Dissertações naturais e artificiais

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naturais e artificiais - se todas as coisas, sejam naturais sejam de produção
humana, têm um fim, como é possível que o homem o não tenha igualmente? - ,
e a sua forma por análise da essência humana: aquilo que é próprio do homem é
aquilo que lhe diz respeito enquanto tal, aquilo que decorre da sua essência e não
dos seus acidentes.
E chegamos ao ponto 5. do argumento, onde é deduzida - por eliminação
das competências anímicas comuns a outros seres da natureza - a actividade
própria do homem: a actividade racional. Possuindo os homens outras competências para além da racionalidade - nomeadamente as emoções (a parte da alma
não privada de razão, e portanto capaz de se submeter à razão) - , o exercício da
referida actividade racional, ou seja, a vida moral, poderá consistir (a) na adequada gestão dessas emoções, isto é, no cultivo da excelência de carácter por
acção da prudência; ou (b) naquilo a que Aristóteles chama a contemplação.
Concluído o argumento, percebemos que a passagem da descrição à prescrição é, afinal, perfeitamente razoável: a partir do momento em que se estabelece o que é ser humano, e qual é a actividade mais conforme à essência humana,
bizarro seria evitar recomendá-la como a melhor de todas a que um homem pode
dedicar-se. Por outro lado, a necessidade de se efectuar esta mesma passagem do
"ser" ao "dever ser" é um sinal do carácter contingente da orientação humana
para o respectivo fim: é certo que o melhor fim humano que se pode procurar é
aquele que está de acordo com a natureza humana, mas não é certo que todos os
seres humanos procurem esse fim melhor - daí a necessidade de uma disciplina
como a ética.
Mas a exortação ética só será verdadeiramente eficaz numa sociedade organizada de tal maneira que, não só gere uma apreciação social da vida virtuosa e
eduque para o cultivo das virtudes, única forma de se apreciarem os bens superiores; como ainda permita uma discussão fecunda do bem e do mal, para cuja
necessidade os homens só despertam a partir de um certo grau de socialização.
São estas duas dimensões - a discussão argumentada do justo e do injusto, e a
promoção da realização humana - que constituem uma polis, uma comunidade
propriamente política. E é a sua inscrição numa polis, assim caracterizada, que
faz do homem um animal político por natureza (ver EN, 1097b 11). Deste modo,
serão organizações políticas em sentido próprio todas - e só - aquelas que permitam aos cidadãos que as constituem realizarem os respectivos fins naturais.
FUNDAMENTOS E FIRMAMENTOS DO PENSAMENTO PORTUGUÊS CONTEMPORÂNEO: UMA PERSPECTIVA A PARTIR DA VISÃO DE JOSÉ MARINHO
por Renato Epifânio
Dissertação de Doutoramento em Filosofia, Faculdade de Letras da Universidade
de Lisboa, 2004.
Na minha perspectiva, o percurso filosófico de José Marinho teve como
marcos fundamentais três obras: Significado e Valor da Metafísica, Teoria do
Ser e da Verdade e Verdade, Condição e Destino no pensamento português contemporâneo. Na primeira, Significado e Valor da Metafísica, prefigurou, Marinho, aquela que é, na sua visão, a via da filosofia: passar do sentido do Drama da
Existência para o sentido do Enigma do Ser. Na segunda, Teoria do Ser e da
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Verdade, por sua vez, expôs, Marinho, a sua revelação do Enigma, o seu "saber
do espírito".
Ainda na minha perspectiva, o percurso filosófico marinhiano conclui-se,
porém, com a obra Verdade, Condição e Destino no pensamento português contemporâneo, publicada já postumamente. E isto porque, como nesta dissertação
defendi, o "saber do espírito" é, em úítima instância, o saber como o "espírito"
efectivamente se realiza, de forma diversa, em cada "situação". Daí o seu conceito de "filosofia situada", "situadamente portuguesa", à luz do qual José Marinho
se debruçou sobre a expressão filosófica na nossa cultura. Não, de modo algum,
para afirmar qualquer espécie de "superioridade" - propósito por si só absurdo,
dado que todas as culturas, sem excepção, são sempre já expressão do "espírito"
- mas, tão-só, para afirmar a sua "diferença".
Para dar conta desse percurso, estruturei a dissertação em três partes.
Assim, na primeira, tomando Significado e valor da Metafísica como obra de
referência, procurei definir o fulcro da meditação marinhiana, a qual, como aí
defendi, se cumpre entre dois horizontes contrapoiares: o do "Drama da Existência" e o do "Enigma do Ser". Daí a via filosófica aí prefigurada: assumir toda a
dramaticidade intrínseca à existência, mas não ficar por aí (como, alegadamente,
fica a filosofia dita "existencialista"), antes realizado a "passagem do sentido do
drama, ou da angústia, ao sentido do enigma", assim apreendendo o processo
ontológico que em toda a existência de cumpre.
Expõe José Marinho todo esse processo ontológico na sua mais conhecida
obra, Teoria do Ser e da Verdade, publicada em 1961, concretização do seu
projecto de "uma obra definitiva de filosofia em que [ele, Marinho] resolvesse
todos os problemas". Inevitavelmente, não o conseguiu. O Enigma é, ainda e
sempre, irrevelável em toda a sua extensão, o Enigma é, ainda e sempre, Mistério. Eis a conclusão a que chegará por fim Marinho, no reencontro com Leonardo
Coimbra, seu "mestre para a vida inteira". Daí a tese que defendi ao longo da
segunda parte desta dissertação: a visão de Marinho nunca chega a opor-se por
inteiro à visão de Leonardo. Para tal, confrontei a Teoria do Ser e da Verdade
com A Alegria, a Dor e a Graça - lendo esta à luz do que naquela se aprofunda e
extrema, lendo aquela à luz do que nesta se antecipa.
Mesmo, de resto, que esse "saber do espírito" por José Marinho exposto na
sua Teoria do Ser e da Verdade fosse um saber perfeito, ele seria, ainda e sempre, um saber em aberto, dado que, tal como o humano é sempre ele e a sua "circunstância" - e por isso toda a antropologia terá que ser sempre, em última instância, uma antropologia simada
assim também o "espírito" é sempre ele e a
forma como efectivamente se realiza, de forma diversa, no espaço e no tempo.
Defender que a história do ser é a história da realização do "espírito", como faz
Marinho na sua Teoria, é pois, ainda e sempre, uma mera propedêutica ao pensar
que mais importa: não ainda aquele que apreende a história do ser como história
da realização do "espírito", mas sim já aquele que apreende a forma como o
"espírito" efectivamente se realiza, de forma diversa, em cada "situação".
Daí, em suma, o seu conceito de "filosofia situada", "situadamente portuguesa", à luz do qual desenvolveu José Marinho a sua visão sobre a expressão
filosófica na nossa "situação", visão essa exposta em múltiplos textos seus redigidos ao longo de toda a sua vida e definitivamente fixada na sua última grande
obra: Verdade, Condição e Destino no pensamento português
contemporâneo.
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Eis, precisamente, a visão que procurei reconstituir, criticamente, ao longo das
duas primeiras secções da terceira parte desta dissertação, a primeira dedicada
aos "autores [por Marinho considerados como] mais significativos", a segunda à
"temática [por Marinho considerada como] essencial". Na terceira e última secção da terceira e última parte da dissertação, procurei, sucessivamente, em cinco
capítulos, debruçar-me sobre o "Conceito", a "Situação", a "História", a "Tradição" e o "Horizonte" do pensamento português contemporâneo, ou seja, em
suma, sobre os seus Fundamentos e Firmamentos. Eis, em brevíssima síntese, o
itinerário por mim percorrido ao longo desta dissertação.
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