1 É POSSÍVEL ORDENAR A PAISAGEM? Sérgio Ávila Rizo1 Faculdade de São Paulo – Centro Novo [email protected] Resumo: O presente estudo versa sobre o conceito de paisagem e a sua utilização pragmática em determinadas legislações brasileiras. Paisagem é um conceito polissêmico com estatuto e entendimentos específicos em cada uma das diversas áreas do conhecimento. Uma das perspectivas de maior interesse se relaciona com a evolução deste conceito na geografia e em outras vertentes do saber face os paradigmas históricos e culturais e as questões de ordem existencial e subjetiva que o mesmo suscita. A partir daí elencam-se algumas importantes leis que tratam especificamente da “regulação da paisagem” em instâncias governamentais distintas, buscando interpretar o conteúdo dado para essa ideia e sua correlação com os conceitos apresentados numa perspectiva crítica, discutindo novas possibilidades e perspectivas. Palavras-chave: Paisagem. Geografia. Paisagem urbana. Abstract: This study deals with the concept of landscape and its pragmatic use in certain Brazilian legislation. Landscape is a polysemic concept with status and specific arrangements in each of the various areas of knowledge. One of the prospects of higher interest relates to the evolution of this concept in geography and in other parts of the face to know the historical and cultural paradigms and issues of existential and subjective order that it raises. From that point, there are some important laws that deal specifically with the "landscape of regulation" in different government bodies, seeking to interpret the content given to this idea and its correlation with the concepts presented in a critical perspective, discussing new possibilities and perspectives. Keywords: Landscape. Geography. Urban landscape. 1 INTRODUÇÃO Ao passo que grande parte dos conceitos geográficos possui uma relativa determinação objetiva sobre seus limites tangíveis, a paisagem flerta essencialmente com o subjetivo, o inalcançável, por se relacionar a uma operação mental imersa em aspectos existenciais e individuais. Para estruturar essa premissa apresentam-se diversos referenciais teóricos que demonstram, mesmo que tangencialmente, a importância do subjetivo na construção do conceito de paisagem na geografia. 1 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana da Universidade de São Paulo. E-mail de contato: [email protected]. Coordenador e docente do curso de Licenciatura em Geografia da Faculdade de São Paulo – FASP, unidade Centro Novo. 2 Em contraponto aos conceitos e concepções devidamente organizadas, a pesquisa dedica-se a também em apresentar sistematicamente algumas importantes leis que tratam da “regulação da paisagem” em instâncias governamentais brasileiras distintas, e o paradigma sobre o qual o conceito de paisagem se apresenta. 2 ANTES DA PAISAGEM: AS NOÇÕES DE CHÔRA E TOPOS NA GRÉCIA ANTIGA Berque apresenta uma ampla pesquisa filológica sobre o termo “espaço” na cultura da Grécia antiga. Partindo da tradução do termo “espaço” para o grego antigo, Berque deduz que o termo mais próximo do conceito moderno corresponde a chôra (Χώρα), e, buscando elementos para interpretar o termo com o sentido de época, o geógrafo encontra importantes referenciais na obra “Timeu” (TIMAIOΣ) de Platão (424-348 a.C.). Segundo o autor, dois termos aparecem na referida obra tratando de lugar e espaço: topos (τόπος) e chora (SERRÃO, 2012). Enquanto a ideia de topos corresponde ao “onde está?” Chôra significa “por que razão este onde?” ou qual é a realidade sensível. Analisando os sinônimos de chôra no dicionário Bailly o autor encontra 2 famílias de sentido, a primeira relacionada ao espaço ou lugar que discrimine o ser com base em atributo físico (localizável na extensão) ou social (localizável entre os papéis sociais), e a segunda como “algo mais concreto e preciso: a região ou o território de uma cidade-estado (polis)” (SERRÃO, 2012, p.30-31) Em outro momento o autor apresenta diversos sentidos ou metáforas para chôra como: uma mãe; uma nutriz e devir dos seres do mundo sensível; e uma espécie invisível e sem forma que tudo recebe e que de uma maneira extremamente aporética participa do inteligível (SERRÃO, 2012, p.34-36). 3 A BUSCA DO SUBJETIVO NAS IDEIAS DE ESPAÇO E PAISAGEM EM ALGUMAS IMPORTANTES ABORDAGENS QUE INFLUENCIARAM E INFLUENCIAM A CIÊNCIA GEOGRÁFICA Subjetivo. Adj. 1. Relativo ao ou existente no sujeito. 2. Individual, pessoal; particular. 3. Passado unicamente no espírito de uma pessoa. 4. Filos. Válido para um só sujeito. ● S. m. 5. Aquilo que é subjetivo. (Dicionário Aurélio) 3 Ao se relacionar alguns importantes referenciais teóricos que influenciaram o desenvolvimento da pesquisa geográfica no tempo, observa-se que a ideia de paisagem se apresenta muitas vezes como uma tentativa de apreensão do “que se vê” em determinada organização ou desorganização do espaço “da natureza” ou “da sociedade”. Neste sentido busca-se demonstrar a importância do significado desta apreensão expressa nesta pesquisa como a busca pelo subjetivo ou a relevância daquilo que se entende como sutil, abstrato, existencial. Tomando por base alguns referenciais da cultura do mundo ocidental, até por volta do século XVII grande parte das formulações espaciais mais complexas caracterizavam-se pela análise da distribuição da vida, dos organismos e a sistemática dos movimentos do planeta. Pode-se dizer que fazer geografia (ainda não fundada como a ciência que conhecemos desde o século XIX) consistia ter o domínio de práticas e informações que permitissem em especial o desbravamento e colonização próprios do status quo expansionista estimulado pelos poderes absolutistas. Dessa forma o arcabouço de conhecimentos astronômico, náutico e biológico era em grande parte orientado para a conquista de territórios e não necessariamente para a formulação de uma doutrina ou ciência reflexiva. Um referencial importante que se diferencia desta “prática geográfica” pode ser verificado na obra “Crítica da razão pura” de Immanuel Kant que coloca em tela a importância do sujeito no papel de protagonista da experiência através da intuição, relativizando o tempo e o espaço a partir do ser e sua respectiva experiência: “...o espaço e o tempo são apenas formas da intuição sensível, isto é, somente condições da existência das coisas como fenômenos e que, além disso, não possuímos conceitos do entendimento e, portanto, tão-pouco elementos para o conhecimento das coisas, senão quando nos pode ser dada a intuição correspondente a esses conceitos; daí não podermos ter conhecimento de nenhum objeto, enquanto coisa em si, mas tão somente como objeto da intuição sensível, ou seja, como fenômeno; de onde deriva, em conseqüência, a restrição de todo o conhecimento especulativo da razão aos simples objetos da experiência.” (KANT, p.26) É no final do século XIX, quando a geografia assume caráter de disciplina acadêmica ainda muito descritiva e influenciada pela biologia, que passa a ocorrer uma integração entre o conhecimento descritivo e a filosofia. Neste contexto Alexander Von Humboldt (1769-1859), 4 reconhecido geógrafo e naturalista, considerado por alguns como um dos patronos da Geografia Física, logo na introdução do seu clássico “Cosmos”, de 1875, ao discutir o entendimento sobre a natureza, observa a importância do pensamento para acessar o tangível: “A natureza, considerada pela razão, isto é, submetida como um todo para o trabalho de pensamento é a unidade em diversidade de fenómenos” (p. 04, tradução e grifo nosso). Na mesma obra, sua reflexão coloca em tela que as impressões sobre a natureza estariam relacionadas também com certas situações existenciais (TUAN, 1983, p.06): Outro prazer é o produzido pelo caráter individual da paisagem, a configuração da superfície do globo em uma determinada região. As impressões desta natureza são mais vivas, mais definidas, mais ajustadas com certas situações da alma. (Tradução e grifo nosso) Contemporâneo a Humboldt, o também geógrafo Karl Ritter (1779-1859) é mais um teórico que alicerça o conhecimento geográfico apresentando uma proposta de análise empírica ao espaço a qual se busca identificar determinada individualidade nos lugares que expresse um “sistema natural”. Os arranjos individuais abarcariam um conjunto de elementos que representariam determinada totalidade em que o homem seria o principal elemento (MORAES, 1983). Contudo, Ritter entendia a ciência como uma forma de meio de estabelecimento de relação entre o homem e o “criador” (MORAES, 1983, p.49). A sutileza, o subjetivo aqui pode ser representado na busca pelo contato com uma força superior, e a compreensão da “predestinação dos lugares” seria uma forma de “contemplação da própria divindade”. (MORAES, 1983, p.49) No século XX observa-se a evolução de pesquisas no sentido de compreender a influência do “meio natural” à sociedade. Geógrafos como o francês Vidal de La Blache (1845-1918) e o estadunidense Carl Ortwin Sauer (1889-1975) preconizavam o estudo espacial com enfoque nas comunidades tradicionais, tentando compreender suas práticas, seus habitats, tradições e o conjunto de técnicas e utensílios fabricados pelo homem para alteração do ambiente onde vivem. Tal complexo é correlacionado nesses estudos com o modo de vida das sociedades, e caminha para o entendimento da expressão da cultura no espaço e consequentemente na paisagem. Nesse sentido, a perspectiva cultural na geografia é abrangente e se aproxima dos estudos antropológicos, uma vez que apesar de focalizar a espacialidade, entende que a produção espacial não é descolada do todo existencial individual e social. 5 Outra vertente de investigação filosófica que influenciará a pesquisa espaço/paisagem é a fenomenologia, que tem como base as pesquisas de Edmund Husserl (1859-1918), e que preconiza a busca pelo entendimento de tudo o que existe à volta do ser humano a partir da maneira pela qual os objetos parecem na consciência buscando eliminar qualquer ideia prévia que possa poluir essa aparição entendida como fenômeno. Uma das ideias principais de Husserl é a do estabelecimento da “crítica ao conhecimento como forma de se alcançar as causas primárias do fenômeno”. Dentre todo esforço para avançar neste campo salienta-se que a morada do próprio conhecimento está na consciência e que a mesma não é separada da intuição e de todos referenciais que são acoplados ao ser no decorrer da vida (HUSSERL, p.22). É especialmente a partir das décadas de 1960 e 1970, com a influência da fenomenologia, que se observa a incorporação da consciência do indivíduo como algo relevante para apreensão dos fenômenos e a experiência de mundo na geografia. Alguns autores relevantes dessa linha são Edward Relph, David Lowenthal, Anne Buttimer e Yi-Fu Tuan. Dessa feita vale a pena citar as obras do geógrafo Yi-Fu Tuan: “Topofilia” de 1974, “Paisagens do Medo” de 1979 e “Espaço e Lugar” de 1983 em que o autor pauta sua análise do espaço considerando as relações pessoais com o meio ambiente e os padrões de atitude, seus elos afetivos ligados à experiência com o espaço vivido e o ambiente físico. A consciência é ponto importante à medida que faz a ponte entre a ambiência (o entorno) e o ser humano. Assim, a ideia de paisagem avança para além da estética. Busca-se considerar as peculiaridades do sujeito e seus processos psicológicos sem desconsiderar a importância da cultura: Objetos que são admirados por uma pessoa podem não ser notados por outra. A cultura afeta a percepção. No entanto, certos objetos, quer naturais ou feitos pelo homem, persistem como lugares através da eternidade do tempo, sobrevivendo ao apoio de determinadas culturas. Talvez qualquer grande aspecto na paisagem crie seu próprio mundo, o qual pode aumentar ou diminuir segundo interesse momentâneo das pessoas, sem perder inteiramente sua identidade. (TUAN, 1974, p.181) Deste modo, com base no pensamento de autores que influenciaram e foram influenciados pela abordagem fenomenológica e cultural, busca-se a construção de um método 6 filosófico de compreensão das essências considerando a relevância do processo perceptivo e da consciência individual. 4 O CONTEÚDO DE PAISAGEM A PARTIR DA ANÁLISE DO TEXTO “A PAISAGEM COMO PROBLEMA DA FILOSOFIA” DE ADRIANA VERÍSSIMO SERRÃO2 A fim de estruturar a ideia de paisagem a partir da filosofia, utiliza-se como base a relevante produção decorrente dos Projetos “Filosofia e Paisagem” e “Filosofia e Arquitectura da Paisagem” coordenada pela Professora Adriana Veríssimo Serrão na Universidade de Lisboa ainda pouco difundido no Brasil 3 . Em “Filosofia da Paisagem, uma Antologia”, a autora uma série de referenciais importantes para a atualização do conceito de paisagem, valendo-se, sobretudo, da abordagem filosófica. No texto de abertura “A paisagem como problema da filosofia” escrito pela própria coordenadora da obra, se apresentam três “convicções enraizadas” que devem ser ultrapassadas sobre o conteúdo da terminologia “paisagem”. Para discorrer sobre essas convicções a autora se debruça sobre importantes referenciais históricos e culturais. As convicções enraizadas denominam-se: Pré e Pós-Paisagem e Paisagem como perspectiva de mundo. Propõe-se a seguir uma análise dos referenciais apresentados pela autora a partir de uma perspectiva que incorpore elementos sutis que a complementem. 4.1 PRÉ-PAISAGEM: PAISAGEM COMO INGREDIENTE DA EXPERIÊNCIA MILENAR. A primeira “convicção enraizada” apresentada se relaciona com a seleção de espaços que possibilitem a contemplação: A mais comum (convicção enraizada) toma a paisagem como uma evidência, um ingrediente da experiência milenar dos seres humanos, que desde sempre se maravilharam com a realidade natural circundante e escolheram sítios privilegiados para se instalarem e fundarem comunidades de vida. A esta acepção da paisagem como uma constante antropológica aliando a selecção e a 2 Professora no Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Uma exceção está no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo através da Professora Sandra Maria Patrício Ribeiro que difunde a produção teórica mencionada em sua atividade acadêmica. 3 7 contemplação de lugares propícios contrapõe-se o facto da formação relativamente recente do termo “paisagem”, o que o separa desde logo da mentalidade europeia em duas épocas: pré e pós-paisagem. (SERRÃO, 2011, p.13) Chama-se a atenção para “seleção e contemplação de lugares propícios”. O termo “seleção” pressupõe uma escolha criteriosa, fundamentada, a qual se pode atribuir, no caso, necessidades objetivas para a vida como a disponibilidade de água e alimento a partir da realidade natural. Seleção está em conjunto com contemplação. Assim o termo “contemplação” também chama a atenção. No dicionário Aurélio seu significado apresenta como definições: 1) Aplicação demorada e absorta da vista e do espírito; 2) Meditação profunda. Estas duas definições preconizam a necessidade de um sujeito que exerça reflexões relativamente existenciais. A contemplação relacionada tanto com o “espírito” quanto com a “Meditação profunda” abre a possibilidade de se inferir sobre sua relação uma percepção pessoal, um esforço para transmutar o que se vislumbra. O termo espírito, no mesmo dicionário se apresentam diversas definições que o relacionam com o imaterial. Sua definição filosófica é: “O pensamento em geral, o sujeito da representação, com suas atividades próprias, e que se opõe às coisas representadas; à matéria ou à natureza”. O que seria então o sujeito da representação? Representação significa conteúdo concreto apreendido pelos sentidos, pela imaginação, pela memória ou pelo pensamento. Este conteúdo para paisagem é circunscrito ou determinado a partir do contato com “sítios privilegiados para se instalarem e fundarem comunidades de vida” ao que se sugere um espaço de “natureza idílica”, adequado para a contemplação. 4.2 PÓS-PAISAGEM: A NOMEAÇÃO DO SENSO DE PAISAGEM Essa fase é demarcada pela introdução e valorização na pintura do elemento paisagístico e da ideia da representação pictórica de regiões e espaços naturais. Esse momento específico se relaciona com o Renascimento e, decorrente desse ganho de importância, no mesmo período a ideia de paisagem em si passa a ser tratada com terminologia própria em diversas línguas. 4.3 PAISAGEM COMO PERSPECTIVA DE MUNDO 8 A partir da análise filológica da inserção do termo e seus significados, destacando a pesquisa no Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa a autora destaca que, “paisagem” é introduzido no século XVI a partir do francês “paysage” e significa tanto a imagem pintada (própria da arte produzida expressa no item anterior) como também a porção de território que se oferece à vista de um observador (p. 14). Dessa forma os conteúdos indicam, segundo a autora, duas orientações de estudo divergentes: Enquanto fenômeno natural, a paisagem será objeto do exame directo: pela cartografia, no desenho de zonas específicas do espaço terrestre, e pela geografia física, na classificação topográfica das regiões do mundo segundo as diferentes morfologias, incluindo a acção dos elementos modeladores, mares e ventos, e dos factores climáticos. Enquanto produção de imagens, acompanha a história e cultura artística através das concepções plásticas e estilísticas que nela se foram exprimindo e configuram o a evolução dos modos expressivos e dos seus subgêneros acadêmicos: marinhas, bucólicas, campestres... (SERRÃO, 2011, p.13). Nesse mesmo sentido a autora avança não apenas numa análise filológica, mas no sentido que o termo ganha nas diversas ciências em função dos enfoques que separam as ciências: A separação entre ciências da natureza e ciências do espirito não deixará de impregnar também o estudo das paisagens, acentuando a divergência entre o lado objetivo e material (estudadas do exterior e onde o homem não está necessariamente presente), e do lado subjectivo e espiritual (marcadas pela transformação, criação ou interpretação). Espelho da evolução epistemológica, a paisagem das ciências naturais e das ciências humanas não será mais uma mesma realidade, um objeto de estudo único tomado segundo enfoque múltiplos, mas realidades efetivamente distintas, repartidas como objectos teóricos especializados segundo os métodos de cada ramo do saber. Cada ciência empírica – geografia, geografia cultural, arqueologia, economia, arquitectura paisagista... – formará um conceito particular, cada uma terá sobre a paisagem uma palavra a dizer. (SERRÃO, 2011, p.15) 5 REGULAÇÃO DA PAISAGEM No Brasil existem normas que tratam de “paisagem” nas diversas esferas do poder público. O conteúdo que cada qual afere não possui, necessariamente, o mesmo alinhamento. Da mesma forma, não se espera que os respectivos conteúdos se relacionem com as perspectivas ora apresentadas. O 9 esforço a seguir consiste na realização de uma análise exploratória que deve evoluir em outros estudos complementares 5.1 CONVENÇÃO PARA A PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO MUNDIAL, CULTURAL E NATURAL A Convenção do Patrimônio Mundial Cultural e Natural, adotada em 1972 pela Organização das Nações Unidas para a Ciência e a Cultura (Unesco), e da qual o Brasil é signatário, é um documento que prevê o incentivo à preservação do patrimônio natural e cultural considerados significativos para a humanidade: ARTIGO 1.º - Para fins da presente Convenção serão considerados como património cultural: (...) Os conjuntos. – Grupos de construções isoladas ou reunidos que, em virtude da sua arquitectura, unidade ou integração na paisagem têm valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência; Apesar de não se referir à paisagem especificamente, o documento tem em sua concepção a proteção de bens do patrimônio natural e cultural com valor excepcional do ponto de vista histórico, estético, etnológico ou antropológico: Os locais de interesse. – Obras do homem, ou obras conjugadas do homem e da natureza, e as zonas, incluindo os locais de interesse arqueológico, com um valor universal excepcional do ponto de vista histórico, estético, etnológico ou antropológico. O documento visa a proteção dos bens culturais e naturais que são considerados patrimônio da humanidade (ONU, 1972). A terminologia paisagem se apresenta, dentro desta lógica, relacionada aos grupos de construções. 5.2 PAISAGEM NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988 10 No Artigo 23 da Constituição que se observa a única inserção do termo paisagem: Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: (...) III - proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos; Observa-se a noção de paisagem condicionada à natureza e à excepcionalidade. Essa noção se relaciona com a primeira “convicção enraizada” apresentada por SERRÃO, a de prépaisagem (espaços que possibilitem a contemplação). A paisagem que não seja natural ou notável não estaria elencada para proteção de modo objetivo. Pode-se interpretar que objetos que compõem determinada paisagem podem ser protegidos se caracterizarem-se como bem de valor histórico, mas o conjunto em si (de elementos que ocupam determinado ângulo de visão) estão relacionados pragmaticamente apenas para aqueles “naturais”. 5.3 PAISAGEM NO ESTATUTO DA CIDADE (LEI Nº 10.257, DE 10 DE JULHO DE 2001) O Estatuto da Cidade regulamenta especificamente os artigos 182 e 183 da Constituição Federal. Esses são os 2 únicos artigos do Capítulo II da Constituição e que trata da Política Urbana. O termo “paisagem” e “paisagístico” aparecem da seguinte forma: Art. 2º A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais: (...) XII – proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico; Art. 26. O direito de preempção será exercido sempre que o Poder Público necessitar de áreas para: (...) VIII – proteção de áreas de interesse histórico, cultural ou paisagístico; 11 Art. 35. Lei municipal, baseada no plano diretor, poderá autorizar o proprietário de imóvel urbano, privado ou público, a exercer em outro local, ou alienar, mediante escritura pública, o direito de construir previsto no plano diretor ou em legislação urbanística dele decorrente, quando o referido imóvel for considerado necessário para fins de: (...) II – preservação, quando o imóvel for considerado de interesse histórico, ambiental, paisagístico, social ou cultural; Art. 37. O EIV (Estudo de Impacto de Vizinhança) será executado de forma a contemplar os efeitos positivos e negativos do empreendimento ou atividade quanto à qualidade de vida da população residente na área e suas proximidades, incluindo a análise, no mínimo, das seguintes questões: (...) VII – paisagem urbana e patrimônio natural e cultural. Diferentemente da Constituição Federal, os artigos 2º, 26º e 35º do Estatuto das Cidades mencionam o patrimônio e áreas de interesse paisagístico sem estabelecer a relação com o ambiente natural. No artigo 37º apresenta-se o termo “paisagem urbana” ao lado de “patrimônio natural e cultural”. Este artigo trata especificamente dos efeitos da implantação de empreendimentos na qualidade de vida da população. Dessa feita deduz-se que a “paisagem urbana” é entendida aqui como elemento relativo à qualidade de vida da população. Este entendimento também contempla que esta paisagem é um referencial da coletividade e não do indivíduo uma vez que se trata da “população residente”. 5.4 CIDADE DE SÃO PAULO – LEI Nº 14.223/2006 No ano de 2006 entrou em vigor a Lei 14.223/2006 que baniu a atividade de veiculação de publicidade exterior nos moldes tradicionais (painéis outdoor; front-light; topo de prédio; empena cega etc.). Esta legislação ganhou destaque mundial dado sua excepcionalidade e efetividade. A ideia de paisagem urbana é determinada logo no seu 2º artigo: Art. 2º. Para fins de aplicação desta lei, considera-se paisagem urbana o espaço aéreo e a superfície externa de qualquer elemento natural ou construído, tais como água, fauna, flora, construções, edifícios, anteparos, superfícies aparentes de equipamentos de infraestrutura, de segurança e de veículos automotores, 12 anúncios de qualquer natureza, elementos de sinalização urbana, equipamentos de informação e comodidade pública e logradouros públicos, visíveis por qualquer observador situado em áreas de uso comum do povo. Essa concepção relaciona a visibilidade como referencial para a determinação da paisagem e, para que não se tenha dúvidas daquilo que a mesma regula elencam-se as “superfícies externas” que devem ser consideradas. 6 PARA NÃO CONCLUIR A reflexão ora apresentada é apenas introdutória. Pretende-se evoluir na discussão desta temática no âmbito de tese. As concepções de paisagem apresentadas permitem verificar a dicotomia entre existente entre a determinação de seu conteúdo a partir de aspectos tangíveis e intangíveis e a decorrente discussão entre ciência e filosofia. A tênue linha que separa ambas as bifurcações podem estar contidas na condição humana que, ao mesmo tempo em que produz espaço e se relaciona com ele, também o percebe e o qualifica a partir dos sentidos, especialmente através da visão. Dessa feita pode-se supor que a paisagem não exista para ser determinada pelo pragmatismo ou subjetivismo, mas sim por justamente guardar essas duas condições. Seria algo transitório, entre o “espírito”, a percepção, o ambiente natural e aquele humanizado. Essa concepção pode ser desenvolvida na ciência e na filosofia. Talvez a união dessas perspectivas possa trazer uma abordagem mais completa e interessante para a coletividade. A acepção de paisagem dentro das normas - brevemente verificadas - não atendem plenamente a hipótese de transitoriedade para o conteúdo de paisagem, contudo, isso não significa que não existam iniciativas legais que possam, de alguma maneira, valorizar não apenas o espaço cuja “casca” cria paisagem, mas o ser que a percebe. Se o conceito de paisagem transcender as premissas elencadas, é possível que no futuro a “regulação da paisagem” demande reflexões de ordem simbólica, imaginativa e que, de alguma forma, transcenda a preocupação com o coletivo e avance para o indivíduo. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 13 Livros FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988 HUMBOLDT, A. Von. Cosmos: Ensayo de uma descripcion física del mundo. Trad. Biblioteca Hispano-Sur-Americana. Belgica: Eduardo Perié Editor. 1875. HUSSERL, E. Mourão, Artur (trad). A idéia da fenomenologia. Lisboa, Edições 70, 2000. 133 p. Textos filosóficos. 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