TEMPORALIDADE EM ORAÇÕES COMPLETIVAS INFINITIVAS SUBCATEGORIZADAS POR VERBOS CAUSATIVOS E PERCEPTIVOS ANÁLISE DE UM CORPUS DO PORTUGUÊS MEDIEVAL Raquel Mendes da Silva Oliveira ___________________________________________________ Dissertação de Mestrado em Ciências da Linguagem JULHO DE 2008 Dissertação apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em Ciências da Linguagem, realizada sob a orientação científica da Profª Maria Francisca Xavier. AGRADECIMENTOS Agradeço antes de mais à Professora Maria Francisca Xavier, orientadora desta dissertação, que se manifestou disponível e paciente em todos os momentos. Merecem ainda uma palavra de apreço a Professora Clara Nunes Correia, a quem agradeço a total disponibilidade e simpatia na troca de algumas impressões e o Doutor Luís Filipe Cunha pela diponibilização de materiais imprescindíveis ao presente trabalho. Quero deixar ainda uma palavra de apreço a todos os colegas do DLPM, em especial à Alexandra Fiéis pela leitura atenta, ao João Loureiro pelas sugestões e percurso partilhado, ao Miguel Magalhães pela boa disposição e ao Sandro Dias pela constante disponibilidade. A todos os outros que, de uma maneira ou de outra, contribuíram com importantes estímulos, agradeço igualmente. Aos meus pais e irmão, que desde sempre fizeram tudo para facilitar a jornada a que me propus. Não podendo exprimir a importância do seu contributo, limito-me a dedicar-lhes esta dissertação. RESUMO TEMPORALIDADE EM ORAÇÕES COMPLETIVAS INFINITIVAS SUBCATEGORIZADAS POR VERBOS PERCEPTIVOS E CAUSATIVOS ANÁLISE DE UM CORPUS DO PORTUGUÊS MEDIEVAL Raquel Mendes da Silva Oliveira PALAVRAS-CHAVE: Infinitivo, interpretação temporal, aspecto, verbos perceptivos e causativos. O objectivo da presente dissertação consistiu em estudar as relações temporais que se estabelecem entre as orações completivas infinitivas e os verbos perceptivos e causativos que as seleccionam. O nosso corpus foi constituído de textos medievais portugueses dos séculos XII, XIII e XIII/XIV. A análise incidiu, por um lado, sobre os verbos perceptivos ver e ouvir, por outro, sobre os causativos fazer, mandar e leixar. Começou-se por definir noções gerais, tais como Tempo, Aspecto e Modalidade, passando depois para uma descrição sobre o Infinitivo em Português contemporâneo e em Português Medieval. Destacámos em seguida a proposta de Cunha & Silvano (2006) que argumentam favoravelmente à existência de marcas de temporalidade associadas ao Infinitivo. No segundo capítulo descrevemos a metodologia usada para constituir o corpus, bem como os métodos e ferramentas utilizados para tratar os dados recolhidos para análise. Para além disto, referimos ainda algumas dificuldades inerentes a este tipo de investigação sobre textos medievais. Seguidamente, no capítulo III apresentamos a análise da localização temporal das completivas infinitivas introduzidas por verbos perceptivos e causativos. Esta tarefa é conseguida através do estudo das frases em que estes dois tipos de verbos ocorrem subcategorizando orações infinitivas e pelo seu tratamento individual. Para cada um dos grupos, apresentamos uma conclusão acerca das similaridades e diferenças entre os valores temporais das orações que subcategorizam os verbos estudados. No presente trabalho pretendeu-se investigar se as características semânticas do verbo principal têm influência na interpretação da oração infinitiva subordinada. Através desta abordagem, esperamos aferir se a informação atrelada à forma infinitiva é condicionada por aquela veiculada pela oração subcategorizada. Procurámos, para além disso, determinar se o tipo aspectual do verbo contido na oração subordinada interfere de forma activa na interpretação temporal dos infinitivos. Para além destes factores, investigámos ainda a influência de outros, como os tempos verbais, eventualidades durativas e pontuais, a presença de adjuntos adverbiais e o carácter eventivo ou estativo do verbo contido na oração completiva. Por fim, concluímos que a interpretação temporal da completiva de infinitivo regida por verbos perceptivos e causativos é determinada por uma interacção complexa de muitos factores que não podem ser disjuntos, nomeadamente, a natureza semântica dos verbos das duas orações, o valor modal da oração matriz e a natureza do argumento externo da oração regente. ABSTRACT TEMPORALITY IN INFINITIVE COMPLETIVE CLAUSES SUBCATEGORIZED BY PERCEPTION AND CAUSATIVE VERBS ANALYSIS OF A MEDIEVAL PORTUGUESE CORPUS Raquel Mendes da Silva Oliveira KEYWORDS: Infinitive, temporal interpretation, aspect, perception and causative verbs. The main purpose of this dissertation was to study the temporal relations between Infinitival completive clauses and the perception and causative verbs that select them. Our corpus is built by Medieval Portuguese texts from the XIIth to the XIVth century. Our analysis focused on both perception verbs, such as ver (see) and ouvir (hear), and causative verbs, such as fazer (make), mandar (order) and leixar (let). We started by defining the relevant concepts of Time, Aspect and Modality. Then, we presented a synthesis of the descriptions on the Infinitive in both Contemporary and Medieval Portuguese literature, which considers this verbal form as neutral as far as temporal information is concerned. Next, we have put in evidence Cunha & Silvano’s (2006) proposal arguing that this verb form has temporality marks attached. In chapter II we have described the methodology used to build the corpus, as well as the methods and the tools used in order to treat the data. We also showed the difficulties of this type of investigation. In chapter III we presented the analysis of the temporal location of non finite clauses selected by perception and causative verbs. We accomplished this task studying the sentences in which this two types of verbs subcategorize infinitival clauses. For each of these groups we presented a conclusion about similarities and differences between the temporal value of each verb studied. In this study we investigated whether the semantic characteristics of the main verb have influence in the interpretation of the embedded infinitival clauses. With this approach we expected to find out if the temporal information related to the infinitival form is determined by the main clause. We also investigated if the aspectual type of the verb contained in the subordinated clause has an active role in the temporal interpretation of the infinitive. Beside these factors, we examined the influence of others, such as verbal tenses, durative and punctual activities, the presence of adverbial adjuncts and eventive or stative character of the verb contained in the complement clause. Finally, we conclude that the temporal interpretation of the infinite complement governed by perception and causative verbs is determined by a complex interaction of several factors that cannot be disconnected, in particular the semantic nature of the verbs, the modal value of the main clause and the nature of the main clause’s external argument. ÍNDICE Introdução ...................................................................................................... 1 Capítulo I: Revisão da literatura ..................................................................... 4 I. 1. Categoria Tempo: Considerações gerais ..........................................4 I. 2. Categoria Aspecto: Considerações gerais ........................................6 I.3. Categoria Modalidade: Considerações gerais ................................ 13 I. 4. Interpretação temporal dos Infinitivos............................................ 14 I. 4. 1. Descrições actuais ............................................................ 14 I. 4. 2. Descrições do Português Antigo ....................................... 17 I.4.2.1. Dias (1970) ....................................................... 17 I.4.2.2. Huber (1986) .................................................... 17 I.4.2.3. Mattos e Silva (1989) e (1993) ......................... 18 I. 4. 3. Proposta de Cunha & Silvano (2006) ............................... 20 Capítulo II: Metodologia ............................................................................... 23 II. 1. Constituição do corpus ................................................................ 23 II. 2. Metodologia de extracção e tratamento de dados ......................... 25 II. 3. Outras considerações ................................................................... 27 Capítulo III: Análise do valor temporal das infinitivas subcategorizadas por verbos perceptivos e causativos ..................................................................... 28 III. 1. Verbos Perceptivos...................................................................... 30 III. 1. 1. Verbo Ver ...................................................................... 30 III. 1. 2. Verbo Ouvir ................................................................... 36 III. 2. Conclusões parciais – Verbos Perceptivos .................................. 41 III. 3. Verbos Causativos . .................................................................... 44 III. 3. 1. Verbo Fazer ................................................................... 44 III. 3. 2. Verbo Mandar ................................................................ 49 III. 3. 3. Verbo Leixar .................................................................. 53 III. 4. Conclusões parciais – Verbos Causativos ................................... 57 Conclusão ...................................................................................................... 60 Referências Bibliográficas ............................................................................. 63 Corpus – Textos utilizados ............................................................................ 68 INTRODUÇÃO O estudo das fases primitivas de uma língua parece-nos de vital importância para qualquer que seja a temática abordada. Sendo ainda parcos os trabalhos que se debruçam sobre a determinação temporal das subordinadas infinitivas, facto que poderá ser explicado pelo pressuposto da gramática tradicional acerca da total privação dos Infinitivos em termos de marcas de temporalidade, este assunto tem sido descurado até estudos bastante recentes1. Considerado uma mera forma nominal do verbo, o Infinitivo Simples tem sido relegado para um plano de somenos importância. Nomeadamente, a temporalidade do Infinitivo tem sido pouco estudada, uma vez que, numa perspectiva tradicional, as orações infinitivas são consideradas como desprovidas de marcas de localização temporal. Afigura-se, a nosso ver, seguindo Cunha & Silvano (2006; 2007), necessário o desenvolvimento de estudos que contemplem uma análise do Infinitivo Simples sob diversas perspectivas e no contexto de orações completivas seleccionadas por verbos de diferentes tipos. Só assim será possível aferir os mecanismos que regem a sua determinação temporal. É neste contexto que a dissertação aqui apresentada se insere, pretendendo observar e descrever o comportamento a nível da localização temporal de completivas de tipo infinitivo. Devido às contingências de um trabalho deste tipo, seleccionámos para análise cinco verbos pertencentes a dois tipos com características semânticas distintas. A presente dissertação apresenta um estudo sobre as relações temporais que se estabelecem em construções com orações completivas de tipo infinitivo no Português Medieval. Mais especificamente, pretendemos investigar os mecanismos linguísticos que regem a determinação da localização temporal das orações completivas infinitivas seleccionadas por 1 Cf. CUNHA & SILVANO (2006) e CUNHA & SILVANO (2007: comunicação apresentada ao XXIII Encontro da APL, Évora). dois conjuntos de verbos com características semânticas diferentes – os verbos causativos fazer, leixar (forma arcaica do verbo deixar) e mandar e os verbos perceptivos ouvir e ver. Este estudo contempla exclusivamente dados atestados num corpus textual português dos séculos XII, XIII e XIII/XIV, constituído a partir do CIPM Corpus Informatizado do Português Medieval. O enquadramento teórico inicial formulado no Capítulo I baseia-se essencialmente em Lyons (1967), Moens & Steedman (1988), Cunha (1998a) e (2004) e Mateus et al. (1989) e (2003), tentando elucidar acerca das categorias gramaticais Tempo, Aspecto e Modalidade, contendo ainda uma breve descrição da proposta de Reichenbach (1947), essencial para a localização temporal. Segue-se a revisão da literatura no que concerne ao Infinitivo, que se divide em três etapas: primeiramente explicitamos as descrições presentes em gramáticas contemporâneas das Línguas Portuguesa, Espanhola, Inglesa e Francesa; de seguida, expomos as descrições existentes para o Português Medieval, recorrendo aos únicos estudos que conhecemos para este período que abordam, ainda que de forma superficial, esta temática, a saber: Mattos e Silva (1988) e (1993), Huber (1986) e Dias (1970); por fim, apresentamos a proposta de Cunha & Silvano (2006), uma vez que o estudo em questão segue, em grande parte das sugestões expressas na mesma. Procurámos, portanto, aplicar os pressupostos apresentados no referido artigo à análise dos verbos causativos e perceptivos no Português Medieval, ainda que com as devidas salvaguardas, uma vez que a proposta de Cunha & Silvano se refere exclusivamente a dados do Português Contemporâneo. O segundo capítulo descreve a metodologia adoptada nesta análise. Assim, descrevemos o modo como o corpus foi constituído, quais os métodos e ferramentas utilizados no tratamento dos dados, extracção das informações e apresentação das abonações, bem como abordamos ainda as dificuldades acrescidas que a análise de dados do Português Medieval implica. No capítulo III debruçamo-nos efectivamente sobre os verbos seleccionados, analisando as frases em que estes seleccionam orações infinitivas. Nas duas secções em que dividimos o capítulo III, tratamos, por um lado, os verbos perceptivos e, por outro, os causativos. O comportamento das orações completivas de infinitivo introduzidas pelos verbos já referidos é analisado primeiramente, de forma individual. Somente depois de devidamente descrita a marcação da localização temporal das orações subordinadas de infinitivo para cada um dos cinco verbos, se passa então às conclusões. No mesmo capítulo há ainda lugar para a explanação de conclusões parciais para cada um dos tipos de verbos, reservando um confronto entre os dois tipos para o capítulo final. A partir desta análise, pretendemos ser capazes de realizar uma descrição mais fina das estruturas argumentais e respectivas subcategorizações dos verbos da oração matriz, do que aquela que se encontra no Dicionário de Verbos do Português Medieval2, descrição de onde partimos. Procurámos ainda determinar os valores semânticos das construções subordinadas de causativos e perceptivos, verificando quais as semelhanças e diferenças de realizações. Esta investigação teve sempre em conta a descrição dos mesmos verbos para o Português actual, socorrendo-nos para isso tanto do nosso conhecimento lexical como do recente Dicionário Gramatical de Verbos Portugueses3. Os aspectos que pretendemos investigar ao longo deste trabalho foram os seguintes: (i) a possibilidade do tipo semântico do verbo da oração matriz influenciar ou mesmo condicionar a interpretação temporal das orações completivas, ou seja, verificar se a informação veiculada pela forma verbal infinitiva da oração completiva será preterida em relação à orientação conferida pelo verbo realizado na oração matriz; (ii) a relação entre o tipo de verbo da subordinada e o valor temporal do verbo matriz; 2 3 Cf. DVPM. Cf. CASTELEIRO (2007), indicado doravante como DGVP. (iii) os valores temporais das subordinadas infinitivas com os diferentes verbos, verificando se, como tradicionalmente é descrito, as formas de Infinitivo serão completamente desprovidas de informação temporal. CAPÍTULO I REVISÃO DA LITERATURA I. 1. CATEGORIA TEMPO: CONSIDERAÇÕES GERAIS O Tempo é a categoria que permite localizar as situações descritas (que podem ser instantes ou intervalos de tempo) através do seu posicionamento num eixo linear que se direcciona do passado para o futuro. Assim, e sabendo que todos os acontecimentos são localizados em relação a um tempo, isto é, que o Tempo é uma categoria relacional, todas as línguas dispõem de marcas para localizar determinada eventualidade na dependência de outro tempo, informação essa que pode ser veiculada com recurso a diferentes processos linguísticos. No caso do Português, existem formas verbais com marcas distintivas que cumprem esta função de diferenciar os valores temporais. Para além dos tempos verbais, podemos contar entre as formas de marcar a localização temporal das situações em Português, os advérbios ou locuções adverbiais, os sintagmas preposicionais de tempo e as orações adverbiais temporais. No entanto, como lembrado anteriormente, o Tempo é uma categoria relacional, sendo a sua função primeira a de localizar uma situação sempre em relação a um outro tempo ou intervalo de tempo. Esta dependência relativamente a um intervalo externo ao tempo do acontecimento linguístico, representado doravante como ponto E (tempo do evento), pode ser de tipo deítico ou anafórico, consoante se reporta ao tempo da fala, doravante como ponto F, ou a um outro marcado na frase, o tempo intermédio localizador (ponto R).4 Existem, portanto, vários processos de localização temporal, decorrentes do modo como essa marcação é feita. Assim, a localização temporal simples ou primária é feita tendo como referente o momento da enunciação ou ponto da fala e recorre a meios verbais, mais especificamente afixos verbais e verbos auxiliares, como nota Lyons: “Tense (...) is part of the deictic frame of temporal reference: it grammaticalizes the relationship which holds between the time of the situation that is being described and the temporal zero-point of the deictic context.” (Lyons 1978: 678). No caso deste tipo de marcação, pode ser estabelecido um de três tipos de relação entre os dois momentos (E e F) – anterioridade, sobreposição ou posterioridade. Outro importante processo de localização é aquele em que, em casos mais complexos, a localização em relação ao ponto da fala não é suficiente, recorrendo por isso ao chamado ponto de referência (R). Este parâmetro tem em conta meios lexicais que podem incluir localizadores adverbiais, preposicionais, outras expressões temporais e ainda o nosso conhecimento do mundo (entrando aqui em jogo os factores contextuais). Em qualquer um dos casos, os acontecimentos linguísticos são focalizados exclusivamente a partir do exterior e em função de parâmetros que lhes são extrínsecos, uma vez que o tempo de uma situação nunca pode ser achado autonomamente, estando sempre dependente da localização temporal de um outro acontecimento, que lhe serve de ponto de ancoragem. A perspectivação interna do acontecimento linguístico cabe a uma outra categoria - o Aspecto. Adoptaremos, tal como CUNHA (2004) a terminologia de Reichenbach (1947). Encontramos ainda uma alternativa ao ponto R presente em CUNHA (2004) que, seguindo Kamp & Reyle (1993) adopta a designação de PPT ou TPpt (Ponto de Perspectiva Temporal). Utilizamos ambos os termos indistintamente. 4 I. 2. CATEGORIA ASPECTO: CONSIDERAÇÕES GERAIS Sendo o Aspecto uma categoria longe de gerar consenso, a definição hoje mais comummente aceite é a de noção que veicula informações sobre a perspectivação ou focalização da estrutura temporal interna das predicações. Apesar de intimamente relacionada com o Tempo e o Modo (o que se deve ao facto de centrar a perspectivação de determinado acontecimento linguístico tendo em conta uma cronologia temporal), a categoria Aspecto distingue-se de forma clara das categorias supracitadas essencialmente na forma como o acontecimento linguístico é perspectivado. Assim, o Aspecto foca-se estritamente na cronologia temporal interna de uma situação linguística, tendo em conta os seus detalhes qualitativos e quantitativos, ao contrário do Tempo, que, para localizar determinada eventualidade, o faz tendo como referência o tempo da enunciação ou outras situações decorrentes do contexto. Por outro lado, não contempla a apreciação subjectiva do sujeito da enunciação em relação à situação narrada, expressa pela modalidade. O Aspecto é uma categoria gramatical universal, embora manifestada com conteúdos semânticos e modos de expressão diversos em diferentes línguas. A categoria existia no verbo indo-europeu, no grego, no latim e é muito importante ainda hoje no sistema verbal das línguas eslavas, em que a distinção entre Perfectivo e Imperfectivo é marcada morfologicamente através de afixos associados ao verbo que são especificamente aspectuais. No caso do Português, as informações aspectuais são veiculadas através de diversos elementos de ordem morfológica, sintáctica e semântica, uma vez que esta língua não possui um sistema afixal que lhe seja dedicado. Assim, a estrutura interna das predicações é obtida através da combinação de variadíssimos elementos que se conjugam e interagem. É por este motivo que não só o verbo deve ser tido em conta no estudo da constituição do perfil aspectual das frases do Português, mas sim a totalidade da predicação. Tradicionalmente, alguns linguistas defendem a divisão do Aspecto em modo da acção e aspecto, ou seja, considera-se que a informação aspectual é veiculada através de dois canais distintos, um de natureza lexical (o aspecto lexical, modo de acção ou Aktionsart no original) e outro gramatical (o aspecto gramatical, ou aspecto somente). Num primeiro nível, o aspecto lexical estabelece a classe aspectual básica de uma predicação através de diversos elementos, todos eles lexicalizados na predicação, como são os casos do verbo e dos seus possíveis complementos, podendo eventualmente contar com o contributo de determinadas propriedades semânticas do sujeito. No entanto, existem outros factores a considerar para além da informação lexical na obtenção da classe aspectual de uma predicação, que podem contribuir para a sua alteração. Estes elementos são os tempos gramaticais, os verbos de operação aspectual e/ou os adverbiais temporais e de frequência, que, em conjunto, vão alterar as classes aspectuais básicas, criando desta forma situações de tipo variado. Assim, o aspecto gramatical resulta da conjugação dos vários elementos supracitados, realizados nas frases. Logo, e apesar da diversidade de propostas, a composicionalidade do Aspecto, ou seja, a existência de diversos elementos constitutivos e a sua necessária correlação, vem a ser o factor comum nas diferentes teorizações acerca do tema. Perfeita, na nossa opinião, é a proposição de que o “Aspecto não deverá ser considerado como uma simples “soma” de contribuições dispersas, mas antes como um “produto” coeso e estruturado de “forças” actuando em conjunto.” (Cunha 2004: 53) Por não se encontrar sob o escopo deste estudo uma investigação mais apurada acerca da categoria Aspecto, referir-nos-emos sempre a esta categoria no seu sentido mais lato, isto é, como a categoria semântica cuja função consiste em mostrar a forma como é constituído, organizado e perspectivado o acontecimento linguístico descrito pela predicação. Por outras palavras, sendo o Aspecto resultante da combinação de uma multiplicidade de factores de várias ordens, optámos por não distinguir entre processos exclusivamente lexicais e aqueles que são unicamente morfológicos ou flexionais, convergindo assim na proposta de Cunha (2004). A tipologia aspectual mais conhecida e, ao mesmo tempo, aquela que serviu de base a todos os posteriores desenvolvimentos é indiscutivelmente a de Vendler. Zeno Vendler (1967), na tipologia que estabeleceu e que herdou o seu nome, defende a existência de quatro categorias aspectuais distintas, agrupadas em dois sub- -grupos consoante a possibilidade ou não de ocorrerem no progressivo (continuous tense). Assim, apresenta de um lado estados (states) e eventos instantâneos ou acções (achievements) e de outro actividades (activities) e eventos prolongados ou processos (accomplishments). É também de salientar a distinção dentro do grupo dos estados, ainda que incipiente, entre estados genéricos e específicos, adoptando a terminologia de Ryle (1949). As distinções entre todas estas classes aspectuais são depois apresentadas atendendo a critérios como a dinamicidade, a telicidade, a duratividade e a homogeneidade. Muito sucintamente, a dinamicidade designa a existência de um conjunto de fases sucessivas, capazes de provocar uma mudança de estado, a telicidade considera a existência de uma conclusão marcada por uma fronteira final, a duratividade reporta-se à duração dos acontecimentos linguísticos, enquanto que a homogeneidade remete para a capacidade das partes constitutivas de uma situação apresentarem as mesmas características que o todo. Todavia, este esquema demasiado redutor, poder-nos-á confinar a uma visão demasiado simplista desta problemática, como o próprio autor aponta: “In indicating these schemata, I do not claim that they represent all possible ways in which verbs can be used correctly with respect to time determination nor that a verb exhibiting a use fairly covered by one schema cannot have divergent uses, which in turn may be described in terms of the other schemata. (...) Thus my intention is not to give rules about how to use certain terms but to suggest a way of describing the use of those terms.” (Vendler, 1967: 98) Outras propostas se seguiram na tentativa de aperfeiçoar e desenvolver este esquema. A que reuniu mais consenso e tem sido adoptada (e/ou adaptada) por muitos linguistas é a de Moens (1987). Distingue-se da de Vendler, fundamentalmente por, para além de incluir outro evento atómico (os pontos), propor um sistema baseado nas noções de causa e consequência, em detrimento de critérios puramente temporais, o que vem a dar origem ao conceito de núcleo aspectual, um composto de três fases (processo preparatório, culminação e estado consequente), cuja combinação explicaria a variedade de categorias aspectuais. A distinção entre estas classes assentaria então, basicamente, tanto no contraste entre pontualidade e extensão temporal como na combinação com um estado consequente. Quanto ao que respeita à classe dos estados, não existe qualquer sub-divisão registada.5 Decorrente do facto de se afigurar mais consistente e tão específica quanto este estudo exige, assumimos a classificação aspectual básica adoptada por Cunha (2004). Relativamente à de Vendler, esta classificação inclui, na classe dos eventos, os pontos de Moens (1987) e subdivide os estados em quatro categorias, como poderemos observar mais nitidamente através do esquema seguinte. Tipologia aspectual ou Classes aspectuais básicas: 1. Eventos 1.1. Durativos 1.1.1. Processos 1.1.2. Processos culminados 1.2. Atómicos 1.2.1. Culminações 1.2.2. Pontos Para uma descrição detalhada desta classificação, consultar MOENS & STEEDMAN (1988). 5 2. Estados 2.1. Faseáveis 2.2. Não faseáveis 2.3. De indivíduo 2.4. “De estádio” São estas as classes aspectuais básicas de predicações, que podem no entanto ser modificadas devido à acção de outros elementos portadores de informação aspectual (não só o verbo e o seu tempo gramatical, mas também os argumentos internos e externos do verbo, adverbiais temporais e de frequência, operadores de negação, quantificadores e outras construções temporais), dando origem a predicações derivadas, uma vez que, lembramos, trata-se de uma categoria composicional.6 Apresentaremos em seguida uma súmula das características distintivas destes acontecimentos linguísticos, tomando primeiramente a distinção entre eventos e estados. Começando pelos eventos7, esta classe é constituída por quatro tipos básicos de predicações, que partilham a especificidade de serem situações dinâmicas, podendo ser ainda reagrupadas recorrendo a um dos seguintes critérios – telicidade e duratividade. Assim, teremos processos culminados e culminações do lado das situações télicas e processos e pontos pelas atélicas, enquanto que os processos e processos culminados se distinguem das culminações e dos pontos pela presença de duratividade. Devido à constrição espacial deste tipo de trabalho e, paralelamente, por não ser o objecto de estudo directo, mas somente um conceito com que operámos para a análise de dados, considerámos que a prossecução dos nossos trabalhos não seria afectada pela economia descritiva por que optámos quanto à apresentação das classes aspectuais básicas. Todavia, sobre este assunto, cf. CUNHA (2004). 6 Note-se que aqui, o termo evento é usado num sentido mais lato, designando o conjunto constituído pelas situações não estativas, enquanto que outros autores restringem o seu uso às situações télicas. 7 Os processos culminados têm uma duração razoavelmente longa, não possuem evolução interna, são heterogéneos, compostos por fases sucessivas e têm uma culminação associada, decorrendo ainda uma mudança de estado. As culminações são situações com uma duração muito breve ou mesmo nenhuma, são eventos instantâneos, pontuais, heterogéneos, terminados, não contendo por isso fases sucessivas e associando-se sempre a um estado consequente. Os processos caracterizam-se por ser acontecimentos em curso, prolongados, não delimitados por natureza, com evolução interna, homogéneos e desprovidos de conclusão. Os pontos ocorrem num único momento de tempo, sendo portanto indivisíveis, e não têm qualquer estado consequente adstrito. Podemos representar as classes aspectuais, de acordo com a sua composição tendo em conta os traços aspectuais, no seguinte quadro adaptado de Cunha (2004), com inclusão do traço "homogeneidade", referido. Classes aspectuais básicas Dinamicidade Duratividade Telicidade Homogeneidade Traços distintivos Culminações + - + - Pontos + - - - + + + - + + - + Processos Culminados Processos ESTADOS - + - + Tabela 1 - Descrição das classes aspectuais básicas quanto aos traços aspectuais. Passando aos estados, este grupo parece ocupar uma posição secundária em muitas tipologias, uma vez que se apresenta como um classe fechada e homogénea, definida quase por oposição ao grupo heterogéneo dos eventos. Os estados têm sido definidos então como situações não dinâmicas, sem evolução interna, atélicas, não delimitadas por natureza, dotadas de duração interna e homogéneas, não admitindo qualquer pausa ou intervalo no todo homogéneo. Remetemos a subclassificação adoptada para Cunha (2004), apresentando aqui somente um pequeno esboço sumário das quatro categorias consideradas. Antes de mais avançamos dois conceitos fundamentais para a subdivisão proposta: “Os estativos podem, pois, ser classificados segundo dois "vectores" principais, um de índole predominantemente temporal, que vai dar origem à oposição entre estados de indivíduo e de "estádio", e outro de cariz essencialmente aspectual, que vai conduzir à distinção entre estados "faseáveis" e "não faseáveis".” (Cunha, 2004: 383) Consideraremos, por conseguinte, uma divisão em dois grupos organizados segundo dois critérios: por um lado a faseabilidade e por outro a homogeneidade. Cunha (1998a) defende a integração do critério de faseabilidade na distinção dos estados, reportando-se este factor à possibilidade de determinado estado comportar na sua estrutura a presença de fases sucessivas. Através desta distinção vamos obter duas classes de estativos – faseáveis e não faseáveis. Assim, os estados faseáveis partilham com os eventos a possibilidade de se combinarem com traços denotadores de dinamismo, ao contrário dos estados não faseáveis. Por outro lado, o critério da homogeneidade propicia o estabelecimento de outras duas categorias – estados de indivíduo e estados de “estádio”.8 Quando o estado se predica directamente sobre um indivíduo ou entidade, temos um estado de indivíduo, ao contrário do que acontece quando somente é descrita uma “porção” temporalmente delimitada da entidade, obtendo assim um estado de estádio. Para além destas classes básicas de estados, existem depois as derivadas, resultantes da acção de outros elementos, podendo originar estados frequentativos, habituais, progressivos, frequentes, consequentes, cessativos e continuativos. Todas as classes aspectuais supracitadas se encontram profusamente descritas em Cunha (2004) sendo apresentada, inclusivamente, uma bateria de testes úteis para a sua distinção, tendo em conta critérios como a (in)compatibilidade com marcas de agentividade, construções adverbiais, formas progressivas, operadores aspectuais, entre outros. No caso do nosso objecto de estudo, sendo um corpus constituído unicamente por textos medievais (séculos XII, XIII e XIII/XIV), estes testes, ainda que aplicados com as devidas cautelas, não seriam produtivos ou pelo menos totalmente conclusivos, uma vez que não nos é possível manipular livremente os exemplos, por falta de falantes a consultar. Assim, as normas por que nos regeríamos seriam as do Português actual, não podendo nunca saber com certeza se a aplicação dos testes obedeceria aos critérios correctos e, consequentemente, se os resultados obtidos corresponderiam à realidade linguística da época. Terminada esta breve apresentação das categorias aspectuais básicas, lembramos que qualquer situação pode ser alterada, dando origem a classes derivadas, através de transições ocasionadas por derivações no núcleo aspectual. 8 Adaptação da distinção entre “individual-level” e “stage level predicates” em Carlson (1977), cf. Cunha (2004). Para além do Tempo e Aspecto, existe uma outra categoria que se institui como construtora da referência – a Modalidade. I. 3. CATEGORIA MODALIDADE: CONSIDERAÇÕES GERAIS A expressão da modalidade tem uma grande amplitude, na medida em que é uma categoria transversal a todo o discurso e existem diversificadas maneiras de expressá-la. A forma mais comum é através dos verbos modais, mas pode também ser marcada através de elementos tão diversos como advérbios, adjectivos, determinados afixos derivacionais e mesmo alguns tempos verbais, como o Imperfeito, o Futuro e o Condicional. Definida como “a gramaticalização de atitudes e opiniões dos falantes”9, a modalidade expressa a atitude, expressão ou avaliação subjectivas do sujeito em relação ao seu próprio enunciado. Existem basicamente três tipos de modalidade, com as suas gradações possíveis – a epistémica, a deôntica e a apreciativa. A este estudo interessa exclusivamente a modalidade deôntica, que expressa a intenção do locutor em agir sobre o seu interlocutor. Esta modalidade pode exprimir fundamentalmente dois tipos de valores: de obrigação, quando o locutor define e impõe uma única orientação, quer manifeste um valor de imposição, quer de proibição; e de permissão quando faculta ao seu interlocutor a possibilidade de escolha, manifestando assim um valor de autorização. Em todos os casos supracitados, pressupõe-se uma relação hierárquica entre locutor e interlocutor, sendo que o primeiro é investido de um poder que lhe confere a capacidade de decidir sobre as acções de outrem. Assim, o locutor apresenta sempre um traço semântico agentivo, podendo este manifestar-se mais ou menos forte, conforme a intensidade da causalidade que provoca. 9 Mateus et al (2003: 245). I. 4. INTERPRETAÇÃO TEMPORAL DOS INFINITIVOS I. 4. 1. DESCRIÇÕES ACTUAIS O Infinitivo não flexionado é, como poderemos constatar em seguida, tradicionalmente encarado como uma forma neutra relativamente às categorias gramaticais, ou seja, tempo, modo, aspecto, número e pessoa. Segundo Câmara Jr. (1976: 102) o Infinitivo é “a forma mais indefinida do verbo (...) a forma que de maneira mais ampla e mais vaga resume a sua significação, sem implicações das noções gramaticais de tempo, aspecto e modo.” O termo infinitivo deriva do étimo latino infinitivus, isto é, (o modo) não definido, que não tem contornos ou limites precisos. Partilhando esta etimologia comum, observemos agora algumas descrições constantes em gramáticas de referência para as Línguas Espanhola, Inglesa e Francesa, concentrando particular atenção no que toca às propriedades de marcação temporal do infinitivo: Unlike finite verb phrases, non-finite verb phrases have no tense distinction or imperative mood, and cannot occur in construction with a subject of a main clause. (Alexander & Close 1988: 75). Los infinitivos constituyen, junto a los participios y los gerundios, las formas no personales del verbo (tambiém denominadas ‘no flexivas’ o ‘nominales’). Al igual que estos, se oponen a las formas conjugadas del paradigma verbal en que se hallan desprovistos de morfemas de persona y de tiempo. Ello los inhabilita doblemente en el plano sintáctico : por un lado, no pueden entablar relaciones de concordancia con un sujeto; por otro, son incapaces de expressar por sí mismos una referencia temporal específica. (Bosque & Demonte 1999: 2201). La grammaire traditionnelle présente l’infinitif comme une forme verbale dépourvue des indices gramaticaux qui marquent habituellement la personne, le nombre et le temps, et qui, n’exprimant du procès que son contenu conceptuel le plus général et ne possédant aucune valeur modale particulière, ne peut s’inscrire dans le temps chronologique que par référence au contexte. (Le Galliot 1975: 57). O ponto comum nestas descrições do Infinitivo em diversas línguas é o facto de se considerar que este tempo não contém informação temporal. No entanto, para além disto, ressalta ainda a concisão de todas estas descrições. De facto, a dificuldade em encontrar uma descrição mais extensa do que um mero parágrafo acerca do Infinitivo não flexionado, no que toca ao seu valor temporal (ou, neste caso, à indeterminação do mesmo) é, por si só, representativa da escassez de trabalhos que abordem a temática, relegando o Infinitivo impessoal para o plano das formas nominais. Esta assunção está tão vulgarizada, que verificamos o desaparecimento progressivo deste tema das gramáticas tradicionais, como acontece numa das gramáticas de referência para a língua portuguesa (Mateus et al.)10 em que podemos observar o desaparecimento de um subcapítulo sobre a localização temporal do infinitivo, gerúndio e particípio passado. Assim, registava-se na segunda edição: “O infinitivo, o particípio passado e o gerúndio são formas morfologicamente ligadas ao verbo mas com funções nominais, adjectivais e adverbiais que, sintacticamente, ocorrem em regra em orações dependentes de uma 10 Cf. MATEUS et al (1989) e (2003). oração finita. Não exprimem, em si mesmas, qualquer dos tempos naturais, sendo a sua função de localização temporal subsidiária da da oração finita de que dependem.” (Mateus et al. 1989: 84). É com alguma surpresa que constatamos a presença de uma (ainda que breve) descrição das possíveis leituras temporais das formas simples do Infinitivo que, segundo aquela Gramática, se manifestam geralmente simultâneas ou posteriores ao estado de coisas descrito na oração regente, sendo ainda apresentados dois exemplos: Vejo os miúdos a esconderem-se da polícia. Eles decidiram ir à festa. De estranhar é, pois, que este subcapítulo seja apagado de futuras edições, manifestando desta forma uma perda de interesse quanto ao estudo destas construções completivas infinitivas e, mais precisamente, o valor temporal que desencadeiam. I. 4. 2. DESCRIÇÕES DO PORTUGUÊS ANTIGO A escassa literatura sobre o Infinitivo é por si só um indício da sua complexidade e deixa entrever a dificuldade da interpretação temporal para completivas infinitivas. Este panorama agrava-se ainda mais quando tentamos reunir a literatura relativa ao Infinitivo no Português Arcaico e Medieval. De facto, muito pouco ou nada tem sido produzido nesta área, tendo sido este um dos factores decisivos na escolha do tema para o estudo aqui apresentado. Os escassos estudos existentes sobre esta época da Língua Portuguesa debruçam-se principalmente sobre a morfologia verbal, realizando algumas descrições de determinadas sequências verbais. Senão, vejamos o que as obras de referência para o Português Antigo nos dão a conhecer acerca do Infinitivo e do seu uso. I. 4. 2. 1 Dias (1970) Dias (1970) refere-se ao uso do Infinitivo, realizando a descrição dos contextos em que esta forma verbal ocorre e qual a sua função sintáctica. Identifica a forma verbal infinitiva das orações com a função de complemento directo, seleccionado por verbos de percepção e causativos: “Aos verbos deixar (ou leixar arch.), mandar, fazer (causar, arch.), liga-se um simples infinitivo attribuido ao compl. directo d’aquelles verbos (...) A mesma construcção tem os verbos ver, ouvir, sentir e (no port. arch.) achar”11. Nada mais refere de relevante ao presente estudo. I.4.2.2. Huber (1986) A Gramática de Huber (1986), no que respeita a este assunto, centra as suas atenções na elaboração de uma detalhada descrição da morfologia 11 Cf. DIAS (1970: 225-226). verbal, sem descurar a evolução do Latim para o Português antigo, expondo o que se manteve da Língua Latina e as alterações tanto a nível de novas formas como de derivações que se registaram nesta passagem. Embora útil e de valor acrescido por ter sido a primeira gramática descritiva do Português antigo, diz pouco sobre o objecto do presente estudo, uma vez que, embora contendo uma secção sobre o Infinitivo, a forma impessoal conta apenas com uma descrição morfológica, enquanto que, sintacticamente, só o Infinitivo pessoal ou flexionado merece referência. No entanto, o capítulo imediatamente a seguir, sobre o gerúndio, conta com a descrição das perífrases aspectuais em que ocorre esta forma verbal. Algumas perífrases de Infinitivo são apresentadas ao longo da obra, enquanto faz a descrição dos tempos com que ocorrem, sem se referir, no entanto, ao seu valor temporal ou aspectual. I.4.2.3. Mattos e Silva (1989) e (1993) Apresentando-se como o mais completo estudo sobre a estrutura do Português Antigo até à data, Mattos e Silva (1989) contribui de forma decisiva para a descrição da Língua Portuguesa. No capítulo dispensado ao valor dos morfemas verbais, Mattos e Silva dedica uma secção ao estudo do Infinitivo. Nesta altura classifica o Infinitivo como o modo genérico, que pode substituir tanto o modo Imperativo em frases que expressam ordens ou instruções, como os modos Indicativo e Conjuntivo no contexto de orações completivas e subordinadas adverbiais e adjectivais. Refere ainda a possibilidade de o Infinitivo ser usado como substantivo, uma vez que expressa unicamente o conteúdo lexical do verbo. Considera então que o “infinitivo, modo genérico, não apresenta as oposições temporais (...) como as formas do modo indicativo e do subjuntivo; é, portanto, nãomarcado quanto ao tempo verbal.”12 12 Cf. MATTOS E SILVA (1989: 409). É ainda realizada a enumeração dos verbos que subcategorizam uma oração infinitiva, distinguindo depois entre aqueles em que esta oração figura como complemento directo e os que a apresentam como sujeito, admitindo que nestas construções não funcionam como verbos auxiliares. Na lista do primeiro tipo de verbos figuram os causativos fazer, mandar, enviar e leixar e os perceptivos ouvir e ver. Numa tentativa de descrição das sequências verbais, Mattos e Silva (1993) apresenta os dados registados quanto aos verbos que se associam às formas nominais (Particípio Passado, Gerúndio e Infinitivo), tentando descrever o seu comportamento sintáctico-semântico. No que às sequências com um verbo na forma infinitiva diz respeito, apresenta as perífrases verbais aver de e aver a + Infinitivo, como estabelecedoras de uma obrigação ou necessidade. Indica ainda a construção ir + Infinitivo como usada para expressar uma intenção projectada no futuro. Por fim, destaca a falta de consenso entre os diferentes autores que abordam esta temática, relativamente ao conjunto de verbos que admitem a completiva infinitiva. Propõe então que os verbos causativos, perceptivos, aspectuais e modais possam figurar no leque daqueles que subcategorizam subordinadas em que o verbo selecciona uma oração complemento na forma infinitiva, regido ou não de preposição. Entre aqueles que importam ao nosso estudo refere no elenco dos perceptivos os verbos ouvir e ver e, no dos causativos, os verbos fazer, mandar, enviar e leixar. O estudo da temporalidade em orações completivas infinitivas subcategorizadas por verbos causativos e perceptivos revela-se ainda incipiente no contexto do Português contemporâneo. Quanto ao Português Medieval verificamos a total inexistência de qualquer tentativa de descrição. Podemos atribuir esta falta de interesse à complexidade de uma análise deste teor, em virtude das dificuldades inerentes a um estudo baseado exclusivamente em testemunhos escritos, enumeradas adiante em (III. 3.). O nosso trabalho parte, portanto, do zero no que toca a descrições prévias quanto ao Português Medieval, relativas às categorias que abordamos, pretendendo ser uma contribuição que funcione como ponto de partida para o estudo desta problemática. I. 4. 3. PROPOSTA DE CUNHA & SILVANO (2006) As descrições do Infinitivo em gramáticas tradicionais apontam para que esta forma verbal seja totalmente privada de marcas de localização temporal, predizendo que a mesma faculta apenas a indicação da acção verbal propriamente dita (sem situá-la no tempo), encarada de um modo geral, ou seja, como uma simples ideia, o processo verbal em si mesmo, de modo abstracto ou virtual. Recentemente, Cunha & Silvano (2006) apresentaram uma proposta refutando a clássica assunção de que o Infinitivo, quando usado em orações completivas, não comportaria qualquer informação temporal. Assim, tentam demonstrar que este tempo apresenta marcas de temporalidade, em particular de sobreposição ao Ponto de Perspectiva Temporal (TPpt) seleccionado. Para alcançar este propósito, analisam as construções em que o Infinitivo é seleccionado por verbos cujas propriedades não influenciam o perfil temporal das encaixadas que introduzem. É então apresentado um conjunto de exemplos retirados de corpora do Português actual, em que diversos tipos de eventualidades são introduzidas pelos verbos dizer e afirmar, apontados como relativamente “neutros” quanto à marcação temporal das situações com que se combinam. Desta análise resulta a conclusão de que os estados, quer sejam básicos ou derivados, manifestam uma leitura de sobreposição relativamente à informação temporal do verbo presente na oração principal, enquanto que os eventos apresentados, embora não resultem agramaticais, parecem ocasionar anomalias semânticas. Com o intuito de verificar se aquela distinção é de facto significativa no contexto da marcação da localização temporal do Infinitivos, os autores promovem através do Progressivo, a comutação das situações eventivas em estativas. Deste teste resulta a conclusão de que a classe aspectual das eventualidades é de suma importância quanto à marcação temporal das situações, já que todos os exemplos anteriormente agramaticais enquanto eventos, se manifestam agora aceitáveis depois de passarem a estados. Cunha & Silvano justificam esta diferença registada quanto ao comportamento de estados e eventos, através da hipótese sugerida por Kamp & Reyle (1993). Esta proposta postula que os estados estabeleceriam uma relação de sobreposição com o seu TPpt, ao passo que os eventos teriam que ser incluídos neste intervalo de tempo. Esta explicação permite perceber que os eventos anteriormente apresentados, não possuindo marcas de localização temporal específica, não podem ser incluídos no seu Ponto de Perspectiva Temporal, condição necessária à sua interpretação. Por sua vez, os estados não necessitam de uma localização específica, já que, sendo eventualidades alargadas, têm sempre a possibilidade de começar antes e estender a sua duração para além dos limites da situação descrita pelo verbo regente. Porém, se esta justificação parece explicar a anomalia semântica patenteada nas primeiras situações apresentadas a análise, num conjunto posterior de exemplos, os eventos regidos pelos mesmos verbos “neutros” apresentam uma gramaticalidade que só poderá ser explicada se atribuirmos marcas de temporalidade ao Infinitivo encaixado. Partindo deste pressuposto e sabendo que os tempos finitos localizam as eventualidades em relação a um determinado TPpt, enquanto que este TPpt se localiza tendo em conta o tempo da enunciação, Cunha & Silvano defendem que as formas de infinitivo se manifestam “defectivas em termos temporais, fornecendo unicamente indicações respeitantes ao primeiro tipo de relação mencionada.”13 Concomitantemente, não sendo o Infinitivo capaz de estabelecer qualquer tipo de relação temporal com o ponto F (o tempo da fala ou enunciação), a única forma de fornecer qualquer indicação temporal será relativamente ao seu TPpt14 que, no contexto destas construções coincidirá com o evento expresso pelo verbo regente. No entanto, e para justificar as anomalias observadas anteriormente, Cunha & Silvano destacam a obrigatoriedade de uma leitura composicional 13 14 Cf. CUNHA & SILVANO (2006: 306). Ou ponto R, na terminologia de Reichenbach (1947). das eventualidades, tendo sempre em consideração a interacção dos traços aspectuais. Da análise até aqui exposta, ressalta a hipótese de que o Infinitivo Simples compreende em si mesmo algumas marcas de temporalidade, em particular de sobreposição com o respectivo TPpt. No entanto, são apresentados casos em que o Infinitivo Simples remete para um intervalo posterior ou anterior ao tempo de localização descrito pelo verbo da oração introdutora. Nestes casos, os autores defendem o predomínio da influência das características semânticas dos verbos introdutores, sobre a informação temporal veiculada pelo Infinitivo. São apresentados exemplos em que a Infinitiva é introduzida por diferentes tipos de verbos, verificando-se que a informação semântica por eles veiculada se sobrepõe à do Infinitivo. A presença de adverbiais temporais pode ainda alterar o condicionamento da leitura temporal das eventualidades. Destacamos ainda neste estudo um outro ponto que nos interessa particularmente, relacionado com a ambiguidade semântica do verbo introdutor. Neste caso, é referida a possibilidade de o mesmo verbo introdutor licenciar duas interpretações temporais distintas, consoante subordine orações finitas ou infinitivas. A justificação apontada para tal comportamento reside no facto de que as características semânticas do verbo regente mudariam consoante o tipo aspectual do verbo presente na oração subordinada. Por fim, Cunha & Silvano reafirmam a sua proposta de que as formas de Infinitivo Simples comportam alguma informação temporal, em particular de sobreposição com o TPpt fornecido pelo verbo regente. No entanto, para que esta informação temporal se mostre “visível” ou “activa”, é necessário que os verbos introdutores sejam relativamente “neutros” quanto à codificação deste tipo de informação. Emerge desta forma a necessidade de considerar diversos factores na determinação temporal das orações completivas infinitivas, que requerem uma leitura composicional da frase, tendo em conta não só o tipo semântico do verbo introdutor, o tipo aspectual do verbo subcategorizado, o tipo de predicado e ainda a presença de advérbios temporais. CAPÍTULO II METODOLOGIA II. 1. CONSTITUIÇÃO DO CORPUS A análise desenvolvida no presente estudo incidiu sobre dados extraídos do corpus textual português dos séculos XII, XIII e XIII/XIV, do CIPM - Corpus Informatizado do Português Medieval. Abrangendo três séculos de produção escrita em Português, a constituição do corpus em análise atendeu ao interesse em integrar textos de diversos géneros literário- -discursivos, procurando vir a obter a maior diversidade possível de relações predicativas, uma vez que, como sabemos, tendo cada tipo de texto uma função específica e um público-alvo distinto, o seu vocabulário e as suas construções são muito limitadas, em particular, nos textos antigos. Compreendendo tanto poesia, prosa literária como prosa não literária e, contemplando textos tão díspares em termos de conteúdos, informação linguística e construção estilística como são os notariais e as cantigas, passando por textos hagiográficos, religiosos, didácticos, narrativos e testamentos, listamos em seguida os textos submetidos a análise por séculos, apresentando a designação do texto e entre parênteses a sigla pela qual serão referidos doravante: Séc. XII: - Diplomas Particulares (DP) - Documentos Notariais (DN) - Textos Notariais in Clíticos da História do Português (CHP) Séc. XIII: - Cantigas de Santa Maria (CSM) - Cantigas de Amigo (CAmi) - Cantigas de Amor (CAM) - Cantigas de Escárnio e Maldizer (CEM) - Chancelaria D. Afonso III (CA) - Documentos Notariais (DN) - Dos Costumes de Santarém (CS) - Foro Real, Afonso X (FR) - Foros de Garvão (FG) - Notícia de Torto (NT) - Tempos dos Preitos (TP) - Testamento de D. Afonso II: Ms. L (TL) - Testamento de D. Afonso II: Ms. T (TT) - Textos Notariais do Arquivo de Textos do Português Antigo (Oxford) (TOX) - Textos Notariais in Clíticos da História do Português (CHP) - Textos Notariais in História do Galego-Português (HGP) Séc. XIII/XIV: - Cantigas de Escárnio e Maldizer (CEM) - Vidas de Santos de um Manuscrito Alcobacence (VS) II. 2. METODOLOGIA DE EXTRACÇÃO E TRATAMENTO DE DADOS Uma vez que os textos seleccionados já reuniam as condições para ser trabalhados conjuntamente, ou seja, todo o tratamento a nível de anotações e comentários com o intuito de obedecerem aos mesmos critérios editoriais estava concluído, foi possível desempenhar as tarefas basilares para este tipo de projectos. Assim, a primeira etapa consistiu em agrupar estes textos e proceder à elaboração de listagens das palavras e de concordâncias das mesmas. A concordância é um mecanismo que consiste em, perante um corpus textual, extrair automaticamente os contextos à esquerda e à direita, com uma extensão previamente definida e por ordem alfabética, de todas as palavras presentes no corpus, permitindo assim um acesso mais facilitado aos textos, bem como a possibilidade de um estudo comparativo dos lexemas. Após a tarefa supracitada, foi então possível proceder à lematização dos verbos seleccionados, atestados no corpus textual deste estudo. A lematização dos verbos consistiu na identificação (de forma manual) de todas as formas verbais, incluindo as respectivas variantes gráficas, e no seu consequente agrupamento sob a cabeça ou vedeta de cada verbo, de forma a identificar mais facilmente o lexema em apreço. Para tal, foi necessário, em primeiro lugar, realizar uma limpeza geral das listagens, permanecendo somente as formas pertencentes aos cinco verbos em estudo, o que implicou um tratamento integral das listagens, uma vez que a eliminação de todas as formas dos outros lexemas só é possível após a sua verificação individual. Este trabalho moroso e necessariamente meticuloso permitiu seleccionar as formas verbais relevantes para este estudo e agrupar as variantes gráficas, o que facilitou o trabalho posterior de análise das construções por elas subordinadas. Todavia, o tratamento do corpus não terminou por aqui, uma vez que nas lematizações permanecia ainda a totalidade das ocorrências das formas verbais referentes aos verbos causativos e perceptivos em análise, não havendo ainda lugar para uma distinção das construções em que ocorrem. Esta foi a etapa seguinte, um trabalho também necessariamente demorado em virtude da complexidade e minuciosidade que acarreta a análise individual de todas as ocorrências para um levantamento exaustivo, devido à extensão do corpus seleccionado – um total de 46 444 palavras em 581 017 ocorrências distribuídas por séculos como infracitado: Século XII - Século XIII - 692 palavras em 1 994 ocorrências; 38 223 palavras em 542 063 ocorrências; Séculos XIII/XIV - 7 529 palavras em 36 960 ocorrências; À execução de tal tarefa acresce ainda uma dificuldade adicional, atendendo ao facto de que todo este trabalho de selecção de abonações é efectuado de forma manual, sendo os excertos retirados das concordâncias, obedecendo a dois requisitos fundamentais – os excertos têm de ser frases completas e com uma extensão razoável, de modo a que o contexto seja perceptível. As abonações são precedidas da informação da data de produção do texto ou, no caso desta ser desconhecida, da informação possível que poderá ser um intervalo de datas ou somente o século e em seguida é colocada a sigla referente à edição e o número do texto, nos casos em que este se encontra subdividido. Toda esta informação será apresentada entre parênteses rectos, conforme exemplificado em seguida: [1264-1284 CSM053] Na apresentação dos excertos, adoptámos uma sinalética reduzida, que passamos no entanto a descrever: (...) Corte na citação / Marca de verso // Marca de estrofe Negrito Marca para as construções em estudo II. 3. OUTRAS CONSIDERAÇÕES O maior obstáculo com que nos deparamos neste tipo de estudos é sem dúvida de natureza temporal, com todas as implicações e dificuldades que uma análise desta ordem acarreta. Uma distância temporal que chega a totalizar nove séculos levanta problemas de diversas ordens, que passamos a enunciar: i. A documentação escrita, ainda que escassa, constitui-se como o único testemunho remanescente de um sistema linguístico que, como sabemos, não é um retrato fiel da coloquialidade dos falantes da época, mas tão somente a sua representação, tendo em conta a finalidade de cada texto, estando aqui em causa a representatividade deste corpus relativamente ao sistema linguístico da época; ii. Tendo em conta a inexistência de falantes, a impossibilidade de testar as produções escritas inviabiliza qualquer juízo de gramaticalidade; iii. A inexistência de uma norma ortográfica e gramatical única para a altura dificulta a leitura e a análise das predicações, considerando a variação registada; iv. A multiplicidade de autores, tradutores e copistas, bem como a existência de cópias tardias e ainda as limitações inerentes aos esquemas métrico e rimático no caso das cantigas, provocam consequências de ordem prática, tais como a mistura dialectal, os erros de escrita (erros humanos do escriba), a hipercorrecção, a supressão ou introdução de vocábulos e ainda trocas na ordem de palavras. Equacionados todos estes factores, afigura-se-nos problemática uma sistematização ou generalização de regularidades para este período, pelo que nos remetemos única e exclusivamente à observação dos dados do corpus constituído para este estudo, de forma que ressaltamos que todas as conclusões advindas deste trabalho se referem estritamente àquilo que nos foi dado observar através da análise que a seguir se apresenta. CAPÍTULO III ANÁLISE DO VALOR TEMPORAL DAS INFINITIVAS SUBCATEGORIZADAS POR VERBOS PERCEPTIVOS E CAUSATIVOS Tendo em conta os resultados obtidos pela investigação de Cunha & Silvano (2006), pretendemos averiguar quais as relações temporais que determinadas construções com orações completivas de tipo infinitivo estabelecem com o seu TPpt, num corpus dos séculos XII, XIII e XIII/XIV. Mais especificamente, examinámos os mecanismos linguísticos que possibilitam a determinação da localização temporal da situação descrita pelas orações completivas infinitas relativamente ao estado de coisas descrito na oração de que dependem. O nosso objectivo passa, portanto, por descrever o que ocorre neste corpus relativo a um período específico da Língua Portuguesa (não podendo nunca afirmar que será representativo do que aconteceria na oralidade), quando o Infinitivo é seleccionado por dois conjuntos de verbos com características semânticas diferentes – verbos perceptivos (ouvir e ver) e verbos causativos (fazer, leixar e mandar). Evidentemente conscientes de que os verbos da matriz, pertencendo a duas classes cujas informações semânticas condicionam necessariamente a interpretação temporal das eventualidades por eles subcategorizadas, pretendemos averiguar precisamente de que forma essa leitura temporal é licenciada. Consideramos, como Cunha & Silvano (2006) que o Infinitivo é defectivo em termos de localização temporal, pretendendo a nossa análise descrever precisamente quais as relações temporais estabelecidas entre a forma infinitiva da completiva e o seu TPpt, que no caso do presente estudo, será um dos verbos perceptivos ou causativos seleccionados. Neste capítulo pretendemos analisar individualmente cada um dos cincos verbos seleccionados, fazendo depois, no final da descrição de cada tipo de verbos, uma conclusão em que apresentamos um estudo comparativo dos verbos da mesma categoria. Ao contrário daquilo que acontece com os verbos denominados causativos, com os perceptivos não ocorre a manipulação do referente-sujeito da completiva por parte do referente-sujeito da matriz. No que aos verbos perceptivos diz respeito, restringimos a nossa investigação àqueles que, em orações complexas, seleccionam complementos oracionais que indicam algo que resultou da percepção sensorial ou intelectual do referente-sujeito da matriz – neste caso, seleccionámos os verbos ver e ouvir. Verbos causativos são aqueles que expressam uma relação de causalidade entre dois eventos, o primeiro é provocado por um sujeito causador, que actua sobre o causado do evento subordinado. Esta relação de causatividade entre o causador da matriz e o causado da encaixada pode ser de várias ordens, manifestando-se essa distinção relevante para a análise que desenvolvemos. No presente estudo, limitámos a nossa análise aos verbos causativos mandar, fazer e leixar (que deu origem ao contemporâneo deixar) presentes na oração principal, que implicam os eventos descritos na completiva. Do conjunto de todos os verbos perceptivos e causativos, a razão para restringir o presente estudo aos verbos mandar, fazer e leixar, por um lado, e ver e ouvir, por outro, prende-se com o facto destes verbos serem os mais frequentes no corpus proposto, sendo que a ocorrência de outros, tais como sentir, enviar e causar não é significativa, o que tornaria a sua análise inconsistente. III. 1. VERBOS PERCEPTIVOS III. 1. 1. VERBO VER O verbo perceptivo ver apresenta um total de 3196 ocorrências no corpus dos séculos XII, XIII e XIII/XIV, sendo que 452 delas têm como complemento uma oração infinitiva. Pudemos apurar através do levantamento destas construções que o verbo ver ocorre nos seguintes tempos verbais: Presente do Indicativo, Pretérito Perfeito do Indicativo, Pretérito Imperfeito do Indicativo, Pretérito Mais-QuePerfeito do Indicativo, Futuro do Indicativo, Condicional, Presente do Conjuntivo, Pretérito Imperfeito do Conjuntivo, Futuro do Conjuntivo e Infinitivo. Não se registam, no entanto, construções com Imperativo e Gerúndio. É curioso verificar numa perspectiva comparativa que, no DGVP15, a construção em que o verbo ver subordina uma completiva infinitiva como complemento directo tem apenas uma leitura, que seria neste caso “concluir”: “Concluir” [GN[Suj] V F NãoFinita [C. dir.]] O polícia viu ter sido ela a instigadora do crime. No entanto, ao atentarmos na descrição do Português Medieval16, observamos a existência de uma maior diversidade de significações para esta construção: 15 Cf. CASTELEIRO (2007), pp. 775. “Ver, observar, verificar” alguém vê fazer/acontecer [ — Vinf ] [1280 FR] ou se o matar accurr do a seu senhor que ueya matar ou que queyrã matar Sabendo que os verbos perceptivos são predicados binários que seleccionam um argumento experienciador e um argumento proposição e, tendo em consideração esse papel passivo do sujeito, partimos do pressuposto de que o estado de coisas percebido, expresso pela infinitiva, terá sempre uma interpretação de sobreposição temporal em relação à eventualidade presente na oração principal, independentemente do tipo de situação representado na oração encaixada. Vejamos então se esta assunção se comprova no corpus: (1) [séc.13/14 VS6] Quando Esmarado tam fortemente vio chorar Panunçio e que nom rreçebia cõforto nehũũ. disse-lhe: - por que te contorvas por que te matas per ventura he fraca ou he cara cousa de fazer a Deos qual quer cousa leixa ja a tristeza (2) [1264-1284 CSM426] Pois est' ouve dito, nas nuves subiu, / e a gent' aos ceos subi-lo viu, / que a voz dos angeos logo oyu / que lles diss' assi: "Varões galileus, / Subiu ao ceo o Fillo de Deus ... / Ena maneira que o veedes dacá / subir ao ceo, ben assi verrá / joyga-lo mund' e os mortos fará / resurgir, que non creen os fariseus." 16 Cf. DVPM. (3) [séc.13/14 VS5] E de hũu cabo do mõte ao outro estava por ponte hua tavoa ẽ que avya cinquo mil passadas em longo e hũu pee em ancho. Polla qual nõ podya nẽhũu passar que nõ ouvesse de cayr ẽ fundo. salvo o que fosse muito escolheito e muy boo. E vyo muitas almas cayr em fundo. (4) [séc.13/14 VS7] Quando o santo homẽ ouvio estas palavras foy mui espantado e mui torvado porque sse vyo chamar per sseu nome quem o nunca vira nẽ houvira sse lhe nõ ffosse demostrado per Nosso Ssenhor A observação dos dados parece atestar a suposição acima, uma vez que, apesar dos diferentes perfis aspectuais das situações apresentadas (respectivamente processo, processo culminado, culminação e ponto), todas elas manifestam uma interpretação de sobreposição relativamente àquelas descritas na oração matriz. Contudo, existem outras situações que parecem contradizer a generalização avançada: (5) [séc. 13 CEM363] Todos dizem que Deus nunca pecou, / mais mortalmente o vej’eu pecar: / ca lhe vej’eu muitos desemparar / seus vassalos, que mui caro comprou; / ca os leixa morrer com grand’amor, / desemparados de bem de senhor / e já com’estes mim desemparou. Apesar de não ocasionar qualquer anomalia semântica, (isto, tendo em conta a nossa competência linguística para o Português contemporâneo) a leitura já não é a mesma dos exemplos anteriores, em que existe uma clara sobreposição entre a acção do sujeito experienciador e o evento percebido da encaixada. Como explicar então a leitura de não sobreposição em (5)? Os processos que figuram na subordinada, sendo subcategorizados por uma forma do Presente do Indicativo ganham uma extensão suficientemente longa, não delimitada e homogénea para ocorrer uma comutação para estado habitual. Logo, a ausência tanto de uma culminação como do seu respectivo estado consequente inviabiliza a leitura de sobreposição verificada nos casos anteriores, permitindo desta feita estabelecer assim uma relação de não sobreposição com a frase matriz com que co--ocorre. Parece ser, então, a acção do Presente do Indicativo que actua como estativizador e confere a leitura habitual, que permite a interpretação de não sobreposição das orações. Consideremos então o verbo perceptivo no Presente do Indicativo: (6) [1264-1284 CSM261] E os outros que oydes leer / loando a Deus e aposto cantar, / angeos son que o sempre veer / poden; e aqueles dous que chegar / veedes, Jhesu-Cristo sen dultar / ést' e sa Madre, onde foi nacer." Se atentarmos em (6), a culminação é interpretada como temporalmente sobreposta à eventualidade expressa na oração matriz. Dado que as infinitivas em (5) e (6) contemplam classes aspectuais diferentes podemos questionar se este não será um indício de que o tipo semântico do verbo da completiva influencia a sua interpretação temporal relativamente à situação descrita pelo verbo da oração principal. Obrigará o carácter pontual da completiva infinitiva a uma leitura de sobreposição (ou mais concretamente, de inclusão), enquanto que o estado habitual, prolongando-se no tempo e podendo extrapolar os limites temporais do seu Tempo de Localização, rejeitará (ou pelo menos não implicará) esta interpretação? (7) [séc.13/14 VS7] E cada huũ delles tomava sua rregra propria em ssua vida. a qual nom mudava e nom ssabia parte huũ do houtro como vivia nẽ que hobrava e partian-sse cada huũ a ssua parte pella rribeyra do rriio de Jordam e ally moravam em o deserto apartadamente que nunca sse ajuntavam em toda a quareesma E sse acontiçia que alguũ delles visse viír o houtro a lõge de ssy logo leixava aquella carreyra per que viinha e hia per outra carreyra soo cantando e dando graças a Nosso Ssenhor Retomando ainda o exemplo (2) e investigando o exemplo (7), aferimos que não depende da duratividade da situação a sua leitura de sobreposição relativamente ao estado de coisas descrito na oração regente, uma vez que os processos culminados apresentam a mesma interpretação temporal que a culminação em (6). De notar é ainda a alternância do Presente do Indicativo com o Pretérito Imperfeito do Conjuntivo, o que demonstra que o tempo verbal não é decisivo para uma leitura de sobreposição. Neste ponto, tudo indica que será crucial a diferença aspectual entre situações estativas e eventivas para a interpretação temporal destas orações. Propomos como hipótese, portanto, que os outros estados manifestem o mesmo comportamento de não sobreposição patente em (6). (8) [séc.13/14 VS7] Aquelle homem a que eu preguntava a que logar hia aquela conpanha quando ouvio as pallavras torpes que eu dizia sorriosse E eu fui-me mui toste ao mar e vy emtom dez homẽes mançebos estar na rribeira do mar jogando e ffazendo cousas de vaidade de mãçebia e aguardavã os sseus conpanheiros que andavã ẽ os navios ca muitos estavom ja no navio Desta feita o estado de estádio licencia claramente uma leitura de sobreposição relativamente à eventualidade da oração matriz. Cai assim por terra a nossa hipótese de que seria o carácter estativo das situações subcategorizadas a conferir a interpretação de sobreposição temporal quanto ao evento da oração regente. Recapitulando, a diferença entre as leituras de sobreposição e não sobreposição temporal entre as orações com o perceptivo ver e as respectivas orações completivas infinitivas não depende de nenhuma das seguintes contingências: i. O tempo verbal em que ocorre a oração principal; ii. O tipo semântico do verbo da completiva, podendo esta distinção ter em conta um de dois factores: a. Alternância entre eventualidades pontuais e eventualidades durativas; b. Alternância entre eventos e estados. Observemos então outros exemplos que ilustrem este valor de não sobreposição: (9) [séc. 13 CAM282] E ja eu non posso chorar, / ca ja chorand' ensandecí, / e faz-mh-amor andar assí / como me veedes andar: / catando per cada logar, / assí and' eu, assí and' eu, / assí and' eu, assí and' eu. (10) [séc. 13 CAmi425] Par Deus, amigo, non sei eu que é, / mais muit’ á ja que vos vejo partir / de trobar por mi e de me servir, / mais ũa destas é, per bõa fe: / ou é per mi, que vos non faço ben, / ou é sinal de morte que vos ven (11) [séc. 13 CAM386] E muytus vej' a Deus rogar / que lhe-la mostre ou que lhis dê / mort', e juran per bôa fe / que esta coyta non á par: / non a veer; ca ja quit' é, / hu a non vir, d' en al cuydar / nen de pagarsse d' outra ren. (12) [séc. 13 CAM291] "Senhor, veedes-me morrer / desejando o vosso ben, / e vós non dades por en ren, / nen vos queredes en doer!" / "Meu amigu', en quant' eu viver, / nunca vos eu farey amor / per que faça o meu peyor." Podemos observar que, em todos os casos anteriores (de (9) a (13)), tal como em (5) não existe uma relação temporal marcada entre as duas eventualidades, uma vez que o verbo ver não expressa neste caso uma percepção sensorial, parafraseável pela expressão “perceber pela visão, enxergar” e por isso passível de ser confirmada ou rejeitada por outro sujeito quando exposto à mesma situação. Pelo contrário, a percepção manifestada parece ser de outro tipo oposto ao sensitivo – uma percepção intelectual (ou racional) exclusiva ao sujeito por ser subjectiva, correspondente a “tomar conhecimento, dar-se conta, perceber, sentir”. O mesmo será dizer que o experienciador, de forma intuitiva e devido à observação de alguns casos, se apercebe de um padrão, facto que o leva a estender os resultados da repetição de uma dada situação, retirando daí uma conclusão generalizadora. A situação representada na oração completiva é sempre alargada, apresentando-se muitas das vezes como um estado de coisas iniciado no passado, que se vai repetindo (ou estendendo) ao longo do tempo, e que embora o experienciador não presencie na íntegra, apercebe-se da sua extensão através da observação (ainda que não contínua) de diferentes “etapas” da situação em curso, ao longo do tempo. Concluímos então que os estados de coisas que figuram nas infinitivas complementos do verbo perceptivo ver podem ter duas interpretações temporais relativamente aos estados de coisas representados na oração principal: sobreposição ou não sobreposição. Estas duas possibilidades quanto ao estatuto temporal das completivas infinitivas oscilarão, não devido ao tipo de eventualidade representada na oração encaixada, mas pelo contrário, decorrentes da ambiguidade semântica do verbo introdutor. III. 1. 2. VERBO OUVIR O verbo ouvir conta com 136 construções em que subcategoriza orações infinitivas, entre um total de 886 ocorrências no corpus dos séculos XII, XIII e XIII/XIV. A análise individual destas construções revelou a ocorrência do verbo perceptivo nos seguintes tempos: Presente do Indicativo, Pretérito Perfeito do Indicativo, Pretérito Mais-Que-Perfeito do Indicativo, Futuro do Indicativo, Presente do Conjuntivo, Pretérito Imperfeito do Conjuntivo e Infinitivo. Não se verificou a existência desta construção com Pretérito Imperfeito do Indicativo, Condicional, Imperativo, Futuro do Conjuntivo e Gerúndio. No DGVP 17, a descrição deste verbo no que toca a esta construção, em que o seu objecto directo é uma oração infinitiva, aponta apenas um significado para este verbo, nomeadamente “ter percepção dos sons”: “Ter percepção dos sons” [GN[Suj] V F NãoFinita [C. dir.]] A mãe não quer ouvir falar do acampamento. No âmbito desta construção, o verbo teria precisamente esta mesma leitura no Português Medieval, a única descrita no DVPM: “Ouvir” 17 Cf. CASTELEIRO (2007), pp. 585-586. alguém ouve fazer [ — Vinf ] [1260 CHP031] Conuzuda. cousa. seia. a todos. aqueles. que. este. prazo uirẽ. e léér. ouuirẽ Tendo como base as descrições referidas acima, contando com a vantagem de serem confluentes numa única interpretação semântica, a nossa proposta inicial terá que apontar para uma leitura de sobreposição entre o tempo da percepção e a situação percebida. Esta hipótese é ainda reforçada pela ideia de que, sendo um verbo de dois lugares, ouvir apresenta um experienciador como argumento externo e uma proposição como argumento interno, o que implicará a sobreposição dos dois estados de coisas, como condição necessária para que ocorra a percepção. Atentemos nos seguintes exemplos retirados do corpus segundo a necessidade de fazer representar diversas classes de eventualidades: (1) [séc. 13 CAM038] Oí og' eu ûa pastor cantar / du cavalgaba per ûa ribeira, / e a pastor estava senlleira; / e ascondi-me pola escuitar, / e dizia mui ben este cantar: / "Solo ramo verd' e frolido / vodas fazen a meu amigo; / ¡choran ollos d' amor!" (2) [1278 HGP025] Garsia Domĩguez d’Oleiros, filo de Sancha Paiz, testis, & outros muytos que o uirõ e o oyron fazer esta carta (3) [séc. 13 CAM383] Senhor fremosa, oy eu dizer / que vus levaron d' u vus eu leixei / e d' u os meus olhos de vós quytey: / aquel dia fora ben de morrer / eu, e non vira atan gran pesar / qual mi Deus quis de vós amostrar. (4) [séc. 13 CAmi201] E a pastor parecia mui ben / e chorava e estava cantando / e eu mui passo fui mi achegando / pola oír e sol non falei ren / e dizia este cantar mui ben: / “Ai estorninho do avelanedo, / cantades vós e moir’ eu e peno / e d’ amores ei mal” // E eu oí a sospirar enton / e queixava se estando con amores De facto, tanto processos, como processos culminados, bem como culminações e pontos sugerem a interpretação da completiva como sobreposta à oração matriz. Apesar desta aparente regularidade, no decurso da análise individual de todas as relações predicativas entre o perceptivo ouvir e a completiva infinitiva subcategorizada, notamos um desvio em determinados casos, em que a leitura parece deixar de ser a de sobreposição: (5) [séc. 13 CEM320] Eu, em Toledo, sempr’ouço dizer / que mui maa vila de pescad’é; / mais nõn’o creo, per bõa fé, / ca mi fui eu a verdad’en saber: / ca, noutro dia, quand’eu entrei i, / bem vos juro que de mi / ia vista vi / a Peixota su um leito jazer. Em (5), o advérbio sempre marca desde logo uma leitura habitual, o que provoca de imediato a alteração do perfil aspectual da eventualidade expressa por dizer, que passa assim de culminação a estado habitual. Neste caso, parece ser do conhecimento comum que em Toledo não haveria bom peixe, facto repetido frequentemente ao longo do tempo. A situação representada por “ouço” relativamente ao estado de coisas expresso por “dizer que mui maa vila de pescad’é”, parece ser experienciada ao longo do tempo, várias vezes, embora não se verifique todas as vezes que a situação da encaixada ocorre. Logo, não se verifica a sobreposição dos estados de coisas, uma vez que não há uma observação directa, mas sim uma relação que referiremos doravante como uma relação de não sobreposição. Concluímos então que será a acção do advérbio sempre a responsável por modificar a significação da predicação, atribuindo habitualidade ao estado de coisas descrito pelo Presente do Indicativo. Devemos, contudo, confirmar se a presença do advérbio é necessária para que a leitura habitual ocorra: (6) [séc. 13 CAM148] O ouç' eu dizer hûu verv' aguysado: / que bem e mal sempre na face vem; / e verdad' é, per com' end' a my avem / d' hûa dona, hu tod' est' ey osmado, / ca de quanto bem na sa face vy / vem end', amigos, tanto mal a mim, / per que o verv' em meu dan' é provado. (...) E des entom, amigos, entendi / que este vervo, que eu senpr' ouvi, / hé com verdad' em meu dan' acabado. Embora à primeira vista possamos atribuir à situação em (6) o valor de sobreposição, verificamos através do contexto que, pelo contrário, esta predicação apresenta um valor temporal em tudo semelhante a (5). De facto a eventualidade descrita em “dizer hûu verv' aguysado” apresenta-se como um provérbio característico do discurso de alguém, pela frequência com que é proferido. Verificamos assim que a presença do advérbio sempre não é obrigatória para que ocorra a leitura de não sobreposição. Neste ponto podemos questionar a relevância do tempo verbal da oração matriz para a atribuição desta interpretação temporal da eventualidade da encaixada, dado que uma das possíveis leituras do Presente do Indicativo quando subcategoriza eventos é precisamente a de habitualidade, comutando desta feita a situação eventiva em estativa. Seria por isso interessante verificar se esta interpretação ocorre com mais algum tempo verbal: (7) [séc. 13 CEM155] Maior Garcia sempr’oiu dizer / por quem quer que se podesse guisar / de sa mort’e se bem maenfestar, / que nom podia perdudo seer; / e ela diz, por se de mal partir, / que, enquant’houver per que o comprir, / que nom quer já sem clérigo viver. (8) [séc. 13 CAmi244] Por que oí sempre dizer, du ome muit’ amou molher, / que se non podia end’ ir, pesar mh á, se eu non souber: / se mi vós queredes gran ben, como podedes ir daquen? (9) [séc. 13 CEM132] Pero d’Ambroa, sempr’oí cantar / que nunca vós andastes sobr’o mar / que med’houvéssedes, nulha sazom; / e que havedes tam gram coraçom, / que tanto dades que bom tempo faça / bem como mao nem como bõaça / nem dades rem por tormenta do mar. Em primeiro lugar, podemos concluir que o Presente do Indicativo não detém o exclusivo, no que toca à leitura de não sobreposição quanto à eventualidade da oração subcategorizada. Em (7)-(9) obtemos esta mesma interpretação com o Pretérito Perfeito do Indicativo, podendo no entanto atribuir esta leitura à influência do advérbio sempre, que se manifesta em ambos os casos. Para confirmar esta suposição, resta-nos observar o que acontece com frases em que o Pretérito Perfeito do Indicativo não sofre a interferência do advérbio sempre: (10) [séc. 13 CEM028] E ar oí-vos eu dizer que a quem quer que chagassem / com estas vossas espadas que nunca se trabalhassem / jamais de o guarecerem, se o bem nom agulhassem. (11) [séc. 13 CEM138] Meu senhor Rei de Castela, / venho-me vos querelar: / eu amei ũa donzela, / por que m’ouvistes trobar; / e com quem se foi casar, / por quant’eu dela bem dixi, / quer-m’ora por en matar. (12) [1264-1284 CSM079] O padre e a madre, quand' aquesto viron, / preguntaron Musa; e poys que ll' oyron / contar o que vira, merçee pediron / á que nos manten. Verificamos que nestes casos em que o perceptivo ouvir comparece no Pretérito Perfeito a interpretação da eventualidade expressa na completiva pela forma infinitiva é de sobreposição, tal como é comum neste tipo de predicações. Assim, concluímos através da análise contrastiva entre (7)-(9) e (10)-(12) que, enquanto que com o advérbio sempre o Pretérito Perfeito ocasiona uma leitura de não sobreposição, pelo contrário, quando o advérbio não ocorre a leitura é a regular para este tipo de predicações que têm como regente o verbo perceptivo ouvir, isto é, ocasiona uma interpretação temporal de sobreposição relativamente à eventualidade da subordinada. Recapitulando, os estados de coisas que figuram na subordinada infinitiva podem ter dois tipos de interpretação temporal relativamente à eventualidade da matriz: sobreposição na maior parte dos casos, e não sobreposição verificada no corpus com dois tempos verbais distintos, o Presente do Indicativo e o Pretérito Perfeito do Indicativo. No primeiro caso, o Presente parece licenciar por si só uma leitura habitual quando a situação na oração subcategorizada é pontual e se verifica repetidamente ao longo do tempo (informação atribuída pelo contexto). Por outro lado, quando o advérbio sempre opera sobre um estado de coisas que figura no Presente, é a sua presença que determina de imediato a comutação para um estado habitual. No segundo caso, também o Pretérito Perfeito do Indicativo pode originar uma leitura habitual, precisando no entanto do advérbio sempre para sugerir esta leitura de uma situação que se desenvolve ao longo do tempo, de modo repetido. Parece-nos, por tudo o que foi observado, que a distinção entre as leituras de sobreposição e não sobreposição possíveis para o perceptivo ouvir decorrem sobretudo das características semânticas da situação subcategorizada, mais concretamente do seu carácter habitual ou repetitivo ao longo do tempo. É da observação desse estado de coisas, não na totalidade das suas ocorrências, mas sim pontualmente, que o experienciador retira a generalização descrita pela oração infinitiva. III. 2. CONCLUSÕES PARCIAIS – VERBOS PERCEPTIVOS Quando partimos para a análise de cada um dos verbos que constituem a classe dos perceptivos, a nossa intuição apontava para que, em todo e qualquer contexto, a situação descrita na oração complemento tivesse uma interpretação de sobreposição relativamente à eventualidade patente na oração principal. Ao considerar que isto ocorreria em todo e qualquer contexto, desvalorizamos a acção de quaisquer diferenças decorrentes do tipo de situação subcategorizada, da sua classificação aspectual e do tempo verbal da oração matriz. Esta tese procede do facto de que, independentemente de todas as constrições acima, a percepção deriva da existência de dois estados de coisas: o da percepção e o percebido. A relação entre estas duas eventualidades teria de resultar, quanto a nós, do contacto directo (através da visão ou da audição) entre o argumento externo do verbo perceptivo e a acção expressa pelo infinitivo. É precisamente neste ponto que a nossa dedução falha, descurando a existência de um outro tipo de percepção que não necessita de contacto directo para que se verifique – uma percepção de tipo intelectual. Ambos os verbos perceptivos analisados admitem estas duas interpretações (sobreposição e não sobreposição) quanto à localização temporal das subordinadas com que se combinam. Podemos considerar que, tanto ver como ouvir, seleccionam uma leitura básica, que será de sobreposição, quando a percepção é directa. Por outras palavras, quando se trata de uma percepção sensorial, essa impressão só poderá ser experimentada ao mesmo tempo que ocorre a eventualidade expressa na encaixada e nunca antes ou depois. Assim, quando alguém diz que viu outrem chorar, a situação descrita pelo perceptivo ver só pode ocorrer ao mesmo tempo que a acção expressa por chorar decorre; o mesmo se passa com ouvir suspirar, que não admite interpretações de anterioridade ou posterioridade, parafraseáveis por expressões como “ouvir suspirar meia hora antes de ter suspirado” ou então “ouvir suspirar depois de suspirar”. A presença do experienciador no momento em que ocorre a situação percepcionada é, pois, condição essencial para que a percepção ocorra. Falamos em leitura básica para referir a interpretação de sobreposição, uma vez que, oposta a esta interpretação do verbo de percepção, que resulta do contacto directo entre o experienciador da percepção e aquilo que é percebido, ocorre no corpus uma outra, que poderemos considerar indirecta. Consideramos indirecta esta leitura uma vez que a percepção apreendida não passa por uma sensação física, mas sim por uma experiência intelectual parafraseável por “chegar a determinada conclusão” ou “perceber, sentir”. As eventualidades que desencadeiam esta leitura descrevem o estado de coisas percebido como uma acção durativa, contínua, em desenvolvimento ou incompleta, ou, melhor dizendo, uma acção de carácter habitual ou frequentativo, que vai acontecendo ao longo do tempo, e à qual o experienciador não assiste na totalidade, não estando presente em todos os momentos em que a situação se verifica, mas da qual toma conhecimento esporádico. Nestes casos não é estabelecida uma relação temporal marcada entre o momento da percepção e a eventualidade percepcionada. Assim, e devido à leitura de habitualidade ou frequentatividade dos estados de coisas subcategorizados (que nunca poderiam ser considerados como anteriores ou posteriores à percepção) consideramos a relação que se estabelece entre as duas eventualidades como de não sobreposição, por oposição à leitura de sobreposição. Encontradas as duas leituras possíveis para os infinitivos seleccionados pelos verbos perceptivos, importa esclarecer quais os mecanismos que contribuem para que ocorra a leitura de não sobreposição, uma vez que a leitura básica será de sobreposição. Através da observação dos dados do nosso corpus e, mais concretamente, da análise individual das ocorrências, é fácil verificar recorrendo ao método de tentativa e erro quais os factores que não influenciam esta interpretação. Por um lado, observámos a acção do advérbio sempre que remete para a duratividade da situação. No entanto, mesmo quando este modificador não comparece, verificamos a existência de casos em que a leitura de não sobreposição pode ocorrer. Desta feita, atribuímos o facto à capacidade do Presente do Indicativo de comutar situações eventivas em estados habituais. No entanto, a hipótese foi abandonada devido à presença de outros tempos verbais evidenciando a mesma interpretação. Voltando então as nossas atenções para o verbo da completiva, supondo que neste residiria o factor determinante, analisámos a sua contribuição a diversos níveis. Concluímos que não só o tipo semântico do verbo subcategorizado não tem qualquer influência para a leitura de sobreposição, como esta também não decorre da duratividade ou pontualidade das situações. A análise contrastiva entre eventos e estados revelou-se também infrutífera neste campo. Uma vez que o argumento externo do verbo introdutor é, em todos os casos, um experienciador que nunca actua como controlador da acção presente na subordinada, nada podemos inferir também daqui. Tendo explorado todas as vias possíveis, nada mais resta senão concluir que a temporalidade da situação expressa pela oração encaixada estará relacionada com as especificidades semânticas do verbo introdutor. De facto, a duplicidade das suas leituras poderá ocasionar importantes diferenças temporais quanto à oração que subordina. O que importa ressaltar é que, quando se refere a uma percepção sensorial, o verbo perceptivo (seja ele o ver ou o ouvir) implica necessariamente a sobreposição das situações; diferentemente, quando a percepção é intelectual, veicula uma interpretação de não sobreposição, em virtude do carácter durativo ou frequentativo da eventualidade descrita pela completiva com infinitivo. III. 3. VERBOS CAUSATIVOS III. 3. 1. VERBO FAZER Somando um total de 7883 ocorrências no corpus dos séculos XII, XIII e XIII/XIV, o verbo fazer é (com uma larga margem) o mais produtivo de todos os verbos estudados em termos de construções em que subcategoriza completivas infinitivas, ao apresentar 713 ocorrências. De realçar é ainda o facto de termos verificado que, nesta construção, o verbo causativo pode aparecer em todos os tempos verbais, a saber: Presente do Indicativo, Pretérito Perfeito do Indicativo, Pretérito Imperfeito do Indicativo, Pretérito Mais-Que-Perfeito do Indicativo, Futuro do Indicativo, Condicional, Imperativo, Presente do Conjuntivo, Pretérito Imperfeito do Conjuntivo, Futuro do Conjuntivo, Gerúndio e Infinitivo. Para o Português contemporâneo, o DGVP18 mostra que a construção em que o verbo fazer subcategoriza uma oração complemento na forma infinitiva (sem preposição) teria uma única leitura como verbo pronominal reflexo: “Levar outrem a” [GN[Suj] V-se F NãoFinita [C. dir.]] Acho que não me fiz compreender. A professora faz-se respeitar. 18 Cf. CASTELEIRO (2007), pp. 463-464. A descrição para o Português Medieval indica também um único significado para a construção em estudo, diferente no entanto daquela que existe actualmente: “Fazer, mandar, obrigar” alguém faz (a) fazer/acontecer [ — (a) Vinf ] [1214 TT] que u quer que eu moira, quer en meu reino quer fora de meu reino, facan aduzer meu corpo per mias custas a Alcobacia. [1269 FG6] que Ante que o preyto seía contestado que lo pode toller fazendóó saber áá parte cõtra e despoys qu?e o preyto cõtestado nõ lo pode toller senõ en Joyzo Atendendo a esta classificação preliminar e, sabendo que, enquanto verbo causativo, fazer deverá apresentar um argumento externo com o papel temático de agente que actuará sobre uma proposição, ocasionando o estado de coisas descrito na oração encaixada, a nossa intuição aponta para que o complemento infinitivo tenha uma interpretação consistente de posterioridade. Muitos são os exemplos capazes de demonstrar que esta proposta se comprova de facto, dos quais destacamos: (1) [1295 HGP108] & eu Pedro Martins, notario de Tebra & de seu alffoz, a isto presẽte ffuj & esta carta en mia presença ffiz escreuer & pugi meu nume & meu sinal & en testymuno de uerdade que esste tal. (2) [1214 TT] E rogo que cada uno destes añiuersarios facan sempre en dia de mia morte e facan tres comemoraciones en tres partes do ano e cada dia facan cantar una missa por mia alma por sẽpre. (3) [1271 CA012] E sse pela uetura uos ele fezer mal. ou força. ou eixerdamento a uos ou a uossos successores; dizedelyo & frotadelyo ou lyo fazede dizer e frotar per algue uos ou uossos successores en sa Corte conuçudamete ata tres uezes que uos alçe força ou mal ou eyxerdameto que uos fezer. (4) [séc.13/14 VS6] E Paunuçio no podya ssofrer a coyta e ho pesar e nom achava cossollaçom e ffoy-sse ao abbade daquel moesteyro de que ffallamos e lançou-sse aos seos pees e disse-lhe: - rrogo-te padre que nom quedes de horar a Nosso Ssenhor. que a minha filha que eu ouve per trabalho de tuas horaçoes sseja achada ca nom ssey que lhe aconteçeo. Quando esto ouvyo ho abbade ficou mui triste e fez chamar todollos frades e disse-lhes: - hirmaaos mostrade carydade. rrogemos e demandemos a Noso Senhor que lhe praza de nos mostrar que he da filha deste nosso amigo Paunuçio A observação integral do corpus e a análise individual das relações predicativas fez emergir paralelamente a esta interpretação futura do complemento infinitivo, uma outra que parece ser de sobreposição: (5) [séc.13 CAM040] Amor faz a min amar tal señor / mais fremosa de quantas og' eu sei, / e faz-m' alegre e faz-me trobador / cuidand' en ben senpr'; e mais vos direi: / u se pararon de trobar / trob' eu, e non per antollança, / mais pero sei mui lealmente amar. (6) [séc. 13/14 CEM415] Ua donzela coitado / d’amor por si me faz andar; / e em sas feituras falar / quero eu, come namorado: / rostr’agudo come forom, / barva no queix’e no granhom / e o ventre grand’e inchado. De facto em (5) e (6) a oração subordinada é interpretada como sobreposta em relação à eventualidade expressa na matriz. De momento atribuímos esta diferença na perspectivação temporal da eventualidade à acção do Presente do Indicativo, que actua em ambos os casos apresentados. Como sabemos, este tempo propicia uma leitura de habitualidade, tendo responsabilidades na comutação das eventualidades para estados habituais. Vejamos se só o Presente do Indicativo proporciona esta interpretação de sobreposição relativamente ao causativo fazer: (7) [1264-1284 CSM035] mas un vento non sotil / se levantou muit' agỹa, que as galeas volver / O que a Santa Maria der algo ou prometer ... / Fez, que a do almirallo de fond' a cima fendeu, / e britou logo o maste, e sobr' el enton caeu / e deu-lle tan gran ferida, que os ollos lle verteu / logo fora da cabeça e fez-lo no mar caer. (8) [1264-1284 CSM384] E o frade espertou logo e foy ao leyt' agynna; / e pois que o achou morto, fez sõar a campaynna / segund' estableçud' era polos seus santos doctores. Apesar do verbo introdutor se encontrar no Pretérito Perfeito do Indicativo, continuamos a ter a leitura de sobreposição do estado de coisas presente na encaixada. Tendo apurado que este facto não tem origem na acção do Presente do Indicativo, conjecturamos então que a pontualidade das situações representadas em (7)-(8) possa influenciar esta leitura de sobreposição, uma vez que em (5)-(6) as orações completivas contemplam estados. Contrastem-se os seguintes excertos com os últimos apresentados: (9) [séc.13/14 VS5] Em este lago avya bestas espantosas que eram tam grandes que semelhavã torres. e das bocas dellas sayam chamas de fogo atam grandes que todo aquell lago faziã ferver. (10) [1264-1284 CSM234] A que faz os peccadores dos peccados repentir, / ben pod' os mudos e sordos fazer falar e oyr. Os exemplos acima apresentam o verbo regente em tempos diferentes (Pretérito Imperfeito do Indicativo em (9) e Infinitivo em (10)) daqueles que figuram nos dois casos anteriores, o que vem reforçar a ideia de que o tempo verbal não toma parte na determinação temporal das eventualidades representadas na completiva infinitiva. Para além disso, invalidam também uma possível distinção baseada no carácter pontual ou alargado das situações subcategorizadas, uma vez que ao contrário do que acontece em (7)-(8), em que temos, respectivamente, uma culminação e um ponto, nestes dois casos temos um processo em (9) e dois estados de indivíduo em (10). Todavia, apesar de aparentarem ser em tudo distintos de (5)-(6), permitem a mesma interpretação em causa - de sobreposição. Voltemos então ao início desta secção, altura em que assumimos que a leitura base destas predicações seria a de causatividade explícita devido à existência de um agente manipulador que actuaria sobre a proposição manipulada, exprimindo assim uma ordem que manifesta o valor de obrigação. Ponderando os exemplos (5)-(10), parece não ser esta a relação expressa pelo argumento externo do verbo subordinante; aliás, o seu papel temático não será sequer o de um agente voluntário, mas sim de um desencadeador ou motivador involuntário da acção. Assim, teremos nestas situações um causador involuntário que provoca, ocasiona a eventualidade que figura na subordinante, promovendo uma mudança no estado de coisas sobre um argumento paciente, que funciona como complemento directo da subordinada infinitiva. Mantemos todavia nos casos (1)-(4) a leitura de posterioridade característica de um verbo causativo com um argumento externo que funciona tipicamente como um agente. Este, ao expressar uma ordem, causa explicitamente a acção, embora não a realize directamente, sendo ela efectuada por outrem. O sujeito do verbo causativo fazer, alterna então o papel temático de agente com o de causador, factor de que depende a determinação temporal dos estados de coisas que figuram nas infinitivas relativamente às situações representadas na oração principal, respectivamente, posterioridade ou sobreposição. Deve, portanto, concluir-se que, para além do tipo semântico do verbo subcategorizado e do tempo verbal da oração principal, a interpretação da infinitiva em relação ao verbo da matriz depende sobretudo, no corpus submetido a análise, da informação semântica veiculada pelo verbo regente e, consequentemente, dos traços semânticos do seu argumento externo. O mesmo será dizer que, neste caso, a determinação temporal do infinitivo depende, em última instância, do papel mais ou menos agentivo que o sujeito da oração principal desempenha. Parece então, neste ponto, emergir a acção de uma outra categoria (que neste caso até se parece sobrepor às restantes categorias aqui consideradas - Tempo e Aspecto) na determinação temporal das orações subcategorizadas de infinitivo, quanto à eventualidade expressa pelo verbo da matriz – a Modalidade deôntica. III. 3. 2. VERBO MANDAR No corpus dos séculos XII, XIII e XIII/XIV analisado foram encontradas 1212 ocorrências do verbo causativo mandar, sendo que 341 delas subcategorizam uma oração completiva com o verbo na forma infinitiva. A nossa análise demonstrou que, nestas construções, o verbo mandar comparece nos seguintes tempos verbais: Presente do Indicativo, Pretérito Perfeito do Indicativo, Pretérito Imperfeito do Indicativo, Pretérito Mais-QuePerfeito do Indicativo, Futuro do Indicativo, Condicional, Imperativo, Presente do Conjuntivo, Pretérito Imperfeito do Conjuntivo, Futuro do Conjuntivo e Infinitivo. O Gerúndio é o único tempo que nunca ocorre nas construções em causa. O DGVP 19 apresenta dois sentidos possíveis para estas construções: [GN[Suj] V F NãoFinita [C. dir.]] “Ordenar” O rei mandara construir o palácio para o seu primogénito. “Determinar” O tribunal mandara deter o arguido. Relativamente ao Português Medieval, o DVPM demonstra uma única significação: 19 Cf. CASTELEIRO (2007), pp. 549. “Mandar, dar ordem” alguém manda fazer/acontecer [ — Vinf ] [1214 TT] E mãdei fazer treze cartas cũ aquesta tal una como a outra que per elas toda mia mãda seia conprida Admitindo a priori que os verbos causativos exprimem necessariamente uma relação de causalidade entre a acção descrita por estes verbos e o estado de coisas descrito pela oração completiva, assemelha-se-nos óbvia a relação de posterioridade entre estas duas predicações. Mandar parece ser um verbo em que o sujeito denota um comportamento claro de agente voluntário, com um papel activo quanto à determinação da eventualidade da completiva, uma vez que o valor da predicação da oração principal será sempre de ordem. Vejamos então o que ocorre quando o causativo mandar subcategoriza eventualidades pertencentes a diferentes classes aspectuais: (1) [1264-1284 CSM251]O Papa, que sant' ome era, respos-lles: "Cras / mandarei cantar missa, e tu a levarás", / diss' à ama da moça, "e se de Satanas / ven aquesta sandece, pode-sse desfazer." (2) [1274 CA082] e nos don Pááy periz Maestre de suso dicto e ho nosso Cabidóó gééral mandamos fazer duas Cartas semelaues desta auéénça. das quaes eu Rey don Affonso tenho hua. E nos Maestre e nossa Ordin a outra. e posemos en estas Cartas nossos Séélos en testemoyo de uerdade. (3) [1264-1284 CSM027] E pois que o prazo chegou, sen falir, / mandou enton Cesar as portas abrir, / e amba-las partes fez log' alá ir / e dos seus que fossen a prova vẽer. (4) [1264-1284 CSM127] Quand' est' oyron as gentes mui gran maravilla en / ouveron e ar loaron muito a que tanto ben / fez e nos faz cada día e os crerigos "amen" / responderon e os sinos mandaron todos sõar. Em todos os exemplos acima, o estado de coisas que figura na subordinada estabelece uma relação de posterioridade com a predicação da oração principal, independentemente do tipo de situação que figura na completiva (processo, processo culminado, culminação e ponto, respectivamente). O tempo verbal em que a oração introdutora ocorre parece não ter qualquer relevância quanto à determinação temporal do verbo da encaixada, tendo em conta a diversidade apresentada (Futuro do Indicativo, Pretérito Perfeito do Indicativo e Presente do Indicativo, nestes casos). Justificamos esta aparente uniformidade em termos de interpretação temporal com base, por um lado, nas características semânticas do argumento externo do verbo regente, e por outro, no tipo de verbo subcategorizado. O causativo mandar, enquanto verbo pleno, implica a existência de um argumento que funcione como manipulador da acção (aquele que dá a ordem) e um outro com a função de manipulado, cuja atribuição é cumprir a ordem. O argumento externo funciona como controlador da acção expressa na oração principal, ao prescrever a realização de determinada situação que, necessariamente, só será executada após a expressão da ordem. Referimos ainda a influência do verbo subcategorizado devido à comparência exclusiva de situações de carácter eventivo na completiva. Estando na base da divergência entre eventos e estados a dinamicidade das situações, a constatação de que o verbo mandar só selecciona eventos na sua oração subordinada, reforça o carácter de obrigatoriedade da execução (activa) de uma acção, na decorrência da ordem. Para além da regularidade que acabámos de expor em termos de valores temporais desencadeados pelas especificidades semânticas do verbo mandar, consideramos relevante a referência a um caso particular de subcatgorização licenciada por este verbo, do qual apresentaremos os seguintes exemplos ilustrativos: (5) [1264-1284 CSM419] Mas no templ' u estava a comprida de ffe, / un angeo lle disse: "Madre de Deus, ave: / o teu Fillo te manda dizer que ja temp' é / que leixes este mundo mao u te leixou." (6) [1265 CA004] Cognoçuda cousa seia a todos aqueles que esta carta virẽ & léér ouuirẽ que nos Alcayde & Aluazíj´s. & Tabelliõ. & Conçello de Monsaraz reçebemos carta aberta do nosso segnor don Affonso Rey de Portugal ena qual carta nos mandou dizer que nos fossemos departir & demarcar os termyos dantre nos (7) [séc.13/14 VS7] E o abbade Joham daquelle moesteyro achou alguũs pera rrepreender e castigou-os e ameaçou-os e enmendou-os pollas palavras que lhe mandou dizer a santa molher. Considerada por alguns como uma lexia complexa, propomos uma leitura algo diferente para “mandar dizer”, considerando que cada uma das situações tem o seu respectivo sujeito. Sendo equivalente à expressão “fazer que alguém comunique uma mensagem”, é possível identificar um argumento externo de mandar, que se apresenta como causador da acção, exercendo um carácter de obrigatoriedade sobre a eventualidade patente na oração subordinada. Por sua vez, a situação que figura na oração encaixada ocorre por acção de um argumento externo do verbo dizer, que age por força do argumento externo de mandar. Assim sendo, podemos considerar que o agente de dizer, embora controlando a situação expressa pela oração infinitiva, é controlado pelo agente de mandar. Em suma, consideramos que, apesar de todas as circunstâncias que podem influir na determinação temporal das orações subordinadas infinitivas de mandar, a leitura de posterioridade advém, em última instância, da modalidade deôntica inerente à semântica do verbo. III. 3. 3. VERBO LEIXAR Entre as 599 ocorrências do verbo leixar20 no corpus dos séculos XII, XIII e XIII/XIV estudado, registam-se 254 casos em que o verbo causativo introduz uma oração infinitiva. Nesta construção, verificamos que o verbo leixar ocorre nos seguintes tempos: Presente do Indicativo, Pretérito Perfeito do Indicativo, Pretérito Imperfeito do Indicativo, Futuro do Indicativo, Condicional, Imperativo, Presente do Conjuntivo, Pretérito Imperfeito do Conjuntivo, Futuro do Conjuntivo e Infinitivo. Não existem quaisquer ocorrências de leixar no Pretérito Mais-QuePerfeito do Indicativo nem no Gerúndio. O DGVP21 indica as duas interpretações seguintes para a construção em que leixar subcategoriza uma completiva na forma infinitiva: “Permitir” [GN[Suj.] V F NãoFinita [C. dir.]] A cara deixava transparecer o nervosismo. Os monitores não deixarão ninguém entrar no barco sem colete salva-vidas. “Não resistir” (Pronominal reflexo) 20 Para um estudo mais aprofundado sobre o verbo deixar, consultar SILVA (1999). 21 Cf. CASTELEIRO (2007), pp. 229-230. [GN[Suj.] V -se F NãoFinita [Pred. c. dir.]] O funcionário deixara-se corromper. Deixei-me levar na conversa dela. Quanto ao Português Medieval, a descrição existente22 aponta para uma só leitura deste verbo no contexto em apreço: “Deixar, autorizar” alguém leixa fazer/acontecer [ — Vinf ] [1277 CHP007] e Mãdo os meus meyrĩos que essas terras andarẽ que nõpenorẽ nẽ leysen penorar nas sobredictas erdades asj como de suso e dicto Portanto, sendo estas descrições para as duas fases do Português unânimes em apontar a acepção de permissão, passemos em seguida à observação dos dados: (1) [séc. 13 CAmi257] Triste and’ eu velida, e ben volo digo, / por que mi non leixan veer meu amigo; (2) [séc. 13 CEM165] Mal se guardou e perdeu quant’havia, / ca se nom soub’a cativa guardar: / leixou-o sigo na casa albergar, / e o peom 22 Cf. DVPM. logo fez que dormia; / e levantou-s’o peom traedor / e, como x’era de mal sabedor, / fodeu a tost’e foi logo sa via. (3) [séc. 13 CAM347] Se eu a mia senhor ousasse / por algûa cousa rogar, / rogar-l' ia que me leixasse / u ela vivesse morar; Podemos considerar que estes exemplos reúnem condições para ser analisados em conjunto, por remeterem todos eles para uma leitura de posterioridade entre o complemento infinitivo e o verbo regente. Todavia, notamos a diversidade de tempos verbais que ocorrem na oração principal (Presente do Indicativo, Pretérito Perfeito do Indicativo e Pretérito Imperfeito do Conjuntivo), o que leva a crer que não será este o factor decisivo para a determinação da localização temporal do verbo da encaixada. De registar é ainda que esta interpretação ocorre exclusivamente com situações durativas, tanto de cariz eventivo (processo em (1) e processo culminado em (2)) como estativo (estado de estádio em (2)). Examinemos agora um outro conjunto, antes de prosseguir com mais algumas considerações: (4) [séc.13/14 CEM449] E na coroa, que rapar queria, / leixa crecer a cient’o cabelo / e a vezes a cobre com capelo, / o que ant’el mui d’anvidos faria; / mais d’el: quand’el a esperança perdeu / das planetas, des i logu’entendeu / que per coroa prol nom tiraria. (5) [séc. 13 CEM067] E dixe-lh’eu: - Gram folia pensades, / se per velhece a guarecer cuidades; / pero nom vos digu’eu que nom vivades / quanto vos Deus quiser leixar viver; / mais em velhice nom vos atrevades, / ca i mais vej’eu das velhas morrer. (6) [séc. 13 CAM410] Meu senhor Deus, se vus prouguer, / tolhed' Amor de sobre mi, / e non me leixedes assi / en tamanha coyta viver, / ca vos devedes a valer / a tod' ome que coyta ouver. Este segundo grupo manifesta também uma leitura consistente, desta feita de sobreposição quanto ao Ponto de Perspectiva Temporal. Tal como em (1)-(3), os tempos verbais indiciam não alterar a localização temporal das situações, uma vez que ocorrem tanto no Presente do Indicativo como no Presente do Conjuntivo, e ainda no Infinitivo. As eventualidades subcategorizadas são também de diversos tipos (processo, estado de indivíduo e estado de estádio), embora contemplem somente situações alargadas. Apesar dos contextos semelhantes em que ocorrem, estes dois conjuntos revelam que o verbo leixar licencia dois tipos de situações – uma com valor de posterioridade e outra de sobreposição. De que dependerá então este diferente comportamento quanto à localização temporal do complemento infinitivo? Atentemos antes de mais no valor semântico do verbo causativo nas duas situações: enquanto que no primeiro grupo, leixar é sinónimo de “autorizar, dar permissão”, no segundo significa “não impedir, não obstar, não se opor ”. Assim, o verbo leixar alterna um valor de permissão com um valor causativo. Mais concretamente, em (1)-(3), o agente do verbo parece deter a autoridade que o capacita para permitir ou proibir determinada situação. Pelo contrário, em (4)-(6) o argumento externo do verbo leixar decide não impedir a realização expressa pela infinitiva, embora detenha capacidade para tal. Outra diferença observada foi a perspectivação aspectual da situação presente na oração subordinada. Enquanto no primeiro grupo de exemplos, a situação ainda não teve início, existindo somente em projecto e estando dependente da aprovação do agente para a sua realização, no segundo o estado de coisas encontra-se já em curso, numa altura em que o agente, embora detendo a capacidade de lhe determinar o fim, não o faz. Estão aqui em causa duas atitudes distintas relativamente ao comportamento do argumento externo: se no primeiro caso este tem uma atitude activa, no domínio da permissão, no segundo o seu papel é passivo, optando por não interferir na acção já em pleno decurso. O mesmo é dizer que o argumento externo em (1)-(3) tem o valor de um verdadeiro agente, uma vez que, para que a acção ocorra é necessária a sua aprovação, enquanto que em (4)-(6) apresenta um traço semântico mais fraco, não provocando directamente a acção, mas sim licenciando apenas que esta não seja interrompida, continuando a desenvolver-se. Pode, portanto, concluir-se que a determinação da localização temporal do estado de coisas envolvido na oração subordinada infinitiva do verbo leixar é da esfera da Modalidade. III. 4. CONCLUSÕES PARCIAIS – VERBOS CAUSATIVOS Enquanto verbos causativos, como a própria designação sugere, a suposição inicial remetia para uma expressa relação de causalidade entre a situação introduzida pelo verbo regente e a respectiva completiva com infinitivo. A existência de um argumento que funciona como causador da acção parece determinante na localização temporal da situação que introduz. Ao considerar que a oração principal é controlada por um agente manipulador da acção que lhe confere um carácter de obrigatoriedade, predizemos uma leitura de posterioridade da oração encaixada relativamente à oração subordinante. Esta suposição foi constatada de facto em cada um dos três verbos causativos submetidos a análise. Todavia, esta não é a única leitura permitida por esta classe de verbos. O verbo fazer licencia esta interpretação de posterioridade, ao apresentar um sujeito da oração subordinante que se institui como agente manipulador do argumento externo do verbo da oração subordinada. Assim, notamos que o carácter de obrigatoriedade instituído pela acção do agente de fazer se revela determinante na posterior execução da acção representada através da sua completiva. No entanto, notamos para além desta, uma outra hipótese de leitura temporal da completiva de infinitivo, desta feita denotando sobreposição com o seu Ponto de Perspectiva Temporal. Investigando a causa de tal divergência, a observação dos dados demonstrou que a interpretação de sobreposição nada deve à influência do tempo verbal em que ocorre o verbo da matriz, uma vez que muitos são os tempos que permitem esta leitura. Seguidamente descartamos factores decorrentes das características semânticas do verbo subcategorizado, tendo inclusivamente em conta a diferença entre situações pontuais e durativas. A análise veio a revelar-se mais profícua aquando do estudo do argumento externo do verbo introdutor. De facto, considerando o papel temático atribuído ao sujeito de fazer, observamos que nestes casos não funciona como agente voluntário, mas sim como um motivador ou causador não agentivo, que desencadeia a acção presente na subordinada. Parece seguro afirmar nesta altura o papel determinante do argumento externo do verbo principal, sendo que nas predicações em que desempenha a função de agente a interpretação é de posterioridade e, pelo contrário, quando o traço semântico agentivo se manifesta mais fraco, a acção que faz recair sobre um argumento paciente é interpretada como sobreposta àquela expressa na matriz. Podemos então inferir a importância determinante da Modalidade para a interpretação temporal deste tipo de construções, uma vez que, quando a acção do argumento externo de fazer consiste numa imposição, a leitura temporal do seu complemento é de posterioridade; nas outras situações em que a sua acção provoca uma mudança de estado no sujeito da subordinada (pela sua acção directa e não porque determine uma obrigação), obtemos uma interpretação de sobreposição. O verbo leixar manifesta um comportamento bastante próximo de fazer, na medida em que, quando significa permissão, a leitura das suas subordinadas é de posterioridade, sendo sempre necessária a autorização antes da realização da acção. Constatámos que esta interpretação ocorre independentemente do tempo verbal da oração introdutora; porém, só foram registadas eventualidades durativas nestes contextos. Esta leitura de posterioridade alterna com a de sobreposição que, ainda que ocorrendo com diversos tempos verbais, subcategoriza unicamente eventualidades alargadas. Neste caso, o argumento externo de leixar apresenta um traço semântico mais fraco, uma vez que o seu papel deixa de ser de causatividade activa, passando a ser passiva, admitindo somente que a situação continue a decorrer (limitando-se a não a impedir). Encontramos então duas acepções distintas para este causativo: “autorizar, dar permissão”, e “não impedir, não obstar, não se opor”. Consoante mudam as características semânticas do verbo, assim muda também o papel temático do argumento externo do verbo causativo, que alterna entre um valor agentivo (de permissão) e outro com um traço semântico mais fraco. Quanto ao último verbo estudado, mandar apresenta um comportamento homogéneo no que diz respeito à determinação temporal das eventualidades que subcategoriza no corpus analisado. Tendo sido observada a presença de diferentes classes aspectuais que comparecem em diversos tempos verbais, o comportamento das completivas infinitivas do causativo mandar manteve-se sempre constante, manifestando uma interpretação de posterioridade relativamente à ordem prescrita na oração subordinante. Nada há a registar no contexto deste verbo, a não ser que o carácter de obrigação de que se reveste influencia de forma categórica a localização temporal da oração que subordina. Assim, destacamos a modalidade deôntica inerente à semântica do verbo, que parece determinar taxativamente a localização das completivas infinitivas. A partir do confronto dos verbos causativos estudados, apesar das semelhanças inegáveis, registam-se no entanto importantes divergências. De destacar antes de mais, é a leitura de posterioridade licenciada por todos eles, o que vem reforçar o seu carácter causativo. Esta é, aliás, a única interpretação para as acções subcategorizadas pelo verbo mandar. Quanto aos verbos fazer e leixar, a sua interpretação pode sofrer importantes alterações derivadas do carácter mais ou menos agentivo do seu argumento externo. Assim, quando este assume um papel mais passivo, a interpretação passa a ser de um simples causador, o que provoca que a situação da completiva ocorra em sobreposição à da oração regente. As marcas de subjectividade do argumento externo do verbo da oração principal revelam-se assim de crucial importância na determinação temporal da oração encaixada. CONCLUSÃO Considerando este um tema de grande interesse linguístico e, desconhecendo quaisquer tentativas de uma análise do Português Medieval sequer aproximada à que apresentamos, procedemos à investigação da localização temporal das completivas infinitivas, restringindo a nossa análise aos contextos em que a subcategorização ocorre por acção de verbos de dois tipos distintos – perceptivos e causativos. Presumimos que, ao escolher verbos de características semânticas tão diversas como estes, obteríamos valores temporais distintos, o que enriqueceria a nossa análise. Assim, procurámos atingir o nosso objecto de estudo, tendo por base os primeiros testemunhos da língua portuguesa antiga encontrados num corpus de textos dos séculos XII, XIII e XIII/XIV o mais variado possível, tentando que fossem abrangidos diversos tipos de texto, de forma a facultar uma panorâmica tão lata quanto possível da produção escrita neste período. Depois de reunidos os textos e tratados informaticamente, foi necessário retirar todas as abonações relevantes para o presente estudo. No entanto, ainda mais trabalhoso e demorado que a extracção dos dados foi todo o trabalho de classificação aspectual de cada um dos exemplos em que figuram completivas infinitivas subcategorizadas pelos verbos perceptivos e causativos que aqui se analisam. No conjunto dos cinco verbos submetidos a análise foram tratadas 1896 ocorrências, numa tentativa de encontrar regularidades na marcação temporal das eventualidades, o que não se veio a verificar, permanecendo esse trabalho, desta forma, invisível. Salientamos em seguida as conclusões a que chegámos após a análise isolada dos verbos e seu posterior agrupamento por classes, pretendendo evidentemente, para além de determinar as semelhanças de comportamentos dentro de uma mesma classe, verificar a existência ou não de regularidades entre as duas classes de verbos. Os dois verbos perceptivos manifestam-se perfeitamente homogéneos no seu comportamento relativamente à marcação da localização temporal das orações encaixadas de infinitivo com que se combinam. Mais especificamente, tanto ver como ouvir poderão expressar uma de duas leituras possíveis – sobreposição ou não sobreposição. A ocorrência de uma ou outra dependerá essencialmente das características semânticas do verbo regente. Assim, se a percepção descrita for de tipo sensível, físico, a leitura será de sobreposição; se, pelo contrário, a situação for experienciada a nível intelectual, a eventualidade ganha uma extensão de carácter habitual, o que ocasiona uma interpretação de não sobreposição. Relativamente aos verbos causativos, podemos concluir que a classe é também uniforme no seu comportamento, nomeadamente no que respeita à interpretação de posterioridade. Esta interpretação decorre do carácter de obrigatoriedade veiculado pelos verbos fazer e mandar, bem como de permissão característico do verbo leixar. No entanto, verificamos ainda a possibilidade de uma leitura de sobreposição, ocasionada devido ao enfraquecimento do traço agentivo do argumento externo destes verbos, excepção reservada ao verbo mandar, uma vez que o seu agente manifesta sempre um grau de controlo elevado sobre o evento descrito pelo complemento infinitivo. Concluímos, portanto, que a modalidade deôntica, através da expressão quer da necessidade, quer da possibilidade (respectivamente obrigação e permissão) e das suas gradações possíveis revela um importante contributo na determinação da localização temporal das completivas infinitivas. Pensamos ser seguro afirmar que a localização temporal das infinitivas complementos de verbos perceptivos e causativos reflecte a natureza semântica dessas duas classes de verbos. Em última instância, e atentando na diferença principal entre a classe dos verbos perceptivos e a dos verbos causativos a nível temporal, enquanto os primeiros tendem a apresentar argumentos externos que se constituem experienciadores do estado de coisas expresso na subordinada, nas segundas tal não acontece, por possuírem sujeitos que são controlados (de modo activo ou passivo) pelos argumentos externos da situação patente na oração principal. Não é possível, no entanto, apontar uma causa única ou factor determinante, uma vez que a localização temporal das eventualidades resulta das contribuições de factores de diversas ordens, não podendo nunca a temporalidade ser reduzida ao estudo do complexo verbal, devendo ao invés, atender sempre a uma leitura composicional da frase. Realçamos o facto de que todas as conclusões e possíveis ilações retiradas deste estudo referir-se-ão somente aos dados observados no nosso corpus. Finalmente, esperamos que este trabalho tenha mostrado a necessidade de estudos mais aprofundados sobre a interpretação temporal dos infinitivos nas construções completivas, nomeadamente no que ao Português antigo diz respeito, embora muito haja ainda a fazer nesta área quanto ao Português Contemporâneo. Foi neste sentido que o presente estudo tomou corpo, esperando ter contribuído para a prossecução do estudo desta problemática. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALEXANDER, L. G. & R. A. 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Século XIII/XIV Cantigas de Escárnio e Maldizer (CEM) LOPES, G. V. (2002) Cantigas de Escárnio e Maldizer dos Trovadores e Jograis Galego-Portugueses (Versão digitalizada). Vidas de Santos de um Manuscrito Alcobacence (VS) CASTRO, I. (org.), (1985) Vidas de Santos de um Manuscrito Alcobacense (Colecção Mística de Fr. Hilário da Lourinhã, Cod. Alc. CCLXVI / ANTT 2274), Lisboa, Centro de Estudos Geográficos, I.N.I.C..