O Estudo Comparativo da Mudança Musical: Estudos de Caso de Quatro Culturas. Bruno Nettl Introdução A lguns psicólogos dizem que ao longo de nossas vidas somos dominados por nossa infância, incluindo nossas primeiras experiências, e sugerem que nossas biografias podem ser interpretadas como uma tentativa de escapar disso, mas que tudo o que fazemos é guiado, de certa maneira, por aquelas épocas tenras, ou é uma reação a elas. As disciplinas acadêmicas talvez passem por um processo similar, e possivelmente a história da Etnomusicologia pode ser interpretada, em grande medida, como uma continuação das atitudes desenvolvidas por nossos predecessores de aproximadamente cem anos atrás, ou como uma reação a elas. Continuamos a olhar para aquela época inicial, às vezes com um pouco de nostalgia, às vezes à procura de orientação, porém mais freqüentemente com um sentimento de que precisamos fugir da infância de nossa disciplina. M eu objetivo aqui é discutir o estudo da mudança, tal como realizado pelos etnomusicólogos. Gostaria de fazer algumas observações sobre sociedades com as quais eu tenho alguma experiência, mas antes gostaria de abordar aspectos relevantes da história da Etnomusicologia. Considero surpreendente que, por muito tempo, tenhamos trabalhado, e talvez ainda agora o façamos, com um modelo baseado na premissa de que o que é normal na cultura, e na música, é a estabilidade, a continuidade, a ausência de mudanças, e que só em situações excepcionais as mudanças ocorrem. Sobre a História da Etnomusicologia N a primeira metade do século XX, o conceito de mudança teve no máximo um papel negativo na Etnomusicologia. De modo geral, imaginava-se que o estado normal da música não-Ocidental era estático, sendo que mudança era equacionada à poluição, e o objetivo fundamental do pesquisador era o de preservar. O resultado desta atitude foi negligenciar-se um amplo setor da música do mundo, da música percebida pelo senso comum como em estado de mudança, ou como resultante de mudança recente. Falo, evidentemente, da música resultante de vários tipos de interação cultural, e particularmente daquela que normalmente é rotulada como "popular", a qual, na maioria de suas formas, resulta de algum tipo de combinação de estilos musicais regionais. Os etnomusicólogos de antes de 1950, geralmente provenientes de uma cultura que colocava a música erudita Ocidental automaticamente em uma categoria separada e superior, e que tinham, como já indiquei, dificuldades em lidar com a questão de suas próprias origens, olhavam com suspeita a música cujos contextos e formas de transmissão eram novos, resultados de mudanças culturais -metrópoles multiculturais, gravações, rádio, etc. De fato, eu poderia descrever a atitude da profissão de etnomusicólogo mais ou menos dessa maneira: a Etnomusicologia era o estudo das músicas que eram estáticas, que não mudavam, a não ser se induzi das por forças externas, e os resultados da mudança deveriam ser ignorados. Em 1905, na primeira publicação devotada explicitamente à discussão do campo da Musicologia Comparada como tal, Erich von Hornbostel apresentou claramente a preservação de tradições como o seu Leitmotif -preservação porque tudo estava mudando, desaparecendo e ameaçado, como ele colocou, sendo substituído pelo mundo inteiro cantando canções da moda. Foi desenvolvida uma metodologia voltada essencialmente para a preservação das normas musicais de estabilidade cultural do mundo. A o contrário, era a Musicologia Histórica que estudava, àquela época, a música que mudava o tempo todo. Era ela que se concentrava na observação desta mudança, normalmente descrita como "inovação", dando maior atenção às formas mais radicais de mudança, enquanto denegria os períodos, nações, escolas e compositores que não participavam das mudanças de estilo musical. A dicotomia entre "dinâmico" e "estático" se encontrava muito difundida. Se havia alguma teoria da mudança amplamente aceita antes de 1950, foi o conceito de evolução unidirecional resultante da tendência humana a aumentar a complexidade de idéias, objetos e técnicas. A pós 1950, houve uma troca de posições. Os historiadores da música não abandonaram, evidentemente, a ênfase dada à mudança, mas a preservação - exemplificada por manifestações como o interesse em performances autênticas ou no estudo de fontes primárias -teve destacada sua importância. Ao mesmo tempo, o estudo da mudança, realizado de maneiras diversas, tomou-se gradualmente o principal tópico da pesquisa etnomusicológica. Surgiram várias perspectivas teóricas para lidar com questões tais como: o que muda (ou é mudado)? Como abordar os vários tipos de mudança? O que faz com que as pessoas mudem (ou não) sua música? Como a mudança musical se relaciona com a mudança cultural? Todavia, parece-me que os etnomusicólogos, de uma maneira geral, continuaram a considerar a mudança com uma visão negativa, ou, no máximo, neutra, considerando-a basicamente o resultado de eventos direta ou indiretamente causados pela colonização. Contrariamente, os historiadores da música ocidental passaram a se concentrar no estudo da mudança -principalmente da mudança estilística -, e a recebê-la positivamente quando a encontram em suas pesquisas, passando a ver com pouco interesse os períodos, locais ou compositores em cuja música predomina a recorrência. V ários pesquisadores procuraram trabalhar formulações teóricas amplas sobre a mudança. Hornbostel, já em 1905, tinha a preocupação de que em breve o mundo inteiro estaria cantando canções da moda. Ele antecipara George Herzog, que em suas lições atribuía, de forma clara, à música em processo de mudança um valor menor do que o atribuído à tradicional, prenunciando, também, a "descoloração cultural" temido por Alan Lomax. Para Alan Merriam, a primeira distinção importante em uma teoria deveria ser entre a mudança influenciada pelo contato com outras culturas e a mudança resultante de fatores internos à cultura. Os fatores culturais internos deixaram de ser objeto de pesquisas etnomusicológicas sérias, uma vez que deveriam incluir a aceitação de algum tipo de inevitabilidade evolucionista, como a mudança inevitável do bitônico para o pentatônico ou da homofonia para a polifonia, ou como referência a decisões de indivíduos, a conceitos como talento e gênio, que são dificilmente relacionáveis à noção de cultura como propriedade de toda uma sociedade. A pós aproximadamente 1970, os etnomusicólogos passaram a se interessar principalmente pela mudança resultante do contato cultural. Vários pesquisadores, entre eles Margaret Kartomi, John Blacking, e eu, sugeriram tipo1ogias da mudança. Blacking propôs uma distinção entre as variações aceitáveis dentro de um sistema musical, as mudanças de um sistema de música e a adoção de um novo sistema musical por uma sociedade, relacionando todas estas possibilidades com as "variações dos padrões de interação dos usuários da música, refletidas em processos e produtos musicais". O estudo de Kartomi, publicado em 1980, apresenta um conjunto de maneiras segundo as quais as sociedades mudaram suas músicas em resposta a mudanças culturais. De modo similar, eu tentei identificar várias respostas diferentes à chegada da música ocidental em sociedades não-ocidentais, e sugeri um conceito que chamei de "energia musical" como uma constante dentro da qual as mudanças e recorrências de estilo, repertório, tecnologia e de aspectos dos componentes sociais da música são manipuladas por uma sociedade, a fim de acomodar as necessidades tanto de mudança quanto de continuidade. D esde aproximadamente 1980, apareceu na literatura etnomusicológica um grande número de trabalhos lidando com mudanças musicais de vários tipos, mas pouco foi dito sobre a mudança a partir de uma perspectiva holística. Esse período também viu o desenvolvimento de um estudo que poderia ser chamado adequadamente "etnografia musical" como a unidade típica do fazer acadêmico mais acabado. Neste caso, etnografia sugere algum tipo de abordagem holística da descrição e da interpretação de toda uma cultura musical -a vida musical de uma sociedade. Sugiro que, como componente padrão de uma etnografia como essa, que "fotografa" a cultura em um momento de sua história, teríamos afirmativas sobre o tipo de mudança que seria normal- observáve1 pelo outsider, aceitável dentro da cultura -e também a conceituação e a atitude da sociedade em relação a mudanças na música e a todos os seus componentes. Porém, gostaria também de perguntar se as idéias sobre mudança musical, e o próprio sistema de mudança em cada cultura, são determinados por valores significativos sobre estabilidade cultural e mudança e, além disso, se as interrelações entre os vários tipos de mudanças -mudanças em obras individuais, no repertório, no estilo, nos conceitos e funções - são paralelas ou se proporcionam balanço e equilíbrio. Minha ambição - não hoje, aqui, mas a longo prazo - é proporcionar uma maneira de se fazer proposições gerais sobre a forma como a música muda (música definida aqui em sentido amplo, seguindo Merriam, como consistindo em som, idéias e comportamentos) proposições estas que também se prestem à comparação intercultural. EXEMPLO 1: Músicas Blackfoot, Carnática, Persa e Ocidental. Falam os informantes M as, falando sobre proposições: acredito que a maneira de começar estas considerações é ver como sociedades diferentes vêem a mudança musical, isto é, o que elas acham que nós queremos dizer quando falamos sobre mudança musical. Permitam-me citar/parafrasear -algumas proposições de pessoas a quem solicitei informações a respeito de suas respectivas músicas. P erguntei ao meu informante Blackfoot: (lit. "Pé Preto", povo indígena da planície central da América do Norte ): "Sua música mudou muito nos últimos dez anos?" "Mudou, sim", ele disse. Todos os anos, cerca de cem novas canções chegam à reserva; algumas das músicas antigas são esquecidas, mas a música muda basicamente pela expansão do repertório. "Essas músicas novas soam diferente das antigas?" Ele não estava acostumado a refletir sobre uma pergunta como essa, mas disse basicamente: "Não, são músicas novas, e só substituem as velhas". Depois disso, ele disse que as músicas agora estão sendo cantadas por pessoas que não as cantariam antes -mulheres, por exemplo. Todo mundo passou a achar que pode cantar todas as músicas; antigamente, uma música pertencia a uma pessoa, e não havia muitas músicas que pudessem ser cantadas por todo mundo. E agora, grupos vocais -chamados Drums (palavra de língua inglesa designando tambores) -às vezes incluem mulheres. Há até alguns Drums só de mulheres. Mas as músicas soam realmente de modo diferente? Elas são construídas de modo diferente? Os tipos tradicionais de música não, meu informante e eu, como outsider, facilmente concordamos. Porém, agora não são apenas novas músicas que são incorporadas ao repertório, mas novos tipos de músicas, provenientes do mundo da música popular branca e da música de igreja. U m tempo depois, em Madras, eu disse a um pesquisador e músico do Sul da Índia que estava interessado em verificar como a música Carnática (tradição musical daquela região) estava mudando. "Não há espaço para inovações na música Carnática", reclamou ele. Mas ele não queria dizer que não se deveria mais compor músicas novas, ou que se deveria, dali por diante, passar a memorizar as improvisações. Ele falava sobre a prática interpretativa- instrumentos novos, preferências mudando para alguns ragas, aceitação de sons da música européia e do Norte da Índia entrando sutilmente nas passagens improvisatórias. F N iz a pergunta ao meu professor de música persa. "Sim, .ele disse, infelizmente estamos tendo que mudar muitas coisas, ou nossa música não sobreviverá. Mas sempre fizemos isso". ão sei até que ponto essas afirmações são significativas para caracterizar as visões de uma cultura -cultura definida como "aquilo sobre o que as pessoas de uma sociedade concordam". Mas, supondo que as afirmações são significativas, elas sugerem que culturas diferentes têm idéias diferentes sobre o que constitui mudança na música. Meu informante Blackfoot rapidamente "mirou" na expansão e mudança do repertório. Trata-se de uma descrição razoável do que aconteceu, também sob a perspectiva de um outsider. Mas sugiro que ele chegou a esta conclusão também porque antigamente a expansão do repertório era a coisa relacionada à música mais importante na vida de uma pessoa. À medida que certa pessoa ficava mais velha, ela era iniciada em um novo grupo próprio às sucessivas faixas: etárias ( e aprendia as músicas deste grupo) -uma nova faixa etária a cada quatro anos, em teoria. Caso se tratasse de um especialista ritual em curas, a pessoa tinha uma sucessão de, visões, sendo que em cada uma delas aprendia novas músicas, de maneira que o caminho de se obter sucesso na vida era expandir seu repertório?; e o da tribo também se expandia. O elogio da mudança musical na cultura dos indígenas norte-americanos atuais, feito pelo meu informante, me pareceu perfeitamente compatível com os valores das tradições tribais mais antigas. O meu colega de Madras via a música mais ou menos como os compositores de música Ocidental o fazem. Se eu tivesse lhe perguntado: "Mas, quando você diz que não há espaço para inovações, será que você quer dizer que se deve parar de compor músicas novas? Novos kritis?" Ele responderia, com certeza, que ele evidentemente não queria dizer aquilo. As pessoas compunham músicas novas o tempo todo, e não havia problema nisso enquanto elas seguissem as velhas práticas estabelecidas no século XIX. Ele não queria que os sons da música do Norte da Índia e do Ocidente, como a ornamentação da música hindu (característica daquela região) e sua ênfase excessiva na improvisação, a aura de vibrações por simpatia da cítara e do sarangi, e a harmonia da música Ocidental fossem introduzi das na música Carnática. O que ele achava do uso de instrumentos Ocidentais na música Carnática? "Essas inovações são aceitáveis se forem integradas ao modo como queremos que nossa música soe". "E as novas maneiras de se usar a música? No rádio, em modernos contextos de concerto, em ambientes seculares, ragas da manhã, da tarde ou da noite, do verão ou da primavera, todos apresentados no mesmo concerto em dezembro, às 20 horas?" A11, meu colega se orgulhava das formas como os músicos indianos e os amantes da música tinham adaptado essas novas idéias para suas tradições musicais, fazendo realmente com que fosse possível que a música existisse sem inovações significativas. O que é importante na música não mudou, e não pode mudar. Para ele, mudança teria significado alterações substanciais do estilo musical nas composições, e na prática interpretativa. EXEMPLO 2: DUAS VERSÕES DE UM KRITI (UM GÊNERO DE CANÇÃO) NA MÚSICA CARNÁTICA E T sses tipos de mudança não são bons. Para um outsider, a cultura musical de Madras mudou muito nos últimos cem anos; para meu colega de Madras, essas mudanças foram insignificantes se comparadas com as continuidades. alvez as coisas não sejam tão diferentes em um outro dos meus locais de pesquisa, o prédio de música da Universidade de Illinois, mas os valores, de certa forma, estão invertidos. Um jovem compositor amigo meu fez o seguinte comentário sobre Brahms: "Ele não é um compositor interessante; no fim das contas, ele só tentou fazer a mesma coisa que Beethoven". Naturalmente, na cultura musical acadêmica da América do Norte as novas obras são geralmente avaliadas de acordo com seu grau de inovação, e não por qualquer outro critério estético. Não preciso elaborar mais esse ponto. P ermitam-me dizer mais uma palavra sobre a percepção e a avaliação da mudança na música clássica da Pérsia, à época do tempo do meu contato direto com ela, nos anos sessenta e setenta. Se perguntados: "O que é que mudou?", os músicos e amantes da música respondem com uma lista enorme. O sistema básico -o radif -mudou, ficou mais (ou menos) padronizado. A música experimentou ênfases variadas em seções diferentes, em modos (dastgahs ) e sub-modos (gushehs ) diferentes. Foram introduzidos instrumentos novos, e seus sons tipicamente Ocidentais acompanharam sua entrada na música persa. Foram introduzidas novas teorias sobre como a música funciona. Mais importante ainda, a música começou a ser ensinada em ambientes e instituições diferentes, desde um tipo de sistema de aprendizado individual com gurus até conservatórios e departamentos universitários. Foi introduzida a notação musical. Há menos improvisação e mais material composto previamente. A entoação mudou da dominância dos três quartos de tom para a escala cromática Ocidental. Essa seria uma lista típica de coisas lembradas pelos músicos, que discutiam se essa mudança era ou não desejável, mas que em geral concordavam que ela era necessária para a preservação do sistema. P E S artindo do princípio de que meus informantes são típicos, chego à conclusão de que essas quatro culturas pensam de modo diferente sobre o que constitui a mudança musical de forma principal, enquanto possuem também um sentimento de desejo de mudança. A estabilidade e a mudança musicais constituem valores estéticos e talvez éticos. m suma: primeiro, o caráter da mudança. Para os Pés-Pretos [Blackfeet] e para meus colegas da Escola de Música, a mudança é por acréscimo, a cultura musical muda pelo acréscimo de material -músicas para o Blackfoot, elementos estilísticos para os acadêmicos. Os músicos de Teerã e de Madras viam isso como substituição. egundo, o desejo de mudança. O Blackfoot e os acadêmicos americanos achavam que isso era uma coisa basicamente boa, e que faz parte da normalidade do mundo, um sinal de que a cultura musical está viva. Para os músicos persas, era uma coisa boa, mas como estratégia defensiva, enquanto meu colega de Madras achava que era uma coisa ruim. E ssa síntese simplificadora dá um pouco uma idéia de que a mudança, olhada como um único processo abrangente, é vista por cada sociedade sob uma luz diferenciada, e poderia ser abordada sob uma perspectiva comparativa. Mas permitam-me também abordar rapidamente alguns componentes. As obras mudam S erá que uma música ou uma peça musical podem mudar? Existe alguma integridade básica que precise ser mantida para sua identidade? Novamente, nós, pesquisadores, como outsiders, podemos ter nossa própria opinião. Pode ser que decidamos que várias melodias de um repertório devem, por causa de certas similaridades, ser relacionadas geneticamente, isto é, elas remetem a um único antepassado, e, portanto, podemos declarálas variações de uma mesma obra de criação musical. Consideramos uma peça de Beethoven e os rascunhos que Beethoven fez para ela como sendo parte da mesma obra musical, embora os primeiros rascunhos pareçam ter muito pouca relação. E não nos preocupamos em saber se o cantor de folclore ou Beethoven concordam. N ormalmente, só podemos ter acesso à mudança de uma obra musical pela sua existência em formas variadas. Mas as sociedades do mundo podem ter visões diferentes da capacidade que uma obra musical tem de sofrer mudanças. Perguntei ao meu professor no Irã: "O radif básico pode mudar?" "É claro que não -ele muda, mas muito pouco, e ainda assim não é aconselhável". Mas depois ele mudou sua posição. "0 radif não pode mudar, mas a música tem que ser como o canto do rouxinol" -o grande símbolo do bom e do belo na cultura persa -"e o rouxinol nunca se repete". E os músicos persas, ao interpretarem o radif em apresentações ao vivo -nós chamaríamos provavelmente de improvisação sobre o radif, mas os persas chamam de performance do radif -deveriam tomar cada performance única. Depois, meu professor disse: "Você vê, há um balanço: o radif é sempre o mesmo; a música que é baseada nele, nunca é a mesma. Não precisamos de mudança no nosso repertório fundamental da maneira como os músicos europeus estão sempre criando novos sons musicais; mas não podemos tolerar tocar a mesma peça toda vez da mesma maneira, como se faz tanto na música européia.".Não está claro para mim até que ponto essa atitude reflete a da maioria dos músicos, logo não posso tirar muitas conclusões. Mas, se dissesse ao meu professor alguma coisa do tipo: "Veja bem, você me disse o seu ideal, mas o que é que acontece de verdade?", ele diria -estou parafraseando, evidentemente: "É claro que o radif(f muda, tem gente que quer fazer mudanças radicais no conteúdo e na organização, mas essas mudanças são feitas em nome da maior aproximação dos modelos mais antigos ou originais. De qualquer maneira, eles estão errados. E é claro que os músicos [performers] se repetem, mas, o senhor tem que admitir, Prof. Nettl, na verdade não muito, pelo menos não os bons." Ao testar isso contra os fatos, obtém-se resultados que vocês já deviam esperar: há versões diferentes do radif: o que indica que elas mudaram a partir de algum original, embora, considerando seu tamanho e complexidade, a consistência seja surpreendente; e há mais mudanças na teoria -designação, ordem de materiais - do que no conteúdo musical -tema, contornos, motivos, caráter rítmico. Na performance, cada músico tem um estilo pessoal e reconhecível, e na realidade alguns deles quase memorizam seus improvisos, mas a prática acaba se conformando muito bem com o ideal proposto pelo meu professor. EXEMPLO: SHIRINABADI (DUAS VERSÕES) P erguntei aos cantores Blackfoot se as pessoas podem mudar uma música. É claro que não foi muito fácil para eles entenderem o que eu queria dizer; o conceito de "música" [song] pode estar ligado a uma melodia, às vezes (embora raramente) a um texto verbal, a uma função (por exemplo, terceira música na sétima série do Ritual do Castor), a uma ocasião, ou a um dono. Entretanto, tentamos nos concentrar na melodia: "Bom, não, se você trocar algumas notas você vai cometer erros que poderão invalidar a música; ou talvez você vai produzir uma música diferente". Essa atitude está relacionada com outros fundamentos da cultura musical. As músicas são aprendidas -ou eram, originalmente - com espíritos sobrenaturais que aparecem em visões, nas quais elas são cantadas uma vez e têm que ser aprendidas -na visão -imediatamente; elas são vistas como objetos físicos que podem ser dados ou vendidos por inteiro. Acredito que um dos resultados desta atitude é o fato de o repertório B/Blackfoot consistir em um número amplo de músicas que soam mais ou menos iguais -é um tipo de tradição "densa". EXEMPLO 3: DUAS CANÇÕES DOS BLACKFOOT N o mundo da música clássica Ocidental, a questão sobre se uma obra pode mudar é fundamental, mas incrivelmente complexa. Basicamente, entretanto, parece haver um balanço entre a noção de que quando novas peças são compostas, elas têm que ser diferentes no conteúdo, mas também no estilo; e uma peça, uma vez composta, tem uma integridade inviolável. Se uma obra existir em duas versões, uma delas precisa ser considerada "a" realização fundamental. As performances são julgadas de acordo com a proximidade que elas parecem ter das intenções do compositor, e todo o campo das "práticas interpretativas" (performance practice) gira, entre pesquisadores e artistas, em torno da noção de integridade das obras musicais desde que foram estabeleci das pelo compositor. Os arranjos -vêm-me à mente a "Ave Maria" de Gounod baseada no prelúdio em dó maior de Bach, as fantasias de Liszt baseadas nas obras dos clássicos vienenses, e versões de música popular como as de Spike Jones -não são muito bem vistos. As mudanças que não afetam o som de uma obra -estou pensando em mudanças conceituais, como a mudança de atribuição da chamada "Sinfonia de Viena" de Beethoven para Friedrich Witt -não são aceitas imediatamente; a "Sinfonia de Viena" afundou em um buraco negro. A s várias versões das canções compostas no âmbito da música do Sul da Índia divergem muito entre si -mais do que as das composições Ocidentais. Em primeiro lugar, elas não são específicas para uma voz ou para um instrumento, e uma versão instrumental de uma canção no vina, no violino ou até no saxofone é muito mais aceitável do que uma versão para piano de "Erlkonig" -que seria, no máximo, considerada um arranjo. É claro que não sabemos quais os sons originais do kritis de Tyagaraja de 1810, por exemplo, mas as versões que se ouve agora geralmente são bem diferentes entre si. Talvez elas correspondam às variantes melódicas em uma família de melodias de canções folclóricas européias. Poderíamos atribuir isso à imprecisão da transmissão oral, embora eu não ache tão óbvio que a existência de uma tradição oral resulta automaticamente em variantes muito dispersas. De qualquer forma, o acesso disseminado a gravações e ao rádio reduziu o número de variantes da música folclórica européia. A questão é que, na música clássica do Sul da Índia, supõe'"se que os músicos desenvolvam suas próprias versões das músicas, versões que são distintas porque podem ser inseri das passagens improvisatórias. Então, enquanto de um estilo musical, se espera que ele seja recorrente, no que se refere às as unidades individuais da criação musical -as músicas -os músicos são encorajados a mudarem: o contrário da tradição Ocidental. Repertório, estilo P C reciso entrar em detalhes sobre outros domínios no âmbito da mudança musical: mudanças de repertório, estilo, conceitos e funções. Não é preciso dizer que o tempo é insuficiente, e que eu não tenho competência para tanto. Permitam-me, porém, fazer algumas considerações que podem nos aproximar de algum tipo de teoria geral. omo uma sociedade muda seu repertório, e por quê? Há os extremos: os Blackfoot consideravam a mudança do repertório uma norma. Disseram-me que um grande número de músicas novas chega à reserva todos os anos, e que as músicas antigas, apesar de em teoria serem mantidas, são na verdade esquecidas. Mas antigamente cada especialista ritual em curas também desenvolvia seu próprio repertório cerimonial através de sonhos, e, quando ele morria, suas músicas morriam com ele. Sem dúvida, um outro especialista podia conhecer o que parece soar igual àquelas músicas, mas, ao menos em teoria, elas não eram as mesmas, porque não fizeram parte do mesmo ato de criação. E ntretanto, isso é muito diferente de uma sociedade que esquece sua música antiga e que assimila uma música estrangeira, provavelmente ocidental. Encontrei um grupo de aborígines australianos, uma comunidade urbana, que dizia ter esquecido sua antiga tradição, e que estava tentando revivê-la -mas, ao invés disso, eles assimilaram como seu o repertório da música popular e religiosa branca australiana. John Blacking se referia a esse tipo de mudança como sendo o. tipo de "mudança musical" mais extremo. Mas ele deveria também ser contemplado dentro do contexto dos diferentes tipos de intercâmbio de repertório. N ão tenho material ou tempo para exemplos, mas quero levantar um tópico que toca esta questão. Se e como uma sociedade muda ou inter cambia seu repertório depende de sua maneira de identificar e definir a unidade principal de seu pensamento musical. Assim, meus conhecidos australianos disseram, por um lado: "Não conhecemos nossas antigas tradições, e essa música" (cantaram para mim o hino "The old rugged cross") "é a nossa música". Perguntei para eles se a maneira como eles cantavam o hino era diferente da maneira das pessoas brancas, e eles disseram: "Sim, ele fica diferente quando nós cantamos, temos nossa própria maneira." Não pude discernir qualquer diferença, mas sou obrigado a acreditar que eles consideram essas músicas, em certo sentido, a continuação de sua antiga música. Para alguma coisa ser a música "deles", ela não depende somente do estilo musical, mas também de uma associação específica com sua sociedade, independentemente de como a música soa. EXEMPLO 4: DIDJERIDU A mudança em um estilo musical -nas regras de composição ou nas características abstratas da música, em contraste com o conteúdo -é o que os historiadores da música mais estudam, e quando se usa o termo "mudança musical", normalmente se está querendo referir a algumas mudanças fundamentais no estilo musical -mas mudanças que não sejam grandes o suficiente para permitir que se diga que houve uma mudança no repertório, a troca de uma música por outra. Do estilo de Mozart para o de Schubert~ ou da preferência por estruturas não-métricas para estruturas métricas. Geralmente, trata-se de uma questão de estatísticas -de acordes menos dissonantes para mais dissonantes, de seções curtas de desenvolvimento para seções mais longas, de registros médios para agudos no canto dos índios da Grande Planície norte-americana. É uma questão complicada: a música mudou de Mozart para Schubert, mas até que ponto a sociedade musical pediu, ou aceitou, ou mostrou ambivalência em relação a essas mudanças? Será que outros compositores fizeram a mesma coisa? Como é que se define -essa é a questão eterna- o que é a música de uma sociedade, a música cujo estilo foi mudado? S e a mudança de estilo supõe que algo reconhecível tem que ser mantido, pode ser que isso seja um elemento simbolicamente importante, para que a associação com o grupo social seja mantida. Assim, uma vez que o estilo musical dos aborígines australianos mudou muitíssimo, a ponto de colocar velhas tradições ao lado da música popular e ocidentalizada, o uso continuado do didjeridu como símbolo e som forneceu a unidade desejada. Para que a música das terras tchecas permanecesse realmente tcheca ao longo de períodos de mudança de estilos de música erudita européia desde o século XIX até o final do século XX, alguns motivos harmônicos, mas, mais importante, uma melodia particular, o hino hussita do século XV, "Nós, que somos os guerreiros de Deus", garantiram a unidade fundamental. Logo, ao estudar a mudança estilística, devemos procurar os elementos que mantêm a unidade ao longo do tempo. Tenho a impressão de que quanto mais radicais forem as mudanças em um estilo musical, mais significativos são esses fatores, às vezes obscuros, que garantem a continuidade. EXEMPLO 5: DOIS BREVES EXCERTOS DO HINO HUSSITA Conceitos e funções H á muito tempo, adotei o modelo tripartite da música de Alan Merriam, que divide o conceito de música em três seções inter-relacionadas -som, comportamento e conceito, ou, como poderíamos colocar, as idéias sobre música, o contexto social e cultural, e a música em si. Tenho certeza de que na concepção de Merriam essas três seções do domínio musical, um dos domínios da cultura, são iguais -iguais para o analista, mas também iguais no sentido que todas elas têm um impacto na vida musical~ precisa-se de todas as três para se ter uma cultura musical. Essa é uma posição filosoficamente sustentável, mas, enquanto pode ser fácil encontrar pessoas dispostas a excluir os conceitos e comportamentos quando estão desfrutando a música, poucos estariam dispostos a excluir o som a fim de que, talvez, pudessem se concentrar em discussões sobre a filosofia da música. A maioria dos que utilizam a abordagem de Merriam a interpretam como querendo dizer que é preciso compreender as idéias e contextos para se compreender o som, mas também que todos três estão inter-relacionados de maneira igual. O meu ponto-de-vista pessoal é que, de alguma maneira, o conceito é que é primordial, e leva ao comportamento e ao som, mas não quero discutir este ponto aqui. Gostaria agora de olhar estes aspectos da música no contexto da mudança, e tentar algumas comparações. Meu tempo está acabando. Portanto, dois comentários, rapidamente: 1) Não é difícil achar exemplos de sociedades que mudaram o contexto cultural e social da música. Trata-se da mais óbvia das coisas nos últimos dois séculos: o concerto público, a disseminação através dos meios de comunicação de massa, o uso da música na preservação da etnicidade em períodos de colonização e diásporas. Trazendo de volta o conceito de equilíbrio: surpreende-me que em todas as culturas que mencionei a mudança no contexto cultural foi introduzi da especificamente (embora não exclusivamente) para preservar o som musical. É difícil imaginar o contrário. Mas, significantemente, os índios da Grande Planície não disseram: "Não podemos mais ter a Dança do Sol, então vamos simplesmente esquecer o som das músicas da Dança do Sol." Ao invés disso, eles desenvolveram a prática dos powwows [encontros rituais intertribais] a fim de - em parte - encontrar um contexto para as músicas que soam como a Dança do Sol. O povo do Sul da Índia não falou: "Não temos mais nada parecido com as cortes para financiar a música, e as pessoas não vão mais aos templos, então vamos esquecer aquela música", mas, ao invés, eles desenvolveram uma vida de concertos no estilo Ocidental com a música Carnática como meio. É uma coisa bem óbvia. 2) Será que as sociedades mudam suas idéias básicas sobre música, e será que o som musical muda, como resultado? É uma questão que merece uma argumentação detalhada, e eu só posso oferecer algumas palavras. Para começar, o aspecto da cultura Ocidental que estudei, as sociedades de música acadêmica nos Estados Unidos. O conceito fundamental de uma escola de música antes era o de que seu objetivo era preservar e manter a música clássica européia tradicional; a música não-ocidenta1, a música folclórica, e mesmo a música recente e a música erudita antiga ficavam à margem, e não eram parte do currículo. Até certo ponto, sua articulação era vista como uma espécie de poluição; e com certeza isso era verdade para a música popular e o jazz. Mas gradualmente essas outras músicas começaram a ser introduzi das como objetos de estudos acadêmicos e históricos, até que a sociedade da Escola de Música eventualmente começou a olhar para essas músicas como sendo mais próximas da igualdade, mais próximas de merecerem uma atenção igual; e essas músicas, que um dia eram inadmissíveis, também começaram a fazer parte do repertório das apresentações. As idéias sobre música realmente mudaram, à medida que os músicos de músicas vernáculas entraram na escola, e à medida que os etnomusicólogos começaram a atuar; e, seguindo esta mudança de conceito, o som da música ouvida no prédio, mas também o estilo das composições -a inclusão de conteúdo não-canônico começou a ter um papel maior -seguiram os passos do domínio do conceito. C omo as idéias sobre música dos ameríndios norte-americanos (Native Americans) mudaram? É um assunto de alta monta para ser descrito rapidamente, mas a música como parte de todos os aspectos da vida mudou para música -a música que podia ser identificada como "indígena" -como um componente de uma ressurreição da cultura tradicional, como um dispositivo para efetivar a integração da sociedade indígena, e como uma forma de confrontar outras sociedades na sociedade americana moderna. Desapareceu a idéia da música como algo que era em princípio uma maneira de ligar os humanos com o sobrenatural, logo, como algo que era ao mesmo tempo especificamente humano e não era bem parte da criatividade humana. Considerando as mudanças radicais em sua concepção, acredito que, no geral, o estilo da música indígena central sofreu mais continuidade do que mudança. Estilisticamente, porém, foi adicionado material novo e contrastante, como hinos cristãos e um grande corpus de música popular, tudo isso visto pelos índios como uma música que é, definitivamente, sua. P ara mim, no século XX os iranianos e os indianos do sul divergiram em seus conceitos de música clássica. Contudo, em ambos os casos houve uma espécie de secularização. Na Índia, a música clássica teve seu ambiente principal mudado do templo, e seus praticantes, de homens sagrados de todos os tipos, para uma cultura de concerto de 1",," estilo Ocidental e para uma mercadoria (commodity). Também no Irã, a música deslocou-se para o componente secular de estilo ocidental da cultura, mas não deixou de ser sagrada; ao invés disso, ela deixou de ser vista pelo devoto como um aspecto da vida problemático, e talvez perigoso. Nas duas culturas, as tradições clássicas pareciam estar bem enraizadas, mas eram vistas como estando em perigo, e, nos dois casos, as idéias sobre música, o que ela era, como deveria ser apresentada, o que ela faria para a sociedade, se ela era socialmente aceitável, tudo isso foi mudado a fim de que a música como era conhecida sobrevivesse. Mas sobrevivesse como? No Irã, aceitando alguns dos valores centrais da música ocidental, como a harmonia e a melodia de base harmônica, e incorporando-os de maneira que eles fossem claramente ouvidos; em Madras, tomando alguns elementos nãocentrais da música Ocidental e incorporando-os sem fazê-los sobressair. Na Índia, a música era sagrada e era um valor central da cultura, e resistia-se à mudança; no Irã xiita, a música tinha um papel menos central, portanto era mais diretamente passível de mudança, tanto na concepção quanto no estilo. Mas, em ambos os-casos, o domínio das idéias sobre música foi estabelecido em tomo do som musical, para protegê-lo. As pessoas sacrificaram as idéias tradicionais sobre música afim de preservar os aspectos importantes do seu estilo musical. Na música clássica Ocidental, contudo, as idéias fundamentais sobre música na verdade não mudaram desde Beethoven, e o estilo mudou muitíssimo. Tenho a impressão de que a observação do balanço entre mudança e estabilidade em vários domínios da cultura musical -a obra, o repertório, o estilo musical e os conceitos musicais -pode ser uma abordagem útil para o estudo comparativo. Assim, meus informantes provavelmente conseguiram dar caracterizações boas de suas culturas musicais quando meu informante de Madras vociferou, "Não há espaço para mudanças na música Carnática!", quando meu professor iraniano afirmou, "No Irã, sempre mudamos nossa música para que ela sobrevivesse", e quando Camille Saint-Saens disse a um compositor (é o que contam), "Na sua música, tem muita coisa que é boa e nova, mas o que é novo não é bom, e o que é bom não é novo". Mas a questão da mudança é claramente objeto de debate em todas as culturas com as quais tive contato. Acredito que os etnomusicólogos estão caminhando para o abandono da antiga visão da música como algo estável desde sua concepção a menos que venha a ser induzi da à reação, e que mudança e processo são o estado normal das coisas e alinha de base a partir da qual devemos prosseguir.