Práticas midiáticas e teatro: memórias de um ator

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PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8 a 10 de outubro 2014)
Práticas midiáticas e teatro: memórias de um
ator-personagem na imaginação da cidade de Cuiabá1
Andhressa Heloíza Sawaris Barboza2
Yuji Gushiken3
Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT/Cuiabá)
Resumo
O objeto desde trabalho é a memória da cidade no teatro de Liu Arruda, ator cuiabano que
faleceu em 1999 aos 42 anos, referenciado na memória local como “ícone da cultura
cuiabana”. A posição da personagem “Comadre Nhara” no espaço cênico denota ainda a
posição no espaço físico-social dos estereótipos de certos agentes sociais legitimadores e
legitimados de uma cultura regional. A representação do cenário coloca a cidade como
personagem cujo discurso remete às experiências de urbanização vivenciadas pelos agentes
sociais. Tal processo é referenciado em entrevistas realizadas e no levantamento
bibliográfico, que foram as metodologias utilizadas. Ao trazer a questão da cidade a partir do
teatro de Liu Arruda e o diálogo com outras temporalidades e espacialidades em seu
contemporâneo, é preciso ainda considerar a experiência biográfica do ator que lança mão de
elementos de sua subjetividade a qual se conecta, por meio do discurso teatral, às demais
subjetividades daqueles agentes sociais.
Palavras-chave: memória; comunicação; teatro; cidade.
1
Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho GT 7 - COMUNICAÇÃO, CONSUMO, MEMÓRIA:
cenas culturais e midiáticas, do 4º Encontro de GTs - Comunicon, realizado nos dias 08, 09 e 10 de
outubro de 2014. Trabalho desenvolvido no âmbito do projeto de pesquisa “Modenização tecnológica e
midiática: Imagens da cidade e demandas do cosmopolitismo” (Propeq/UFMT) e na linha de Pesquisa
em Comunicação e Mediações Culturais do PPG ECCO-UFMT
2
Graduada em Jornalismo, Ciências Sociais e aluna do Mestrado em Estudos de Cultura
Contemporânea da Universidade Federal de Mato Grosso (ECCO-UFMT).
3
Professor e pesquisador do Departamento de Comunicação Social e do Mestrado em Estudos de
Cultura Contemporânea da Universidade Federal de Mato Grosso (ECCO-UFMT). Orientador do
trabalho.
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Introdução
-
Figura 1 - Comadre Nhara na janela
Fonte: Foto cedida pelo Tribunal de Contas de Mato Grosso
Dos mais de quarenta personagens encenados pelo ator cuiabano Liu Arruda, o
núcleo familiar formado pela matriarca Comadre Nhara, seu marido, Djuca e os filhos
Ramona e Gradstone, são os que ganham centralidade na memória dos entrevistados.
As apresentações mais diversas são lembranças sempre acompanhadas de pausas para
uma boa risada. Às vezes nem tão engraçada para o ouvinte que não conhecia o
trabalho de Liu Arruda, mas havia certo ar de cumplicidade entre o ator e os
entrevistados e toda narrativa sobre a experiência de assistir ou participar de alguma
peça encenada por Liu Arruda tinha alguma ou era centrada na comadre faladeira. A
comadre Nhara (figura 1) é uma matriarca sem “papas na língua”, a principal
característica ressaltada pelos narradores entrevistados era o “linguajar cuiabano”, o
uso do palavrão e sua postura cênica. O modo como se portava no palco, mas também
a relação da personagem com aquele ambiente que remetia a espaços da cidade de
Cuiabá, davam o tom para a produção de sentido.
O ator cuiabano Elonil de Arruda, o Liu Arruda, nasceu em 30 de maio de
1957, filho de Nilson Arruda e Tanita Marques de Pinho Arruda. Liu faleceu em 1999
aos 42 anos. Mesmo quine anos após seu falecimento, o ator é referenciado como
ícone da cultura popular na cidade, sendo considerado um dos artistas matogrossenses mais populares desde a década de 1980. Arruda compôs quase 40
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personagens desde o drama ao humor. Mas o humor foi o gênero que o tornou
conhecido nas artes cênicas regionais. Liu Arruda estreou no teatro em 1968 quando
fez uma dublagem de “Balada para um Louco”, uma versão de Moacir Franco para a
música de Astor Piazzola. Nos anos 70, junto com Ivan Belém, participou do grupo de
teatro do Sesi “Pequenos Gigantes”. Em seguida, mudou-se a cidade do Rio Janeiro
onde cursou Comunicação Social na Faculdade Gama Filho. Para custear sua estadia,
trabalhou como animador de festas infantis o que o subsidiou na participação do
espetáculo “Desgraças de uma Criança”, na faculdade. Ao retornar para Cuiabá, em
1984, ficou dois anos sem atuar, trabalhando como professor de educação artística e
repórter da TV Centro América, afiliada da Rede Globo.
Após dois anos longe dos palcos o ator reencontrou o também ator Ivan Belém
que participava do Grupo Gambiarra. O trabalho do grupo consistia em intervenções
artísticas em ruas e bares, usando roupas coloridas e o humor para atrair espectadores.
A primeira participação de Liu no Grupo Gambiarra foi o espetáculo infantil “Avoar”,
coincidentemente, a peça foi o último espetáculo apresentado pelo ator antes do seu
falecimento em 1999. A parceria com Ivan Belém rendeu a ambos espaço
significativo no campo teatral em Mato Grosso com as personagens com que
buscaram recriar os tipos populares cuiabanos: Creonice (Ivan Belém) e Comadre
Nhara (Liu Arruda).
A partir das apresentações com as personagens é que os atores perceberam que
o teatro poderia ser uma ferramenta como produção de renda. Entre as peças desse
período as mais relevantes foram: o espetáculo “Elas por Eles” e “Nossa Gente,
Nossos Valores”. O trabalho de Liu Arruda se destacou por tornar a interação com o
público um dos componentes principais do seu estilo, sendo a improvisação uma
característica marcante tanto dele quanto de Ivan Belém. O espetáculo “Cidade Pedra
Lascada” marca o momento em que políticos e membros da elite cuiabana passaram a
ser representados satiricamente pelo ator. O processo criativo de Liu Arruda está
intimamente relacionado à sua trajetória de vida. A produção dos cenários e a
composição de personagens tinham como referência pessoas conhecidas do próprio
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ator e diretor, o que incluía apontamentos sobre hábitos, modos de se relacionar e
espaço de sociabilidade na cidade.
“Morre para sempre quem morre em Cuiabá”4
Procurar material sobre o trabalho do ator foi extremamente difícil.
Inicialmente, acreditava que seria “fácil”, pois todos sempre tinham algo a dizer sobre
a Comadre Nhara, algum detalhe sobre o figurino e sobre as piadas. Qualquer
conversa em que o nome do ator surgia era acompanhada de descrições sobre o
cenário, as situações de cena e as piadas, como se a pessoa tivesse acabado de assistir
a uma apresentação. Quando perguntava se havia algum registro daquele momento
que foi bem descrito pela fala, a resposta era negativa e acompanhada de “ah mas,
alguém deve ter”.
Procurei os veículos de comunicação locais: Grupo Gazeta (Rede Record), TV
Centro América (Rede Globo) e produtores culturais regionais que, à época,
trabalhavam com audiovisual. As televisões não tinham registro das peças, pois as
fitas em VHS eram reutilizadas. Os produtores culturais contaram que, quando
chegou material digital, o processo de transição foi muito rápido e logo tiveram de
abandonar o VHS para trabalharem com o digital. Muita coisa se perdeu, pois as fitas
de VHS precisam de rebobinagem para não danificar o conteúdo, somando isso às
altas temperaturas de Cuiabá, o acervo foi danificado antes de ser digitalizado.
Reportagens jornalísticas sobre Liu Arruda e sua carreira como ator é no que se
resume o acervo audiovisual encontrado: a Comadre Nhara fez propaganda para o
antigo supermercado Trento Júnior, Liu atuou nas novelas O Campeão, da TV
Bandeirantes, A Lenda, da TV Manchete, fez uma breve participação na novela da TV
Globo Suave Veneno e lançou o CD Ocê Qué Vê, Escuta, com catorze faixas, sete
músicas e sete piadas. Liu Arruda é uma figura de que se ouve muito falar, mas que
não está no rádio ou na televisão, tem poucas fotos disponíveis, não há nenhum vídeo
4
O jargão é atribuído ao poeta cuiabano Estevão de Mendonça que se referia à “falta de memória” do
cuiabano. Mas a memória que ele se refere é a memória da escrita. Homem “letrado” que era cultuava a
cultura escrita como guardiã da memória.
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de uma peça completa, apenas registros de minutos que estão no Youtube. Afinal,
onde está Liu Arruda?
Na sociedade midiática e do culto à escrita, o teatro de um ator falecido há 15
anos é referência na memória pela oralidade. Assim, a metodologia utilizada consistiu
em entrevistas com parceiros de trabalho, amigos e a família, pesquisa bibliográfica e
documental, sendo recursos valiosos e que auxiliaram no exercício de “juntar as
peças” do quebra-cabeça e tatear as conexões possíveis. Não são inéditos trabalhos
acadêmicos sobre o ator, o que repercute e corrobora ao impacto que Liu Arruda tem
na memória local. Nenhum desses trabalhos questiona o fato de que não há registros
audiovisuais das peças e as principais referências documentais são: o CD Ocê Qué Vê,
Escuta, dois rascunhos escritos sobre duas peças e, principalmente, as entrevistas aos
jornais.
Experiência de urbanidade e a memória no teatro
A experiência biográfica de Liu Arruda como agente social, desvela as
possíveis conexões que seu trabalho provoca com a subjetividade que marca a
representação da cidade de Cuiabá no teatro5. É um certo modo de falar, uma certa
disposição cenográfica e a referência a um tempo histórico que conecta os
personagens ao palco e ao público.
A experiência de urbanidade marca a subjetividade do ator e tal experiência,
compartilhada por outros agentes sociais, o que teatro comunica, o que “faz sentido”,
ou seja, a mediação. A força que deste período histórico no imaginário coletivo e que
se expressa individualmente aos agentes sociais, dá o tom do humor e é a razão da
referência ao teatro de Liu como “ícone da cultura cuiabana”6. A cidade representada
se configura em um personagem, mais do que apenas espaço cênico que não tem fala
e aparece pelos discursos de seus outros personagens: a Comadre Nhara na janela ou
5
O teatro é antes de tudo encontro, ou seja, relação com o texto, com o corpo do ator ou do espectador,
com o espaço, os objetos de cena e até mesmo a luz. É um bordado que se cria com os nós de relações.
6
A potência de ser ícone tem a ver com a subjetividade do Liu de levar para o palco aquilo que o
afetava e o atravessava, ele produzia vida e não representava a vida.
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varrendo a calçada. Ao desvelar a leitura da cidade a partir do espaço físico-social da
“Comadre Nhara”, desvelamos nuances das expressões subjetivas de como os agentes
sociais vivenciam determinada experiência e como o diálogo é possível, pois há
interlocução entre essas subjetividades: a do ator, do público e do contemporâneo.
Há o diálogo entre dimensões: a dimensão da cidade no teatro, a dimensão da
cidade em determinado período histórico geográfico e a dimensão da cidade
contemporânea que referencia o ator como memória “histórica e cultural”. O modo
como as relações de diversos tempos e o espaço na comédia, contribuem para que a
Comadre Nhara personifique as relações sociais vividas em um período, bem como os
conflitos cujas críticas aparecem pelo humor sarcástico.
A relação entre memória oral e a escrita não é dicotômica. Uma não extingue a
outra, nem tudo as letras dão conta e a vida flui pela escrita e para além dela. Tratar
da memória coletiva, para Le Goff (1996), é reconhecer as peculiaridades que a
distingue da escrita. A designação de memória coletiva é uma referência à atividade
mnésica constante e que também aparece no contexto de uma cultura escrita. Para o
autor, a memória tem funções diferentes em sociedades cuja tradição é oral e em
sociedades já alicerçadas na cultura escrita. A escrita é tida como depositária da
memória oficial, legitimada, mas se basearmos as relações somente nela, velamos
uma série de situações que a memória assume em cada circunstância.
Le Goff (1996), ao tratar da memória coletiva, em especial nas sociedades sem
escrita, cuja atividade mnésica é constante, pondera que na tradição oral, onde a
escrita não é a depositária da memória, é preciso que o fato tenha um sentido histórico
o qual a memória assume em cada circunstância. É tal dinâmica que dá vitalidade à
memória coletiva. Assim, ao trazer os relatos que fixam a imagem da família,
centrada na Comadre Nhara, é importante considerar que a imagem se fixa também
por “fazer sentido”. E o que é “fazer sentido”?
A compreensão da leitura de cidade no trabalho de Liu Arruda passa pelas as
condições de produção do discurso, tendo a cidade de Cuiabá como cenário do
cenário. Até a década de 1960, Cuiabá estava em um período de estagnação
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populacional, o número de habitantes era próximo de 50 mil. Com os incentivos da
Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), foram atraídas
grandes empresas agropecuárias para o norte de Mato Grosso e a capital recebe
intensos fluxos migratórios. Cuiabá logo atingiu 200 mil habitantes, chegando a
aproximadamente 400 mil habitantes em 1991 (Pedrollo, 2008).
A urbanização intensa ocasionada pelo vertiginoso crescimento populacional e
o aumento de concentração de pessoas na região urbana, segundo Pedrollo (2008),
levou ao agravamento do problema habitacional em Cuiabá a partir dos anos 1970.
Diante desse contexto, houve a necessidade do Poder Público intervir com medidas
“modernas” de expansão urbana. Tal movimento deu início à criação de bairros cada
vez mais distantes do centro histórico, firmando novos aglomerados urbanos. Regiões
como Coxipó da Ponte, antes consideradas meio rural, passam a integrar o ambiente
urbano e receber equipamentos públicos.
A década de 1980 é marcada pela explosão demográfica no meio urbano.
Enquanto isso, no cenário de Liu Arruda, em 1986, a Comadre Nhara aparece pela
primeira vez no palco do teatro. Em entrevista ao jornal Diário de Cuiabá (1999), o
ator conta que:
A Comadre Nhara nasceu em 1986. Foi na época em que Dante foi
candidato a prefeito pela primeira vez. Mas a Comadre Nhara eu conheci
de fato, era uma mulher que morava na 24 de Outubro, numa daquelas
casas antigas que, na frente, é alta e lá por dentro é baixinha. [...] Eu
costumo dizer que o cuiabano é perguntador, ele não é fofoqueiro. Ela
ficava na janela, você passava com um embrulho, ela (faz a voz): "Hei,
aonde você vai? Qué isso que tá na tua mão? Custou quanto? Sua mãe já
sabe?" E dá a bunda pra resposta. Quer dizer, ela pergunta cinco coisas,
seis e não liga pro que você responde. [grifo da autora] 7
A dimensão do tempo que o ator relaciona é interessante, pois é possível fazer
o diálogo com o contemporâneo, entendendo este enquanto a relação entre diversas
temporalidades (Agamben, 2009):
Tempo 1: referência ao “antigamente”, casas antigas que, na frente, é alta e
lá por dentro é baixinha, a qual o teatro faz (Cuiabá antes de 1960);
7
O paradoxo das perguntas que não importam as respostas, é muito sagaz porque surpreende o
espectador que já espera a resposta e ele passa a rasteira, surpreende e consegue deslocar essa comadre
com potência de vida para o palco.
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Tempo 2: em uma dessas casas ele passa sua infância e adolescência na
década de 1970;
Tempo 3: o teatro atualiza o “antigamente”, quando a experiência intensa de
urbanização promove uma série de alterações para aqueles agentes sociais;
Tempo 4: o atual, que referencia Liu Arruda e atualiza o teatro.
A discussão a respeito da temporalidade também remete às ponderações de
Milton Santos (1997) quando pontua que cada um dos elementos que agrupam dando
a configuração espacial de um lugar, passa ainda por um estudo aprofundado que vai
desde o homem até as instituições que vão dirigir, juntamente com as firmas, as
formas de materialização da sociedade. Desse modo, ao destrincharmos as relações
sociais colocadas em cada elemento, também remetemos a valores nos quais um
determinado elemento atende, típico de uma época, enquanto ao lado daquele
elemento encontramos outro que remete a uma outra temporalidade. Desse modo, as
realidades empíricas permitem que se vislumbre no tempo e no espaço, a
transformação. Liu traz para o palco do teatro as referências que estão na memória e
“brinca” com elas ao coloca-las também com elementos de outra temporalidade
consecutiva.
Vida, arte e subjetividade do ator e da cidade
Liu Arruda, nome artístico de Elonil de Arruda, era o caçula entre os dez
filhos do casal. Entre os irmão foi o único que nasceu na capital de Mato Grosso,
Cuiabá, os outros nasceram em Corumbá. Segundo sua irmã mais velha, Cleuza
Adjacira Helena de Arruda (Silveira e Moraes, 2010) desde a infância “era bom de
resposta e muito engraçado. A Dona Xapola, nossa vizinha, era uma senhora
gordinha. Liu pegava uma máquina fotográfica estragada e fingia fotografá-la. A
gente ria demais. [..]”.
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Ao chegar a Cuiabá a família foi morar na Rua 24 de Outubro 8, o pai era
escriturário do Ministério da Agricultura e fazia constantes viagens, em uma delas não
voltou. Naquele momento Tanita, a mãe, sabia apenas cuidar da casa e dos dez filhos
e se viu na situação ainda ter que buscar meios para manter a família. Com toda sua
experiência de vida baseada no cotidiano do interior de Mato Grosso, a mulher tem
que aprender a lidar com um cotidiano urbano de recentes processos e transformações
em um local com grandes aglomerações populacionais sem as adequações urbanas
necessárias para garantir boas condições de moradia ou saneamento para a população.
Enquanto os irmãos (a maioria irmãs) mais velhos tinham idade para procurar
emprego, Liu pôde se dedicar aos estudos. Na adolescência foi estudar em uma escola
particular, o Colégio Salesiano São Gonçalo (CSSG). Convivia c om os “filhos da
elite” e a irmã Cleuza (Silveira e Moraes, 2010) ainda conta que certa vez uma
professora chamou sua mãe de lavadeira na frente dos colegas da classe. O fato o
marcou profundamente.
A cidade e suas transformações são vivenciadas pelos agentes sociais de modo
coletivo e individual. Longe de serem oposições, estas dimensões dialogam. As
experiências de vida de Liu Arruda têm como cenário a cidade de Cuiabá, sendo o
espaço coletivo que dialoga com as espacialidades de cada agente social envolvido no
processo, e aparecem no teatro conectando experiências subjetivas de tempo e espaço.
A rua 24 de Outubro está localizada no mapa da evolução urbana do município
no âmbito da ocupação do início do século XX a 1960, período de estagnação
populacional. Foi a partir desta data que se inicia o processo de migração intensa que
culmina na explosão demográfica da capital mato-grossense. Quando Liu se refere às
“casas antigas” faz referência ao início do século XX (Tempo 1) em uma dessas casas
ele passa sua infância e adolescência na década de 1970 (Tempo 2). Com o teatro, o
ator atualiza o “antigamente”, período em que a experiência intensa de urbanização
promove uma série de alterações para aqueles agentes sociais.
8
Hoje, a Rua 24 de Outubro é referenciada como próxima ao centro da cidade, mas até 1980 a
dimensão espacial não era a mesma.
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Pela leitura de Liu (figura 1), vemos as casas conjugadas, a janela fica
instalada numa parede rente à calçada e a rua, sem muros ou jardim. A fotografia
condensa diversas temporalidades (Tempos 1, 2, 3 e 4) e constitui as camadas pelas
quais este trabalho passa para fazer uma leitura de uma leitura de cidade no teatro. O
que esta disposição espacial e temporal comunica?
Figura 2 - Cenário de peça de Liu Arruda
Fonte: Foto cedida pelo Tribunal de Contas de Mato Grosso
Na figura 1 o cenário reproduz as casas da rua 24 de Outubro, onde mora a
família: Comadre Nhara, casada com o Compadre Djuca com quem teve os filhos
Ramona e Gradstone. Todos são personagens do próprio Liu. A abertura do CD que o
ator gravou fala um pouco sobre essa família da Comadre Nhara:
Comadre Nhara – Djuca, Djuca! Acorda, merda! Xaí, esse homi dorminu até agora, né bandido?
Acorda, Djuca! [cachorro late] Passa xulim! Djuca acorda! Óia, ainda tem um pouquinho de pingá lá
pro cê toma, pau de fumo!
Djuca – Puta merda! Gente tricô na cama e essa muié já tá chamando. Vooote! Parece trombada de
caminhão.
Comadre Nhara - Trombada de caminhão, xu cu, merda! Ramona, acorda minina critina! Eu vi na
hora que cê chegou, viu rapariga. Ah minina eu vou xinxa seu cabelo, viu corna! Cê vai vê, vou enfia
um ovo quente no seu chêro, corna.
Ramona – Gente, que aconteceu? Whats is this?
Comadre Nhara - Whats is this é a puta que pariu, corna! Gradstone, guri, ocê ainda tá caganu, guri?
Gradstone – Que há, mermã? Fica frau, coroa!
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Comadre Nhara - Fica frau xucu, guri. Merda!
Essa matriarca desbocada que é a Comadre Nhara, incorpora a representação
do que seria a “típica cuiabana”, mas ela ganha intensidade naquela espacialidade que
remete à cidade de Cuiabá da década de 1980. A figura 1 é uma foto da personagem
Comadre Nhara na janela do canto direito superior da foto da figura 2.
Tanto na foto do cenário, quanto nas falas dos personagens, temos a referência
à “casa de antigamente” que abriga um família, a da Comadre Nhara com conflitos
contemporâneos àqueles agentes sociais: a filha “modernizada” com inglês na ponta
da língua e o filho com as gírias do jovem contemporâneo.
A janela é este elemento rizomático 9 que conecta as subjetividades. A
Comadre Nhara é a representação daquela senhora que o ator diz ter conhecido e que
morava numa daquelas casas antigas que, na frente, é alta e lá por dentro é baixinha e
que ficava na janela fazendo perguntas e debochando dos vizinhos. A janela, no
palco, posiciona a personagem de modo que o público que está na “rua” e é pela
janela que temporalidades, espacialidades e diferentes experiências de vida dialogam,
e o diálogo só é possível pois há um campo de significações. As representações
coletivas vão até onde há conexões subjetivas.
No início dos anos 1990, Liu Arruda decide abrir um bar chamado Nó de
Cachorro10, próximo à Rua 24 de Outubro. O ator procurou duas amigas arquitetas
que foram as responsáveis pelo projeto do bar: Cassia Abdallah e Enize D’Carvalho.
Segundo Enize (em entrevista gravada em julho de 2013), Liu queria que o bar
reproduzisse o interior de uma daquelas casas antigas do centro de Cuiabá. O primeiro
nome do bar era Teatro de Varanda, mas ainda estava muito distante, então se o que
9
“O que Guattari e eu chamamos rizoma é precisamente um caso de sistema aberto. Volto à questão: o
que é filosofia? Porque a resposta a essa questão deveria ser muito simples. Todo mundo sabe que a
filosofia se ocupa de conceitos. Um sistema é um conjunto de conceitos. Um sistema aberto é quando
os conceitos são relacionados a circunstâncias e não mais a essências. Mas por um lado os conceitos
não são dados prontos, eles não preexistem: é preciso inventar, criar os conceitos, e há aí tanta
invenção e criação quanto na arte ou na ciência.” (DELEUZE e GUATARRI, 1996, Pg. 58)
10
Nó de Cachorro é uma planta do cerrado brasileiro, utilizada medicinalmente pelas populações
caboclas. É considerado produto afrodisíaco. O nome do bar é uma brincadeira com esta propriedade
da planta: o estímulo da libido.
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Liu queria era trazer as pessoas para dentro de uma casa cuiabana, nada melhor que
usar o nome de uma planta conhecida pelas “Comadres Nharas” da vida como
estimulante afrodisíaco.
O modo de vida representado no teatro marca uma temporalidade também e se
relaciona com uma experiência de urbanização que incide nas memórias da comadre e
na construção do espaço cênico. Cada tempo se relaciona a um espaço e a uma
paisagem, que em sua dimensão mais ampla chamamos de temporalidade e
espacialidade. A construção desses espaços demarca o que, na vida urbana, é
individual e o que é coletivo: existem zonas de fronteira do que é vivido no âmbito da
particularidade e o que é vivido no âmbito do comum. A cena da Comadre Nhara na
janela sugere a ideia de vizinhança, elemento importante na espacialidade urbana de
acordo com o modo de vida “de antigamente”, remetendo ao “arcaico”.
A vizinhança cuiabana constitui uma espacialidade, como Romancini (2005)
pontua, e pressupõe trocas e a obrigatoriedade da retribuição. As relações de
vizinhança e os processos de retribuição entre vizinhos são características da vida
social na cidade de Cuiabá em uma dada temporalidade e ainda na
contemporaneidade, o que é importante para se compreender o contexto sociocultural
da personagem Comadre Nhara e o sentido da representação do espaço urbano no
espaço cênico da produção teatral de Liu Arruda. As casas que dividem parede e a
proximidade com a rua são exemplos de como as relações sociais influenciam na
distribuição do espaço. Tal disposição espacial facilita o trânsito entre as moradias
bem como os rituais que fortalecem os vínculos sociais.
A cidade contemporânea sugere a experiência de desconexão e dissociação
com o tempo presente. Neste sentido, Agamben (2009) afirma que somente aqueles
que estão afastados do seu tempo apreendem sua própria especificidade sem serem
nostálgicos. A experiência de tempo aparece na leitura de Liu Arruda ao representar a
Rua 24 de outubro e seus moradores: a rua está localizada no mapa no âmbito da
ocupação do início do século XX a 1960. Foi a partir desta data que se inicia o
processo de migração intensa que culmina na explosão demográfica da capital mato-
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grossense. Quando Liu se refere às “casas antigas” faz referência ao início do século
XX.
As alterações no espaço urbano são resultado das necessidades de
“modernizar” a cidade para dar conta do fluxo demográfico. Para Milton Santos
(1997), o espaço compreende a soma e a síntese da paisagem com a sociedade através
da espacialidade. “A paisagem tem permanência e a espacialidade é um momento. A
paisagem é coisa, a espacialização é funcional e o espaço é estrutural.” (Santos;
1997). O autor conceitua paisagem como precedente à história que é escrita sobre ela,
modificando-a para dar conta de alguma mudança, uma inovação. Desse modo, a
paisagem se apresenta com relativa permanência, enquanto a espacialização se
modifica de acordo com a circunstância. O espaço para o autor trata de um conjunto
de objetos e ações em arranjos relacionados entre si em uma sociedade em
movimento. Tais objetos e arranjos são construções, reconstruções e até destruições
que se alteram de acordo com a dinâmica social, produtiva e espacial, tendo sempre
como referência um contexto temporal. Ao falar sobre as mutações da paisagem, o
autor as divide em estruturais ou funcionais. Por exemplo, uma rua altera sua
funcionalidade, se vista durante o dia, no trânsito de veículos, ou durante a noite,
quando torna-se lugar para uma feira. Ao alterar a temporalidade, altera-se sua
função. O mesmo ocorre com os espaços dentro da cidade que se alteram de acordo
com a divisão territorial do trabalho. O autor trabalha com os conceitos de forma,
função, estrutura e processo que, longe de estarem separados, se inter-relacionam.
As transformações urbanas impulsionadas pelo capitalismo promovem
processos de marginalização social, definem o que é digno de visibilidade e o que
deve ficar no campo opaco da invisibilidade. Por um lado a casa representada no
cenário do teatro de Liu, representa também aspectos culturais marginalizados e
delegados ao envelhecimento social que levou ao envelhecimento físico dos imóveis.
Por outro lado os agentes sociais envolvidos não recebem passivamente os fluxos das
transformações. Eles clivam, adaptam, transformam, reconfiguram os espaços e as
relações.
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A potencialidade de transformações é tratada por Lefebvre (1991) quando se
refere aos “espaços lúdicos”. O mesmo autor explica que tais espaços permitem as
resistências, o que para Serpa (2008) são “[...] lugares intersticiais, residuais e opacos
da cidade contemporânea, em especial nas periferias sociais e geográficas da
metrópole capitalista. cidades.” A ocasião dos “espaços lúdicos” é fruto da “lógica da
invisibilidade e do não reconhecimento pelos agentes hegemônicos da produção do
espaço urbano” (Serpa; 2008). Na Figura 1, a comadre na janela é o agente social de
uma centralidade lúdica que se contrapõe à falta de inventividade no campo da
imaginação, à prisão daquele imaginário que é legitimado e legitimador de apenas
alguns modos de vida e de bens de consumo, a comadre escapa da ideia de que
realizar-se apenas consumir determinados bens, mas reordenar este consumo, uma vez
que, pelo processo de alienação, pelo qual o homem não se vê no produto de seu
trabalho, busca a realização dos seus desejos de diversos modos, aspirando bens de
consumo de classes mais abastadas. Segundo Serpa (2008), essas centralidades
lúdicas permitem ir além dos fluxos dominantes, pois é preciso considerar os
movimentos dialéticos a partir de construções e destruições ao lado do que cria e
também extingue.
Para compreender tais experiências, Serpa (2008) sugere considerar os
apontamentos de Certeau (2003), e analisar no campo fenomenológico e no
praxeológico “das trajetórias culturais dos grupos que produzem e reproduzem ideias
de cultura alternativas à cultura dominante” (Serpa,2008). O que Certeau propõe é
apreender ação dos grupos sociais marginalizados na composição dos lugares para daí
ter a dimensão das inovações produzidas por eles que ocasionam modificações nos
lugares. Desse modo, pensamos cidade como a forma urbana com “caráter
cumulativo” e como obra “com centralidades múltiplas e móveis, efêmeras e
constantemente transformadas, renovadas” (Serpa,2008).
PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8 a 10 de outubro 2014)
Referências
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