Março...... - Clube Mundo

Propaganda
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ANO 24
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Nº 1
tiragem:
■
20 000 exemplares
uando a Organização Mundial de Saúde (OMS)
declarou o vírus da
zika uma “ameaça
global”, a agência da
ONU reconhecia a
fragilidade das fronteiras nacionais na
era da globalização.
O vetor do vírus é um
mosquito. Mas ele se
desloca junto com as
massas humanas que,
todos os dias, atravessam as fronteiras. Bem
antes da descoberta de
uma vacina, o alerta
é uma convocação às
autoridades sanitárias do mundo inteiro
– e, especialmente, do
Em Guaianazes (Zona Leste de São Paulo), agentes da Prefeitura aplicam veneno contra o Aedes; epidemias
Brasil.
disseminadas pelo mosquito ameaçam escapar ao controle, no Brasil e em várias regiões do planeta
Globalização não
é um fenômeno novo. Há meio milênio, com a conquista europeia das Américas, o intercâmbio de microrganismos provocou
uma catástrofe demográfica entre os ameríndios. Há cem anos, no outono da Primeira Guerra Mundial, a mal denominada
“gripe espanhola” devastou a Europa e espalhou-se até os arquipélagos do Pacífico e as franjas do Ártico. O zika é parte de uma
longa história.
Temos uma desvantagem biológica no embate inicial com os microrganismos causadores de doenças. Nosso organismo demora para encontrar respostas imunológicas eficazes, enquanto os microrganismos reproduzem-se e sofrem mutações em ritmo
estonteante. A nossa vantagem situa-se em outra esfera: as políticas de saúde pública e as tecnologias médicas.
No Brasil, a partir de Oswaldo Cruz, eliminamos o Aedes aegypti. Mas, vergonhosamente, por incúria dos governos, o mosquito
reinstalou-se entre nós há várias décadas. Convivemos alegremente com surtos anuais de dengue. Hoje, o tempo da brincadeira
acabou. É preciso agir – e com algo mais que discursos oportunistas de propaganda política.
Veja as matérias às págs. 6 a 8
da velocidade
© Rovena Rosa/Agência Brasil
Trump e Sanders desafiam
a regra do jogo
U
m terremoto desequilibra o Partido Republicano. Seu nome é Donald Trump,
o candidato tido como inviável, grosseira expressão de ultranacionalismo, nativismo e intolerância, que se tornou favorito nas prévias partidárias.
Um terremoto paralelo, de menor magnitude, desorganiza o Partido Democrata.
Seu nome é Bernie Sanders, o esquerdista que ameaça a coroação anunciada de Hillary
Clinton.
Nos Estados Unidos, o jogo das eleições primárias foi concebido como filtro destinado a excluir os extremos, reforçando o centro político. No ciclo em curso, contudo,
os dois “forasteiros” evidenciam que algo não funciona como o planejado no grande
esquema da democracia de massas.
Pág. 10
Euclides da Cunha
150 anos
© Acervo da Casa Euclidiana, São José do Rio Pardo
● Editorial – O discurso
oficial sobre a epidemia
de microcefalia omite
a responsabilidade dos
governos na crise crônica de saúde pública.
Pág. 3
● No encontro histórico com Cirilo, líder
da Igreja Ortodoxa
Russa, o papa Francisco mexe as peças
da política global da
Igreja Católica.
Pág. 3
● Na Argentina, Mauricio Macri, o novo
presidente, avança sua
agenda de mudanças
enquanto o peronismo organiza uma recomposição interna.
Pág. 4
● No redemoinho do
colapso econômico, a
Venezuela experimenta a disputa de poder
entre o Executivo chavista e a Assembleia
oposicionista.
Pág. 5
● As regiões ultraperiféricas da União Europeia funcionam como
instrumentos de projeção de influência no
Caribe, no Atlântico
e no Índico.
Pág. 9
● Diário de Viagem
– A aventura de um
jovem estudante da
USP, há meio século,
sob a ditadura militar.
Pág. 11
● A guerra geral na Síria
e no Iraque abriu caminho para a territorialização do jihadismo
e deflagrou o maior
deslocamento humano
desde a Segunda Guerra Mundial.
Pág. 12
Q
MARÇO/2016
As epidemias, no mundo
© Instituto Geográfico e Histórico do Brasil, Rio de janeiro
E mais...
■
21º Concurso Nacional
de Redação­ de Mundo e H&C – 2016
E X P E D I E N T E
PANGEA – Edição e Comercialização de
Material Didático LTDA.
Redação: Demétrio Magnoli, José Arbex Jr.,
Nelson Bacic Olic (Cartografia)
Jornalista responsável: José Arbex Jr. (MTb 14.779)
Revisão: Jaqueline Ogliari
Pesquisa iconográfica: Thaisi Lima
Projeto e editoração eletrônica: Wladimir Senise
Escreva e se inscreva!!!
1. História e objetivo do concurso
O
Concurso de Redação nasceu, em 1996, com o objetivo de estimular o hábito de ler, escrever, estudar e
refletir. O desenvolvimento contínuo e prazeroso dessas habilidades é de suma importância, no mundo
contemporâneo, para o processo de formação de cidadãos críticos e bem informados, capazes de se expressar de
modo claro, criativo e inteligente. Mas, para que o concurso tenha êxito, é essencial a colaboração dos professores,
especialmente os da área de Comunicação e Expressão.
© Escala de Kinsey - Reprodução
2. Tema da redação
Questões de identidade
“P
ara todos os efeitos e propósitos, eu sou uma mulher”, declarou
Caitlyn Jenner, em 24 de abril de 2015, durante uma entrevista
concedida à jornalista Diane Sawyer, pelo canal ABC de TV dos Estados
Unidos. Caitlyn era Bruce, durante a Olimpíada de Montreal, em 1976,
quando venceu o decatlo, prova exclusivamente masculina. O “caso Jenner” ilumina uma questão posta com força cada vez maior no mundo contemporâneo: as antigas identidades afetivosexuais que definiam o lugar social de homens e mulheres parecem estar se dissolvendo, gerando, eventualmente, uma
perigosa polarização cultural e social. De um lado, há os que manifestam dúvidas, inquietações e revoltas, não raro
buscando nos fundamentalismos um abrigo seguro contra os abalos de suas convicções; de outro, há os que experimentam uma espécie de euforia libertária que proclama o fim de todos os limites. Com base nos trechos selecionados
a seguir, e valendo-se de suas próprias reflexões, escreva um texto analítico sobre esse cenário.
“I
ago — Virtude? Uma figa! Depende de nós mesmos sermos assim ou assado. Nossos corpos são
nossos jardins, cujos jardineiros são nossas vontades; de
modo que se quisermos plantar urtiga e semear alface,
deixar hissopo ou arrancar tomilho, provê-los apenas
de determinada espécie de erva ou enchê-los de muitas
variedades, esterilizá-los pela preguiça ou cultivá-los pelo
trabalho... Ora, o poder exclusivo e a força reguladora
de tudo reside apenas em nossa vontade. Se a balança
de nossa vida não dispusesse de um prato de razão para
contrabalançar o da sensualidade, o sangue e a baixeza
de nossa natureza nos conduziriam às mais absurdas
situações. Mas possuímos a razão para acalmar nossos
instintos furiosos, os acúleos da carne, os desejos desenfreados. De onde concluo que o que denominais amor
não é mais do que um sarmento ou uma vergôntea.”
(Otelo, de Willliam Shakespeare, Ato I, cena III)
“F
alamos de orientação [sexual], e não de opção,
porque não é algo que possamos mudar de acordo com nosso desejo. Existem quatro tipos de orientação
afetivo-sexual: os bissexuais se sentem atraídos pelos dois
gêneros; os heterossexuais, pelo gênero oposto; e os homossexuais, pelo mesmo gênero. Os assexuados representam um caso singular [...]. Ao passo que a orientação sexual
se refere a outros, a quem nos relacionamos, a identidade
de gênero faz referência a como nos reconhecemos dentro
dos padrões de gênero estabelecidos socialmente. Existem
dois sexos, mulher e homem, e dois gêneros, feminino e
masculino. Embora a maioria das mulheres se reconheça
no gênero feminino e a maioria dos homens no masculino,
isto nem sempre acontece. Falamos, então, de pessoas cujo
sexo biológico discorda do gênero psíquico: são os travestis
e transexuais, ou transgêneros. Existe muita confusão a
respeito das relações entre orientação sexual e identidade
de gênero, e a verdade é que não existe relação – são coisas
completamente independentes.”
(Texto extraído do blog oficial do Movimento PLC 122, cujo
objetivo é punir a discriminação ou preconceito de orientação
sexual e identidade de gênero – http://www.plc122.com.br)
“H
omem nasce homem e mulher nasce mulher.”
(Declaração dada em 30 de outubro de 2015 pelo vereador
Campos Filho (DEM), durante uma sessão da câmara de
Campinas que aprovou uma moção endereçada ao Ministério da
Educação, em que pede a anulação de uma questão da prova do
Enem, realizada três dias antes, por citar a afirmação de Simone
de Beauvoir (1908-1986), publicada no livro O segundo sexo, de
1949: “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher.”)
“M
as a psicanálise levou às últimas consequências
a suposição de que o desejo e o prazer sexual
são ‘cosa mentale’, coisa mental, segundo a expressão de
Leonardo da Vinci. A partir daí, todas as investigações
MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO
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Infelizmente não foi possível localizar os autores de
todas as imagens utilizadas nesta edição.
Teremos prazer em creditar os fotógrafos,
caso se manifestem.
ATENÇÃO!
Em nossa próxima edição, publicaremos
as normas do concurso.
que tentam fundar a diferença na anatomia se tornaram
obsoletas. Homens e mulheres, diferenciados não em
razão do real de seus corpos, mas por aquilo que se pode
elaborar a partir deles, são sujeitos igualados em sua
condição desejante, que se relacionam por meio do filtro de suas fantasias e jamais se complementam. Pensar
a diferença como não complementar desata o nó que
condicionava a sexuação às funções procriativas e faz
reconhecer as mulheres como seres de linguagem e cultura. Em consequência, percebemos que a constituição
dos chamados gêneros é efeito de práticas discursivas,
independentes da anatomo-fisiologia do sexo.”
(“A anatomia e seu destino”, por Maria Rita Kehl, Folha
de S. Paulo, Caderno Mais, 25 de março de 2011)
“S
e uma pessoa é gay, busca Deus e tem boa
vontade, quem sou eu para julgá-la?”
(Papa Francisco, em entrevista concedida aos jornalistas
que o acompanhavam no voo de volta à Itália depois da visita
de uma semana ao Brasil, em 29 de julho de 2013) “N
ão erreis: nem os devassos, nem os idólatras,
nem os adúlteros, nem os efeminados, nem
os sodomitas, nem os ladrões, nem os avarentos, nem
os bêbados, nem os maldizentes, nem os roubadores
herdarão o reino de Deus.”
(Bíblia, 1 Coríntios 6:10)
2016 MARÇO
E
D
I
T
O
R
I
A
L
Metáfora do boxe atrapalha luta contra a dengue
“Um mosquito não pode derrotar 204 milhões
Somos muito mais fortes que esse mosquito. Aliás, serve de exemplo, de símbolo para nós.
Nós, hoje, enfrentamos dificuldades em nosso país.
Nós, juntos, vamos superar essas dificuldades. Esse
país vai crescer, gerar empregos, vai continuar fazendo programas como esse, o Minha Casa, Minha
Vida”, afirmou a presidente Dilma Rousseff, em 19
de fevereiro, ao entregar unidades habitacionais em
Petrolina (PE). Ela se referia, é claro, ao mosquito
Aedes aegypti, portador dos vírus da dengue, da
chikungunya e do zika, também responsável pela
transmissão da febre amarela.
Há vários problemas com a declaração. O primeiro: identificar a luta contra o Aedes com o combate
de pessoas.
à crise econômica e em nome dessa suposta identidade
lançar um apelo à “unidade nacional”, um recurso
demagógico, primário e de baixo nível.
É
também
perigoso, por conferir alta densidade emocional
(o
pânico provocado pela epidemia) ao mundo da
política, que deveria ser exercido sem paixões, com
o máximo de ponderação e racionalidade.
Em
segundo lugar, explicar a luta contra o
mosquito como se fosse uma disputa de boxe pode
ser um bom recurso de publicidade, mas obscurece o
a primeira ocorrência documentada do vírus
problema. Não se pode atribuir a “um país” (como faz a
no país aconteceu em 1981-1982, em Boa Vista
(RR), causada pelos vírus DENV-1 e DENV-4.
Anos depois, em 1986, houve epidemias no Rio de
Janeiro e em algumas capitais do Nordeste. Desde
então, a dengue vem ocorrendo no Brasil de
forma continuada. Em 1998, houve uma pandemia
com mais de 500 mil casos. Em 2000, o vírus 3 foi
isolado no Rio, e uma nova epidemia aconteceu
entre 2001 e 2003, atingindo a Região Sul.
Diversos fatores concorrem para a disseminação do mosquito nos países tropicais e subtropicais:
campanha governamental) a responsabilidade para erradicar o mosquito. A “culpa” pela epidemia não cabe
ao “desleixo” da população (embora ele contribua),
mas à incompetência de sucessivos governos, incapazes
de formular e aplicar políticas públicas adequadas.
O
primeiro caso de dengue documentado no
1865, no Recife. Sete anos depois, uma
2 mil mortes,
em Salvador. Em 1896, houve uma nova epidemia, no
Rio de Janeiro e áreas do Nordeste (mais de 50 mil
casos), com a disseminação do vírus DENV-1. Em
1903, Oswaldo Cruz implantou um programa de
combate ao mosquito, que se prolongou por anos.
Foi nesse contexto que, em 1908, Antonio Gonçalves Peryassú, pesquisador do então Instituto
Soroterápico Federal, futuro Instituto Oswaldo
Cruz (IOC), fez descobertas sobre o ciclo de vida e
a biologia do Aedes.
O mosquito foi erradicado do território nacional em 1955. Entretanto, no final dos anos 1960, o
relaxamento das medidas adotadas levou à sua reintrodução. Segundo dados do Ministério da Saúde,
país data de
epidemia de dengue causou pelo menos
o rápido crescimento demográfico associado à
intensa e desordenada urbanização, a inadequada
infraestrutura urbana, o aumento da produção
de resíduos não orgânicos, os modos de vida na
cidade, a debilidade dos serviços e campanhas de
saúde pública, bem como o despreparo dos agentes
de saúde e da população para o controle da doença. São fatores que podem e devem ser resolvidos
por uma política pública adequada.
O Aedes
já foi erradicado uma vez.
sê-lo novamente
–
Poderá
mas não por apelos demagó-
gicos.
“A
tentos à permanência de diversos
obstáculos, esperamos que nosso
encontro possa contribuir para o restabelecimento da unidade desejada por
Deus, pela qual trabalhou Cristo.” A
declaração conjunta do papa Francisco,
líder da Igreja Católica, e do patriarca
Cirilo, líder da Igreja Ortodoxa Russa,
menciona a “tradição compartilhada dos
primeiros dez séculos” e faz uma pesarosa
referência à “perda da unidade”, isto é, ao
Cisma do Oriente, de 1054, cujo milênio
se aproxima. A restauração da unidade da
cristandade figura como meta declarada,
mas ainda utópica. Por outro lado, a meta
imediata é evitar a “completa expulsão dos
cristãos do Oriente Médio”.
Francisco, vestido de branco, e Cirilo,
vestido de preto, abraçaram-se e beijaram-se
em 12 de fevereiro, no primeiro encontro dos
líderes das duas igrejas desde o cisma medieval. Predecessores de Francisco fracassaram
em tentativas de promover uma reunião
desse tipo, esbarrando na desconfiança da
Igreja Russa sobre as intenções do Vaticano,
que pretenderia explorar as divisões entre
os líderes ortodoxos da Europa Oriental. O
aeroporto José Martí, em Havana, lugar improvável do encontro finalmente realizado,
reflete a “permanência de diversos obstáculos” – ou seja, o delicado jogo geopolítico que
condiciona os passos das duas igrejas.
“Nosso encontro fraternal aconteceu
em Cuba, na encruzilhada de Norte e Sul,
Oriente e Ocidente”, explica a declaração
conjunta. A exclusão de Roma e Moscou,
sedes dos poderes religiosos rivais, derivou
de um cuidado óbvio: nenhum dos dois
líderes aceitaria a condição de hóspede do
outro. No altar da catedral de Santa Sofia,
em Istambul, está depositada há 962 anos
a bula papal de excomunhão. A antiga
Constantinopla seria, em tese, o lugar
simbólico perfeito para uma conclamação
conjunta à reunificação dos cristãos. Mas
Cirilo não aceitaria, em nenhuma hipótese,
a condição de hóspede do patriarca Bartolomeu, o arcebispo de Constantinopla,
um ativo concorrente político no mundo
cristão ortodoxo.
Cirilo personifica a reativação, após o
longo parêntese soviético, da aliança entre
Igreja e Estado na Rússia. Depois da queda
de Constantinopla, em 1453, Moscou converteu-se na “terceira Roma” e o imperador
russo tomou o lugar do imperador bizantino na qualidade de protetor da Igreja
Ortodoxa. Sob Putin, o Kremlin restaurou
a tradicional aliança, distinguindo a Igreja
Ortodoxa Russa de suas congêneres. Cirilo
celebrou o putinismo como um “milagre
de Deus”, amaldiçoou o nacionalismo
georgiano e abençoou as forças russas que
ocuparam a Crimeia.
MARÇO 2016
Bartolomeu, pelo contrário, não tem um
Estado atrás de si. Contudo, seu evidente
desamparo na Istambul das mesquitas é uma
fonte simbólica de força: entre os líderes
ortodoxos nacionais da Europa Oriental, o
patriarca de Constantinopla aparece como
alternativa ao poder político-religioso de
Moscou. Não por acaso, Bartolomeu convocou sínodos pan-ortodoxos e opera pelo
“diálogo” com a Igreja de Roma. Ele assistiu
à missa que entronizou Francisco, no Vaticano, em março de 2013, e recepcionou o
papa Francisco em Istambul, em novembro
de 2014. Na Santa Sofia, concordou com o
objetivo papal de trabalhar pela “completa
unidade” da cristandade. Meses antes, a
Igreja Ortodoxa Russa censurou veladamente a iniciativa, declarando que Bartolomeu
representava apenas sua própria igreja no
encontro com o papa.
Francisco tem uma vantagem evidente
sobre Cirilo. A Igreja de Roma é um corpo
centralizado, um império espiritual. As igrejas nacionais ortodoxas são autocéfalas, isto
é, entidades independentes umas das outras.
O magnetismo que o Vaticano exerce sobre
as frágeis igrejas ortodoxas dos Bálcãs, do
Oriente Médio e da África do Norte reflete,
em certa medida, a atração exercida pela
União Europeia sobre as nações da antiga
esfera de influência soviética.
Na moldura da operação reunificadora
© Ismael Francisco/Cubadebate
Francisco e Cirilo beijam-se em Havana
de longo prazo, o papa ergue a bandeira da
defesa das comunidades cristãs perseguidas
pelo jihadismo e pelos fundamentalismos
islâmicos no Oriente Médio e na África do
Norte. A declaração conjunta menciona,
especialmente, a Síria e o Iraque, dirigindo-se “num apelo fervoroso”, a “todas as
partes que possam estar envolvidas em
conflito para que demonstrem boa vontade e participem da mesa de negociações”.
Ao mesmo tempo, oferece apoio “a todos
os esforços possíveis para acabar com o
terrorismo por meio de ações comuns,
conjuntas e coordenadas”, uma fórmula
ampla e vaga, capaz de cobrir à sua sombra
tanto os interesses geopolíticos dos Estados
Unidos quanto os da Rússia. A unidade
exige a ambiguidade.
MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO
argentina
Macri enfrenta o peso da tradição peronista
Newton Carlos
Da Equipe de Colaboradores
Novo presidente argentino anuncia mudanças radicais de política externa e procura
caminhos para negociar o “ajuste econômico” com os sindicatos
a Argentina, havia a expectativa para saber como
o La Cámpora, agrupamento que funciona como
uma espécie de ponta-de-lança do peronismo, reagiria
a um naufrágio eleitoral. O desastre aconteceu, com o
triunfo do oposicionista Mauricio Macri, o ex-prefeito de
Buenos Aires alçado à Presidência do país. A expectativa
ainda não se desfez de todo, embora a Juventude Peronista
para a Vitória (JPV), movimento mais diretamente ligado
a Cristina Kirchner, no momento se mobilize mais em
função do que é chamado de “teoria do quarto escuro”.
Trata-se de descer à trincheira, reafirmar posições ideológicas, mas aguardar uma oportunidade mais propícia
para o confronto.
É um peronismo que, embora habituado a viver em
palácio, parece aceitar como única saída os prazos estabelecidos pelo cronograma das eleições de 2017 e 2019. A
opção é não enfrentar diretamente o “ajuste econômico”
de Macri, embora denunciando-o retoricamente. O La
Cámpora, movimento batizado com o sobrenome de
Héctor Cámpora, o presidente da esquerda peronista que
governou por 49 dias em 1973, entrou em recesso sob o
peso das urnas. Reunindo jovens peronistas, criado em
2003 por Máximo Kirchner, filho de Néstor e Cristina
Kirchner, o movimento justifica as ações armadas dos
Montoneros, a guerrilha urbana com trágica incidência
na Argentina da década de 1970.
De sua parte, o governo Macri insiste no programa do
“ajuste econômico” aprovado nas urnas, mas procura caminhos para evitar confrontos. Sua equipe econômica promete negociar salários com os sindicatos, domar a inflação
rebelada e, ao mesmo tempo, oferecer estímulos para uma
© Casa Rosada
N
Mauricio Macri toma posse como novo
presidente da Argentina
retomada econômica. “Bravo desafio”, comentou o jornal
La Nación, sem disfarçar a incredulidade. O governo, por
sua vez, tenta acender luzes no fim do túnel, anunciando a
visita de Barack Obama, um desafogo negociado da dívida
externa e a restauração da ortodoxia econômica.
Uma vantagem é que nem a cúpula da central sindical,
de tradição peronista, nem os sindicatos de base estariam
irredutíveis a negociar com o governo. De fato, vários
sindicatos dirigidos por grupos de esquerda não peronista
declaram-se prontos para combater o “ajuste”, mesmo sem
o apoio da Frente Para a Vitória (FPV). Mas os dirigentes
De volta, a Liga dos Governadores
Desalojado do poder, depois de 20 anos como ocupante da Casa Rosada, o peronismo trata de perseguir a unidade e
de encurralar o kirchnerismo, selo da ex-presidente Cristina Kirchner. Ela comanda a sublegenda majoritária no seio do
Partido Justicialista (peronista), rotulada Frente Para a Vitória (FPV), que foi derrotada nas eleições presidenciais.
São relacionados três objetivos imediatos do peronismo como um todo. O primeiro: manter-se unido e consolidar-se
como principal interlocutor do presidente vitorioso, Mauricio Macri. O segundo: conseguir que voltem ao Partido Justicialista quatro governadores de províncias “críticos” do kirchnerismo. Dessa forma, o peronismo ficaria com um total
majoritario de 18 governadores. O terceiro: renovar as autoridades internas por meio dos votos diretos de filiados já no
ano em curso.
Algo inédito, o peronismo jamais tratou de se renovar por meio de incidência de urnas em seu próprio seio, preferindo
indicar de cima para baixo como seus militantes devem se comportar. Agora, a informação é que a maioria dos governadores
justicialistas, com peso político interno determinante, concorda com estes três objetivos.
Como pano de fundo, a reconstrução “de fato” da famosa Liga dos Governadores. Ela atuou no final dos anos 1980
e deu o golpe de morte no alfonsinismo, mandato do presidente Raúl Alfonsín, do Partido Radical, inimigo histórico
do peronismo. O comportamento é de fácil entendimento: ganhar posições no seio do peronismo evitando, ao mesmo
tempo, criar “fissuras” internas.
Não se trata de expulsar os setores mais duros, sobretudo sindicais, da FPV. O objetivo é “moldá-los”, inclusive a
própria Cristina e membros de sua família, que perderam a força “persuasiva” representada pelo controle da Casa Rosada.
Trata-se de encerrar a “época do dedo”, ou seja, das ordens arbitrárias emanadas do kirchnerismo. A esperança é que, com
o passar do tempo, conquistem os “pesos territoriais” que dizem ter. Depois de tantos anos de “alinhamento automático”,
teria chegado a hora de contar com estrutura própria, amparada nas máquinas políticas dos governadores. Os reformistas
dizem contar com mais de 30 dos 40 senadores da FPV, o que poderia ser uma boa alavanca.
(Newton Carlos)
MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO
sindicais históricos, apesar de uma estridente retórica
de oposição, parecem se preparar para um acordo cujos
termos o governo imporia enquanto avançam a inflação
e as demissões.
As situações de confronto não cessam. Os governadores peronistas articulam-se para uma batalha jurídica
com objetivos estratégicos. Querem recuperar bilhões
em impostos cedidos ao governo central há mais de 20
anos, de modo a conseguir autonomia financeira diante
de Macri, algo que os ajudaria a comandar o movimento
peronista [veja o boxe].
Uma decisão da Corte Suprema parece abrir caminho
a uma desenlace em favor dos governadores, que controlam diversas províncias importantes, algumas com forte
peso econômico e, em consequência, também político.
A Corte Suprema declarou inconstitucional uma lei que
desconta, em favor do governo central, 15% da totalidade
dos impostos cobrados pelas províncias. Córdoba, Santa
Fé e San Luis, com governadores peronistas, entraram
com o pedido e ganharam. O peronismo é um partido
de poder, que nasceu no poder e sua ideologia é o poder,
sentenciou o La Nación.
O programa de Macri não se circunscreve ao “ajuste
econômico”. O presidente nomeou um secretário de
Planejamento Estratégico, Fulvio Pompeo, um jovem
engajado na tarefa de “moldar” o governo, dentro e fora.
Mudanças já estão à vista, sobretudo fora. São múltiplos
sinais: condenação das violações de direitos humanos na
Venezuela; a simbólica remoção do retrato de Hugo Chávez, que ornava a Casa Rosada, sede do governo argentino;
intensificação das relações com os Estados Unidos, “maduras, não adolescentes”, nas palavras de Pompeo. Macri
está disposto, inclusive, a normalizar as relações com a
Grã-Bretanha, sem abrir mão da reivindicação sobre as
Ilhas Malvinas, motivo da guerra de 1982, precipitada
por uma ditadura militar buscando encrenca externa que
cobrisse dificuldades internas.
Quanto ao memorando de entendimento com o
Irã, Macri simplesmente o anulou. Trata-se de acerto de
política externa que gerou pesadas dificuldades a Cristina, fato anotado com cuidado por Pompeo. Envolvia a
investigação conjunta do atentado terrorista na Amia, um
centro judaico, em 1994, com um montão de mortes, e
também a morte suspeita de um integrante do judiciário
argentino. Sob a supervisão de Macri, Pompeo anunciou
uma devassa na caixa preta dos serviços de inteligência.
Na política externa, a ideia geral é recompor laços “com
o mundo”. Já se fizeram encontros com mandatários da
França e da Itália. “Temos uma agenda do século XXI”,
diz Pompeo, “nosso objetivo principal é que a inserção
internacional nos permita alcançar metas internas, como
a de pobreza zero”. Ele ocupa na Casa Rosada uma sala
contígua ao do presidente. Já se impõe como figura central
da construção da nova diplomacia argentina.
2016 MARÇO
venezuela
No pior dos mundos
Em meio ao agravamento da crise, Nicolás Maduro tenta esvaziar poderes da Assembleia
Nacional e a oposição prepara meios para afastá-lo do cargo
Cláudio Camargo
Especial para Mundo
S
MARÇO 2016
Ondas de
protesto
contra o
presidente
da Venezuela
Nicolás
Maduro
explicitam
a crise do
“chavismo”
© Federico Parra/AFP
imón Bolívar, general que liderou a luta pela independência de vários países hispano-americanos,
principal santo no altar de devoção dos bolivarianos da
Venezuela, costumava dizer que a arte de vencer se aprende
com as derrotas. Seu epígono, o tenente-coronel Hugo
Chávez, soube aplicar essa máxima: líder de uma frustrada
tentativa de golpe militar em 1992, ele se reciclou, entrou
na política partidária, elegeu-se presidente em 1998 e
refundou a república. Reeleito sucessivamente, ficou na
cadeira presidencial até sua morte, em 2013. Já seu sucessor, Nicolás Maduro, recebeu o poder quase de bandeja,
como herdeiro do chavismo. Na época, já às voltas com
a crise econômica, ganhou a eleição por uma margem
apertadíssima (50,6% contra 49% do opositor Henrique
Capriles). Em compensação, seu partido, o Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), manteve a maioria na
Assembleia Nacional, com 100 das 167 cadeiras.
Agora, a deterioração econômica da Venezuela cria
o cenário para o confronto. A maior inflação do mundo
deve atingir 720% em 2016, o desabastecimento é generalizado e prevê-se contração de 18% do PIB entre 2015 e
2016. Nessas condições, Maduro tem que lidar com uma
situação inédita em 17 anos de chavismo: a transferência
da maioria parlamentar para a oposição. Em dezembro
último, numa eleição com 75% de comparecimento, a
coalizão oposicionista Mesa da Unidade Democrática
(MUD) conquistou 112 cadeiras da Assembleia, contra
55 dos partidos governistas. Abriu-se um período de
crise institucional, com o governo tentando manietar o
Parlamento e a oposição buscando meios de encurtar o
mandato de Maduro, que vai até 2019.
Ao contrário de Chávez, Maduro parece não ter
aprendido com a derrota. Para começar, ele só reconheceu a vitória da oposição por pressão do ministro da
Defesa, general Vladimir Padriño. Apesar de chavista,
a cúpula militar venezuelana teme a eclosão de novos
distúrbios em razão da radicalização política do país.
Mesmo assim, o presidente sinalizou que pretende
manter o clima de confronto ao colocar na pasta de
Economia um jovem sociólogo esquerdista, Luis Salas,
que pretende acelerar a intervenção estatal, irritando
ainda mais o empresariado.
O mais grave, contudo, são as ações do governo destinadas a esvaziar os poderes da nova Assembleia Nacional.
Nem bem as urnas tinham sido abertas e Diosdado Cabello, o linha-dura do chavismo, anunciou a convocação
de um “Parlamento comunal”, órgão previsto na Constituição que nunca tinha sido convocado. Seria uma espécie
de poder paralelo, com a prerrogativa de aprovar iniciativas
políticas e econômicas à revelia da Assembleia.
Na sequência, Maduro aposentou e substituiu 13 dos
32 juízes do inchado Tribunal Supremo de Justiça (TSJ).
Dias depois, o TSJ acatou um pedido do PSUV e impugnou quatro deputados, três deles da MUD, a pretexto de
irregularidades eleitorais. Com isso, a oposição perdeu
a maioria qualificada de dois terços, que lhe permitiria
emendar ou reformar a Constituição. Antes, o governo
já tinha tirado do Parlamento o poder de escolher os dirigentes do Banco Central e o direito de obter informações
do órgão.
A disputa ganhou conotações de conflito entre os
poderes do Estado. Em 22 de janeiro, a Assembleia rejeitou, por 107 votos, o decreto de emergência econômica
do governo, que dava poderes ao presidente para, por 60
dias, adotar medidas sem consultar o Parlamento, como
expropriação de empresas e bens privados, aprovação
de orçamentos e imposição de restrições sobre saques
em dinheiro e câmbio. Mas, em 11 de fevereiro, o TSJ
ignorou a decisão e validou o decreto de emergência.
Instaurou-se o caos.
Nesse clima, parece que o chavismo não sobreviverá ao
seu “comandante”. Não se vislumbra nenhuma liderança
capaz de ser o “herói da retirada” de que fala Hans Magnus
Enzensberger, aquele líder que, apesar de identificado com
um determinado regime, exerce um papel central na transição democrática, como fizeram Mikhail Gorbachev na
União Soviética e Adolfo Suárez na Espanha franquista.
Mas, do outro lado, tampouco a oposição revela consistência. Para começar, trata-se de um saco de gatos de 14
partidos cujo único denominador comum é a oposição ao
chavismo. De fato, a MUD reúne desde lideranças moderadas, como Henrique Capriles, do Primeiro Justiça (PJ),
governador de Miranda e ex-candidato presidencial, até
radicais de direita como Leopoldo López, ex-prefeito de
Chacao preso e condenado a 14 anos por conspiração, Maria
Corina Machado, do Vente Venezuela, e Antonio Ledezma,
ex-prefeito de Caracas, também preso. O maior partido é
o PJ, de Capriles, que elegeu 33 deputados, seguido pela
tradicional Ação Democrática (AD), com 26 parlamentares,
Um Novo Tempo (UNT), uma cisão da AD no Estado de
Zulia liderado por Manuel Rosales, com 20, e Vontade
Popular, com 14 deputados, liderado por López.
As divergências entre os antichavistas se manifestaram
já na eleição do presidente da Assembleia, quando o veterano Henry Ramos Allup, da AD, derrotou o favorito
Julio Borges, do PJ. Ao tomar posse, Ramos Allup também
irritou os setores moderados ao mandar tirar as imagens de
Chávez e de Bolívar das dependências da Assembleia.
É verdade que a oposição hoje está em outro patamar.
Em 2002, tanto Capriles quanto López embarcaram na
fracassada aventura golpista que colocou o empresário
Pedro Carmona no poder. A política de confronto continuou em 2005, quando a oposição boicotou as eleições,
deixando o Parlamento nas mãos do PSUV e seus aliados.
Agora, diz Capriles, o pragmatismo tomou o lugar do
confronto e da radicalização. Será? Leopoldo López, Maria
Corina Machado e Antonio Ledezma discordam.
De qualquer modo, a MUD precisará se unir se quiser
afastar Maduro. Uma aposta é o referendo revogatório,
que pode ser convocado depois da metade do mandato
presidencial – o que, no caso de Maduro, ocorrerá já em
março. Para convocá-lo, são necessárias assinaturas de 20%
dos eleitores (cerca de 4 milhões). Aprovado o referendo,
Maduro será afastado se o “não” tiver tantos votos quanto
os que o elegeram (7 milhões). Outra alternativa é uma
emenda constitucional que abrevie o mandato presidencial. Há, finalmente, quem não descarte uma renúncia
de Maduro, mas apenas em janeiro de 2017. Nesse caso,
assumiria o vice Aristóbulo Isturiz, recentemente nomeado, para completar o mandato até 2019. Definitivamente,
parece que Bolívar não deixou herdeiros na Venezuela.
Cláudio Camargo é jornalista e sociólogo
MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO
José Arnaldo Favaretto
Especial para Mundo
P
elo mundo globalizado, fluem
dinheiro, mercadorias e gente.
Abertas ao capital, as fronteiras nacionais
são atravessadas por turistas, empresários,
executivos, pilotos de aviões, soldados,
migrantes econômicos e refugiados de
conflitos internos ou desastres naturais.
Essa multidão desloca-se levando algo mais
do que bagagens: suas colônias de microrganismos. Sem navios, aviões e pessoas, os
agentes infecciosos não se espalhariam tão
rápido nem para tão longe [veja a matéria
à pág. 8].
A primeira epidemia em escala planetária
do século XXI foi a sars (síndrome respiratória aguda grave) que, entre novembro de
2002 e junho de 2003, atravessou 18 países,
atacou 6 mil pessoas e matou mais de 470.
A transmissão da sars ocorre “sem intermediários”, de pessoa para pessoa. No entanto,
há doenças cuja transmissão depende de um
vetor biológico (o agente transmissor), que
costuma ser um artrópode. No caso da peste
bubônica, que dizimou 25% da população
europeia no século XIV, o vetor é a pulga do
rato (Xenopsylla cheopis). Para que ocorra surto de doença transmitida por vetor biológico,
três condições devem estar presentes: pessoas
não imunizadas, o agente infeccioso (em
pessoas infectadas ou em animais que atuam
como reservatórios naturais) e o vetor.
O agente etiológico da dengue é
um arbovírus que deve ter se originado
de vírus que circulavam entre primatas
não humanos em florestas da Ásia. O
crescimento populacional aproximou populações humanas de ambientes naturais
e colocou pessoas em contato com esses
primatas. Vetores biológicos (mosquitos)
forneceram a via de passagem, e mutações
devem ter permitido a adaptação do vírus
ao organismo humano.
Os mais “eficientes” vetores do vírus
da dengue são mosquitos do gênero Aedes
(principalmente A. aegypti e A. albopictus),
originários da África. Entre os séculos XV e
XIX, o tráfico de escravos africanos forneceu
“carona” para que esses mosquitos alcançassem as Américas, permitindo que a doença
circulasse daí para quase todo o mundo.
Posterior à chegada do Aedes ao Brasil, aportou por aqui – vindo também
da África, com os escravos – o arbovírus
causador da febre amarela, que provocou
surtos em capitais do Nordeste no século
XVII. A febre amarela silvestre tem o Ha-
© Agência Brasil
Pelo mundo, nas asas do mosquit
emagogus como vetor,
Países ou áreas onde casos de dengue foram reportados
mas a febre amarela
urbana é de responsabilidade do Aedes. Em
1904, a cidade do Rio
de Janeiro passou por
campanhas de limpeza, saneamento e
urbanização. A coordenação das atividades
isoterma de janeiro
relacionadas à saúde
10 ºC
pública foi entregue
ao médico Oswaldo
Cruz, com três prioridades: o combate aos
ratos (para erradicar
a peste bubônica), a
vacinação contra a vaisoterma de julho
ríola e o combate aos
10 ºC
mosquitos responsáFonte: Organização Mundial de Saúde (OMS)
veis pela transmissão
da febre amarela.
O êxito de Oswaldo Cruz não deitou raízes. Desde a década Aedes, têm portadores do vírus da dengue e voráveis de desenvolvimento deverão se
de 1970, as populações de Aedes aegypti no têm pessoas não imunizadas, por que lá são deslocar para latitudes maiores, ao sul e
Brasil não param de crescer, o que aumenta raros os surtos de dengue? Principalmente ao norte [veja o mapa]. Mais áreas e mais
o temor da irrupção de novos surtos de porque eles contam com saneamento am- pessoas estarão expostas ao mosquito;
febre amarela urbana. Felizmente, a vacina biental, esgoto coletado e tratado, casas logo, a dengue e outras doenças que ele
disponível confere boa proteção.
decentes com portas, janelas, caixas d’água transmite deverão encontrar milhões de
Nas asas do mosquito, e sem vacina fechadas, aparelhos de ar-condicionado e vítimas potenciais.
eficaz, a dengue apossou-se do país. Verão autoridades sanitárias que trabalham, em
O Aedes costuma dar uma trégua nos
após verão, com as chuvas e o aumento vez de desfiar platitudes.
meses de inverno. Isso, porém, depende
da temperatura, epidemias se alastram
Para explicar a explosão de dengue e o do que chamamos de inverno. Vêm aí as
por todas as regiões, batendo recordes de aparecimento de outras doenças circulam Olimpíadas do Rio de Janeiro, no próximo
doentes e mortos. Em 2015, foram 863 informações bizarras e até teorias conspira- agosto, e a Cidade Maravilhosa chegou a
mortes entre 1,6 milhão de casos, maior tórias. Uma delas imputa a disseminação da registrar, em agosto de 2015, inacreditáveis
cifra desde 1990, quando a notificação zika ao aquecimento global. É verdade que, 37 °C de temperatura.
passou a ser obrigatória. O maior número para se reproduzir, o Aedes precisa de água e
Como o mosquito olha o termômeanterior havia sido o de 2013, com 1,4 calor, e a distribuição desses dois fatores pelo tro, mas não o calendário, é provável que
milhão de casos.
mundo vem se alterando pelas mudanças tenhamos problemas. Não foi à toa que
De 2013 a 2015, o governo federal climáticas. Todavia, o Aedes já estava ins- o Comitê Olímpico Internacional (COI)
reduziu o repasse aos municípios de recur- talado no Brasil antes da chegada da zika. recomendou o uso de roupas longas e
sos destinados ao combate ao Aedes, que Ele foi seu agente de disseminação, mas não claras e que as mulheres com intenção de
passaram de R$ 263 milhões para R$ 143 o causador da celeuma. Antes de culpar o engravidar reconsiderem a vinda aos Jogos.
milhões ao ano. Em uma declaração infeliz, aquecimento global, é preciso “fazer a lição Agosto é mês de inverno no Rio de Janeimas verdadeira, o ministro da Saúde, Mar- de casa”, o que vem sendo negligenciado há ro, mas de verão em todo o Hemisfério
celo Castro, disse em janeiro último que décadas [veja a matéria à pág. 7].
Norte, inclusive nos Estados Unidos, de
“o Brasil está perdendo feio a guerra para
As mudanças climáticas não são a ra- onde virão mais de 200 mil pessoas para
o Aedes aegypti”. A principal autoridade zão do aparecimento da dengue, da zika e as Olimpíadas, e para onde elas voltarão,
sanitária do país joga a toalha, e a explosão congêneres, mas poderão alterar o padrão podendo levar consigo os vírus, na época
dos casos de dengue é uma tragédia mais global de distribuição dessas doenças, pois em que os Aedes de lá estarão em plena
do que anunciada. Como não consegue mais áreas do globo vão oferecer condições atividade.
controlar o mosquito, o ministro anun- para a sobrevivência e a proliferação do
ciou distribuição de repelente às gestantes mosquito. No futuro próximo, em um
José Arnaldo Favaretto é médico
graduado pela Faculdade de Medicina de
atendidas pelo Bolsa Família.
mundo mais quente, as isotermas entre
Ribeirão Preto (USP) e autor de livros
Se os Estados Unidos também têm as quais o Aedes encontra condições fadidáticos
MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO
2016 MARÇO
to
Vírus da zika pode ter chegado na Copa do Mundo
E
cossistemas naturais – principalmente florestas tropicais – são “celeiros” de vírus,
Não há combate específico ao vírus, e o tratamento é sintomático, com hidratação, anbactérias, protozoários e fungos potencialmente patogênicos, que circulam entre os
titérmicos e analgésicos. Vacinas estão em desenvolvimento e, de acordo com a Organização
membros das comunidades. O nome do vírus da zika, por exemplo, vem da Floresta de
Mundial da Saúde (OMS), testes clínicos devem se iniciar em 2017.
Zika, em Uganda.
A prevenção resume-se em evitar a picada do Aedes com o uso de repelentes, roupas claras
A cada desmatamento, pessoas se aproximam de agentes infecciosos e de seus propagadores.
que cubram o corpo tanto quanto possível e telas em portas e janelas. São fundamentais o
Se o acaso cruza nossos caminhos com o vetor apropriado, uma nova doença humana pode
fechamento, a limpeza e o esvaziamento de depósitos de água que sirvam de criadouros do
despontar. No primeiro contato, é provável que as coisas não saiam bem para o hospedeiro
mosquito (caixas d’água, piscinas não tratadas, vasos, pneus, ralos e outros recipientes), além
(ser humano) nem para o invasor (o agente infeccioso). Para o primeiro, porque o sistema
da nebulização com inseticidas (o popular “fumacê”) e do uso de larvicidas.
imunológico está tendo o primeiro contato com antígenos contra os quais não têm memória
Em um surto de zika na Polinésia Francesa, em 2013, autoridades de saúde detectaram
imunológica nem produz anticorpos; para os patógenos, porque seus mecanismos de ataque
aumento da ocorrência da síndrome de Guillain-Barré (SGB), doença autoimune em que
não estão plenamente adaptados às particularidades do novo habitat (o nosso corpo).
anticorpos atacam células nervosas do próprio doente e que provoca fraqueza muscular (prinNesse embate, eles levam vantagem: enquanto nós demoramos horas, dias ou semanas para
cipalmente de pernas e braços). Na maioria dos casos, a recuperação é completa. Também
desencadear uma resposta imune eficaz, eles se reproduzem com velocidade estonteante, sofrem
no surto brasileiro de zika notou-se aumento concomitante do número de casos de SGB,
mutações e, por ação da seleção natural, em gerações que se sucedem em poucos minutos, já
em particular no Nordeste. Alagoas, por exemplo, registrou elevação de 516% em relação à
podem contar com estratégias eficientes de ocupação de território. É a roda da evolução, como
série histórica.
sempre. Assim foi com a febre amarela, o ebola, a sars, o HIV, a dengue e centenas de outros.
Uma novidade do surto de zika iniciado no Nordeste em 2015 foi o aumento do número
O vírus da zika não é o primeiro agente infeccioso a adquirir status de ameaça planetária e
de casos de microcefalia, redução do tamanho da caixa craniana e do cérebro em recém-nascicertamente não será o último.
dos, acompanhada por outras alterações neurológicas e, em geral, retardo no desenvolvimento
No calor do momento, enquanto os fatos acontecem, um manto de incertezas dificulta
psicomotor. Sabe-se que a microcefalia pode decorrer de certas infecções (como a toxoplasmose)
compreender a realidade, que só se torna nítida depois de dias, anos ou até séculos. Será que os
e do uso de drogas, álcool e outras substâncias durante a gestação; entretanto, foi a primeira
parisienses que acompanharam a queda da Bastilha tinham a exata noção da ruptura histórica
vez que se imputou à zika essa malformação congênita.
que presenciavam? É o que acontece em meio a um surto de uma doença pouco conhecida,
Um artigo sobre o tema, publicado no The New England Journal of Medicine, apresentou
sobre a qual pairam dúvidas sobre prevenção, tratamento e complicações. Atualmente, a
o caso de uma jovem da Eslovênia que, vivendo em Natal (RN), engravidou e contraiu zika
peste bubônica (século XIV) e a gripe espanhola (século XX) ocupam as páginas dos livros
no primeiro trimestre da gestação. De volta a seu país, exames ultrassonográficos confirmaram
de História; porém, enquanto se alastravam, desenhavam cenas trágicas do cotidiano.
no feto o diagnóstico de microcefalia associada a severas malformações do encéfalo, e a jovem
Estamos assistindo à história dessa doença ao vivo, e é provável que eu me arrependa de
optou pelo aborto. No sistema nervoso do feto, encontraram-se abundantes partículas virais,
afirmações que coloco neste artigo, pois escrevo sobre o que ainda está encoberto por uma
indicando a infecção pelo zika. Num artigo publicado em Morbidity and Mortality Weekly
névoa de dúvidas. Certas doenças são assim: emergem onde não ocorriam, reemergem onde já
Report, pesquisadores do Brasil e dos Estados Unidos relataram a presença do vírus no cérebro
ocorreram. E muitas têm sido negligenciadas pela comunidade científica, que não dedica a elas
de duas crianças que nasceram com microcefalia e morreram com poucos dias de vida. Ambas
tempo e recursos. Uma ideia do descaso: o vírus da zika foi identificado em 1947; o HIV, em
as mães tiveram zika no início da gravidez.
1984. Contudo, um acesso à Biblioteca dos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos,
Embora seja evidente a correlação entre o aumento do número de casos de zika e os de
feito em 16 de fevereiro, mostra 294 citações ao vírus da zika, enquanto o HIV aparece em
microcefalia, ainda não se pode falar em relação de causa e efeito. O vírus está no cérebro
mais de 238 mil citações. Os artigos científicos sobre a zika mal ocupariam uma pasta plástica,
desses bebês – mas será ele a causa das alterações? As próximas semanas devem trazer respostas
enquanto o papelório sobre a aids encheria uma biblioteca.
para essa questão. Até lá, recomenda-se às mulheres que não engravidem ou que não viajem
O Aedes aegypti é um vetor polivalente que, além de propagar dengue e febre amarela,
para regiões com surto de zika.
transmite zika e chikungunya. Por isso, a presença maciça do mosquito faz do país inteiro
O governo federal promete auxílio mensal de um salário mínimo para as famílias com casos
um gigantesco barril de pólvora. Temos a pólvora (pessoas não imunizadas) e o fósforo (o
de microcefalia associados à zika cuja renda mensal per capita for inferior a R$ 220. Resta,
mosquito). Para que tivéssemos surtos de outras doenças faltavam novos agentes infecciosos.
ainda, a patética recomendação do ministro da Saúde: “Torço para que as mulheres peguem
Ao que tudo indica, eles foram providenciados pela Copa do Mundo, que trouxe um fluxo
zika antes da idade fértil.” É muito pouco para quem paga o preço de viver em um país que
maior do que o habitual de pessoas vindas de outras partes do planeta.
há mais de quatro décadas se mostra incapaz de controlar um mosquito.
O agente etiológico da zika é um arbovírus descoberto em Uganda, em 1947, que já circula
(José Arnaldo Favaretto)
por vários continentes e deve ter desembarcado no
Brasil em 2014, com turistas que chegaram a Natal
(RN) para os jogos da Copa do Mundo de Futebol
Disseminação da zika entre 1947 e 2016
[veja o mapa]. O Aedes se infecta picando pessoas
infectadas, e não se sabe se existe reservatório natural. Só as fêmeas são hematófagas, e a alimentação
com sangue é crucial para a maturação dos ovos,
que, depois de eliminados, permanecem viáveis no
ambiente por até um ano. Outras potenciais formas
de transmissão – tão divulgadas quanto questionadas
– são as transfusões de sangue, o contato sexual e o
contato com outros fluidos corporais.
Assim como o vírus da zika, a própria doença
é de conhecimento recente. O primeiro surto foi
1954
Rep.
descrito em 2007 e, de lá para cá, foram registrados
1977
Cabo
Dominicana
Verde
Porto Rico
México
Haiti
casos em 34 países. Somente em 2015 e 2016, 26
Saint Martin
Senegal
1954
Paquistão
Barbados Guadalupe
Nigéria
Rep. CentroFilipinas
países já comunicaram casos.
Belize
Africana
2007
Guatemala
Martinica
Tailândia
Honduras
Curaçao
Micronésia
El
Salvador
Clinicamente, a zika é menos relevante que suas
Malásia
Guiana
1947
Serra
Nicarágua
2016
Guiana Francesa
Uganda
Leoa
Costa Rica
Maldivas Camboja
Camarões
Costa
Suriname
Ilhas
“primas” febre amarela, dengue e chikungunya,
Panamá
do Marfim
Samoa
Salomão
Colômbia
1948
Indonésia
2016
Burkina
Tanzânia
Ilhas
mantendo-se assintomática em quatro de cada
Equador
Gabão
Faso
Fiji
Brasil
2013
1977/2012
2015
Vanuatu
cinco pessoas infectadas. O período de incubação
Polinésia
Venezuela
Ilhas
Francesa
1975/2007
Cook
Nova
varia de dois a dez dias e as manifestações duram
Bolívia
Caledônia
2016 Tonga
Paraguai
uma semana. Os doentes podem apresentar febre,
Ilha da
Páscoa
cefaleia, fotofobia e conjuntivite, dores musculares
2014
e articulares, náusea, diarreia e vermelhidão na pele.
Embora raros, casos graves são potencialmente letais.
Fonte: Organização Mundial de Saúde (OMS)
O diagnóstico clínico é complementado pela detecção, em amostras de sangue, do próprio vírus ou de
fragmentos de seu RNA (material genético).
MARÇO 2016
MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO
epidemias e globalização
Desde Colombo, microrganismos patogênicos
Os intercâmbios ecológicos espalharam vírus e bactérias por todos os continentes, deflagrando pandemias
e estimulando a descoberta de vacinas
D
écadas atrás, os manuais escolares de história nos
Estados Unidos informavam que, nos tempos précolombianos, cerca de 1 milhão de ameríndios viviam no
atual território do país. O número estimado, decorrente
da ignorância, servia para justificar a conquista pelos
colonos europeus de um “continente despovoado”. Hoje
se sabe que algo em torno de 20 milhões de ameríndios
povoavam os territórios que formariam os Estados Unidos
e o Canadá. O colapso populacional aconteceu em cerca
de 150 anos, deflagrado pelos vírus introduzidos no Novo
Mundo com a chegada dos conquistadores espanhóis.
Acredita-se, atualmente que, nas Américas como um
todo, perto de 95% da população pré-colombiana desapareceu durante aquele período em pandemias de varíola,
sarampo, gripe, tifo, difteria, malária, caxumba, coqueluxe, peste bubônica, tuberculose e febre amarela. Hernán
Cortés, o conquistador do Império Asteca, perdeu dois
terços de seus 600 homens no ataque inicial, mas triunfou
em seguida, nas ondas da varíola, que dizimou metade dos
astecas, inclusive o imperador Cuitláhuac, desmoralizando
os ameríndios mas poupando os espanhóis. O vírus atingiu
o México viajando no organismo de um único escravo
infectado, transferido de Cuba em 1520.
Francisco Pizarro, o conquistador do Império Inca,
teve a mesma sorte de Cortés. Ele chegou à costa do Peru
em 1531, cinco anos depois da varíola, que fez o serviço
sujo, exterminando os ameríndios, inclusive o imperador
Huayna Capac e seu designado sucessor. Na vacância do
trono, a guerra civil entre dois filhos de Capac, Atahuallpa
e Huascar, abriu caminho para o triunfo dos escassos 168
homens de Pizarro.
Muito tempo antes, a Europa tinha sido exposta aos vírus
e bactérias responsáveis pelas devastadoras epidemias, introduzidos no continente por meio do comércio com a Ásia e
a África. Os conquistadores operavam como destacamentos
avançados de sociedades que desenvolveram relativa imunidade e resistência genética aos micróbios. Os ameríndios,
expostos pela primeira vez aos mortíferos microrganismos,
careciam de defesas naturais – e pereceram em massa. A
relação de causa e efeito entre microrganismos e doenças
foi sugerida originalmente em meados do século XVI, mas
enfrentou persistente descrédito durante três séculos, até o
advento das experiências de vacinação de Louis Pasteur.
O Intercâmbio Colombiano, expressão utilizada para
sintetizar as trocas de mercadorias, pessoas, animais,
plantas e microrganismos entre o Velho Mundo e o
Novo Mundo, inaugurou a longa era da globalização. Ao
longo dos 500 anos da globalização, o desenvolvimento
tecnológico dos transportes sustentou a expansão dos
intercâmbios mundiais, acelerando também as trocas de
microrganismos. Nessa moldura, configuraram-se padrões
de resistência humana às doenças e, por outro lado, os
microrganismos experimentaram mutações evolutivas que
produzem novas doenças.
© Agência Brasil
viajam pelo mundo
Distribuição geográfica da malária
Fonte: Michigan State University, 2014
A mais mortífera pandemia do século XX foi a chamada “gripe espanhola”, que começou no início de 1918,
meses antes do encerramento da Primeira Guerra Mundial,
e persistiu até dezembro de 1920. A doença infectou
cerca de 500 milhões de pessoas e exterminou algo entre
50 e 100 milhões, ou seja, talvez até 5% da população
mundial. “Gripe espanhola” é um nome incorreto, mas
revelador. Nos países em guerra, como Alemanha, França,
Grã-Bretanha e Estados Unidos, a censura oficial restringiu as informações sobre a epidemia, o que não ocorreu
na neutra Espanha, criando-se a falsa impressão de uma
doença particularmente mortífera naquele país.
Ninguém sabe ao certo onde se iniciou a “gripe espanhola”. Investigações científicas recentes sugerem que seu
berço europeu foi um hospital militar no norte da França.
Os pacientes teriam sido contaminados por um vírus
precursor alojado em pássaros, que sofreu mutação após
contaminar porcos consumidos na frente de batalha. Mas,
segundo uma teoria bem fundamentada, na origem da doença estaria a mobilização forçada de dezenas de milhares
de trabalhadores chineses que, antes de serem engajados
na retaguarda de tropas britânicas e francesas na guerra
europeia, teriam sofrido de um agudo mal respiratório
registrado na China setentrional em 1917.
As rápidas mutações do vírus foram decisivas para as
elevadas taxas de mortalidade. Em agosto de 1918, uma
cepa viral nova difundiu-se pela Europa e alcançou os
Estados Unidos e a Serra Leoa, na costa atlântica africana.
Na Índia Britânica, a pandemia exterminou 17 milhões,
cerca de 5% da população. Na Indonésia, registrou-se o
número de 1,5 milhão de vítimas fatais. No longínquo
MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO
arquipélago polinésio do Taiti, durante um único mês,
a gripe exterminou 13% da população. O vírus chegou
até comunidades nativas do Ártico, mas sofreu contínuas
mutações até perder sua letalidade, deixando atrás de si
um rastro de destruição e medo.
Algumas das pragas terríveis que acompanharam o Intercâmbio Colombiano nunca desapareceram por completo.
A vacina da varíola foi inventada em 1798 e a Organização
Mundial de Saúde (OMS) declarou o vírus erradicado no
mundo em 1979. Mas o sarampo afeta vastas áreas da Ásia
e da África e provoca o maior número de casos fatais entre
as doenças que podem ser prevenidas por vacinação. A febre
amarela, cujo vírus é transmitido em áreas urbanas pelo
mesmo Aedes aegypti que funciona como vetor da dengue e
do zika, afeta áreas tropicais da África e da América do Sul.
A malária, transmitida por mosquitos, é uma doença endêmica em extensas áreas do mundo tropical [veja o mapa].
A OMS calcula que, em 2015, ocorreram 214 milhões de
infecções, que resultaram em quase 440 mil mortes, 90%
das quais na África Subsaariana.
O ebola foi identificado pela primeira vez em 1976,
em dois surtos separados, um na atual República Democrática do Congo (então Zaire); outro, no atual Sudão do
Sul (então Sudão). De lá para cá, registraram-se diversos
surtos, o maior dos quais disseminou-se em 2013 na África
Ocidental, em especial Libéria, Serra Leoa e Guiné, provocando quase 29 mil infecções e mais de 11 mil mortes.
Após esse surto recente, que evidenciou o potencial de
difusão da epidemia para outros continentes, intensificaram-se os esforços para a obtenção de uma vacina.
2016 MARÇO
cartografia do poder
Europa tem “postos avançados” nos oceanos
Gutemberg de Vilhena Silva
Especial para Mundo
No Caribe, no Atlântico e no Índico, territórios franceses, portugueses e espanhóis
desempenham funções geopolíticas definidas pela União Europeia
N
as últimas décadas, a geopoA biodiversidade das RUPs
Países da União Europeia
(UE)
também é geopoliticamente relítica mundial foi marcada
Países da UE com regiões
ultraperiféricas
levante. Ela possui potencial nas
pela proliferação e fortalecimento de
mecanismos de integração regional
áreas da saúde, da biomedicina e
de fármacos, dos cosméticos e de
para o reequacionamento da balança
de poder global no pós-Guerra Fria.
muitos outros setores como o dos
materiais ecológicos de construção
A União Europeia é emblemática
6
e o da madeira. Existem condições,
porque se trata do caso mais evolu7
ído em termos de integração entre
em várias regiões, para desenvolver
8
fontes renováveis de energia, desde
os países signatários. Seu atual nome
12
e seu conjunto geral de diretrizes de
os bicombustíveis até energia eólica,
3
4
solar, geotérmica ou fotovoltaica.
funcionamento, embora com evo5
O desenvolvimento das RUPs
luções e adaptações, percorridas em
mais de meio século, foram estabeé pautado pela execução de ações e
9
lecidos pelo Tratado de Maastricht,
políticas públicas direcionadas pela
em 1992.
União Europeia desde o início da
10
década de 1990, com o objetivo de
Indo além dos espaços contínuos
Fonte: adaptado de G.V.Silva (2015)
promover sua coesão econômica e
do bloco europeu, no final da década
Identificação das regiões ultraperiféricas no mapa:
social. Tem-se, neste caso, diretrizes
de 1980 foram estabelecidas diretri6 - Arquipélago de Açores (Portugal)
1 - Saint-Martin (França)
gerais que se desdobram em seis
zes para as chamadas regiões ultrape7 - Ilha da Madeira (Portugal)
2 - Saint-Barthélemy (França)
8 - Ilhas Canárias (Espanha)
3 - Guadalupe (França)
eixos centrais e suas correspondenriféricas (RUPs), que são territórios
9 - Mayotte (França)
4 - Martinica (França)
10
Reunião
(França)
5
Guiana
Francesa
tes fontes de financiamento e focos
pertencentes a países da União Europeia, mas geograficamente distantes
específicos [veja a figura].
Tais medidas específicas para as
da Europa. Atualmente, as RUPs
Políticas orientadas para as regiões ultraperiféricas
RUPs, apresentadas como estratégia
são dez: as três régions francesas do
para assistência e desenvolvimento,
ultramar (Guadalupe, Reunião e
Diretrizes gerais
Medidas no
enfatizam os temas de acessibilidade,
Mayotte), as quatro coletividades
domínio da acessibilidade
competitividade e integração regioultramarinas francesas (Guiana
Novas
Redução do
Fontes de financiamento
medidas de
impacto das
políticas
restrições
nal, sendo ainda previstas medidas
Francesa, Martinica, Saint-Martin e
Estruturais
de coesão
às economias
Investigação e
Fundos de
locais
Ambientais
como a redução do impacto das
Saint-Barthélemy), duas regiões audesenvolvimento
coesão
Energéticas
Empresariais
restrições das economias locais, do
tônomas portuguesas (Arquipélago
Políticas da
Ações
Apoios do
União Europeia
Alfandegárias inovadoras
Migração
emprego, da inovação, da reforma
de Açores e Madeira) e as Ilhas CaEstado
orientadas às
RUPs
Fiscais
Pesca
econômica e do desenvolvimento
nárias, uma comunidade autônoma
Banco Europeu
Sociedades
Transporte
Agrícolas
de
de informações e
espanhola [veja o mapa].
sustentável, além do apoio à agriculInvestimentos
O Plano de Ação do conhecimento
Emprego,
para a
inovação,
Cooperação
tura e à pesca. Quanto à integração
O Tratado de Maastricht fixou
Grande Vizinhança
reforma econômica
regional
(PAGV)
e desenvolvimento
regional, destaca-se o Plano de Ação
dispositivos institucionais específicos
sustentável
Novas medidas
previstas para as RUPs
para a Grande Vizinhança (PAGV),
para as RUPs, que enfrentam problecriado com o intuito de estreitar laços
mas estruturais singulares. Entre estes
político-econômicos com os países
problemas, destacam-se o afastamenque são vizinhos e/ou estão situados
to demasiado dos centros de decisão
política de seus respectivos países, a reduzida dimensão
Em termos marítimos, as RUPs representam mais no entorno das RUPs. Novamente, o caso mais relevante é
do mercado interno e a forte dependência econômica em da metade da zona econômica exclusiva (ZEE) da o da vizinhança do Brasil com a Guiana Francesa.
A criação de estratégias de articulações e acordos internarelação a um pequeno número de setores produtivos.
União Europeia, com uma reserva potencial dos reAs RUPs são reconhecidas como postos territoriais cursos marinhos de aproximadamente 15 milhões de cionais entre os países europeus destinados contribuiu para
avançados da União Europeia no mundo, desempenhan- quilômetros quadrados. Tal potencial equivale a um a dinamização institucional e econômica de suas fronteiras,
do um papel geopolítico na proteção das rotas marítimas laboratório marítimo de profundidade relevante para conferindo-lhes uma nova dimensão geopolítica: a da coda Europa e na defesa de suas fronteiras externas, o que o bloco europeu, que pode ser explorado em domínios operação transfronteiriça. Contudo, as políticas europeias
é claramente uma estratégia geopolítica. Vistas em con- como a segurança alimentar, a luta contra as alterações de apoio ao desenvolvimento econômico e social das RUPs
junto, representam 2,3% da superfície terrestre da União climáticas, a energia e a biotecnologia. Além disso, estes não lograram muito êxito até agora. As especificidades de
Europeia. Além disso, localizam-se em posições geográficas territórios atuam também como parceiros estratégicos na tais regiões afetam seu potencial econômico e reduzem sua
privilegiadas em três oceanos e mares distintos (Caribe, implementação de programas de cooperação em vários capacidade de funcionar como correias de transmissão dos
Oceanos Atlântico e Índico). Esse privilégio diz respeito continentes, inclusive com o Brasil por meio da Guiana interesses geopolíticos globais da União Europeia.
principalmente à gestão internacional de oceanos e às Francesa, uma região ultraperiférica francesa que possui
Gutemberg de Vilhena Silva é professor de Geografia
relações de boa vizinhança com um número considerável 730 quilômetros de linha de fronteira com o Brasil (a
Política na Universidade Federal do Amapá e bolsista de Pósde países, como Brasil, Índia e África do Sul.
mais extensa fronteira da França).
Doutorado do CNPq no exterior
FRANÇA
MAR NEGRO
PORTUGAL
ESPANHA
Á F R I C A
MARÇO 2016
MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO
estados unidos
“Azarões” tumultuam cenário eleitoral
Donald Trump e Bernie Sanders refletem descontentamento das bases dos partidos
Republicano e Democrata e colocam desafios inéditos na história norte-americana
© Michael Vadon (CC BY-SA 2.0)
© Michael Vadon (CC BY-SA 2.0)
A
disputa eleitoral à Presidência dos Estados Unidos é
marcada por uma grande surpresa: dois candidatos
“azarões” – o bilionário republicano Donald Trump e o
senador democrata Bernard “Bernie” Sanders – desafiam o
establishment de seus respectivos partidos, com mensagens
políticas radicais (de direita, no primeiro caso, e de esquerda, no segundo), criando uma situação sem precedentes
na história do país. Os primeiros resultados das eleições
primárias mostram que, contra todas as expectativas, um
dos dois pode vir a ocupar o assento presidencial da Casa
Branca [veja o boxe]. Está em jogo o destino político da
mais importante potência mundial, e com ele o equilíbrio
de forças no planeta.
Quando Trump e Sanders anunciaram suas respectivas
candidaturas, em meados de 2015, não foram levados
a sério. Além disso, suas mensagens políticas, embora
situadas em extremos opostos do espectro ideológico,
assemelham-se em vários pontos importantes. Ambos são
vistos como uma expressão da revolta das bases contra as
lideranças tradicionais de seus respectivos partidos, percebidas como incompetentes, incapazes de resolver a crise
econômica que se arrasta desde 2008 e responsáveis – por
razões distintas – pela “decadência” dos Estados Unidos
no cenário mundial.
Em 2015, os principais políticos e porta-vozes do
Partido Republicano consideraram a postulação de
Trump como mais um arroubo narcísico de uma espécie
de palhaço nacional. O empreiteiro é conhecido por seus
gostos extravagantes (incluindo uma privada revestida de
ouro, em seu apartamento situado na cobertura da Trump
Tower, em Manhattan), suas afirmações bombásticas
(cujo centro é sempre ocupado por sua própria pessoa)
e por sua participação no mundo dos espetáculos (criou
o programa que, no Brasil, recebe o nome de Aprendiz,
além de patrocinar o concurso de Miss Universo). Até
agosto, Trump parecia não ter qualquer chance contra o
senador Marco Rubio e o ex-governador Jeb Bush (ambos
da Flórida, “queridinhos” do establishment).
Sanders, aos 74 anos, foi recebido como um “velhinho socialista simpático”, que apenas queria encerrar
sua carreira política em grande estilo. Ninguém tinha a
menor dúvida, então, de que a candidata democrata seria
a senadora Hillary Clinton (casada com o ex-presidente
Bill), acusada por Sanders de ser financiada e agir como
porta-voz de Wall Street, o centro do capital financeiro.
Em três meses, panfletando contra a desigualdade social e
contra o 1% mais rico da população, Sanders disparou nas
pesquisas. Em agosto do ano passado, entre os democratas,
Hillary tinha 58% das intenções de voto, e Sanders, 18%.
Hoje, Hillary tem 47%, e Sanders, 44% (os números ainda
oscilam muito). Em alguns estados, Sanders lidera.
Tanto Trump quanto Sanders são recém-filiados aos
seus respectivos partidos. Ambos alimentam uma retórica contrária aos políticos tradicionais e se apresentam
como candidatos “antissistema”, refletindo um processo
semelhante ao que ocorre na Europa, que abre espaço
para novos grupos, como o Podemos (Espanha), Syriza
Sucesso inesperado das candidaturas do
bilionário Donald Trump (acima) e do
senador Bernie Sanders reflete os anseios
dos eleitores por mudanças significativas no
cenário político dos Estados Unidos
(Grécia) e Frente Nacional (França). Ambos expressam
os sentimentos de grande parte dos eleitores. Em 2014,
um levantamento do Instituto Rasmussen mostrou que
65% dos norte-americanos diziam que nenhum dos dois
principais partidos “representam o povo”. Apenas 29%
confiavam que o país estava no caminho certo e quase 78%
desaprovavam o trabalho do Congresso. Os números foram confirmados por outra pesquisa, de 2015, do Gallup.
Mas as semelhanças entre ambos param por aí.
Trump exibe uma plataforma ultranacionalista e
nativista, embalada na fábula do “Destino Manifesto”. É
hostil ao Islã e aos imigrantes indocumentados: propõe a
deportação sumária de 11 milhões de hispânicos, incluindo aqueles que nasceram nos Estados Unidos. Defende
abertamente o uso da tortura na luta contra o terrorismo.
Propõe a destinação de mais verbas para as forças armadas,
ao mesmo tempo que adota uma perspectiva isolacionista
(segundo ele, os Estados Unidos erraram ao invadir o
Iraque, em 2003, e não devem intervir em conflitos que
não representem uma ameaça à segurança nacional). Usa
uma linguagem baixa e vulgar (por exemplo, acusa os seus
adversários republicanos de não terem “colhões”, de não
serem “machos” o suficiente) para atrair um eleitorado
desencantado, hostil ao establishment.
Sanders, ao contrário, propõe uma plataforma
humanista, inspirada pelo modelo social-democrata
escandinavo, que defende desde os anos 1960, quando
militava no movimento estudantil. Ele admira, sobretudo,
a Dinamarca. Seu público-alvo são os jovens, as mulheres
e as minorias negra e hispânica, que já formaram uma base
de apoio sem precedentes na história do país: os comitês
eleitorais somam mais de 2,5 milhões de filiados, dado
que constitui um pesadelo para Hillary. Propõe a taxação
das grandes fortunas e um sistema progressivo de impostos
destinado a assegurar a universalização e gratuidade de
serviços públicos, incluindo saúde e educação até o nível
superior. Para os padrões atuais dos Estados Unidos, sua
plataforma equivale a uma revolução social.
Primárias são o primeiro grande filtro
As eleições nos Estados Unidos, marcadas para 8 de novembro, constituem um processo complexo. Em sua primeira
fase, os dois partidos organizam eleições primárias (prévias) nos 50 estados, no Distrito de Columbia (onde se situa a
capital Washington) e nos territórios. As primárias elegem delegados para uma convenção nacional, este ano convocada
para os dias 18 de julho (republicanos) e 25 de julho (democratas). Os delegados reunidos na convenção escolhem o
candidato do partido.
Trump saiu na frente nas primárias republicanas. Num quadro com cerca de uma dúzia de concorrentes, os preferidos
do establishment partidário logo ficaram para trás. O principal deles, Jeb Bush, ex-governador da Flórida e irmão do expresidente George W. Bush (ambos filhos do também ex-presidente George H. W. Bush), anunciou sua desistência em
fevereiro, após derrotas acachapantes nas primárias iniciais. Ted Cruz e Marco Rubio despontaram como alternativas a
Trump. O primeiro tenta ser porta-voz da ultradireita cristã. O segundo, um jovem senador filho de imigrantes cubanos,
converteu-se em algo como uma aposta final do establishment.
No lado democrata, Sanders surpreendeu Hillary Clinton, a favorita da direção partidária, com uma campanha baseada em pequenas contribuições individuais e amplos comitês de ativistas. No final de fevereiro, estava mais ou menos
empatado com Hillary, cujas chances repousam principalmente no voto hispânico e no voto negro. De qualquer forma,
mesmo que triunfe no final, a ex-primeira-dama revela suas fragilidades na inesperadamente longa corrida de obstáculos
das primárias.
MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO
2016 MARÇO
10
Nelson Bacic Olic
Da Redação de Mundo
A USP há meio século, uma viagem no tempo
iz meu primeiro vestibular na Universidade de São Paulo (USP) em
dezembro de 1965, alguns dias após ter me
diplomado em Química Industrial, curso
equivalente ao Ensino Médio. Meu objetivo
era fazer Engenharia Química. Infelizmente,
não obtive sucesso devido aos meus parcos
conhecimentos de Física e Geometria.
Meu primeiro contato com a USP se
deu nessa época, já que o local no qual fiz a
prova era a Cidade Universitária – e desde
aquele momento concluí que era ali que
queria estudar. Aquela Cidade Universitária de 1965 que tanto me encantou era
bem diferente da atual, totalmente cercada
por muros, muito mais arborizada e com
muito mais prédios que abrigam a maioria
das unidades que compõem a USP no
campus de São Paulo.
Como não fui aprovado, decidi que,
em 1966, faria um cursinho e prestaria
vestibular para Geologia. Acreditava que,
assim, poderia pôr em prática meus conhecimentos em Química e, ao mesmo tempo,
ter ligação com a Geografia, uma disciplina
que muito me agradava, especialmente por
conta das maravilhosas aulas que tive no
final do curso ginasial (hoje, 9º ano).
No início de janeiro de 1966, uma
notícia no jornal me fez mudar de rumo.
A USP iria promover um novo vestibular,
em fevereiro, para vagas remanescentes em
alguns cursos, entre eles o de Geografia.
Naquela época não existia a Fuvest e o
número de candidatos era infinitamente
menor. Os pretendentes às vagas de Geografia teriam que se submeter a seis provas:
quatro orais – Geografia do Brasil, Geografia Geral, História do Brasil e História
Geral – e duas escritas (Português e uma
língua estrangeira). O curso de Química
Industrial, porém, não contemplava em
sua grade curricular aulas de Geografia,
História e língua estrangeira.
Pedi demissão do meu emprego de
químico e, durante um mês, dediqueime integralmente a estudar Geografia e
História. A sistemática dos exames orais
era a seguinte: o candidato ficava à espera
de ser chamado para uma sala onde estava
a banca examinadora de professores do
Departamento de Geografia. Um dos
professores pedia ao vestibulando que tirasse um papel de dentro de um saquinho,
sorteando o assunto sobre o qual seriam
feitas as perguntas.
11
por militares e, quase de
imediato, uma pessoa veio
ao meu encontro e perguntou
meu nome. No que respondi,
ele consultou uma lista e
– bingo! – eu estava lá. Junto
com dois outros estudantes
de Geografia, fui levado ao
Departamento de Ordem
Política e Social (DOPS),
órgão de repressão do regime. Ato contínuo, fomos
transferidos para o Presídio
Tiradentes (hoje não mais
existente), na ala reservada a
presos políticos.
Durante o quase um mês
em que fiquei detido, convivi
com umas 20 pessoas. Alguns
eram veteranos integrantes
do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Outros, mais jovens, tinham
optado pela luta armada contra o regime
militar. Diferente da maioria deles, que
haviam sofrido torturas, passei incólume.
Eu não pertencia a nenhum partido clandestino. Ainda hoje, estou convicto de que
minha prisão resultou de um engano, isto
é, do mero fato de ter sido diretor social
do “centrinho”, forma como era conhecido o centro acadêmico dos estudantes de
Geografia. Engano ou não, assisti atrás
de grades ao pouso lunar dos astronautas
da Apollo 11, na tela da pequena tevê do
carcereiro.
No segundo semestre de 1970, escolhi
Sociologia como matéria optativa, para
cumprir os créditos finais. A estratégia
didática desenvolvida no curso era a
de propor aos estudantes trabalhos em
grupos. Por uma incrível coincidência
encontrei nesse curso aquela moça que
eu havia namorado em 1968. E, por uma
“coincidência” ainda maior, fizemos parte
do mesmo grupo. Daí para frente dá para
imaginar o happy end: voltamos a namorar
e casamos nove meses depois.
Nos 45 anos de vida em comum até
agora ganhei como “presentes” da Neide a
Tati, o Dé, o Fê e o Mau e, como mimos
“adicionais”, a Lara (filha da Tati) e a Cecília (filha do Maurício). Ainda hoje, faço
caminhadas na Cidade Universitária. Às
vezes, cruzo o interior do prédio de Geografia, avivando velhas recordações.
© Jorge Maruta/Jornal da USP
F
Fundada em 23 de janeiro de 1934, a USP foi inicialmente instalada
no centro de São Paulo; nos anos 1940, alguns prédios começaram
a ser construídos no então distante bairro do Butantã (Zona Oeste),
onde hoje se situa seu principal campus
Na minha vez, um dos professores, trajando terno e gravata-borboleta, perguntou-me antes do sorteio do tema o motivo
que me conduzia a prestar o exame para
Geografia. Expliquei-lhe que, apesar de ter
feito Química Industrial, gostava muito
de Geografia por conta das antigas aulas
do professor Celso Antunes. O professor
da gravata-borboleta observou que Celso,
além de ter sido ótimo aluno do curso de
Geografia, publicara recentemente um
livro didático e perguntou-me se eu havia
estudado por aquele livro. “Não”, respondi, “estudei pelo livro de um tal Aroldo de
Azevedo”. Ele olhou para seus colegas de
banca com um sorriso maroto. Um mês
depois, descobri que era ele o “tal” Aroldo
de Azevedo. Tudo dito e feito, “arrasei”
nos exames orais (minha nota mais baixa
foi 7,5) e tive desempenho sofrível, mas
suficiente, nas provas escritas.
Em 1966, o Brasil tinha cerca de 85 milhões de habitantes, o Sudeste era a região mais
populosa, São Paulo tinha o maior contingente demográfico, quase metade da população
do país ainda vivia no meio rural e o número
de pessoas que chegavam ao ensino superior
era ínfimo. Do ponto de vista político, vivia-se
o segundo ano do regime militar implantado
em 1964. Depois de seis anos – fiz o curso
MARÇO 2016
no período noturno, trabalhando durante
o dia – tornei-me bacharel e licenciado em
Geografia. Ao longo desse tempo, convivi
com professores que marcaram minha vida
acadêmica e profissional, como Pasquale Petrone, Aziz Ab’Sáber e Nelson de La Corte e
guardo na memória três momentos marcantes
da minha vida universitária.
O ano de 1968 foi especialmente
movimentado: muitas passeatas contra o
governo militar, panfletagens, reformulação do currículo do curso de Geografia e,
também, o momento em que cortei definitivamente meus laços com a Química.
Comecei a ministrar minhas primeiras
aulas e fui convidado, com alguns outros
estudantes, a integrar o Grupo de Análise
Territorial da Secretaria da Fazenda de São
Paulo. Foi, ainda, o ano em que conheci
uma caloura pela qual nutri uma enorme
paixão a ponto de considerá-la a mulher de
minha vida. Namoramos por três meses, ao
final dos quais fui “dispensado”. Confesso
que a dor da perda foi muito intensa.
As coisas pioraram: 1969 foi o ano da
minha prisão. No final de junho, estudava
na sede da Associação dos Geógrafos Brasileiros, que ficava no edifício da Geografia,
quando ouvi um rumor estranho. Ao sair
da sala, notei que o prédio estava cercado
MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO
Oriente médio
Refugiados e jihadistas,
polos opostos de uma guerra regional
O conflito militar na Síria e no Iraque gerou a maior crise de refugiados desde a Segunda Guerra Mundial. Também permitiu a
proclamação de um califado jihadista no coração do Oriente Médio
A
MA
história da humanidade já foi
Principais grupos jihadistas
descrita como uma sucessão
quase contínua de guerras, a ponto
MAR NEGRO
de o pensador inglês Thomas Hobbes
TURQUIA
assinalar que os tempos de paz seriam
3
nada mais do que intervalos nos quais
MAR MEDITERRÂNEO SÍRIA
IRÃ
IRAQUE
se trava a guerra por outros meios.
Os conflitos do Oriente Médio, nas
LÍBIA
ARGÉLIA
5 EGITO
ARÁBIA
últimas décadas, iluminam a ação de
SAUDITA
Trópico
de
Câncer
antigos e novos personagens.
5
A guerra civil da Síria, o conflito
mais sangrento dos últimos cinco anos,
MALI
CHADE
SUDÃO
IEMÊM
evidenciou a figura de dois “persona2
6
gens” emblemáticos: o refugiado e o
SOMÁLIA
jihadista. Considera-se como refugiado
NIGÉRIA
ETIÓPIA
o indivíduo cuja vida, a de seus familiares e a de seu grupo étnico, religioso
QUÊNIA 4
ou nacional é colocada em risco de tal
OCEANO
forma que ele decide, como último
ATLÂNTICO
recurso, abandonar o local onde vive
para buscar um lugar seguro em outra
0º
área ou país.
O refugiado não tem sexo nem
idade. Pode ser um homem, uma mulher, uma criança ou um idoso que escapa a um cortejo contra os agressores. As organizações jihadistas, como a
de horrores. Na atualidade, parcela significativa deles Al-Qaeda e o Estado Islâmico (Isis), procuram na jihad
é composta de refugiados internos, isto é, pessoas que uma legitimação religiosa para suas ações bélicas.
tiveram que fugir ou foram expulsas de sua cidade ou
O jihadismo militante recebeu forte impulso com a
povoado mas não atravessaram fronteiras internacionais. invasão do Afeganistão pela União Soviética, em 1979.
Refugiados não são imigrantes econômicos. Os segun- Durante os dez anos do conflito, expressivo número de
dos deixam seus países de origem em busca de melhores militantes islâmicos, oriundos de vários árabes, juntacondições de vida, mas não correm risco iminente de morte. ram-se à jihad afegã para lutar contra o invasor. Osama
O número de refugiados aumentou consideravelmente nas Bin Laden, o saudita que fundou a Al-Qaeda, mentor
últimas décadas. Atualmente, existem no mundo cerca de dos atentados aos Estados Unidos em 11 de setembro de
20 milhões de refugiados, algo como metade do contingente 2001, debutou em sua carreira jihadista em solo afegão.
total de migrantes econômicos.
Com a retirada soviética, em 1989, grande parte dos
O conflito em curso na Síria é a maior catástrofe hu- jihadistas árabes retornaram a seus países de origem.
manitária deste século, com cerca de 300 mil vítimas. A Contudo, um dos principais legados do conflito foi o
guerra deslocou perto de 13 milhões de pessoas, ou cerca aparecimento do grupo Talibã que, poucos anos depois,
de dois terços da população do país. Quase 5 milhões assumiria o poder no Afeganistão e daria guarida à dide sírios buscaram refúgio em países vizinhos, como a reção da Al-Qaeda.
Turquia, o Líbano e a Jordânia, ou em diversos países
A operação militar norte-americana dos Estados Unieuropeus, especialmente a Alemanha, a nação europeia dos no Afeganistão, em represália aos atentados de 11 de
menos resistente a recebê-los. A chegada à Europa de uma setembro de 2001, provocou a derrubada do regime do
verdadeira maré humana oriunda do Oriente Médio e Talibã e desestruturou quase completamente a Al-Qaeda.
da África do Norte colocou a questão dos refugiados em Apesar disso, o Talibã continua ativo no Afeganistão e no
primeiro plano.
vizinho Paquistão. Já a Al-Qaeda serviu como inspiração
A palavra jihadista deriva do termo árabe jihad, tra- para a criação de “franquias” jihadistas em países do Orienduzido geralmente como “guerra santa”. Contudo, para te Médio e da África do Norte [veja o mapa].
a maioria dos estudiosos do Islã, jihad significa “esforço”,
O segundo grande impulso do jihadismo derivou de
“empenho”, “luta”. Na esfera da doutrina religiosa, sig- dois eventos separados por quase uma década. A invasão
nifica essencialmente o chamado a uma luta interior pela do Iraque pelos Estados Unidos, em 2003, desestabilizou
preservação da fé. Esta é a “jihad maior”. Já a chamada o país. A Primavera Árabe, em 2011, acabou desaguando
“jihad menor” é a defesa armada do mundo islâmico na guerra civil síria.
RC
ÁS
Meridiano de Greenwich
PIO
MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO
1
2
3
4
5
6
A derrubada do regime de
Saddam Hussein no Iraque,
que se apoiava na minoritária
população sunita, transferiu
o poder para os xiitas. Os
novos governos iraquianos
AFEGANISTÃO
discriminaram a população
1
sunita, abrindo espaço para
PAQUISTÃO
a infiltração do jihadismo
no país. Sob a liderança do
jordaniano Abu Musab AlOCEANO
Zarqawi, a Al-Qaeda no IraÍNDICO
que engajou-se numa luta em
Talibã
duas frentes: contra as tropas
norte-americanas e, também,
Al-Qaeda da
Península Arábica
contra os xiitas, reavivando
Isis (Estado Islâmico)
o antigo conflito entre as
duas vertentes principais do
Al-Shabaab
Islã. Al-Zarqawi foi morto
Al-Qaeda do Magreb
e do Norte da África
em 2006. Sua organização
Boko Haram
só se reestruturou em 2010,
adotando o nome de Estado
Islâmico no Iraque, sob a
liderança de Abu Bakr AlBaghdadi. Na sequência, com seu envolvimento na guerra
síria, o grupo passou a se chamar Estado Islâmico na Síria
e Iraque (Isis, na sigla em inglês).
O Isis combinou crenças religiosas extremistas com
capacidade militar. Ocupando amplos territórios mais ou
menos contínuos junto à fronteira sírio-iraquiana, tomando
cidades importantes como Mossul, que é o segundo maior
núcleo urbano do Iraque, e estabelecendo uma capital
operacional na cidade síria de Raqqa, os jihadistas eliminaram ou escravizaram minorias não muçulmanas (cristãs,
yazidis, curdas). Recrutando combatentes em países árabes
e na Europa, o grupo anunciou a criação de um califado
islâmico em julho de 2014.
A proclamação do califado foi um evento sem precedentes na história do mundo árabe desde o colapso do
Império Otomano, ao final da Primeira Guerra Mundial.
O Estado Islâmico, que é ao mesmo tempo nacional e
transnacional, criou uma nova entidade geopolítica numa
região onde as fronteiras se mantiveram praticamente
inalteradas por muitas décadas, ao longo do século XX.
A capacidade do Isis em apelar ao imaginário islâmico
expressa a consolidação de uma ideologia jihadista que se
desenvolveu nas últimas décadas. Alguns grupos jihadistas,
como o Boko Haram da Nigéria, já declararam sua fidelidade ao califado. Al-Baghdadi propaga que o califado é
um Estado onde “árabes e não árabes, brancos e negros,
orientais e ocidentais são todos irmãos”. Seus seguidores
declaram que “a Síria não é para os sírios e o Iraque não
é para os iraquianos. A terra é de Alá.”
2016 MARÇO
12
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