Leituras A Medicina em História A Medicina Romana A forte ligação entre o conhecimento empírico e o seu fundo mágico-religioso mostra-se, claramente, como um dos principais dados caracterizadores da arte médica no seu início. O conhecimento médico, que foi um privilégio herdado das classes dominantes, sofreu uma rápida transformação com a emergência do Império Romano e com a sua política hegemónica. No entanto, só se pode falar de uma verdadeira medicina romana após a chegada da medicina grega a Roma. De facto, a medicina em Roma e no seu Império era grega na doutrina, na linguagem e nos práticos. Asclépio, deus grego da medicina, foi adotado pelos romanos, sob o novo nome de Esculápio, tendo-se-lhe erguido mais templos em Roma do que os existentes na própria Grécia. A estadia nestes lugares sagrados, permitia a comunicação com o deus, e através de sonhos, eram prescritos tratamentos ou era dada a cura. Deste modo, os templos transformaram-se em abrigo e hospedaria dos doentes. Não foi, contudo, sem oposição, que a medicina grega foi introduzida em Roma. Um dos seus principais opositores, Cato o Velho, e outros tradicionalistas movimentaram-se no sentido de impedirem que Archagathus se instalasse em Roma. Várias razões estiveram na origem dessa oposição: quer as guerras políticas entre a nobreza romana, quer a hostilidade contra a cultura grega, quer o medo dos tratamentos cirúrgicos e farmacológicos de Archagathus são algumas dessas razões. Contudo, existe também uma importante literatura em latim. Muito embora a sua inspiração, as suas fontes e os seus modelos sejam gregos, esta literatuta revela a intenção de modificar, aqui e acolá, essa medicina importada da grécia para Roma dos velhos tempos. Mostra, por exemplo, uma certa re-organização da doutrina grega das substâncias de acordo com os elementos romanos específicos. Dada a sua extensão por todas as classes sociais, a prática médica adquiriu uma importância cada vez maior, levando à sua especialização e transação. Esta alteração sócio-política teve repercussões no campo legal: estabeleceram-se as convenções relativas aos serviços médicos. Grandes médicos Romanos Uma das figuras mais celebradas de Roma, na época de Cristo, foi António de Musa, discípulo de Asclepíades. Teve a sorte de conseguir curar Augusto, o imperador da época e com isto cair nas suas graças, de tal forma que mereceu, ainda vivo, uma estátua de bronze no Palatino. A celebridade de Musa também se deveu ao método terapêutico por ele utilizado. Fundamentavase na hidroterapia fria - banhos de água gelada - associada a conselhos dietéticos. Durante o século I viveu Celso, o autor da mais famosa obra de medicina dos antigos romanos. Em De Re Medica (Das coisas médicas) Aulío Cornélio Celso enumera as qualidades essenciais para um cirurgião: "Deve ser jovem ou pelo menos pouco avançado em anos; deve ter mão firme, nunca trémula e ser hábil tanto com a esquerda quanto com a direita; deve ter visão aguçada e espírito corajoso; não deve ter compaixão, de forma que não se impressione com os gritos do paciente, quando este o incita a apressar-se ou a cortar menos profundamente do que o necessário." Pode-se imaginar que a compaixão era mesmo uma péssima qualidade para o médico, numa época em que os "anestésicos" eram os mais rudimentares. A cirurgia era muito mais valorizada do que a prática médica ou a terapêutica. Os cirurgiões romanos extraíam amígdalas, operavam cataratas e faziam inúmeras outras intervenções. Mas a maior especialidade desse povo de guerreiros era extrair os objetos que se introduziam no corpo dos soldados, durante as batalhas. No equipamento bélico do exército VOLUME IV Nº2 MARÇO/ABRIL 2002 61 Leituras 62 romano havia sempre abundante material para ataduras e curativos e a cada soldado era ensinada a arte de enfaixar. No início do século II destacou-se em Roma outro médico vindo da escola de Alexandria: Sorano de Éfeso. Os seus tratados foram conhecidos e divulgados, no texto original ou em traduções latinas, em resumos e comentários. Constituíam uma literatura completa e de importância fundamental para a medicina até a Idade Média. O maior tratado de Sorano trata das "moléstias de senhoras" e até 1400 foi o único livro de ginecologia e puericultura. Nele é descrita a configuração do aparelho genital feminino e explicada a vida sexual; discorre sobre a gravidez, posições normais e anormais do feto e ainda a assistência ao parto. Descreve muitas doenças femininas, como a histeria e a ninfomania e propõe tratamentos. Finalmente, conclui com 23 capítulos sobre os cuidados com o recém-nascido. Outro trabalho importante de Sorano é o que explica as técnicas e aplicações do enfaixamento. Ainda na época de Sereno, chegou a Roma Cláudio Galeno, para atender o imperador Marco Aurélio.Vinha da Ásia Menor e acumulara conhecimentos de retórica, filosofia, filologia e medicina. Por muitos séculos, as suas obras médicas foram a base de toda medicina. Segundo a sua teoria, o homem é formado por três espíritos ou pneumas: pneuma animal, localizado no cérebro; pneuma vital, no coração; pneuma natural, no fígado. Com base nessa trilogia discorreu sobre anatomia, fisiologia, higiene, dietética, farmacologia e terapêutica. Organizações médicas A preocupação dos romanos em fixar em lei todas as atividades e ocupações, também se manifestou em relação aos médicos. Inicialmente, a medicina era ciência de todos; qualquer um podia exercê-la e proliferavam os charlatães. Mas após a regulamentação da profissão pelas leis do império romano isso tornou-se muito mais difícil. Os médicos passaram a constituir uma categoria profissional, a qual integrava não só os libertos como os escravos. Havia alguns escravos cujos serviços médicos eram cobrados a um altíssimo preço. O imperador Augusto dividiu os médicos em categorias bem definidas. Os médicos militares atendiam as tropas de terra e do mar e os outros médicos estavam à disposição das escolas de gladiadores, dos circos e dos municípios. As obrigações do médico eram estipuladas pelo Estado, o qual pagava os seus honorários. Com o passar do tempo não só Roma, mas todos os municípios sob seu domínio, dispunham de um médico oficial. Eram funcionários públicos e, sob o imperador Adriano, em meados do século II depois de Cristo, os médicos ficaram isentos de prestar serviço militar. Eram guerreiros ao serviço da saúde dos romanos. VOLUME IV Nº2 MARÇO/ABRIL 2002 Ao lado dos médicos estatais, os profissionais liberais continuaram a exercer sua actividade mas, no fim do séc. II eles passaram a sentir muitas dificuldades. Um severo exame foi imposto a todos que quisessem exercer a profissão. O Estado subvencionava estudantes mas, em troca, eles eram obrigados a prestar assistência gratuita aos pobres. Deste modo, a actividade livre sofreu uma redução e, fora do trabalho para o Império, os médicos só podiam atender cidadãos muito ricos, que os podiam compensar financeiramente. No século IV a profissão foi severamente regulamentada. Os médicos foram proibidos de praticar abortos ou de negar a sua assistência a um doente, sob risco de severas penas corporais ou multas. Nessa mesma época, um édito impunha, como condição para entrar numa escola médica, a apresentação de um certificado de boa conduta, fornecido pelo comando da polícia do país de origem. Na Roma imperial, a profissão de médico foi legalmente regulamentada e submetida a normas muito precisas, muitas das quais ainda hoje se conservam.