Na Roda do Choro : três décadas da formação de Regionais nas rádios de Curitiba (1940 - 1970) Ana Paula Peters1 1 Formada em História pela Universidade Federal do Paraná, especialista em História da Música pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná, mestranda em Sociologia na UFPR. 2 Há muito tempo eu escuto esse papo furado dizendo que o choro acabou. Só se foi quando o dia clareou...” 2 (Paulinho da Viola) A década de 1930 trouxe um salto qualitativo e quantitativo para a música popular no Brasil. Uma geração de compositores e cantores surgiu e ganhou espaço, tendo o rádio como principal veículo de divulgação e profissionalização dos músicos populares. Para uma estação de rádio da época era imprescindível o trabalho de um regional, pois sendo um conjunto de músicos que não necessitava de arranjos escritos, tinham a agilidade e o poder de improvisar um acompanhamento para qualquer música interpretada por cantores, cantoras e instrumentistas solistas. Com dois ou três violões, cavaquinho, um ou dois pandeiros ou ritmistas e um solista (flauta, acordeon, clarinete ou trombone) criavam introduções e variações para os acompanhamentos. Assim, a partir da formação destes regionais podemos perceber uma tradição do Choro iniciando-se junto com o surgimento das rádios em Curitiba. Os programas de calouros, nos auditórios das rádios, foram um outro nicho para os quais era indispensável a presença de um regional. Em Curitiba, os regionais foram criados na década de 40, na Rádio Clube Paranaense, antiga PR B2, e mais tarde, na ZYM5 Rádio Guairacá, muito importantes para a divulgação e circulação de diferentes gêneros musicais. Programas como o “Expresso das Quintas”, da antiga rádio PR B2, comandado por Mário Vendramel e Sérgio Fraga, proporcionaram a estes músicos a oportunidade de conhecer e trocar experiências musicais entre os artistas locais e do eixo Rio – São Paulo, como Orlando Silva, Ataulfo Alves, Dalva de Oliveira, Carlos Galhardo e Vicente Celestino. Assim, “Se na década de 10 e 20 tínhamos choro gravado por bandas, trios, quartetos sem base (do tipo clarinete, trompete, bombardino e tuba), solistas com piano acompanhante e outras formações, aos poucos o choro passa a ser gravado só com regional, num modelo que vai 3 permanecer quase inalterado por quatro décadas.” 2 CARRILHO, Maurício. O choro vai muito bem , obrigado... Revista Roda de Choro. Número Zero. Rio de Janeiro : nov/dez 1995. 3 CAZES, Henrique. Rádio e a fixação do “regional”. Revista Roda de Choro. Número Cinco. Rio de Janeiro : março, 1997. P 13 3 Os músicos destes regionais, na sua maioria, aprendiam seu repertório ouvindo as músicas pelo rádio (que muitas vezes os obrigava a ficar horas ao seu lado até ouvirem a música que queriam aprender para tocar), comprando discos, do contato com os músicos ou cantores que acompanhavam e, para os que sabiam ler partitura, como conta Hiram Oberg Tortato, integrante do conjunto Choro e Seresta, de materiais aguardados com muita ansiedade que vinham do Rio de Janeiro, como os Cadernos de Choro de Pixinguinha e Benedito Lacerda. O choro carioca já vinha sendo popularizado desde o final do século XIX, e na segunda metade da década de 1930, sua divulgação deveu-se principalmente a dois grandes flautistas, líderes de dois célebres conjuntos de choro, ou regionais, Benedito Lacerda e Dante Santoro. A fase de 1945 a 1950 foi bem propícia para este gênero, com o surgimento de outros grupos, como a criação da Orquestra Tabajara de Severino Araújo, com o destaque de Abel Ferreira, Raul de Barros e Jacob do Bandolim e com o retorno de Pixinguinha tocando, agora, sax tenor e o surgimento de Altamiro Carrilho, revelando também vários outros músicos do período. Entretanto, no início da década de 1960, com o surgimento da televisão em Curitiba, os programas de auditório das rádios passaram para segundo plano, sendo extintos; passando então para a televisão. Poderíamos dizer que dessa maneira se encerraria uma primeira fase do Choro em Curitiba. E é esta fase que estou propondo estudar neste momento, para analisar de que maneira a prática do Choro se expressou no contexto curitibano. O indicativo temporal será a formação de regionais entre as décadas de 1940 e 1970, através do resgate de vida dos antigos chorões que participaram de programas de rádio e de auditório. O Choro é compreendido como uma forma musical instrumental e virtuosística por natureza, fundado no pequeno conjunto de flauta, violões e cavaquinho, fixado por Antônio Joaquim da Silva Calado, desde o final do século XIX. Posteriormente, foi acrescido do pandeiro, que deu um maior balanço, além do bandolim solista e um violão de sete cordas. Além desses, que formam o conjunto básico chamado Regional de Choro, uma série de outros instrumentos solistas podem ser admitidos na “roda”, tais como violino, clarinete, saxofone, trompete, trombone, acordeon e piano. O Choro tem um conteúdo muito rico que pode propiciar o desenvolvimento de uma pesquisa para tratar dimensões sociais e culturais semelhantes a movimentos musicais abordados atualmente pela história, pela sociologia, pela antropologia e pela musicologia brasileira como o samba, o rock e a bossa nova. A importância desta pesquisa está na 4 análise também da experiência estética que o Choro possibilita, na medida em que estes músicos são procurados até hoje para participar das rodas que os jovens organizam, procurando aprender na prática da Roda de Choro seu sotaque todo especial, como lembra Villa-Lobos, “Vem um e toca o tema, e vem o outro e improvisa. No saxofone, eu fazia assim, ó (e cantarolava). E vem o oficleide e toca um contraponto que é uma maravilha, bem superior a todos os contrapontos clássicos. Isto é o choro. É todo mundo tocando com seu coração, 4 sua liberdade, sem regras, sem nada... a liberdade da arte”. Como diziam os antigos chorões, o jeito é não deixar mais nenhum “gato dormir no fogão”, expressão registrada por Alexandre Gonçalves Pinto, para que o Choro possa ser conhecido e praticado pelas futuras gerações. Esta expressão surgiu quando os chorões iam para uma festa, passavam antes pela cozinha, para ver “a fartura ou miséria em que se achava o dono da festa”5. Dependendo do que encontravam, acontecia ou não a Roda de Choro. Assim, quando o fogão estava vazio, eles comentavam que havia “gato no fogão”, significando que deveriam se retirar do recinto e partir para outra festa ! Para que nenhum gato mais “durma no fogão” esta pesquisa é de fundamental importância, já que alguns dos músicos que participaram dos regionais em Curitiba estão morrendo e levando consigo as vivências e histórias desta prática musical. Assim, esta memória será resgatada principalmente através de entrevistas, analisando os hábitos de composição, produção, circulação e de escuta musical do Choro em Curitiba no período citado, integrando desta maneira a história da música aos movimentos sociais e históricos. Como a produção, difusão e circulação da música popular urbana na sua forma contemporânea associa-se aos meios de comunicação e de mercado, optou-se pela análise dos regionais das rádios, já que o cotidiano das pessoas foi modificado pelo rádio, discos, profissionalização dos músicos e pela lógica dos espetáculos. Perceber, também, como se instituem as relações culturais e sociais em que se acomodam elementos desta forma musical e da vida de seus intérpretes e/ou compositores, já que a música popular produz e escolhe uma sonoridade e sons peculiares para uma determinada realidade histórica. Assim, a forma instrumental, os tipos de instrumentos, a interpretação e os arranjos realizados pelos regionais contêm indicações para compreender a sua prática em si e as relações com as experiências sociais e culturais de seu tempo. 4 ARATANHA, Mario de. A essência musical da alma brasileira. Revista Roda de Choro. Número Dois. Rio de Janeiro : mar/abr, 1996. P.12 5 “(...) além de suas características físicas e das primeiras escolhas culturais e históricas, os sons que se enraízam na sociedade na forma de música também supõe e impõem relações entre a criação, a reprodução, as formas de difusão e, finalmente, a recepção, todas elas 6 construídas pelas experiências humanas.” Ao trabalhar com a música popular brasileira, sabemos que algumas dificuldades serão encontradas durante o percurso. Como falam seus intérpretes, o Choro, além da sua exigência técnica, popularizou-se pelo toque “Carinhoso” no coração de quem o interpreta/cria e ouve. Como é um material marcado por objetivos estéticos e artísticos, acaba por assumir aspectos da singularidade e características próprias do autor e de seu universo sócio-cultural. Sendo que uma nova leitura sempre é realizada em cada nova interpretação do instrumentista, o que também é feito pelo ouvinte. Entretanto, a música não deve ser nomeada como uma fonte excessivamente subjetiva, já que sabemos que qualquer fonte passa por inúmeros filtros sociais e culturais também. Assim, um dos maiores cuidados que se deve tomar é de se afastar o perigo de permanecer no restrito ambiente do discurso interno e do universo do gosto. A trama histórica e as relações de produção, difusão e circulação da música popular urbana, nascida no final do século XIX e início do século XX, surgem marcadas por elementos inovadores e bem característicos que devem ser levados em conta. O processo de mistura de estilos e sotaques que levou ao nascimento do Choro, ocorreu de forma similar em diferentes países. A partir dos mesmos elementos, danças européias (principalmente a polca), sotaque do colonizador e influência negra, surgiram gêneros que seriam a base de uma música popular urbana nos moldes que hoje conhecemos. Na segunda metade do século XIX, o Rio de Janeiro foi o palco para o ensaio destas misturas, que se transfigurou em polca abrasileirada, lundu, tango brasileiro, maxixe e, finalmente em Choro. A palavra Choro serviu inicialmente para designar o jeito “choroso” de tocar. O termo também era usado para descrever a festa em que se tocava este tipo de música e ainda, o agrupamento musical que praticava o estilo. O Choro como forma musical foi batizado por Pixinguinha, que partiu da música dos chorões (polcas, schottisches, valsas, entre outras) e misturou elementos da tradição afro-brasileira (devido a frequência nos terreiros e casas das tias baianas), da música rural e de sua variada experiência profissional como músico. Estas misturas surgem vinculadas com algumas formas de entretenimento urbano pagos como o circo, bares, cafés e teatros, ou não, como festas públicas ou privadas e 5 PINTO, Alexandre Gonçalves. O choro. Rio de Janeiro : FUNARTE, 1978. p.15 6 encontros informais. Assim, se a princípio a geração e criação dessas canções não era destinada ao mercado, gradativamente elas se incorporam a ele, tornando cada vez mais o profissionalismo uma realidade para estes músicos. O Choro praticado aqui em Curitiba teve um percurso muito parecido, aproximando-se muito do choro carioca. Moacyr de Azevedo, também integrante do conjunto Choro e Seresta, lembra que além das serenatas que fez, tocou em bandas de baile de Piraquara, em eventos dos Clube Curitibano e Clube Literário do Portão, da Sociedade do Batel e restaurantes como a Pizzaria Leonardo da Vinci e principalmente, do “Boneca do Iguaçú”, em São José dos Pinhais, pontos de referência para se ouvir a melhor interpretação musical da região. Seu Moacyr lembra ainda, 29 anos depois, do convite do então prefeito de Curitiba Jayme Lerner, que ao ouvir uma apresentação do conjunto no Teatro Paiol, convidou-os para tocar num dos espaços culturais que ele estava criando, atraindo público para a Feirinha do Largo da Ordem. Lugar onde tocam até hoje, todos os domingos, sob um tão harmonioso jacarandá mimoso (que os acompanhou até o ano passado, quando foi cortado) quanto as músicas que invadem este espaço. Para realizar este resgate do choro nos regionais durante o período escolhido, as histórias de vida serão uma prática que dará voz às pessoas que deles participaram ou de alguma maneira acompanharam sua formação, encontrando, desta maneira seus espaços de sociabilidade, seja nos auditórios e estúdios das rádios ou na Feirinha do Largo da Ordem. Esta prática é defendida por Paul Thompson na história social, principalmente quando não há o registro escrito. Ecléa Bosi também defende a “memória de velhos”, que não alcança apenas uma memória pessoal, mas também uma memória, social, familiar e grupal. E assim como Ecléa, “O principal esteio do meu método de abordagem foi a formação de um vínculo de amizade e confiança com os recordadores. Esse vínculo não traduz apenas uma simpatia espontânea que se foi desenvolvendo durante as pesquisas, mas resulta de um 7 amadurecimento de quem deseja compreender a própria vida revelada do sujeito E este vínculo de amizade e confiança, na minha pesquisa está sendo criado facilmente pelo fato de eu também tocar um instrumento musical, flauta, e arriscar algumas músicas que fazem parte do repertório do choro, o que deixa o entrevistado mais a vontade depois de colocar-me numa roda de choro. 6 7 MORAES, José Geraldo Vinci de. História e música. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.20, nº 39, p. 211. BOSI, Ecléa. Memória e sociedade :lembrança de velhos. São Paulo : Companhia das Letras, 1994. p.37-38 7 Assim, recuperar a prática do Choro que se expressou em Curitiba, trazendo uma experiência estética particular aos seus integrantes, possibilitada pela formação de regionais para trabalhar nas rádios, passa pelo estudo da memória, Então, é da própria lembrança em si mesma, é em torno dela, que vemos brilhar de alguma 8 forma sua significação histórica. E esta significação aparece também na medida em que jovens procuram estes grandes chorões para aprender a tocar choro, não só nas rodas que eles ainda participam, mas também no Conservatório de Música Popular Brasileira de Curitiba, criado em 1992, de uma maneira mais formal, através da leitura musical, com uma nova geração formada por eles. Aliás, uma das características dos chorões mais novos em Curitiba é o surgimento de uma geração de compositores, fato não tão presente nas gerações anteriores. Ou seja, Os grupos, no seio dos quais outrora se elaboraram concepções e um espírito que reinara algum tempo sobre toda sociedade, recuam logo e deixam lugar para outros, que seguram, por sua vez, durante certo período, o cetro dos costumes e que modificam a opinião 9 segundo novos modelos. Na realidade, isto faz parte de um movimento nacional, percebido também em Brasília e no Rio de Janeiro, por exemplo. Assim, primeiramente parecendo um fenômeno individual, a memória deve ser entendida como um fenômeno social e coletivo, submetido a flutuações, transformações e mudanças constantes. Seus elementos constitutivos são os acontecimentos vividos pessoalmente e os vividos pelo grupo ao qual a pessoa se sente pertencer, no caso os regionais. Seu retorno ocorreu em 1973, quando Paulinho da Viola incluiu em seu show Sarau, a participação do Conjunto Época de Ouro, reaquecendo o interesse pelo choro tanto por parte dos ouvintes, que se identificam com sua sonoridade e estrutura de composição, como pela interpretação e composição do choro por parte dos músicos. O que nos permite dizer que A memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de 10 si. 8 HALBWACHS, Maurice. A memória coletica. São Paulo : Vértice, 1990. p.63 HALBWACHS, Maurice. Ob. cit. p.67 10 POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol.5, nº 10, 1992. p.204. 9 8 A reflexão ocorrerá a partir do cruzamento de informações obtidas nas entrevistas com diferentes fontes, como documentos arquivados pela Rádio Clube Paranaense, por artigos de jornais e revistas de clubes onde ocorriam as rodas de choro, buscando produzir um discurso sensível à pluralidade das realidades e das ações sociais. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOSI, Ecléa. Memória e sociedade : lembrança dos velhos. São Paulo : Cia das Letras, 1994. CAZES, Henrique. Choro : do quintal ao municipal. São Paulo : Editora 34, 1998. GOMES, Tiago de Melo. Estudos acadêmicos sobre a música popular brasileria : levantamento bibliográfico e comentário introdutório. In : História : questões & debates. Curitba : Editora da UFPR, v.1, nº 1, 1 980. MORAES, José Geraldo de. História e música. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.20. nº39 2000. PINTO, Alexandre Gonçalves. O choro. Rio de Janeiro : Funarte, 1978. REVISTA RODA DE CHORO. nº Zero ao Cinco. Rio de Janeiro : nov/dez, 1995 à mar, 1997 THOMPSON, Paul. A voz do passado : história oral. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1992. TINHORÃO, José Ramos. Pequena história da música popular : da modinha a lambada. São Paulo : Art Editora, 1991. ___ . Música popular : um tema em debate. São Paulo : Editora 34, 1997. 3ª.ed. VASCONCELOS, Ary. 1984. Carinhoso, etc : história e inventário do choro. Independente, 9 Na Roda do Choro : três décadas da formação de regionais nas rádios de Curitiba (1940 - 1970) Resumo : Este artigo é uma apresentação da pesquisa que está sendo iniciada para resgatar a memória dos hábitos de composição, produção, circulação e de escuta do Choro em Curitiba. Optou-se pela análise dos regionais das rádios, já que no período proposto (1940–1970), o cotidiano das pessoas foi modificado pelo rádio, discos, profissionalização dos músicos e pela lógica dos espetáculos. Perceber, também, como se instituem as relações culturais e sociais em que se acomodam elementos desta forma musical e da vida de seus intérpretes e/ou compositores, já que a música popular produz e escolhe uma sonoridade e sons peculiares para uma determinada realidade histórica. Assim, a forma instrumental, os tipos de instrumentos, a interpretação e os arranjos realizados pelos regionais contêm indicações para compreender a sua prática em si e as relações com as experiências sociais e culturais de seu tempo. Este resgate parte de entrevistas com chorões e pessoas próximas a eles, que participaram dos regionais das antigas rádios PR B2 e Guairacá. Ana Paula Peters : Formada em História pela Universidade Federal do Paraná e especialista em História da Música pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná. É professora de História, de Flauta doce e transversal e de História da Música em instituições públicas e particulares. Integrante do grupo de flautas doce Quadrante Sonoro, que interpreta músicas de diferentes períodos e países, com especial atenção às composições da música brasileira. Atualmente faz mestrado em Sociologia na UFPR e atua como flautista convidada do grupo “Banza”, com patrocínio da Petrobrás no projeto de divulgação da Música no Tempo de Gregório de Mattos (Boca de Inferno).