar; / e em sas feituras falar / quero eu, come
namorado: / rostr’agudo come forom, / barva no queix’e
no granhom / e o ventre grand’e inchado.
De facto em (5) e (6) a oração subordinada é interpretada como sobreposta em
relação à eventualidade expressa na matriz. De momento atribuímos esta diferença na
perspectivação temporal da eventualidade à acção do Presente do Indicativo, que actua
em ambos os casos apresentados. Como sabemos, este tempo propicia uma leitura de
habitualidade, tendo responsabilidades na comutação das eventualidades para estados
habituais.
Vejamos se só o Presente do Indicativo proporciona esta interpretação de
sobreposição relativamente ao causativo fazer:
(7) [1264-1284 CSM035] mas un vento non sotil / se levantou muit' agỹa,
que as galeas volver / O que a Santa Maria der algo ou prometer ... /
Fez, que a do almirallo de fond' a cima fendeu, / e britou logo o maste,
e sobr' el enton caeu / e deu-lle tan gran ferida, que os ollos lle verteu /
logo fora da cabeça e fez-lo no mar caer.
(8) [1264-1284 CSM384] E o frade espertou logo e foy ao leyt' agynna; / e
pois que o achou morto, fez sõar a campaynna / segund' estableçud' era
polos seus santos doctores.
Apesar do verbo introdutor se encontrar no Pretérito Perfeito do Indicativo,
continuamos a ter a leitura de sobreposição do estado de coisas presente na
encaixada. Tendo apurado que este facto não tem origem na acção do
Presente do Indicativo, conjecturamos então que a pontualidade das
situações
representadas
em
(7)-(8)
possa
influenciar
esta leitura
de
sobreposição, uma vez que em (5)-(6) as orações completivas contemplam
estados.
Contrastem-se os seguintes excertos com os últimos apresentados:
(9) [séc.13/14 VS5] Em este lago avya bestas espantosas que eram tam
grandes que semelhavã torres. e das bocas dellas sayam chamas de
fogo atam grandes que todo aquell lago faziã ferver.
(10) [1264-1284 CSM234] A que faz os peccadores dos peccados repentir, /
ben pod' os mudos e sordos fazer falar e oyr.
Os exemplos acima apresentam o verbo regente em tempos diferentes (Pretérito
Imperfeito do Indicativo em (9) e Infinitivo em (10)) daqueles que figuram nos dois
casos anteriores, o que vem reforçar a ideia de que o tempo verbal não toma parte na
determinação temporal das eventualidades representadas na completiva infinitiva.
Para além disso, invalidam também uma possível distinção baseada no carácter
pontual ou alargado das situações subcategorizadas, uma vez que ao contrário do que
acontece em (7)-(8), em que temos, respectivamente, uma culminação e um ponto,
nestes dois casos temos um processo em (9) e dois estados de indivíduo em (10).
Todavia, apesar de aparentarem ser em tudo distintos de (5)-(6), permitem a
mesma interpretação em causa - de sobreposição.
Voltemos então ao início desta secção, altura em que assumimos que a
leitura base destas predicações seria a de causatividade explícita devido à
existência de um agente manipulador que actuaria sobre a proposição
manipulada, exprimindo assim uma ordem que manifesta o valor de
obrigação.
Ponderando os exemplos (5)-(10), parece não ser esta a relação
expressa pelo argumento externo do verbo subordinante; aliás, o seu papel
temático não será sequer o de um agente voluntário, mas sim de um
desencadeador ou motivador involuntário da acção.
Assim,
teremos
nestas situações um causador involuntário que provoca, ocasiona a
eventualidade que figura na subordinante, promovendo uma mudança no
estado de coisas sobre um argumento paciente, que funciona como
complemento directo da subordinada infinitiva.
Mantemos todavia nos casos (1)-(4) a leitura de posterioridade
característica de um verbo causativo com um argumento externo que
funciona tipicamente como um agente. Este, ao expressar uma ordem, causa
explicitamente a acção, embora não a realize directamente, sendo ela
efectuada por outrem.
O sujeito do verbo causativo fazer, alterna então o papel temático de
agente com o de causador, factor de que depende a determinação
temporal dos estados de coisas que figuram nas infinitivas relativamente às situações
representadas na oração principal, respectivamente, posterioridade ou sobreposição.
Deve, portanto, concluir-se que, para além do tipo semântico do verbo
subcategorizado e do tempo verbal da oração principal, a interpretação da
infinitiva em relação ao verbo da matriz depende sobretudo, no corpus
submetido a análise, da informação semântica veiculada pelo verbo regente
e, consequentemente, dos traços semânticos do seu argumento externo. O
mesmo será dizer que, neste caso, a determinação temporal do infinitivo
depende, em última instância, do papel mais ou menos agentivo que o sujeito
da oração principal desempenha.
Parece então, neste ponto, emergir a acção de uma outra categoria
(que neste caso até se parece sobrepor às restantes categorias aqui
consideradas - Tempo e Aspecto) na determinação temporal das orações
subcategorizadas de infinitivo, quanto à eventualidade expressa pelo verbo
da matriz – a Modalidade deôntica.
III. 3. 2.
VERBO MANDAR
No corpus dos séculos XII, XIII e XIII/XIV analisado foram encontradas
1212 ocorrências do verbo causativo mandar, sendo que 341 delas
subcategorizam uma oração completiva com o verbo na forma infinitiva.
A nossa análise demonstrou que, nestas construções, o verbo mandar
comparece nos seguintes tempos verbais: Presente do Indicativo, Pretérito
Perfeito do Indicativo, Pretérito Imperfeito do Indicativo, Pretérito Mais-QuePerfeito do Indicativo, Futuro do Indicativo, Condicional, Imperativo, Presente do
Conjuntivo, Pretérito Imperfeito do Conjuntivo, Futuro do Conjuntivo e Infinitivo.
O Gerúndio é o único tempo que nunca ocorre nas construções em causa.
O DGVP 19 apresenta dois sentidos possíveis para estas construções:
[GN[Suj] V F NãoFinita [C. dir.]]
“Ordenar”
O rei mandara construir o palácio para o seu primogénito.
“Determinar”
O tribunal mandara deter o arguido.
Relativamente ao Português Medieval, o DVPM demonstra uma única
significação:
19
Cf. CASTELEIRO (2007), pp. 549.
“Mandar, dar ordem”
alguém manda fazer/acontecer
[ — Vinf ]
[1214 TT] E mãdei fazer treze cartas cũ aquesta tal una como a outra
que per elas toda mia mãda seia conprida
Admitindo a priori que os verbos causativos exprimem necessariamente
uma relação de causalidade entre a acção descrita por estes verbos e o
estado de coisas descrito pela oração completiva, assemelha-se-nos óbvia a
relação de posterioridade entre estas duas predicações.
Mandar parece ser um verbo em que o sujeito denota um
comportamento claro de agente voluntário, com um papel activo quanto à
determinação da eventualidade da completiva, uma vez que o valor da
predicação da oração principal será sempre de ordem.
Vejamos
então
o
que
ocorre
quando
o
causativo
mandar
subcategoriza eventualidades pertencentes a diferentes classes aspectuais:
(1) [1264-1284 CSM251]O Papa, que sant' ome era, respos-lles: "Cras /
mandarei cantar missa, e tu a levarás", / diss' à ama da moça, "e se de
Satanas / ven aquesta sandece, pode-sse desfazer."
(2) [1274 CA082] e nos don Pááy periz Maestre de suso dicto e ho nosso
Cabidóó gééral mandamos fazer duas Cartas semelaues desta
auéénça. das quaes eu Rey don Affonso tenho hua. E nos Maestre e
nossa Ordin a outra. e posemos en estas Cartas nossos Séélos en
testemoyo de uerdade.
(3) [1264-1284 CSM027] E pois que o prazo chegou, sen falir, / mandou
enton Cesar as portas abrir, / e amba-las partes fez log' alá ir / e dos
seus que fossen a prova vẽer.
(4) [1264-1284 CSM127] Quand' est' oyron as gentes mui gran maravilla
en / ouveron e ar loaron muito a que tanto ben / fez e nos faz cada día e
os crerigos "amen" / responderon e os sinos mandaron todos sõar.
Em todos os exemplos acima, o estado de coisas que figura na subordinada estabelece
uma relação de posterioridade com a predicação da oração principal, independentemente do
tipo de situação que figura na completiva (processo, processo culminado, culminação e ponto,
respectivamente).
O tempo verbal em que a oração introdutora ocorre parece não ter qualquer relevância
quanto à determinação temporal do verbo da encaixada, tendo em conta a diversidade
apresentada (Futuro do Indicativo, Pretérito Perfeito do Indicativo e Presente do Indicativo,
nestes casos).
Justificamos esta aparente uniformidade em termos de interpretação temporal com
base, por um lado, nas características semânticas do argumento externo do verbo regente, e por
outro, no tipo de verbo subcategorizado.
O causativo mandar, enquanto verbo pleno, implica a existência de um argumento que
funcione como manipulador da acção (aquele que dá a ordem) e um outro com a função de
manipulado, cuja atribuição é cumprir a ordem. O argumento externo funciona como
controlador da acção expressa na oração principal, ao prescrever a realização de determinada
situação que, necessariamente, só será executada após a expressão da ordem.
Referimos ainda a influência do verbo subcategorizado devido à comparência exclusiva
de situações de carácter eventivo na completiva. Estando na base da divergência entre eventos e
estados a dinamicidade das situações, a constatação de que o verbo mandar só selecciona
eventos na sua oração subordinada, reforça o carácter de obrigatoriedade da execução (activa)
de uma acção, na decorrência da ordem.
Para além da regularidade que acabámos de expor em termos de valores temporais
desencadeados pelas especificidades semânticas do verbo mandar, consideramos relevante a
referência a um caso particular de subcatgorização licenciada por este verbo, do qual
apresentaremos os seguintes exemplos ilustrativos:
(5) [1264-1284 CSM419] Mas no templ' u estava a comprida de ffe, / un
angeo lle disse: "Madre de Deus, ave: / o teu Fillo te manda dizer que
ja temp' é / que leixes este mundo mao u te leixou."
(6) [1265 CA004] Cognoçuda cousa seia a todos aqueles que esta carta virẽ
& léér ouuirẽ que nos Alcayde & Aluazíj´s. & Tabelliõ. & Conçello de
Monsaraz reçebemos carta aberta do nosso segnor don Affonso Rey de
Portugal ena qual carta nos mandou dizer que nos fossemos departir
& demarcar os termyos dantre nos
(7) [séc.13/14 VS7] E o abbade Joham daquelle moesteyro achou alguũs
pera rrepreender e castigou-os e ameaçou-os e enmendou-os pollas
palavras que lhe mandou dizer a santa molher.
Considerada por alguns como uma lexia complexa, propomos uma leitura algo
diferente para “mandar dizer”, considerando que cada uma das situações tem o seu respectivo
sujeito. Sendo equivalente à expressão “fazer que alguém comunique uma mensagem”, é
possível identificar um argumento externo de mandar, que se apresenta como causador da
acção, exercendo um carácter de obrigatoriedade sobre a eventualidade patente na oração
subordinada. Por sua vez, a situação que figura na oração encaixada ocorre por acção de um
argumento externo do verbo dizer, que age por força do argumento externo de mandar.
Assim sendo, podemos considerar que o agente de dizer, embora controlando a situação
expressa pela oração infinitiva, é controlado pelo agente de mandar.
Em suma, consideramos que, apesar de todas as circunstâncias que podem influir na
determinação temporal das orações subordinadas infinitivas de mandar, a leitura de
posterioridade advém, em última instância, da modalidade deôntica inerente à semântica do
verbo.
III. 3. 3.
VERBO LEIXAR
Entre as 599 ocorrências do verbo leixar20 no corpus dos séculos XII, XIII e
XIII/XIV estudado, registam-se 254 casos em que o verbo causativo introduz
uma oração infinitiva.
Nesta construção, verificamos que o verbo leixar ocorre nos seguintes
tempos: Presente do Indicativo, Pretérito Perfeito do Indicativo, Pretérito
Imperfeito do Indicativo, Futuro do Indicativo, Condicional, Imperativo, Presente
do Conjuntivo, Pretérito Imperfeito do Conjuntivo, Futuro do Conjuntivo e
Infinitivo. Não existem quaisquer ocorrências de leixar no Pretérito Mais-QuePerfeito do Indicativo nem no Gerúndio.
O DGVP21 indica as duas interpretações seguintes para a construção
em que leixar subcategoriza uma completiva na forma infinitiva:
“Permitir”
[GN[Suj.] V F NãoFinita [C. dir.]]
A cara deixava transparecer o nervosismo.
Os monitores não deixarão ninguém entrar no
barco sem colete salva-vidas.
“Não resistir” (Pronominal reflexo)
20
Para um estudo mais aprofundado sobre o verbo deixar, consultar SILVA (1999).
21
Cf. CASTELEIRO (2007), pp. 229-230.
[GN[Suj.] V -se F NãoFinita [Pred. c. dir.]]
O funcionário deixara-se corromper.
Deixei-me levar na conversa dela.
Quanto ao Português Medieval, a descrição existente22 aponta para
uma só leitura deste verbo no contexto em apreço:
“Deixar, autorizar”
alguém leixa fazer/acontecer
[ — Vinf ]
[1277 CHP007] e Mãdo os meus meyrĩos que essas terras
andarẽ que nõpenorẽ nẽ leysen penorar nas sobredictas
erdades asj como de suso e dicto
Portanto, sendo estas descrições para as duas fases do Português
unânimes em apontar a acepção de permissão, passemos em seguida à
observação dos dados:
(1) [séc. 13 CAmi257] Triste and’ eu velida, e ben volo digo, / por que
mi non leixan veer meu amigo;
(2) [séc. 13 CEM165] Mal se guardou e perdeu quant’havia, / ca se nom
soub’a cativa guardar: / leixou-o sigo na casa albergar, / e o peom
22
Cf. DVPM.
logo fez que dormia; / e levantou-s’o peom traedor / e, como x’era de
mal sabedor, / fodeu a tost’e foi logo sa via.
(3) [séc. 13 CAM347] Se eu a mia senhor ousasse / por algûa cousa
rogar, / rogar-l' ia que me leixasse / u ela vivesse morar;
Podemos considerar que estes exemplos reúnem condições para ser
analisados em conjunto, por remeterem todos eles para uma leitura de
posterioridade entre o complemento infinitivo e o verbo regente.
Todavia, notamos a diversidade de tempos verbais que ocorrem na
oração principal (Presente do Indicativo, Pretérito Perfeito do Indicativo e Pretérito
Imperfeito do Conjuntivo), o que leva a crer que não será este o factor
decisivo para a determinação da localização temporal do verbo da
encaixada.
De registar é ainda que esta interpretação ocorre exclusivamente com
situações durativas, tanto de cariz eventivo (processo em (1) e processo
culminado em (2)) como estativo (estado de estádio em (2)).
Examinemos agora um outro conjunto, antes de prosseguir com mais
algumas considerações:
(4) [séc.13/14 CEM449] E na coroa, que rapar queria, / leixa crecer a
cient’o cabelo / e a vezes a cobre com capelo, / o que ant’el mui
d’anvidos faria; / mais d’el: quand’el a esperança perdeu / das planetas,
des i logu’entendeu / que per coroa prol nom tiraria.
(5) [séc. 13 CEM067] E dixe-lh’eu: - Gram folia pensades, / se per
velhece a guarecer cuidades; / pero nom vos digu’eu que nom vivades /
quanto vos Deus quiser leixar viver; / mais em velhice nom vos
atrevades, / ca i mais vej’eu das velhas morrer.
(6) [séc. 13 CAM410] Meu senhor Deus, se vus prouguer, / tolhed'
Amor de sobre mi, / e non me leixedes assi / en tamanha coyta viver, /
ca vos devedes a valer / a tod' ome que coyta ouver.
Este segundo grupo manifesta também uma leitura consistente, desta
feita de sobreposição quanto ao Ponto de Perspectiva Temporal.
Tal como em (1)-(3), os tempos verbais indiciam não alterar a
localização temporal das situações, uma vez que ocorrem tanto no Presente
do Indicativo como no Presente do Conjuntivo, e ainda no Infinitivo.
As eventualidades subcategorizadas são também de diversos tipos
(processo, estado de indivíduo e estado de estádio), embora contemplem somente
situações alargadas.
Apesar dos contextos semelhantes em que ocorrem, estes dois
conjuntos revelam que o verbo leixar licencia dois tipos de situações – uma
com valor de posterioridade e outra de sobreposição.
De que dependerá então este diferente comportamento quanto à
localização temporal do complemento infinitivo?
Atentemos antes de mais no valor semântico do verbo causativo nas
duas situações: enquanto que no primeiro grupo, leixar é sinónimo de
“autorizar, dar permissão”, no segundo significa “não impedir, não obstar, não
se opor ”. Assim, o verbo leixar alterna um valor de permissão com um valor causativo.
Mais concretamente, em (1)-(3), o agente do verbo parece deter a autoridade que o capacita para
permitir ou proibir determinada situação. Pelo contrário, em (4)-(6) o argumento externo do
verbo leixar decide não impedir a realização expressa pela infinitiva, embora detenha
capacidade para tal.
Outra diferença observada foi a perspectivação aspectual da situação presente na oração
subordinada. Enquanto no primeiro grupo de exemplos, a situação ainda não teve início,
existindo somente em projecto e estando dependente da aprovação do agente para a sua
realização, no segundo o estado de coisas encontra-se já em curso, numa altura em que o agente,
embora detendo a capacidade de lhe determinar o fim, não o faz.
Estão aqui em causa duas atitudes distintas relativamente ao comportamento do
argumento externo: se no primeiro caso este tem uma atitude activa, no
domínio da permissão, no segundo o seu papel é passivo, optando por não
interferir na acção já em pleno decurso. O mesmo é dizer que o argumento
externo em (1)-(3) tem o valor de um verdadeiro agente, uma vez que, para que a acção
ocorra é necessária a sua aprovação, enquanto que em (4)-(6) apresenta um traço semântico
mais fraco, não provocando directamente a acção, mas sim licenciando apenas que esta não seja
interrompida, continuando a desenvolver-se.
Pode, portanto, concluir-se que a determinação da localização temporal do estado de
coisas envolvido na oração subordinada infinitiva do verbo leixar é da esfera da Modalidade.
III. 4.
CONCLUSÕES PARCIAIS – VERBOS CAUSATIVOS
Enquanto verbos causativos, como a própria designação sugere, a
suposição inicial remetia para uma expressa relação de causalidade entre a
situação introduzida pelo verbo regente e a respectiva completiva com
infinitivo.
A existência de um argumento que funciona como causador da acção
parece determinante na localização temporal da situação que introduz.
Ao considerar que a oração principal é controlada por um agente
manipulador da acção que lhe confere um carácter de obrigatoriedade,
predizemos uma leitura de posterioridade da oração encaixada relativamente
à oração subordinante.
Esta suposição foi constatada de facto em cada um dos três verbos
causativos submetidos a análise. Todavia, esta não é a única leitura permitida
por esta classe de verbos.
O verbo fazer licencia esta interpretação de posterioridade, ao
apresentar um sujeito da oração subordinante que se institui como agente
manipulador do argumento externo do verbo da oração subordinada. Assim,
notamos que o carácter de obrigatoriedade instituído pela acção do agente
de fazer
se
revela determinante na
posterior
execução da
acção
representada através da sua completiva.
No entanto, notamos para além desta, uma outra hipótese de leitura
temporal da completiva de infinitivo, desta feita denotando sobreposição
com o seu Ponto de Perspectiva Temporal. Investigando a causa de tal
divergência, a observação dos dados demonstrou que a interpretação de
sobreposição nada deve à influência do tempo verbal em que ocorre o verbo
da matriz, uma vez que muitos são os tempos que permitem esta leitura.
Seguidamente descartamos factores decorrentes das características
semânticas do verbo subcategorizado, tendo inclusivamente em conta a
diferença entre situações pontuais e durativas.
A análise veio a revelar-se mais profícua aquando do estudo do
argumento externo do verbo introdutor. De facto, considerando o papel
temático atribuído ao sujeito de fazer, observamos que nestes casos não
funciona como agente voluntário, mas sim como um motivador ou causador
não agentivo, que desencadeia a acção presente na subordinada.
Parece seguro afirmar nesta altura o papel determinante do argumento
externo do verbo principal, sendo que nas predicações em que desempenha
a função de agente a interpretação é de posterioridade e, pelo contrário,
quando o traço semântico agentivo se manifesta mais fraco, a acção que faz
recair sobre um argumento paciente é interpretada como sobreposta àquela
expressa na matriz.
Podemos então inferir a importância determinante da Modalidade para
a interpretação temporal deste tipo de construções, uma vez que, quando a
acção do argumento externo de fazer consiste numa imposição, a leitura
temporal do seu complemento é de posterioridade; nas outras situações em
que a sua acção provoca uma mudança de estado no sujeito da
subordinada (pela sua acção directa e não porque determine uma
obrigação), obtemos uma interpretação de sobreposição.
O verbo leixar manifesta um comportamento bastante próximo de fazer,
na medida em que, quando significa permissão, a leitura das suas
subordinadas é de posterioridade, sendo sempre necessária a autorização
antes da realização da acção. Constatámos que esta interpretação ocorre
independentemente do tempo verbal da oração introdutora; porém, só foram
registadas eventualidades durativas nestes contextos.
Esta leitura de posterioridade alterna com a de sobreposição que,
ainda que ocorrendo com diversos tempos verbais, subcategoriza unicamente
eventualidades alargadas. Neste caso, o argumento externo de leixar
apresenta um traço semântico mais fraco, uma vez que o seu papel deixa de
ser de causatividade activa, passando a ser passiva, admitindo somente que a
situação continue a decorrer (limitando-se a não a impedir).
Encontramos então duas acepções distintas para este causativo:
“autorizar, dar permissão”, e “não impedir, não obstar, não se opor”.
Consoante mudam as características semânticas do verbo, assim muda
também o papel temático do argumento externo do verbo causativo, que
alterna entre um valor agentivo (de permissão) e outro com um traço
semântico mais fraco.
Quanto
ao
último
verbo
estudado,
mandar
apresenta
um
comportamento homogéneo no que diz respeito à determinação temporal
das eventualidades que subcategoriza no corpus analisado. Tendo sido
observada a presença de diferentes classes aspectuais que comparecem em
diversos tempos verbais, o comportamento das completivas infinitivas do
causativo
mandar
manteve-se
sempre
constante,
manifestando
uma
interpretação de posterioridade relativamente à ordem prescrita na oração
subordinante.
Nada há a registar no contexto deste verbo, a não ser que o carácter
de obrigação de que se reveste influencia de forma categórica a localização
temporal da oração que subordina. Assim, destacamos a modalidade deôntica
inerente à semântica do verbo, que parece determinar taxativamente a localização das
completivas infinitivas.
A partir do confronto dos verbos causativos estudados, apesar das
semelhanças inegáveis, registam-se no entanto importantes divergências.
De destacar antes de mais, é a leitura de posterioridade licenciada por
todos eles, o que vem reforçar o seu carácter causativo. Esta é, aliás, a única
interpretação para as acções subcategorizadas pelo verbo mandar.
Quanto aos verbos fazer e leixar, a sua interpretação pode sofrer
importantes alterações derivadas do carácter mais ou menos agentivo do seu
argumento externo. Assim, quando este assume um papel mais passivo, a
interpretação passa a ser de um simples causador, o que provoca que a
situação da completiva ocorra em sobreposição à da oração regente.
As marcas de subjectividade do argumento externo do verbo da
oração principal revelam-se assim de crucial importância na determinação
temporal da oração encaixada.
CONCLUSÃO
Considerando este um tema de grande interesse linguístico e,
desconhecendo quaisquer tentativas de uma análise do Português Medieval
sequer aproximada à que apresentamos, procedemos à investigação da
localização temporal das completivas infinitivas, restringindo a nossa análise
aos contextos em que a subcategorização ocorre por acção de verbos de
dois tipos distintos – perceptivos e causativos. Presumimos que, ao escolher
verbos de características semânticas tão diversas como estes, obteríamos
valores temporais distintos, o que enriqueceria a nossa análise.
Assim, procurámos atingir o nosso objecto de estudo, tendo por base os
primeiros testemunhos da língua portuguesa antiga encontrados num corpus
de textos dos séculos XII, XIII e XIII/XIV o mais variado possível, tentando que
fossem abrangidos diversos tipos de texto, de forma a facultar uma
panorâmica tão lata quanto possível da produção escrita neste período.
Depois de reunidos os textos e tratados informaticamente, foi necessário
retirar todas as abonações relevantes para o presente estudo.
No entanto, ainda mais trabalhoso e demorado que a extracção dos
dados foi todo o trabalho de classificação aspectual de cada um dos
exemplos em que figuram completivas infinitivas subcategorizadas pelos
verbos perceptivos e causativos que aqui se analisam. No conjunto dos cinco
verbos submetidos a análise foram tratadas 1896 ocorrências, numa tentativa
de encontrar regularidades na marcação temporal das eventualidades, o que
não se veio a verificar, permanecendo esse trabalho, desta forma, invisível.
Salientamos em seguida as conclusões a que chegámos após a análise
isolada dos verbos e seu posterior agrupamento por classes, pretendendo
evidentemente,
para
além
de
determinar
as
semelhanças
de
comportamentos dentro de uma mesma classe, verificar a existência ou não
de regularidades entre as duas classes de verbos.
Os dois verbos perceptivos manifestam-se perfeitamente homogéneos
no seu comportamento relativamente à marcação da localização temporal
das orações encaixadas de infinitivo com
que se combinam. Mais
especificamente, tanto ver como ouvir poderão expressar uma de duas
leituras possíveis – sobreposição ou não sobreposição. A ocorrência de uma ou
outra dependerá essencialmente das características semânticas do verbo
regente. Assim, se a percepção descrita for de tipo sensível, físico, a leitura
será de sobreposição; se, pelo contrário, a situação for experienciada a nível
intelectual, a eventualidade ganha uma extensão de carácter habitual, o que
ocasiona uma interpretação de não sobreposição.
Relativamente aos verbos causativos, podemos concluir que a classe é
também uniforme no seu comportamento, nomeadamente no que respeita à
interpretação de posterioridade. Esta interpretação decorre do carácter de
obrigatoriedade veiculado pelos verbos fazer e mandar, bem como de
permissão característico do verbo leixar. No entanto, verificamos ainda a
possibilidade de uma leitura de sobreposição, ocasionada devido ao
enfraquecimento do traço agentivo do argumento externo destes verbos,
excepção reservada ao verbo mandar, uma vez que o seu agente manifesta
sempre um grau de controlo elevado sobre o evento descrito pelo
complemento infinitivo.
Concluímos, portanto, que a modalidade deôntica, através da
expressão quer da necessidade, quer da possibilidade (respectivamente
obrigação e permissão) e das suas gradações possíveis revela um importante
contributo na determinação da localização temporal das completivas
infinitivas.
Pensamos ser seguro afirmar que a localização temporal das infinitivas
complementos de verbos perceptivos e causativos reflecte a natureza
semântica dessas duas classes de verbos. Em última instância, e atentando na
diferença principal entre a classe dos verbos perceptivos e a dos verbos
causativos a nível temporal, enquanto os primeiros tendem a apresentar
argumentos externos que se constituem experienciadores do estado de coisas
expresso na subordinada, nas segundas tal não acontece, por possuírem
sujeitos que são controlados (de modo activo ou passivo) pelos argumentos
externos da situação patente na oração principal.
Não é possível, no entanto, apontar uma causa única ou factor
determinante, uma vez que a localização temporal das eventualidades resulta
das contribuições de factores de diversas ordens, não podendo nunca a
temporalidade ser reduzida ao estudo do complexo verbal, devendo ao invés,
atender sempre a uma leitura composicional da frase.
Realçamos o facto de que todas as conclusões e possíveis ilações
retiradas deste estudo referir-se-ão somente aos dados observados no nosso
corpus.
Finalmente,
esperamos
que
este
trabalho
tenha
mostrado
a
necessidade de estudos mais aprofundados sobre a interpretação temporal
dos infinitivos nas construções completivas, nomeadamente no que ao
Português antigo diz respeito, embora muito haja ainda a fazer nesta área
quanto ao Português Contemporâneo. Foi neste sentido que o presente
estudo tomou corpo, esperando ter contribuído para a prossecução do
estudo desta problemática.
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