Ciclo de Conferências "Fernando Pessoa: Filosofia, Religião e Ciências do Psiquismo Humano" Casa Fernando Pessoa | 7 de Dezembro de 2011 - Fernando Pessoa, o supra-Wittgenstein “Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.” Álvaro de Campos, Tabacaria, 1928 I Introdução Fernando Pessoa, o filósofo. Do muito que já se publicou sobre Fernando Pessoa, pouco lhe atribui especial crédito no campo da filosofia. E é natural que assim seja. Quem olha para o que ele escreveu explicitamente sobre filosofia não vai encontrar nada de especialmente novo ou original. Ele foi um poeta e é conhecido justamente por ter sido um enorme poeta. Poderá parecer então um contra-senso intitular uma comunicação: “Fernando Pessoa, o supraWittgenstein”. Estaremos a equipará-lo ao que foi um dos maiores filósofos do Século XX? Espero, nos próximos minutos, conseguir explicar o porquê do aparente contra-senso e convencer-vos de que, na realidade, mais do que “apenas” um enorme poeta, Fernando Pessoa foi também um enorme pensador. Mas voltemos um pouco atrás e consideremos que influência teve a filosofia no poeta. Sabemos que Fernando Pessoa teve, desde muito cedo, um grande fascínio pela filosofia. Em 1905, com pouco mais de 17 anos, iniciou a frequência do Curso Superior de Letras na Universidade de Lisboa e, pelo que podemos ler do seu diário de 1906, tinha uma especial apetência pelas leituras filosóficas. Planeava mesmo uma Metafísica e deleitava-se na leitura da Crítica da Razão Pura de Kant, autor pelo qual sempre manterá uma inesgotável admiração, certamente motivada pelo nível de sistematização que ele conseguiu atingir, algo que Pessoa nunca conseguirá. O grau a que a filosofia o influencia nesse período da sua juventude levou a que ele, a 26 de Março de 1906 escrevesse no seu diário: Tenho de ler mais poesia, de modo a neutralizar um pouco o efeito da filosofia pura. 1 Esta simples frase revela-nos o que será sempre uma “luta interna” em Pessoa, entre o fascínio racional pela filosofia e o seu talento natural e instintivo enquanto poeta. Estamos claramente perante um homem de ideias que sempre se expressou melhor – mesmo em prosa – usando a linguagem poética. A passagem, tantas vezes repetida, que expressa este mesmo dualismo é a seguinte, escrita alguns anos mais tarde (presumivelmente em 1909): Eu era um poeta animado pela filosofia, não um filósofo com faculdades poéticas. Eu adorava admirar a beleza das coisas, delinear – imperceptivelmente através do assombrosamente pequeno - a alma poética do universo.2 Destaque-se o uso do pretérito imperfeito: “Eu era”, à maneira de auto-análise da sua juventude de apenas alguns anos atrás. Esta passagem é muitas vezes utilizada para ilustrar a importância que Pessoa Fernando Pessoa, Escritos Autobiográficos, Automáticos e de Reflexão Pessoal, pág. 32, Assírio & Alvim. Fernando Pessoa, Escritos Íntimos, Cartas e Páginas Autobiográficas, pág. 22, Publicações Europa-América. A tradução é nossa do original em inglês. 1 2 1 daria à filosofia, mas, na maior parte dos autores, esse pormenor é sobretudo usado para demonstrar que Pessoa nunca se considerou verdadeiramente um filósofo, mas essencialmente um poeta 3 interessado pela filosofia . O resto da passagem antes referida, muitas das vezes truncada, serviria para esclarecer isso mesmo: A poesia está em tudo – no mar e na terra, no lago e na margem do rio. Está na cidade também – não o neguem – isto é evidente para mim, aqui sentado: há poesia nesta mesa, neste papel, neste tinteiro; há poesia no ruído dos carros nas ruas, em cada minuto, cada momento comum, no movimento ridículo do trabalhador, que, no lado oposto da rua pinta a placa do talho. 4 Em 1906, Pessoa, no princípio da sua adolescência, estava naturalmente num estado profundamente influenciável procurando, como todos os rapazes da sua idade, identificar as muitas vertentes da sua personalidade, experimentando e testando quais seriam aquelas que melhor lhe permitiriam agir efectivamente no mundo. Nesta dimensão não só a frequência curta do Curso de Letras, mas também o convívio com o General Henrique Rosa, irmão do seu padrasto e alguém com uma vasta cultura 5 filosófica e hermética , tê-lo-iam marcado de forma indelével, com efeitos notáveis na sua obra futura. O contacto extenso, embora breve, que teve com a filosofia, abrir-lhe-á diversas janelas para as suas investigações e não é claro a que ponto não serão essas janelas as que se abrirão finalmente de par em par anos mais tarde, quando a sua obra se desdobra nas diversas dimensões da heteronímia. Mas quais eram as questões centrais para o Pessoa-filósofo de 1906-08? Existe mais um fragmento essencial que devemos reproduzir nesta nossa pequena introdução, escrito em 1908: «O problema central da filosofia é a filosofia que a si própria se põe como problema.» Por que precisamos de filosofia? A ideia fundamental do ser, ou da realidade, ou da verdade, eis o que procuramos na Filosofia. A Filosofia é a demanda do ser. O que é o Ser, o que é a realidade? Este é o problema da filosofia.6 Já vimos que Pessoa, na altura da frequência do Curso de Letras, está profundamente impressionado com a filosofia. Como é comum nele, aborda o novo tema com a maior volatilidade possível, escrevendo profusamente. A maior parte dos escritos que nos deixou, todavia, não são muito relevantes senão de uma perspectiva documental. Ele resumia aquilo que lia, sobretudo livros que por si já eram comentários, elaborando ele próprio poucas notas originais. Mas a ideia de que a filosofia deveria ter como problema central o problema da demanda do ser é extremamente importante – é definidor de toda a obra Pessoana. É nesta perspectiva que a filosofia se insinua na obra de Pessoa e que a obra de Pessoa se insinuará futuramente na história da filosofia, como esperamos demonstrar. II A morte da filosofia Como Pessoa não foi um influenciador das correntes filosóficas do seu tempo, o seu papel foi, como já vimos, sobretudo o de um observador atento. Ora, a filosofia continuava a evoluir sem a sua participação directa e é dessa evolução que vamos falar um pouco. É importante compreender em que estado a filosofia estava na época de Pessoa e o estado em que está actualmente, para que vejamos até que ponto a visão de Pessoa que propomos pode ser original e mesmo revolucionária. Começaremos pelo fim. Especificamente por um livro muito recente de alguém que definitivamente não é um filósofo: Stephen Hawking, reconhecido físico teórico, originou uma grande polémica nos círculos filosóficos anunciando cabalmente “a morte da filosofia”. A passagem em questão é a seguinte: Parece ser esse o entendimento por exemplo de Richard Zenith no seu artigo “Um poeta vacinado pela filosofia: Fernando Pessoa e a cultura Alemã”, Portal Pessoa, 2006. Acessível agora aqui. 4 Ob. Cit., pág. 22. A tradução é nossa do original em inglês. 5 Cujo espólio está, hoje em dia, na Biblioteca Nacional, como noticiado pela própria instituição aqui. 6 Fernando Pessoa, À Procura da Verdade Oculta, pág. 52, Publicações Europa-América. 3 2 Como podemos compreender o mundo em que vivemos? Como se comporta o universo? Qual é a natureza da realidade? Qual a origem de tudo? O universo necessitou de um criador? (…) Tradicionalmente, estas eram questões tratadas pela filosofia, mas a filosofia morreu. A filosofia não se manteve actualizada relativamente aos desenvolvimentos da ciência moderna, particularmente a física. Os cientistas tornaram-se os portadores da tocha da descoberta na nossa aventura pelo conhecimento. 7 O livro de Hawking – intitulado The Grand Design - é muito interessante e recomendo vivamente que o leiam. Nenhum filósofo pode ignorar a importância da ciência no mundo actual e o modo como ela se impôs à filosofia enquanto seu imediato oposto. Mas o que eu achei mais interessante na polémica afirmação de Hawking não é propriamente o seu conteúdo, que é previsível, mas antes a maneira como se poderá comparar ao fragmento de Pessoa, escrito 102 anos antes, em 1908. Já em 1908 Pessoa considerava que um dos problemas essenciais da filosofia seria o da sua utilidade. Utilidade que Pessoa indicou ter de ser preenchida pela “demanda do ser”. É certo que a filosofia sempre esteve sujeita aos “ataques” da ciência, sendo desde sempre considerada por aquela como uma arte menor e especulativa, em oposição à lógica matemática. No início do século XX esta tendência já era evidente, tornando-se imparável a partir de então a visão da substituição do ideal pelo concreto, do especulativo pelo pragmático. No início do Século XX estamos em pleno Existencialismo. Um dos seus maiores proponentes – Friedrich Nietzsche – tinha morrido em 1900 e Jean-Paul Sartre publicará “A Náusea” em 1938, apenas 3 anos depois da morte de Pessoa. Interessa-me realçar um aspecto particular do existencialismo: a ideia da morte de Deus. Quanto a mim esta ideia é fundamental para alicerçar, anos mais tarde, a própria ideia da morte da filosofia. Porquê? Com a morte de Deus o homem é abandonado às suas próprias escolhas – a uma condição de liberdade total, na recusa absoluta da metafísica. Este abandono, esta angústia, leva a uma erosão progressiva da filosofia enquanto arte da “demanda do ser”, porque para o existencialista, o significado do ser é preenchido pelas suas próprias escolhas individuais. Nós definimos quem somos. Tudo é reduzido ao individuo e o indivíduo apenas pode conhecer aquilo que se propõe decidir por si próprio, num mundo que, absurdo, o ignora. Não é difícil de ver como este vazio foi sendo aproveitado progressivamente pelas correntes lógicas do pós-guerra, dominantes sobretudo num Reino Unido que escapou ao pior da mesma guerra, num regresso óbvio ao positivismo lógico – ao concreto absoluto. O homem encontrava-se completamente alienado do mundo e essa relação tornou-se ainda mais fria; ligada à análise do significado da linguagem e limitando aquilo que a própria filosofia pode e deve ter como “perguntas essenciais”. Esta chamada “filosofia da linguagem” teve como grande impulsionador um filósofo bastante extravagante chamado Ludwig Wittgenstein. III Wittgenstein e o silêncio Wittgenstein não era, como Nietzsche já não tinha sido, um filósofo tradicional. Vindo de uma família abastada acabou por recusar a sua herança e arranjar empregos como jardineiro ou mestre-escola, entre outros. Como Pessoa apenas publicou um livro em vida na sua língua materna – o Tractatus Logico-Philosophicus. Mas foi o bastante para lhe permitir uma singela afirmação: todos os problemas filosóficos estavam resolvidos. Porquê? Porque o Tratactus nos diz que todos os problemas filosóficos não são senão problemas de linguagem. 7 Stephen Hawking and Leonard Mlodinow, The Grand Design, pág. 14, Bantam Books, 2010 3 A estrutura lógica da linguagem impede que falemos sobre os clássicos problemas da filosofia, porque esses problemas não se enquadram nessa lógica. Os limites da linguagem passam a ser os limites do 8 próprio pensamento e a linguagem ela própria está limitada pelo mundo empírico , pelo que é apreendido pelos sentidos. Em 1918, data da publicação do seu livro (Pessoa tem então 20 anos), Wittgenstein postula, na última página a célebre e mortal passagem: 7. Sobre o que não se pode falar, deve-se fazer silêncio.9 Não é minimamente o objectivo desta comunicação analisar em profundidade a obra de Wittgenstein. Mas quero apenas apontar para a mudança de paradigma: antes dele falava-se da relação da consciência com a realidade, depois dele falar-se-á da relação da consciência com a língua. Passam a existir coisas que não podem ser conhecidas, porque não faz sentido formular argumentos linguísticos sobre elas. Paira um grande silêncio sobre todos o que antes eram os grande problemas filosóficos. Eles podem continuar a existir, mas não podemos falar sobre eles. A filosofia passa a ter um papel de filtro para apresentar a lógica da linguagem, levando não a ganhos de conhecimento, mas de precisão: 4.111 A filosofia não é uma ciência da natureza. 4.112 A finalidade da filosofia é o esclarecimento lógico dos pensamentos.10 Mais tarde, com o livro póstumo Investigações Filosóficas Wittgenstein irá refinar o seu método, insistindo que as palavras não podem ser entendidas senão no contexto das actividades humanas (nos chamados “jogos de linguagem”) – mas trata-se de uma clara e radical defesa do concreto face ao ideal, 11 do empirismo face ao idealismo . Reduzida a mera ferramenta linguística, a filosofia deixa de ambicionar responder às grandes perguntas, às questões que nos definem enquanto seres humanos – quem somos, qual é o sentido da vida, o que é a liberdade, o que é a felicidade… as possíveis respostas, os possíveis argumentos, foram varridos por um silêncio ensurdecedor, o silêncio que impõe que se diga apenas o necessário e se elimina o acessório. Desaparecido em 1951, Ludwig Wittgenstein permanece como a última grande figura da filosofia moderna e o seu trabalho assombra toda a filosofia contemporânea, que nunca conseguiu exorcizá-lo. IV Pessoa e a linguagem do inefável Sabendo agora o estado actual da filosofia e, sobretudo, a forma como a filosofia chegou a esse estado, o nosso objectivo é enquadrar o trabalho de Fernando Pessoa numa improvável posição: a de regenerador da filosofia do Século XX como proponente desconhecido de uma nova e importante corrente de pensamento. Este objectivo encontrará um importante entrave: o sistema filosófico Pessoano não foi desenvolvido enquanto um sistema filosófico tradicional e por isso não podemos encontrá-lo explicitamente nos escritos do poeta. Creio que será por esta razão que nenhum dos seus principais exegetas terá até hoje explorado a possível existência de um tal sistema. O mais provável é que nem Fernando Pessoa tenha considerado essa hipótese porque ele próprio não se considerava um filósofo – a única semelhança com “Os limites da minha linguagem denotam os limites do meu mundo” in Luwig Wittgenstein, Tratactus Logico-Philosophicus, 5.6, pág. 111, Univ. São Paulo, 1968. 9 Ob. Cit., 7, pág. 129. A tradução feita para o Português do Brasil foi: “O que não se pode falar, deve-se calar”. Adaptámo-la um pouco, para o Português de Portugal. 10 Ob. Cit., pág. 43. 11 No entanto há quem interprete que certas questões metafísicas podem ainda ser abordadas dentro da lógica dos jogos de linguagem, mesmo que de forma algo artificial. Acerca deste tema recomendamos vivamente este artigo. 8 4 um sistema filosófico que podemos encontrar na sua obra é o que ele escreveu sob o nome de António Mora, teórico do neo-paganismo. Mas não podemos reduzir a filosofia Pessoana ao neo-paganismo de Caeiro e de Mora, ela é muito mais complexa e inovadora do que isso. No entanto, por onde podemos começar? Na base do sistema filosófico que propomos está a despersonalização: a desmultiplicação ou dissolução do ser nas suas variadas dimensões. A “demanda do ser” inicia-se com a sua desmultiplicação – isto porque a base da obra Pessoana é essencialmente ontológica, em redor do ser, e a maior parte do que ele escreve tem a ver com a descoberta da sua identidade. Embora na raiz da despersonalização estejam razões psicológicas, a dispersão do eu dará ao jovem Pessoa uma janela para uma original exploração da natureza humana, acedendo apenas numa vida à experiência de diversas vidas. Este ser-outro define a filosofia Pessoana, mas também traz consigo a destruição do ser-em-si-mesmo – a dissolução do “eu”. Por ocorrer a dissolução do “eu”, a interacção de Pessoa com a realidade passa a sofrer uma deslocalização e é feita através das personalidades desmultiplicadas do ser-em-si-mesmo. Cada heterónimo é uma experiência real nesse sentido e cada interacção de cada uma dessas personalidades vai respondendo à pergunta “o que é a realidade?”. Mas de forma indirecta, pois cada uma delas é apenas um avatar, um emissário imaginado do ser-em-si-mesmo, pois o “eu” morreu. O “drama em gente” nada mais é então que uma espantosa experiência ontológica, em que o ser-em-si-mesmo explode em ser-outros. Essa morte é uma “morte para o mundo”, de modo a que o ser-em-si-mesmo, ou pelo menos o que resta dele, possa passar a viver apenas dentro de si próprio, na sua própria realidade. O ser-para-omundo é vazio. Ninguém acede ao seu ser sem ser ele próprio. A construção desse mundo interior é feita com uso aos postos avançados chamados heterónimos e usando a linguagem poética. Os heterónimos exploram o mundo exterior e levam os símbolos desse mundo para um novo mundo interior, efectivamente duplicando-o. O ser-em-si-mesmo está desligado da interacção com a realidade imanente. Existe um diálogo, mas é um diálogo poético e distante. Nos “jogos de linguagem” poéticos as palavras não têm uma função limitada nem podem ser restringidas a um significado unívoco. A linguagem poética não limita o conhecimento, porque nada do que é dito tem de ser demonstrado e, mesmo que o fosse, poderia ser demonstrado na imaginação. Esta linguagem é verdadeiramente uma “linguagem do inefável”, que pode dizer tudo e que pode demonstrar tudo 12 apenas pela palavra . Ao homem abandonado pelo existencialismo, esta filosofia, que podemos chamar de não13 existencialismo , responde com uma nova realidade: o mundo exterior pode continuar a ser absurdo, mas o mundo interior não tem de ser absurdo e no mundo interior nós podemos ser felizes. Esta é a verdadeira pedra de toque do sistema Pessoano – a inversão ou retroversão do mundo exterior em mundo interior. Fernando Pessoa mostra-nos como este processo é possível, usando como principal ferramenta o sonho. Se sonharmos o mundo exterior podemos construir, através desse sonho, o mundo interior, o nosso mundo interior. Toda a filosofia que podemos retirar de Pessoa é uma filosofia inovadora, na perspectiva em que recusa completamente a realidade imanente. Recusa a existência. Mas não a favor de uma realidade transcendente, de uma metafísica, antes de uma realidade imaginada, interior. O homem Pessoano deixará de acreditar na validade da acção no mundo exterior e apenas na validade da acção no mundo interior – na inacção. É neste sentido absoluto que Bernardo Soares diz, no Livro do Desassossego: Nunca deixarei, creio, de ser ajudante de guarda-livros de um armazém de fazendas. Desejo, com uma sinceridade que é feroz, não passar nunca a guarda- livros.14 Não se pode argumentar, penso, que esta linguagem de Pessoa seja, utilizando termos da filosofia de Wittgenstein, uma “linguagem privada”, visto que todas as imagens e termos utilizados são termos da linguagem comum, mas que apenas são transfigurados poeticamente. Continuará a haver comum acordo quanto ao significado dos mesmos. 13 O “não” em “não-existencialismo” refere-se à introversão do mundo exterior em mundo interior e não propriamente a qualquer objectivo de negação do existencialismo enquanto corrente filosófica. 14 Livro do Desasocego, Tomo I, pág. 279-80 12 5 O homem sem ambições é o homem que desistiu de viver. Em que medida podemos resumir todos estes dados – aqui apresentados de maneira necessariamente sintética e truncada – em princípios teóricos basilares de um verdadeiro sistema filosófico que ultrapassa as limitações da filosofia da linguagem? A filosofia Pessoana poderá, quanto a nós, ser resumida aos seguintes princípios basilares: Desmultiplicação/dissolução do ser nas suas várias dimensões. Interacção deslocalizada com a realidade exterior. Redução do ser-para-o-mundo ao básico essencial (a uma máscara). Uso da linguagem poética enquanto ferramenta para a compreensão do mundo exterior e a transformação do mundo interior. Substituição da realidade exterior pela realidade interior através do sonho (e da acção pela inacção). É possível que o próprio Pessoa não estivesse plenamente consciente deste plano; como uma aranha presa a tecer dentro da sua própria teia, era-lhe certamente difícil, senão mesmo impossível, ter uma visão exterior da sua construção. Ainda mais quando ela foi deixada incompleta. Incompleta, é certo, mas apenas em questões de pormenor, porque está tudo lá para quem queira ver. E o que nos é dado ver é um sistema filosófico in proprio sensu, rendilhado e magnífico, fundado num individualismo radical e baseado num método de conhecimento também ele revolucionário e independente da realidade exterior captada pelos sentidos. Independente da realidade, mas nem por isso necessariamente metafísico, antes “empírico do sonho”. Para o provarmos basta-nos completar esta nossa intervenção citando novamente Pessoa: A metafísica pareceu-me sempre uma forma prolongada da loucura latente. Se conhecêssemos a verdade, vê-laíamos; tudo o mais é sistema e arredores. Basta-nos, se pensarmos, a incompreensibilidade do universo; querer compreendê-lo é ser menos que homens, porque ser homem é saber que se não compreende.15 Livro do Desasocego, INCM, Tomo I, pág. 250, Lisboa, 2010. Alguns estudos recentes têm virado a sua atenção para o papel desempenhado por Pessoa enquanto anti-metafísico, nomeadamente: Judith Balso, Pessoa entre a terra nula e o céu que não existe, Piaget, 2011; Dirk Hennrich, «Ultimatos à Metafísica. Fernando Pessoa a partir de Immanuel Kant» in Olhares Europeus sobre Fernando Pessoa, pág. 99 e segs., CFUL, 2010. 15 6