EDITORA SHU ANTOLOGIA DE TEXTOS HINDUS LOUIS RENOU Rio de Janeiro, 2002 NOTAS SOBRE ESTA EDIÇÃO O presente texto é uma re-edição traduzida do livro Antologia de textos Hindus do Prof. Louis Renou. Uma versão deste mesmo livro foi publicada, em 1969, pela Jorge Zahar Editora, do Rio de Janeiro, com o título de Hinduismo. A grafia dos nomes indianos tenta acompanhar a pronuncia sonora das palavras o mais próximo possível de nossa língua. Esperamos agradar a vocês, leitoras e leitores. atenciosamente Editora Shu TEXTO I. CARACTERÍSTICAS GERAIS - HINDUÍSMO INICIALMENTE, Seria possível tentar Uma definição geográfica do hinduísmo, reconhecendo nele a totalidade de formas religiosas originadas e desenvolvidas no solo indiano. Seria preciso então excluir o budismo, que em tempos antigos se espalhou por grande parte do Hindustão e continua ainda hoje bem vivo em certas regiões fronteiriças do continente. Seria preciso excluir também o jainismo, com cerca de um milhão de seguidores hoje, embora no passado, pelo menos relativamente, se mostrasse mais disseminado. Outros grupos religiosos teriam igualmente de ser excluídos, tais como seis milhões de cristãos, judeus e zoroastrianos ou masdeístas, e cerca de vinte e cinco milhões de fetichistas e animistas, que participam em certas formas elementares do hinduísmo, em diversos graus. Com relação à massa da população indiana, atualmente com mais ou menos quatrocentos milhões em número, tais grupos são praticamente negligíveis, tanto do ponto de vista estatístico quanto do cultural. Já não sucede o mesmo com o islamismo, entretanto, pois a partir do século XI o mesmo retirou milhões de pessoas da comunidade hindu e ainda hoje, a despeito da criação do Paquistão como Estado muçulmano dentro do subcontinente, ele apresenta cerca de 35 milhões de seguidores na União Indiana. Quanto ao siquismo, ou religião dos siques, pode ser considerado um movimento religioso nos limites extremos do hinduísmo, não sendo tomado como heresia. Confinar o hinduísmo ao perímetro da Índia, entretanto, seria omitir o caráter missionário dessa religião no passado. Na chamada "hinduização" do sudeste da Ásia, as influências religiosas indianas se combinaram a elementos indígenas e, com o correr do tempo, foram assimiladas pelo budismo, islamismo ou alguma outra forma de religião nacional. Assim, o hinduísmo apresentou influência profunda, principalmente no Camboja, Champa e Bali antigas. Devemos lembrar também que existem hindus no Ceilão (entre a população drávida), no Nepal, no Paquistão (em número inestimável) e em centros de população indiana espalhados por todo o mundo. É possível definir o hinduismo por seus elementos? Na verdade, teremos de fazê-lo, mas tentando achar uma definição unificadora corremos o risco de generalizar a tal ponto que deixaremos de abrigar a diversidade infinita de formas que o constituem. O alicerce primitivo do hinduismo, em parte, foi de origem indo-européia; pelo menos sua estrutura era de tal natureza, enquanto o teor se mostrava em grande parte indígena ou então sofreu modificações em cada lugar. As tribos arianas que invadiram a Índia durante o segundo milênio antes da era cristã trouxeram consigo um corpo de crença religiosa já bem organizada e que sobreviveu no hinduísmo clássico à custa de muitas modificações. Essa religião "ariana" (isto é, indo-européia em solo indiano) já fora filtrada durante o chamado período intermediário indo-iraniano. No final desse período é que teve lugar uma separação entre a religião original do Irã (pré-zoroastriana) e o que se iria tomar a religião védica na Índia do noroeste. A esse alicerce antigo juntou-se uma sucessão de influências que tornou o hinduísmo uma religião bem diferente daquela dos invasores arianos. A maior parte desses novos desenvolvimentos teve lugar durante a era histórica e seus estágios principais foram o aparecimento das grandes especulações filosóficas e a fixação do Smriti (no inicio da era cristã), a primeira fragmentação em seitas (primeiro e segundo séculos da era cristã), o aparecimento dos bhakti (cerca de 600-800 A. D.) e o tantrismo (a partir de 800 A. D.). A conformação principal de todos esses movimentos, no entanto, já existia na altura do período védico. Também é possível e mesmo provável que o hinduísmo tenha assimilado algumas instituições pré-arianas, ou pelo menos não-arianas, herdadas de cultos locais e modificadas com os dados indianos primitivos como base. A civilização pré-histórica da bacia do. Indo (Mohenjo-Daro e Harapa), que data do início do segundo milênio antes de Cristo, atesta algumas das características pelas quais podemos identificar um protohinduísmo - uma imagem da Deusa Mãe, um deus chifrudo na posição de um iogue e emblemas rituais de caráter vegetal ou animal. O hinduísmo é realmente uma religião rica e complexa. Nenhuma iniciativa de um fundador, ou dogma, ou reforma, impôs restrições a seu domínio; muito ao contrário, as contribuições dos séculos se sobrepuseram, sem jamais desgastar as camadas anteriores de desenvolvimento. De acordo com os fenômenos que se examinem, na verdade, o hinduísmo pode surgir ou como uma religião extrovertida de espetáculo, mitologia abundante e prática congregantes ou uma religião profundamente interiorizada, ou introvertida. A primeira categoria pertencem as atividades das seitas, o movimento bhakti e a adoração à vaca, onde alguns vêem o símbolo concreto do hinduísmo. Poderíamos também incluir nisso o princípio da nãoviolência, pelo menos em sua aplicação social. Ao ponto de vista do hinduísmo como uma vida interior pertencem as trilhas do progresso espiritual, a busca da libertação, a tendência à renúncia e finalmente a concentração intensa em problemas que, em outras culturas, se acham mais freqüentemente reservados aos teólogos e filósofos. O hinduísmo, eminentemente popular em suas práticas e manifestações externas, também é essencialmente uma religião dos cultos e sábios, e não pode ser compreendido se os Vedanta e Samkhya não tiveram sido entendidos ou se, desde o início, não houver uma idéia a respeito do sistema imenso de simbolismo que preside e reúne todo o pensamento indiano. Finalmente, o hinduísmo caracteriza a sociedade como um todo. O sistema de castas com seus diversos "estágios" de existência é parte dele e a vida é encarada como um rito. Não há qualquer linha divisória absoluta entre o sagrado e o profano. Na verdade, não há termo hindu correspondente ao que chamamos "religião". Existem "atitudes" com relação à vida espiritual e existe o dharma ou "manutenção" (no caminho certo), ao mesmo tempo norma ou lei, virtude e ação meritória, a ordem das coisas transformada em obrigação moral - principio este que governa todas as manifestações da vida indiana. Pode-se perguntar quando o hinduismo começou, mas a resposta terá de ser indireta - o hinduismo começou na época em que a atividade original do ritual védico chegou a seu fim, quando se perdeu a antiga estrutura védica. Talvez possamos datar essa ocorrência entre os séculos VI e IV antes de Cristo e dessa perspectiva um texto ou manifestação religiosa se diz hindu enquanto não revela qualquer traço de divisão em escolas, ou das antigas configurações litúrgicas. Imediatamente antes de nossa era tal se mostrava a posição dos Épicos, da literatura ético-jurídica e dos Aforismos (Sutras) que serviram de base para grandes especulações. A situação não se mostra tão clara, entretanto, pois exatamente como existia uma subcorrente de hinduísmo no vedismo, encontramos sobrevivências védicas no hinduísmo clássico. O nome de "bramanismo" às vezes é dado à mais antiga das formas eruditas do hinduísmo, mas levando-se tudo em conta é preferível encarar o mesmo como um todo, sem procurar subdivisões superficiais. Nessa interpretação, o vedismo é considerado a mais antiga forma de hinduismo e é certo que o vedismo não pode ser negligenciado, porquanto tudo o que se segue mostra-se inexplicável sem ele. Se procurarmos uma caracterização global do hinduísmo, poderemos (como recentemente se sugeriu) considerá-lo o próprio tipo de uma religião de renúncia. Decerto poderia existir sem aqueles que renunciam, mas surgiria singularmente empobrecido em tal caso e se mostraria como que privado de seu sêlo. Muitos dos elementos da religião parecem ter sido criados para o homem que se afastou da vida mundana, ou foram mais tarde modificados para fazer frente às suas necessidades. Isso poderia explicar a evolução da teoria do karman (carma) e da transmigração e talvez também o desenvolvimento do bhakti e (por uma espécie de inversão) do tantrismo. Num plano geral, podemos considerar efeitos da renúncia tanto o pessimismo quanto a tendência escapista indianos, que podem chegar ao ponto de rejeitar as exigências elementares da religião. Tudo é questão do próprio indivíduo. O hinduísmo não conhece a oposição encontrada no budismo entre um meio monástico bem desenvolvido e um ambiente secular. Por conseqüência, mesmo quando pertence a um grupo, um hindu se considera o responsável único por sua própria salvação. 2. VEDISMO Já se afirmou que o hinduísmo voltou suas costas as crenças védicas; se isso for verdade, será igualmente razoável afirmar ser ele uma continuação dos Vedas, pois não só estes ofereceram em estado embrionário a maioria das características desenvolvidas com o tempo, como também a mitologia indiana clássica dificilmente seria assimilável sem os Vedas, onde os ritos reservados, bem como grande parte da especulação hindu, têm sua fonte. A religião védica consistia antes do mais de uma mitologia muito desenvolvida e seu panteão não apresentava um soberano absoluto, distribuindo os deuses de acordo com as regiões ocupadas pelos mesmos, conforme com suas relações quanto aos ritos e de acordo com as funções que representavam (deuses ético-religiosos, deuses da guerra, deuses da "economia"). A tendência geral era a de atribuir importância máxima ao deus que estava sendo invocado, conferindo ao mesmo aqueles atributos que pertenciam comumente a outros deuses. Ainda assim havia deuses que ocupavam permanentemente um lugar de honra e duradouro. Primeiro entre estes estava Indra (e seus associados, notadamente os deuses gêmeos Ashvins). Indra era o executante de atos guerreiros, que repelira a treva, matara o demônio e protegera os árias, sendo o deus "ária" par excellence. Em seguida, e entre os deuses principais, vinham duas deidades complementares personificando o sacrifício: Agni, deus do fogo com suas formas diversas, e Soma, deus das plantas e das bebidas espirituosas. Orações eram feitas aos deuses, a quem se pediam bens materiais e uma vida longa. Quem orava, entretanto, sabia que em meio aos deuses e acima deles existiam forças abstratas em plena atividade, destacando"se entre as mesmas Rita, a força da ordem que correlacionava o cósmico e o humano. O significado profundo da oração védica era precisamente o de manter a ordem, observar cuidadosamente o curso normal dos fenômenos naturais, de modo que imitando essas configurações naturais o curso do ritual pudesse garantir a perenidade. Essa mitologia e suas especulações básicas são conhecidas através do Rig-veda, um texto difícil que contém hinos dirigidos aos deuses. Esse texto, que pode ser datado da metade do segundo milênio antes de Cristo, é o mais antigo documento li- terário da Índia e um dos mais antigos do mundo indo-europeu, estando escrito em sânscrito bem arcaico. Textos mais recentes do que o Rig-veda revelam outros aspectos da religião. A mágica, ou mais corretamente dito, as orações propiciatórias, são o tema de poemas contidos no Atharva-veda, texto provavelmente um pouco mais recente do que o Rig-veda e que contém também os traços mais antigos da especulação cosmogônica. Até mesmo na porção comparativamente recente do Rig-veda, no entanto, podemos encontrar o tema do homem primitivo, um tipo de gigante cósmico imolado por ocasião do Primeiro Sacrifício. De seus membros se originaram a espécie humana e a animal, as noções e as coisas. É este o arquétipo dos mitos indianos da criação. Outras coleções contêm fórmulas a recitar durante as cerimônias e juntamente com as mesmas (muitas vezes tomadas de empréstimo aos versos do Rig-veda) há explicações e comentários a esclarecer seu uso. Tais comentários são o assunto principal dos textos chamados Brahmanas, dos quais o mais importante é o Brahmana das Cem Trilhas (Shatapatha Brahmana). Além disso, há fórmulas e comentários adaptados a práticas mais secretas, as que têm lugar no silêncio da floresta, sendo nelas que encontramos o início daquele ensinamento esotérico que iria mais tarde desempenhar papel tão importante na Índia. Também nelas achamos a trilha que leva ao mundo dos que se devotam à Renúncia. A maioria dos textos iniciados com o Rig-veda, no entan- to, foi composta com vista ao sacrifício, que se achava no centro da religião védica e formado de uma sucessão de oblações e orações, fixadas de acordo com uma liturgia rigorosa e no qual se chegava à culminação quando a oferta era posta no fogo. O objetivo do ritual era o de entrar em comunicação com o mundo divino e assim adquirir certas vantagens que a iniciativa profana não podia desfrutar. As vezes vegetal, de outras animal, a oferenda consistia principalmente da planta Soma, da qual se extrai uma bebida com qualidades inebriantes. Não existiam orações desligadas do culto, nem tampouco templos ou ídolos, mas um corpo sacerdotal remunerado que, durante a cerimônia, se punha à disposição do patrocinador e de sua mulher enquanto os mesmos participassem no cerimonial. O cenário variava muito, indo de uma simples oblação diària no fogo (Agnihotra) até as sessões sacrificadas em que o rei comemorava suas vitórias de modo majestoso (Ashvamedha, sacrifício de cavalo), ou era ungido por ocasião de sua coroação (Rajasuya). Os ritos privados eram executados pelo chefe da família, com uma liturgia restrita ao círculo doméstico. - A descrição de todas essas práticas acha se nos Sutras, textos de estilo aforismático (solene ou privado, rigorosamente religioso ou semijurídico). Esses textos, como o todo da literatura védica, são propriedade de escolas especiais, cada qual com suas próprias práticas, filiando-se a partes diferentes do cânone antigo. Só nos é possível formar uma idéia imperfeita de uma religião assim, cujo passado se estende pelos séculos sem qual- quer indicação clara de uma evolução. Certos aspectos da religião, especialmente o seu contexto sócio-cultural, continuam obscuros. Embora a mesma não despreze o ritual interior ou ascetismo, é primordialmente uma religião ritualista em que o crente define a fé como sendo a convicção que possui a respeito da precisão e efetividade do rito. A obrigação moral requer a prática de bons atos, de dar ("Dar para receber"). Muitos dos valores primitivos da moderação e da troca de bens foram conservados na religião védica. Quanto aos objetivos finais e à vida futura, não existe qualquer perspectiva - durante o período dos Brahmanas os homens imploram para que não "morram outra vez". Próximo ao fim do que geralmente se chama o período védico, isto é, por volta do século V ou IV antes de Cristo, surgiram textos novos, os chamados Upanichades, ou "Equivalências". Sem abandonar os antigos modos de pensamento, êsses textos revelam'um tipo de gnosticismo que tenta explicar através de parábolas ser o atman ou alma individual idêntico ao brahman ou alma universal. "Tu és Aquilo", o que corresponde a dizer: "Tu, o individuo, és idêntico ao princípio primordial de toda as coisas"'. 'Esta a verdade suprema que leva à Libertação. Daí em diante, o mundo dos deuses, a aparelhagem externa do culto já bastante reduzida nos Brahmanas, se inclinou à desintegração. Descobrimos um ritualismo alegórico, uma forma religiosa de um tipo introspectivo, forma essa que perdurou num segundo plano de manifestações religiosas posteriores na Índia e nutriu toda uma corrente de hinduísmo. Em sua origem, foi uma espécie de vanguarda entre os círculos dos ritualistas profissionais. Depois dos Upanichades floresceu um hinduismo popular e repentinamente encontramos uma religião aberta a todas as tendências, em muitos aspectos mais próxima do vedismo primitivo com sua mitologia luxuriante do que do vedismo semi-esotérico dos Aranyakas e dos Upanichades. 3. TEXTOS DO HINDUÍSMO Desde os últimos séculos antes da era cristã, os textos contendo o pensamento religioso surgiram, um após outro. Por bastante tempo foram escritos em uma só língua, o sânscrito, mas um sânscrito que gradualmente se modificava e simplificava, em comparação à língua védica mais antiga. Durante o primeiro milênio da era cristã, o tâmil - língua da família drávida - foi utilizado, vindo o prácrito (Prakrit) em plano secundário. Durante o segundo milênio, outras línguas drávidas e os dialetos neo-indianos originados no sânscrito fizeram seu aparecimento e, finalmente, nos últimos 150 anos, o idioma inglês foi acrescentado aos demais. Em comparação à extraordinaria diversidade de línguas utilizadas para a expressão do budismo, o hinduismo apresenta uma expansão lingüística relativamente moderada. Os textos formam a base primaria de nosso conhecimento da historia do hinduismo. Como fonte secundária, temos de quando em vez os registros deixados por viajantes estrangeiros, cujas observações de primeira mão sobre as práticas religiosas e sua atração sobre os sentimentos íntimos dos crentes servem para renovar nosso conhecimento dos fatos religiosos. Quanto aos períodos antigos, temos de levar em conta os dados arqueológicos, colunas com inscrições ou lavragens, pinturas em murais, santuários subterrâneos ou a céu aberto, ou as cidades templos. A iconografia, abundante a partir do século VII ou VIII da era cristã, suplementa o que a literatura tem a nos ensinar acerca dos detalhes das histórias míticas e o simbolismo dos atos e atributos divinos. No sudeste da Ásia, notadamente em Angkor, a estatuária hindu pode ser encontrada e nela revelam-se às vezes novos motivos religiosos. Embora certos Upanichades revelem exatamente um inicio discreto para o hinduísmo, a erupção maciça da religião se formou pelos Grandes Épicos, acima de todos pelo Mahabharata, texto que, pelo menos em seu conteúdo, certamente antecede a era cristã. Trata se de um tipo de Ilíada desequilibrada, onde as narrativas bélicas se misturam a cenas mitológicas e préleções morais. Em seu texto são tratados todos os valores mais profundos de hinduísmo no plano ético e jurídico, os deveres do indivíduo em si próprio e em sua relação quanto à sociedade. Seu ponto culminante é a Canção Celeste (Bhagavad-gita), a que se chamou o Evangelho do krishnaísmo. Trata se de um tipo de sermão destinado ao herói Arjuna por Krishna, seu companheiro de armas e no qual o último se revela como não sendo outro senão o Ser Supremo, guardião e garantidor de todos os atos humanos, originador daqueles métodos que con- duzem à compreensão espiritual. Os Épicos encontram sua continuação natural nos Puranas ou "Antiguidades", que são compilações enormes lidando com práticas religiosas, mitologia e cosmogonia misturado a esses elementos rigorosamente religiosos, há um número de assuntos mais seculares. Os Puranas são uma fonte principal de hinduismo semipopular e em contraste aos Épicos eles foram diversificados de acordo com as seitas, ou pelo menos de acordo com certa ordem mitico-ritual que serviu para estruturar as seitas posteriores. Em tempos mais recentes, suas contrapartidas são os Samhitas, de caráter vaishnavita, os Agamas, bastante shaivitas, e os Tantras que, quando não mantêm seu significado genérico de "Livros Sagrados ou ritualistas", significam mais especificamente aquêles textos relacionados aos chamados aspectos tântricos do hinduismo. Um resultado do caráter abarcante dos fenômenos religiosos indianos é. que certos textos que classificaríamos entre belles-lettres ou literatura didática constituem de certo poeto de vista um testemunho direto do hinduísmo. Entre as obras didáticas devemos reservar um lugar separado para a filosofia. Aquilo a que muito incorretamente se chama sistemas filosóficos foi considerado pelos indianos como trilhas diferentes para a vida mística, ou atitudes diferentes quanto à Libertação, mesmo quando se iniciam com postulados racionais de lógica, evolucionismo determinista ou interpretações racionais dos textos sagrados. Do ponto de vista que nos interessa aqui, o mais importante desses Darshanas ou "visões" são o Vedanta, que tenta encontrar uma explicação da coexistência do Absoluto e do mundo fenomenal, e o Ioga que descreve o caminho para chegar se ao controle místico. Esses textos básicos levaram à criação de uma vasta literatura que se caracteriza pelo predomínio dos "comentários", alguns dos quais, como os relacionados ao Gita e aos Upanichades "védicos", foram compilados durante o período contemporâneo. A língua tâmil entrou em cena principalmente com os Nayanars e seus hinos shaivitas do século VII e com os Alvars que compuseram mais ou menos ao mesmo tempo um "Veda tâmil", orientado no sentido do vixnuísmo. No tâmil, como em outras línguas do sul, as adaptações das palavras em sânscrito foram numerosas. Encontramos um novo destaque, entretanto, com Vemana, que no século XV advoga em seus poemas uma religião despida de práticas exteriores. Entre as literaturas que se desenvolveram em sânscrito, encontramos imitações das fontes antigas e às vezes há também sinais de um espírito novo. Gradualmente desenvolveu-se uma literatura independente que se mostrava popular em estilo e consistia principalmente de hinos, bem como de uma coleção de sermões. Os maiores nomes, neste particular, são tirados do domínio lingüístico do hindi - Kabir, que no século XV introduziu uma visão mística bastante pessoal, e Tulsidas (séculos XVI e XVII), que se utilizou livremente do antigo Épico Sânscrito e se tornou o apóstolo de devoção a Rama. O renascimento do hinduísmo durante o século XIX causou um aumento tremendo no número de obras didáticas escritas em inglês. Durante o mesmo período houve uma continuação da prática tradicional de compor orações, literatura gnômica ou fabular, em hindi, bengali, marata e finalmente em sânscrito de novo. 4. PRÁTICAS E CRENÇAS No sentido rigoroso do termo, o ritual perdeu sua importância depois do período védico. As cerimônias antigas caíram em desuso, sendo seus reflexos modernos apenas demonstrações arqueológicas. Por outro lado, as práticas exteriores ganharam importância e houve também um rompimento notável da relação entre mito e ritual, que durante o período antigo tinham estado Intimamente associados. Uma ampla diversidade de modos de adorar reflete a diversidade de atitude quanto ao Divino. Desconhecido em períodos antigos, o culto do ídolo conquistou impulso com o desenvolvimento da iconografia monumental. Modelar o ídolo de um deus, instalá-lo no santuário, trata-lo como "animado", ungi-lo, tudo isso se tornou ritos principais. A adoração, ou puja, é o ponto central da atividade religiosa e o rito consiste em receber o deus como um hóspede distinto. Dar banho no deus, vesti-lo, adorná-lo e aplicar-lhe perfumes, alimentá-lo, pôr flores nele e adora-lo com fogo móvel acompanhado de música e canções, eis alguns dos traços essenciais do rito. O ídolo é tirado do templo numa procissão que proporciona a ocasião para cenas onde a mitologia se mistura a temas de folclore. Realizando-se no templo, esse tipo de cerimônia é público e não acarreta qualquer obrigação por parte do indivíduo. Para alguns;que talvez constituam a maioria, o ídolo é o próprio deus, e a isso podemos classificar de idolatria. Para outros, os valores simbólicos são verdadeiros e o ídolo nada mais é do que for em qualquer forma de culto onde o sagrado se encarne em alguma forma concreta. Descendente do santuário familiar dos dias antigos, o templo pode variar entre o santuário modesto de aldeia com seus ídolos grosseiros e as cidades religiosas que contêm em seus muros todo um ciclo de atividades e os templos de montanha, que visam reproduzir o monte cósmico Meru, pivô do mundo. O templo é dedicado a um deus determinado, cuja imagem é acompanhada por um atributo particular que se pode tomar autônomo. No contexto shaivita, por exemplo, êsse atributo muitas vêzes é um linga, um emblema fálico, que talvez tenha uma origem não-ariana e distante. O linga é uma coluna curta e de pedra negra, lisa ou lavrada, em tôrno da qual se executa o puja de caráter votivo. A existência do templo pressupõe um clero permanente, cuja posição na hierarquia social mostra-se em geral bem inferior. Em pontos dispersos da História podemos encontrar indicações de um sistema de devadasis (cortesãs e dançarinas sa- gradas) ligado ao templo. Existe também um corpo de sacerdotes domésticos, permanente ou temporariamente ligado a uma família, seja como mestres espirituais (gurus) ou seculares (acarya) ou ainda como astrólogos. Bem diferente é o Samnyasin, ou "indivíduo que renuncia" e se afasta da vida social, não participando nas práticas religiosas, tendo escolhido a trilha do desligamento desde a mocidade ou se entregando à trilha "desapaixonada" (como prescreviam os textos antigos) depois de ter passado por outros estágios da vida. Chama-se Sadhu se independente, Svamin se pertence a alguma ordem, Yogin (iogue) se pratica o Ioga. O ídolo não é necessário para a representação de um deus. Já mencionamos a existência do linga e, além disso, há muitos outros emblemas não-figurativos, tais como as configurações geométricas mais ou menos complexas (yantra ou mandala) usadas primordialmente no tantrismo. O adorador, pelo menos nas formas mais complexas de culto, se submete a uma preparação considerável, com abluções preliminares, restrições alimentares que se podem estender ao jejum, posições corporais e gestos dos dedos (mudra), contrôle respiratório, "posse" (nyasa) pelo deus do corpo do adorador, etc. As noções quanto ao puro e impuro mostram-se evidentes em tôda parte e talvez a pureza seja a senha principal do hinduísmo, com suas práticas religiosas de purificação se apresentando numa diversificação infinita. A oração consiste na recitação silenciosa (japa) de fórmulas sagradas (mantra) repetidas indefinidamente. Os mantras se compõem de uma a cem ou mais sílabas, com o que encontramos um preito à palavra como forma, pois muitas das sílabas (notadamente nas práticas religiosas do tantrismo não têm significado, enquanto outras consistem numa simples menção do nome divino, como em "Ram(a)! Ram(a)" Esse tipo de oração é um auxílio à concentração mental e acredita-se que produza os efeitos desejados de proteção, cumprimento de promessa ou virtude expiatória. Outros elementos de adoração pessoal são o estudo das Escrituras e, acima de tudo, a meditação. Fortalecida pelos exercícios em Ioga, a meditação pode levar a um paroxismo tamanho de tensão que o exercitante poderá atingir o alvo final proposto em todo o pensamento religioso indiano - um estado de união com o Absoluto. Essas práticas religiosas realizadas no lar são as únicas relativamente obrigatórias. A oração três vezes por dia (de manhã, ao meio-dia e à noite é acompanhada por oferendas aos deuses, aos sábios e aos ancestrais. Na prática, tais atividades religiosas são apreciavelmente encurtadas. De acôrdo com os periodos, cerimônias mais complexas são realizadas em memória dos ancestrais (de três gerações diretas por parte masculina e feminina com oferendas de água e gergelim e cujo objetivo é o de transformar uma alma morta indiferente, ou mesmo perniciosa, em outra alma, útil e benfeitora. Os "sacramentos" (samskara constituem outra série de ritos pessoais. É principalmente nêles que encontramos os elementos sobreviventes do período védico. Em tempos modernos, os sacramentos costumeiros dizem respeito ao nascimento, iniciação na vida bramânica, casamento e morte. Visto que um menino pertence aos "nascidos duas vézes", a iniciação marca sua entrada na sociedade hindu e essa cerimônia, como a maioria das outras, consiste da adoração do fogo de um modo semelhante à do puja. Os ritos agrícolas, coletivos e comemorativos são numerosos e ainda mais são os "votos" (vrata, restrições ou tipos de atividade aos quais um individuo se submete livremente em um determinado momento para conseguir certo mérito religioso ou atingir certo objetivo que tenha em mira. Entre as celebrações coletivas realizadas no templo ou em suas proximidades, podemos mencionar as festas ou festivais (utsava), como a adoração da deusa Durga, que dura nove dias no mês de outubro, o Festival das Luzes (Divali, que ocorre mais ou menos na mesma época, Holi, o Festival Primaveril em honra a Krishna. Desde tempos imemoriais as multidões de peregrinos vindos de um extremo a outro da Índia se reúnem em certos lugares privilegiados (sendo possível mesmo traçar um mapa dos lugares e rotas, com sua importância relativa. O rio Ganges é. considerado o lugar mais sagrado, por conter em si a virtude de numerosos tirthas, ou "riachos", que cristalizam as manifestações procuradas. No rio Ganges é principalmente Benares o que atrai a atenção dos devotos; mas como em tôdas as demais partes a imaginação pode entrar em cena nisso, e a qualquer curso de água se poderá chamar Ganges, ainda que seu volume caiba em um garrafão, sendo isso o bastante às vêzes para proporcionar o mesmo benefício que seria auferido de uma longa peregrinação. As próprias peregrinações podem ser ocasionadas por motivos pessoais, pela preocupação em cumprir um voto, ou poderão surgir de um dos aniversários de grandes comemorações de que o calendário indiano se acha entremeado. É quase desnecessário relembrar que o hinduísmo inclui certos elementos tipicos de um culto popular, como a adoração de árvores, serpentes e "gênios" especiais (que muitas vêzes são de natureza demoníaca, como no caso da deusa da varíola. Também a mágica é amplamente praticada, assim como a astrologia e outras formas da mancias (adivinhações). Até aqui descrevemos brevemente o culto hindu de origem védica que inclui as práticas religiosas de um tipo relativamente simples e aberto. Diferente disso, sendo ao mesmo tempo mais democrático e mais fechado, é o culto tântrico, mais democrático porque em princípio se acha aberto a todos os homens e mulheres de qualquer classe social, e mais fechado porque implica uma iniciação, ou melhor, diversos graus de iniciação classificados de acôrdo com a capacitação do postulante. É aqui, acima de tudo, que o auxilio de um guru ou mestre espiritual se toma necessário. A adoração do ídolo é executada de acôrdo com um processo complexo, e os substitutos e símbolos se mos- tram extremamente complicados. Em sua forma extrema, o chamado "tantrismo esquerdista" ou "tantrismo da mão esquerda", evidentemente reservado a uma minoria de seguidores, observamos a inversão da adoração normal e dos princípios éticos comuns em favor de certos objetivos e práticas incomuns - vinho, carne e relações sexuais livres. O fato de que tais objetivos sejam "adorados" é demonstração de que se ultrapassou o estágio em que os mesmos seriam considerados pecaminosos. Sob certas formas, o tantrismo é a antítese da religião, senso também um fermento excepcional para estimular o misticismo. A prática da Ioga é intensificada e subdividida em Ioga de Fórmulas, Ioga de Posições, Ioga de "Absorção" e "Ioga Real", ficando estas duas últimas formas reservadas àqueles que transcenderam a trilha da ação e esperam conseguir uma realização imediata do eu. A crença religiosa está enraizada no meio divino, os atributos e símbolos dos deuses. O hinduísmo é fundamentalmente politeísta, não só no nível exotérico, mas também na ordem especulativa, onde o papel do concreto e do deus figurativo jamais é abolido. Não resta dúvida de que existem variações nesse sentimento por uma pluralidade de deuses e os filósofos o combinam (em outro plano) a uma crença em um princípio supremo, às vêzes personificado como Senhor (Ishvara), às vêzes concebido como uma deidade neutra ou um Absoluto impessoal (Brahman). Esse princípio absoluto pode em si próprio ser composto de uma "forma qualificada" (saguna) às vêzes considerada como de importância primordial, enquanto de outras é reduzida ao nível de "conhecimento inferior". O crente comum não é versado na noção de unidade divina, que pertence mais à esfera dos filó- sofos e não se representa em qualquer culto direto. Para os não-filósofos, a diversidade surge como normal. Desta diversidade o crente seleciona o deus de sua escolha (ishtadevata), que implica ter êle reconhecido a importância de outras formas divinas, tais como os casais divinos ou parêdres. Tal escolha é concomitante à hierarquização que pode ser observada no dharma sobre os planos social, moral ou ritualista. O número de deuses é considerável e na verdade a Índia poderia ser considerada como o divino, terra com tendência inegável ao panteísmo ou, como se sugeriu, ao pan-en-teísmo. Ainda assim, tomaram-se necessárias distinções principais e as mesmas são reconhecidas. Um tipo de trindade, por exemplo, é reconhecido em Brama, Vixnu e Xiva. Brama (correlativo mascúlino do neutro brahman) é o princípio da criação no universo, Vixnu o da preservação e Xiva o da destruição. Do ponto de vista da adoração, no entanto, tal distinção não possui um significado preciso. Brama é um deus que não tem muitos seguidores e raras vêzes um templo lhe foi dedicado ou uma seita fundada em seu nome. Vixnu e Xiva, por outro lado, são deidades de primeira ordem. Védicos em algumas de suas características fundamentais, Vixnu e Xiva foram desenvolvidos por modificação sucessiva até se tomarem suficientemente despidos de seus aspectos personalizados, de modo que com algum motivo foram às vêzes chamados "princípios sociais". Com Vixnu, o deus solar de antigamente, foi combinada a forma de Vasudeva, um tipo de herói, e de Narayana, um deus cósmico que se apóia na serpente Shesha. Mais tarde aparece outro aspecto de Vixnu, no qual surge como Krishna, chefe de um clã e herói de inúmeras proezas. A adoração de Krishna parece ter dado estímulo ao movimento bhakti. A Vixnu acham-se ligados os avataras, encamações do deus na terra, em períodos diferentes e sob o disfarce de um animal ou ser humano. Tais descidas periódicas do deus à terra destinam-se a salvar nosso mundo de algum grande perigo. A essência da mitologia hindu foi conservada nas narrativas dêsses avataras, de número classicamente fixado em dez: peixe, crocodilo, javali, homem-leão, anão, Rama-com-machado, Rama (o herói épico de significado religioso tremendo), Krishna, o Buda, e finalmente Kalkin, ou "a encamação vindoura". A adoração de Vixnu revela os aspectos agradáveis e felizes do hinduísmo que, na verdade, como religião no sentido rigoroso do têrmo, pode ser quase resumido como sendo vixnuismo. Diferente de Vixnu e muito mais complexa é a forma de Xiva, em quem se concentra a maioria dos elementos que acentuam os aspectos amedrontadores e apavorantes da crença, a luta contra demônios e contra o Mal, a imagem da Morte, os tipos mais severos de ascetismo, o tantrismo, o conhecimento intelectual e seus efeitos perigosos. Uma das formas mais veneradas é a de Xiva Dançante, onde o mesmo em sua dança cósmica proclama o fim do mundo. Existe também o Xiva asceta, na posição de um iogue. As deusas que no passado desempenharam apenas um papel secundário acham-se agora dotadas de um significado singu- lar. Até mesmo a noção de Energia (shaktij se sobrepõe às figuras há muito veneradas da Deusa Mãe que, como o próprio Xiva, revela tanto um aspecto gracioso (como em Uma) quanto e com mais freqüência um aspecto terrível (Durga, Kali). A maioria dêsses conceitos femininos se combina com o ciclo de Xiva, mas ao mesmo tempo foi incessantemente popularizada e dificilmente existe algo em comum entre a Shakti suprema, espôsa de Xiva, que no tantrismo reduz seu marido a um cadáver, e as deusas das aldeias, que incessantemente multiplicam e diversificam o principio feminino. Entre os deuses masculinos pertencentes ao ciclo shaivita existe pelo menos um que merece bastante preferência popular ao mesmo tempo que se presta a interpretações esotéricas. Trata-se de Ganesha, "mestre da troupe de xiva". É êle quem remove os grandes obstáculos e seu irmão Skanda é primordialmente adorado na Índia meridional sob o nome de Subrahmanya, sendo êsse um dos poucos pontos onde se pode falar de uma mitologia "drávida" distinta da mitologia comum. Se a adoração da natureza dos Vedas recuou em todos os lados, restou no hinduismo antigo um culto aos planêtas (incluindo a Lual e especialmente um culto ao Sol, herdado dos tempos védicos e mais tarde, no início da era cristã, rejuvenescido pelas influências iranianas. Além disso, certos deuses védicos persistem, recebem novos rótulos e são submetidos a novos episódios míticos. Um exemplo disso pode ser encontrado na divisão de espaço entre oito Lokapalas, os guardiães do mundo que correspondem a oito direções. As dinastias reais são tidas como descendentes de heróis de tempos remotíssimos. Além disso, as funções reais sujeitaram-se em tempos diferentes à deificação como se representa por combinações das imagens do Sol, de Indra e do cosmo. Finalmente, o culto de personagens ilustres, sejam lendários ou históricos, e o culto dos santos ligaram-se às estruturas das diversas seitas. Até onde chegam os semideuses, aquêles gênios dos céus, das águas, da terra, do mundo atmosférico e subterrâneo, sua atividade causava pouca interferência junto aos deuses, e apenas um pouco mais junto aos sêres humanos. Em ponto algum do desenvolvimento as formas demoniacas foram claramente individualizadas e tôdas elas formam parte do princípio simples do mal, que é mais um princípio de gume duplo, jamais estabelecido como mal absoluto. A literatura descreve o inferno e suas esferas graduais de torturas apavorantes. Existe uma condenação etema? O inferno verdadeiro é mais um retôrno à terra. Ainda mais indefinidos são os traços atribuídos ao paraíso. Por outro lado, a teoria das quatro idades do mundo, as representações da terra e do cosmo, foi desenvolvida com imagens fantásticas, proporcionando um pano de fundo de tempo infinito e espaço imenso a noções que nos Vedas desfrutavam apenas um horizonte limitado. Qual é, exatamente, o sentido dêsses deuses? As explicações "etnográficas" podem ter seu valor, mostrando um desen- volvimento evolutivo a partir dos protótipos pré-históricos comuns a muitas religiões, por exemplo, mas o que se deve considerar de importância muito maior é o caráter indiano específico, os próprios sentimentos dos indianos, e isto se expressa tanto nos textos antigos quanto na consciência daqueles que vivem hoje e, olhando muito além de tôdas as aparências, concordam em comunicar sua intuição. Tais explicações são simbólicas em sua natureza (e como poderiam ser de outro modo?) e à primeira vista correm o risco de parecer arbitrárias. O problema está em reter aquêles traços que refletem certa coerência e nos permitem descobrir a atração das grandes divindades, o que certamente é complexo, mas coerente. A variedade de atributos e a explosão de formas monstruosas, entretanto, requerem explicações elaboradas que finalmente se mostram mais ou menos duvidosas. De acôrdo com opinião bem conhecidas o mundo divino é uma parte de maya, aquela fôrça de ilusão que nos leva a acreditar no mundo fenomenal. A verdade deve ser encontrada além do fenomenal, mas maya também se concebe como uma fôrça positiva, pelo menos por parte de quem admite um pluralismo de qualidades, se não de substâncias. A filosofia na Índia diz respeito aos homens, visando resultados práticos e constituindo assim uma atitude quanto à religião ou, melhor ainda, é uma parte integrante da mesma. O credo filosófico do hinduísmo acha-se contido nos Darshanas, tradicionalmente seis em número, agrupados aos pares. Todos os sistemas desenvolvidos fora dos seis Darshanas (e houve sis- temas nesse caso) tiveram uma ligação mais ou menos clara com êste ou aquêle dos Darshanas. Todos oferecem como objetivo final a busca de meios para chegar-se à Libertação, concebida às vêzes como ausência do renascimento e, de outras, como fusão com o Absoluto. O Samkhya é fundamentalmente ateísta e reconhece apenas o Espírito e a Natureza como o princípio etemo das coisas, das quais se deriva pela evolução a totalidade das formas e sêres. A libertação é "isolamento", onde a alma é desindividualizada. A Ioga, teísta, retém do ciclo causal do Samkhya apenas aquelas estruturas psíquicas por intermédio das quais ensina o contrôle psico-fisiológico, uma restrição da circulação do pensamento. Essa restrição pela Ioga toma possível não só a aquisição de podêres sôbre-humanos como também e principalmente a conquista do contrôle místico. Essa técnica apresenta formas mecânicas surpreendentes que denunciam talvez suas origens xamanísticas, mas se mostra de todo apropriada para seu fito, sendo o método mais desenvolvido que se possa imaginar para abrir o caminho a formas intensas de contemplação. Estudado através do Samkhya-Yoga, o hinduísmo surge como uma disciplina do inconsciente. Ao lidar com o pensamento indiano, no entanto, é o Vedanta o que se destaca como de importância primordial. O pensamento vedântico se baseia nas antigas linhas dos Upanichades no que concerne às relações do eu e da Alma Universal. De acôrdo com Shankara (séculos VIII-IXj, o fundador ou restaurador do não-dualismo radical, a realidade única é brahman, a essência inqualificada composta do ser e da consciência. Atman, ou alma individual, se identifica a brahman, mas há um nível empírico de pensamento a sugerir um brahman qualificado em formas plurais, sendo esta a esfera da insciência e ilusão. As contribuições religiosas apropriadas, como a meditação sôbre os textos e adoração, são simples adjuntos. A libertação consiste mais em reconhecer a identidade entre atman e brahman, ou melhor ainda, em "realizar" essa identidade no eu. Tal Libertação é possível, em princípio, após a morte, mas existe uma classe de sêres vivos privilegiados que conseguem a situação singular da "vida absolvida". Outras escolas vedânticas suavizam a posição extremada de Shankara, admitindo (pelo menos com Madhva) uma espécie de dualismo fundamental. As mais notáveis dessas escolas são a de Ramanuja e a de "não-dúalismo distinto", na qual brahman é investido de qualidades notáveis e serve como base para adoração. Ramanuja abre para a filosofia o tesouro da qualidade religiosa da adoração e filosoficamente, ou pelo menos teológicamente, ela justifica o bhakti, a participação efetiva do homem com um deus pessoal. Não há dúvida de que as origens do bhakti remontam a um período muito distante, mas seus recursos emotivos só foram inteiramente explorados por pensadores e poetas da Idade Média, alguns dos quais criaram a idéia de um "abandono" quanto ao Divino, conceito semelhante ao da graça na crença cristã. Fazem distinção entre o "método do gato" e o "método do macaco", onde, no primeiro, Deus salva o homem sem a participação dêste último, assim como a gata carrega seus filhotes pela pele do pescoço, e no segundo se torna necessário um esfôrço pessoal, como quando um macaquinho se agarra à mãe para escapar a alguma dificuldade. De acôrdo com Ramanuja, a Libertação é alcançada de diversos modos, graças aos bons atos, pelo conhecimento e pela evocação sensata do Divino. O hinduísmo pode ser caracterizado, portanto, como um sistema dos meios apropriados para se chegar à Libertação. Há uma grande variedade dêsses meios, às vêzes considerados mutuamente relacionados, como graus numa hierarquia de meios. Em caso algum, no entanto, podem-se excluir mutuamente. Há ocasiões em que o meio da ação é considerado como o mais baixo; herança védica, consiste em atos tais como as práticas exteriores, dar, e prestar atenção ao ensinamento. A ação desinteressada, no entanto, é exaltada ao nível dos esforços mais valiosos. Mais acima disso é situada a prática da austeridade, a "consumição pelo calor" (tapas) que se descreve com tanta freqüência na literatura. Essa austeridade é a essência do ascetismo indiano. Existe também a trilha tântrica baseada, como vimos acima, num tipo de liberação das inibições e até mesmo numa inversão de valôres. A trilha do conhecimento resulta de uma reflexão integrada e é transformada em realização espiritual. Finalmente, há as trilhas da Ioga e da devoção participante (bhakti). O homem não-libertado acha-se sujeito ao destino comum - escravizado por seus atos que o seguem indefinidamente, "como o bezerro segue a mãe", está condenado a renascer; e como a maioria dos atos humanos está contaminada pela malícia, o perigo em renascer numa condição inferior, e finalmente como animal, é maior do que a possibilidade de conseguir um estado exaltado. O karman (Carma - ação, ou melhor, conseqüência da ação) e samsara (ciclo, ou transmigração indefinida dos sêres vivosj são os elementos do hinduísmo ao nível esotérico que mais se assemelham aos dogmas religiosos, ou seja, postulados baseados numa convicção que não se acha aberta a exame. A existência (vida) flui como uma torrente e o homem sofre passivamente a necessidade da morte para poder nascer e morrer muitas vêzes. Essa é a base do pessimismo indiano, esta pavorosa responsabilidade punitiva. Existe um corolário essencial, no entanto - por seus atos o homem pode, até certo ponto, dirigir seu destino. Os atos que determinam estágios posteriores podem criar frutos que amadurecem em proporção exata àquilo que foi o ato original. Assim a ética tem seu lugar numa religião onde a iniciativa humana parecia à primeira vista miseravelmente impotente - o homem é aconselhado com insistência a realizar atos meritórios. No entanto, está claro que seria melhor ainda deixar de agir, esgotar tôdas as reservas de karman (carma). Daí a importância fundamental da renúncia, o negativismo inerente da experiência indiana. Mas como a vida e a religião precisam ser reconciliadas, as formas de atividade como a devoção ativa foram recomendadas, não se mostrando grosseiras em sua natureza. Eis onde o hinduismo reconquista aquela qualidade humana simples que se mostrou efe- tiva e mesmo capaz de criar valôres novos quando, em nossos tempos e em tempos idos, corresponde vigorosamente às exigências de sua vocação política e social. 5 . SEITAS RELIGIOSAS Por mais que sejamos tentados a reduzir o hinduismo a uma unidade, é impossível passar por cima do fenômeno das seitas religiosas. Em certos aspectos, a seita é a realidade do hinduismo e modela sua história. Tudo o mais é generalização. Não se trata obrigatoriamente de uma questão de grupos exclusivos, e muito menos em geral de grupos hostis. Em primeiro lugar, há as denominações bastante amplas, aquelas pelas quais os hindus se dividem em vaishnavitas (Vaishnavas) e shaivitas (Shaivas); Shaktas, o terceiro ramo principal, pode ser tratado como uma subdivisão dos shaivitas. As seitas começam dentro dessa classificação global. Até mesmo os Smartas (seguidores do Smriti ou "Tradição Não-Revelada"), que se supõem livres de tendências sectárias, adotaram características discriminadoras. A tentação de formar um grupo é bem grande na Ìndia e a escala de seitas é a contrapartida religiosa do sistema de castas, com a diferença notável de que, enquanto teoricamente estas últimas incluem tôda a sociedade, as seitas jamais constituíram mais do que ilhas de importância numérica relativamente ligeira dentro do hinduísmo como um todo. A seita adere a uma parte determinada da tradição, reco- nhecendo um texto básico especial corno sendo o seu, adotando um determinado sistema especulativo, mas nem se isola da totalidade do sistema nem rejeita os postulados comuns. Pelo menos, essa é a situação geral. Poderíamos considerar sectários quem elabora e refina valôres selectos tornados de empréstimo ao tesouro das crenças, ou quem rejeita urna parte de usos reconhecidos, ou ainda quem manifesta exclusividade em seu recrutamento e certo elemento de desafio. Num dos extremos acham-se os Mahanubhavas de Maharashtra, que não aceitam os Vedas e conservam bem poucos dos dados positivos do hinduísmo. Os protótipos dessas semi-heresias (é bem difícil ser inteiramente herético na Índia) são o budismo e o jainismo, movimentos sempre separados do hinduísmo, embora com o tempo se tenham impregnado de muitas influências exercidas pelas fôrças hindus que os cercavam. Desde o aparecimento dessas seitas muito antigas, não houve mais outros cismas assim. Em certo sentido, as seitas são organizações clericais, tendentes rnuitas vêzes a distinguir entre o leigo e o religioso, distinção em geral desconhecida ao hinduísrno comum. Temos informação exata a respeito das ordens religiosas apenas em pequeno número de casos. No século IX, por exemplo, encontramos um caso de dez fraternidades que se supunham fundadas por Shankara e seu chefe supremo chamava-se "Preceptor do Mundo". As coletividades monásticas são mencionadas com freqüência na literatura e nos achamos bem informados sôbre sua estrutura na Índia meridional, especialmente a partir do século XIII. Nos tempos modernos, a Ordem da Ramakrishna, fundada em 1899, se inspirou na regra monástica ocidental. O fator decisivo para a criação de uma seita é a iniciativa de um mestre que ensina e explica as escrituras, naturalmente. O tipo dêsses fundadores se repete em tôda a História, como de acôrdo com uma lei histórica. Sob a influência do esclarecimento, um homem rompe com seu passado, começa a pregar uma nova doutrina e depois de muitas dificuldades consegue reunir em tôrno de si um conjunto de discípulos, dentre os quais será encontrado seu sucessor. Depois de seu desaparecimento, sua biografia é envolta em lendas - e nisso temos a grande influência de um guru sôbre a mente indiana. Muitos dêsses movimentos tendem a tomar-se movimentos de reforma e em contraste com o hinduismo popular que se tornou um tanto estagnado e estéril, a seita se transformou em um instrumento de progresso. As reformas são de tipos diversos, às vêzes o rigor na execução das práticas religiosas é recomendado, outras vêzes registra-se um protesto contra escalas sociais e proibições, para que todos os homens possam ter acesso fácil à vida religiosa. A Índia das seitas, portanto, difere em suas aspirações no sentido da uniformidade da crença quanto à Índia dos Shastras ("Tratados Normativos") que advoga a divisibilidade social. Talvez devido a essa tendência para a unanimidade, destinada a se estabelecer mais tarde nas seitas, é que desde o período proto-histórico os drávidas ingressaram no hinduismo e adotaram o sistema bramânico; e pelo mesmo motivo, em data posterior, um corpo bramânico se formou no Camboja. No nivel lingüístico, as seitas ajudaram na propagação da tradição vernacular, enquanto a Índia permanecia prêsa à tradição sânscrita. É difícil dizer quando as seitas passaram a existir, e somos tentados a atribuir suas origens àquele período de fermentação intensa e controvérsia teológica que no século IV ou V antes de Cristo marcou o início do budismo e jainismo, bem como o desenvolvimento dos Upanichades. Poderíamos provavelmente imaginar que o budismo do Hinayana (Pequeno Veiculo) proporcionou o ímpeto pára essa fragmentação do hinduísmo, mas isso continua sendo hipotético. Ao invés, devemos ir aos inícios da era cristã, quando encontramos um embaixador grego, Heliodoro, referindo-se aos bhagavatas como uma classe de devotos que adoram a forma "Senhorial" de Vixnu. Alguns episódios dos Épicos mencionam alguns nomes das seitas, notadamente os de Pashuapatas, mas o fato é que conhecermos poucos detalhes precisos acêrca da história das seitas antes do final do século IX. No início, e até o século XI, o domínio do shaivismo era digno de nota, após o que o vixnuísmo se adiantou e parece ter conservado sua supremacia até os tempos modernos, a não ser naqueles territórios leais ainda a certo primitivismo sbaivita e em Bengala, onde os Shaktas conservaram um baluarte poderoso. É igualmente o shaivismo o que entrou no sudeste da Àsia por volta do século VII e deu mais tarde lugar ao vixnuísmo (pelo menos no Camboja) correspondendo à vazante e enchente na Índia continental. Graças ao que sabemos a respeito das seitas, podemos ten- tar o bosquejo geral da evolução do hinduísmo. As descrições feitas pelo grego Megástenes no século IV antes de Cristo dão testemunho de um estado de confusão. Na verdade, é-nos impedido ver a extensão real do hinduísmo naquele período, pelo patrocínio dado ao budismo pelos Máurias e muito mais tarde por numerosos soberanos indo-europeus e muitos Kushanas, que se inclinavam a constituir urna religião estatal. O hinduísmo recebeu patrocínio oficial apenas no século IV da era cristã com os Guptas, os membros das primeiras grandes dinastias indígenas. Isso resultou no que se chamou o "renascimento do hinduísmo", caracterizado também pela restauração das cerimônias védicas. Mas essa noção de "renascimento" é exagerada, pois'nada existe a indicar que no período anterior o hinduísmo tivesse sofrido invasão profunda pelo budismo, ou que sofrera qualquer degeneração interna. É com os primeiros séculos da era cristã, entretanto, que a grande orientação especulativa do hinduísmo se desenvolve. A constituição das doutrinas Shakta (com o culto Shakti) e os inícios do tantrismo poderiam ser situados na proximidade do fim do período dos Guptas. A controvérsia filosófica surgiu no século VIII, período que marca o declínio final do budismo na Índia e a difusão do bhakti. Foi talvez em solo drávida que o bhakti recebeu seu ímpeto decisivo e se nutriu do entusiasmo religioso dos Alvars e Nayanars. Ao norte da Índia, o vixnuísmo tomou-se o veículo privilegiado devido às suas efusões sentimentais (às vêzes coloridas pelo erotismo) a que as estórias "edificantes" tecidas em tôrno a Krishna se prestaram. A conquista muçulmana, progressiva e parcial, não modificou o aspecto geral do hinduísmo e quando muito notarmos o aparecimento de alguns movimentos mistos, como o sufismo. Ao islã devemos creditar indiretamente a aceleração no crescimento dos grupos sectários, cuja vitalidade máxima pode ser encontrada entre o século XIII e meados do XVI. Os acontecimentos mais destacados são os ensinamentos de Kabir e o sincretismo representado pelos mesmos, e o aparecimento do que se chamou "as seitas reformadas", tais como a teocracia militar dos siques (séculos XV-XVI), que tornaram de empréstimo muitos elementos de doutrinas fundamentalmente hindus, como as de Kabir e, além dêle, de Ramananda. No século XVII, Tulsidas presidiu à consolidação das fôrças vivas de devoção do todo da Índia setentrional e seu nome evocou o estabelecimento de novos grupos sectários baseados no nome de Rama. Em tempos mais recentes, as seitas pareceram estar gradualrnente declinando e o hinduísmo tendeu a tornar sua forma antiga. Desse modo, talvez o terreno tenha sido bem preparado para o "revivescimento" do hinduísmo, corno se reconhece em geral, com o início do século XIX. Esse revivescimento coincidiu com o estudo na Europa dos textos sagrados da Índia Antiga e, acima de tudo, com o crescimento gradual do sentimento nacional indiano. Fenômeno obrigatoriamente indiano, o hinduísmo não poderia deixar de exibir tanto as virtudes quanto os excessos de qualquer nacionalismo. Uma série de homens empreendedores, alguns dos quais extremamente talentosos, tomou-se o apostolado de um hinduísmo repensado, purificado e libertado de suas fantasias, enquanto ao mesmo tempo consolidava sua ligação com urna interpretação humanista dos Vedanta. Entre essas personalidades modernas o único elemento em comum é seu dinamismo, e suas diferenças mostram-se notáveis. Muitos demonstram a influência consciente ou inconsciente do cristianismo (Rammohun Roy, Keshab Chandra Sen) ou mais geralmente da cultura ocidental (Tagore). Alguns insistem em um retôrno aos Vedas (Dayananda), mas flexíveis às necessidades de nossa época; já outros se restringem ao misticisrno (Ramakrishna), à explicação (Aurobindo) ou à propagação teosófica (Vivekananda), enquanto muitos se inclinam para os problemas sociais (Ranade) ou políticos (Tilak, Gândi). A fórmula antiga de ashramas, ou "eremitérios", foi revivida, variando do falanstério a uma irmandade semionástica. O hinduísmo pode ser concebido como fiel às suas escrituras (para quase todos o Bhagavad-gita continua a ser O Livro por excelência), enquanto ao mesmo tempo é o próprio tipo de crença universalizadora. Dizem-nos que as religiões são verdadeiras, mas o hinduísmo as condensa tôdas, preservando aquelas de suas características aceitáveis por todos. Não existe mais, dêsse modo, qualquer questão de mitologia ou ritual, um quadro geral da ética é preparado e embora não permita quaisquer concessões reais no que diz respeito ao essencial, faz-se uma tentativa no sentido de aproximar "almas semelhantes" além das fronteiras da Índia. O hinduísmo que se "exporta", podería- mos dizer, eleva paradoxalmente uma fé predominantemente étnica à patente de uma religião pan-humanista. A massa demográfica indiana mal é atingida por êsses movimentos, pelo menos no plano religioso, embora os acontecimentos sociais, e acima de tudo os políticos, tenham deixado uma marca profunda na mesma. É devido a êsse fato que houve um rompimento e os conceitos livres de tons agressivos puderam florescer na Índia. 6. SOCIEDADE INDIANA Onipresente e misturada a ideais ético-sociais, a religião indiana significa antes de mais nada o dharma como uma totalidade - êste é o dharma "eterno" dos filósofos. Do ponto de vista demográfico, no entanto, o dharma é fragmentado de acôrdo com as castas e "estágios" da vida, e existe um dharma para cada individuo, visto que êle forma parte de certo grupo. Esta é a característica principal do principio indiano de "um em muitos". O mesmo principio é operante na relação entre a seita e o hinduísmo como um todo, e no fato de que a lei penal tem como suas contrapartidas muitos "votos" e expiações religiosas. No que diz respeito aos "estágios" (ashrama), ou modos de vida, as regras determinadas para o Estudante são diferentes daquelas prescritas para o Chefe da Família, e pouco têm ern comum com as que guiam a vida do Anacoreta (terceiro estágio) e ainda menos com as regras referentes ao Indivíduo Renunciante (quarto estágio). Tal esquema é normativo, mas baseia-se na experiência. Muitos indianos, até mesmo nos tempos modernos, romperam tôdas as ligações com o mundo para viver em renúncia; já outros, sem abandonar sua obrigações sociais, dizem ter "transcendido os ashramas" e chegado à situação da "vida absolvida". Ainda mais importante é a graduação da sociedade em quatro classes. No cimo dessa hierarquia encontram-se as três classes arianas ou livres, teoricamente dominadas pelos brâmanes que exercem o poder espiritual; em seguida vêm os xátrias, que controlam o poder secular e finalmente há os vaixás ou artesãos, agricultores, etc., que representam o aspecto econômico (de acôrdo com o antigo esquema trifuncional). Essas três classes compreendem os "nascidos duas vêzes", que obtêm um segundo nascimento através da iniciação. À parte êsses três grupos, estão os sudras, algo como servos, que ainda assim mantêm certos direitos. Abaixo dêstes e poderíamos dizer à parte da sociedade, está a massa dos "impuros" ou intocáveis, sôbre quem a literatura antiga pouco tem a dizer, mas cuja existência em tôdas as épocas é inegável, ainda que o número de seus membros tenha variado. Tais classes são diversificadas por seus privilégios, que negativamente interpretados formam outras tantas proibições. No nível religioso, a existência de classes significa que a relação formal de cada indivíduo corn o Divino é estabelecida por nascimento. Na realidade, a participação na adoração difere para o brâmane e os demais nas- cidos duas vêzes, reduz-se a pouco para o sudra e se mostra de todo ausente entre os que perderam a casta. O "cruzamento" entre as quatro classes, eventualmente até mesmo entre um membro dessas classes e um intocável, forma uniões mistas que acarretam uma degradação. Os textos normativos ensinam que nisso reside a origem da multiplicidade de castas - aproximadamente três mil nos tempos modernos que divide a população hindu em fragmentos. As castas se caracterizam por muitas proibições a respeito de partilha de refeições fora do grupo (ou admissão de membros de outros grupos para que partilhem na refeição da casa) e do casamento fora do mesmo. Caracterizam-se também por recomendações mais especificamente religiosas concernentes a práticas de purificação bem complexas. Se a teoria das castas for observada, poucos de. talhes de existência surgirão que não sejam afetados pela participação ern urna casta, e poucos traços de casta que não sejam definidamente de um significado religioso. Além das restrições esboçadas acima, há também as relações determinadas pelos laços espirituais, que não admitem um casamento fora da casta. Outra classificação dos homens, puramente teórica, se baseia nas três fases de atividade humana: dharma ou atividade moral (a mais elevada), artha ou atividade interessada e kama ou atividade folgazã. Pelo menos em parte êsses três fins refletem as três funções e se subordinam a um quarto fim - moksha, ou Libertação. 7. CONCLUSÃO Se o hinduísmo fôr estudado superficial ou unilateralmente, poderá surgir a tentação de ver nêle um caos de práticas e superstições religiosas e uma degradação através da mágica e do verbalismo. As disfunções econômicas engendradas por certas proibições religiosas ou por todo o sistema de castas já foram indicadas. O sistema de castas foi apontado corno responsável pela estagnação social, ao mesmo tempo que se apresentaram críticas profundas quanto às tendências negativas, não-violência excessiva e certos costumes deploráveis, tais como a queima das viúvas no passado e o casamento de crianças, praticado .ainda em alguns casos. Torna-se evidente que existe tanto o bem quanto o mal num contexto religioso a que se permitiu seguir seu caminho próprio por mais de dois mil anos sem qualquer obstáculo interno, ao mesmo tempo que retinha uma atitude próxima ao desafio e que se tornou cada vez mais audaciosa diante das tentações oferecidas pelo mundo moderno. A ambivalência, entretanto, é característica da Índia; para ela, de que vale matar suas vacas, se com isso irá perder a alma? Um fator no equilibrio social e psíquico é achado na noção de dharma com sua justiça rigorosa e a "verdade" que implica (os indianos insistem na atitude de veracidade, assim corno outros insistem numa "atitude de consciência"). Uma conseqüência importante disso é a tolerância, a não-violência sendo considerada uma virtude ativa, e tal constitui um modo de agir que tem de ser respeitado - até mesmo na esfera política - sem levar em conta a atitude alheia. Nisso talvez possamos achar a contribuição mais espetacular que a Índia fêz ao mundo moderno e a resposta mais digna ao marxismo e ao materialismo. Não resta dúvida de que ao hinduísmo falta parte daquele espírito de caridade que abunda no budismo, por exemplo. Em sua preocupação com a pureza, o hindu tende mais a se manter afastado do que a dar de si. O hinduísmo tem pelo menos aquela grandeza que pode ser achada em sua busca do equilíbrio e harmonia tão característicos de suas instituições. Muito longe de ser um jôgo intelectual, a filosofia é para o hinduismo uma experiência espiritual, que convida o homem menos ao pensarnento do que ao cultivo de uma presença. A relação entre o filósofo e o mundo é a de um tipo de fascínio. O indivíduo é desacentuado não só por ser um membro anônimo de um grupo que por si próprio forma uma parte in. tegrante de outro grupo, mas acima de tudo porque os grandes objetivos religiosos são concebidos para uma situação outra que não a de um indivíduo na sociedade. Tais objetivos religiosos atingem o indivíduo que escapou à vida social precisarnente por abolir sua própria individualidade. Assim, os fatos religiosos tendem a ser traduzidos em um mundo de símbolos, aquelas formas "secundárias" que muitas vêzes se mostram mais interessantes do que nossas transcrições diretas da realidade. O hinduísmo, entretanto - a não ser talvez em certos sistemas tântricos - não é esotérico. Devido ao próprio fato de haver possibilidade de escolha entre as diversas trilhas e téc- nicas, para o hinduísmo a Verdade é um tesouro indivisível, a imediação espiritual acha-se amplamente distribuída, a trilha mística se encontra aberta a todos. Em formas mais puras, esta religião se toma um tipo de sabedoria, aquela que impressionou os gregos antigos quando visitaram a Índia e que poderia ser frutífera novamente para nossas culturas blasées. É corno sabedoria que gostaríamos de definir o hinduísmo, ao invés de o fazer através daquele têrmo equívoco, espiritualidade. Jamais podemos predizer o futuro, e hoje em dia o futuro de urna nação não se acha mais em suas mãos apenas. Ainda assim, é provável que o sistema indiano de castas desapareça mais cedo ou mais tarde, e com êle desapareçam certas instituições indianas grosseiras. Sobreviverá então um modo de pensar libertado das contingências sociais e dotado de podêres imprevistos de maturidade. A. FONTES SÂNSCRITAS I. O Rig-veda Este texto apresenta uma coletânea ou antologia de aproximadamente mil hinos aos deuses principais do panteão védico. Tais hinos são atribuídos a "autores" individuais, porém isso não se pode sustentar. A língua é um sânscrito bastante arcaico e a compilação dos poemas deve ser situada entre os anos 1500 e 1200 antes de Cristo. Juntamente com a homenagem prestada aos deuses, e as descrições mitológicas ou rituais, encontramos fórmulas usadas pelos poetas para convidar um deus a participar como hóspede distinguido na oferenda sagrada. Algumas das composições são de caráter inteiramente diferente, notadamente os muitos poemas especulativos. O de número 6, por exemplo, o famoso poema sobre a criação do mundo, ou o de número 4, que descreve o Sacrifício Primordial, consistindo da imolação do homem gigantesco (Purusha) e de cujos membros surgiram todos os sêres, estão nesse caso. 1. A Vixnu Afirmarei os feitos poderosos de Vixnu, que mediu as regiões da terra, Que sustentou o lugar mais elevado de congregação três vezes limprimindo sua pegada, andando em passos largos. Por êste poderoso feito Vixnu é louvado, como alguma fera selvagem, temível, furtivo, varando as montanhas; Ele, cujas passadas largas abrigam a habitação de tôdas as crialturas vivas. Que o hino suba como força a Vixnu, o Touro, que vai Ionge e reside nas montanhas, A êle que, sozinho, com passo triplo mediu este habitat comum, que se estende ao longe. A êle cujos três lugares cheios de doçura, imperecíveis, se rejubile ao vê-los, E que realmente sozinho sustenta o triplo, a terra, o céu e todas as criaturas vivas. Possa eu atingir para isso sua mansão bem-amada, onde os homens devotados aos deuses são felizes, Pois ali nasce, bem próximo ao das passadas largas, a fonte de hidromel, na pegada mais alta de Vixnu. Contentes, iríamos ter a seus habitats, onde há muitos bois chifrudos e ágeis, Pois ali brilha poderosamente sobre nós a mais sublime mansão do Touro de passos largos. (1.154) 2. Às Águas Avante, do meio da enchente, as Águas - seu chefe o mar fluém limpando, jamais dormindo. Indra, o touro, o trovejante, cavou seus canais; aqui, deusas, deixem essas águas proteger-me. Águas que vieram do céu, ou as que erram retiradas da terra, ou correndo livres pela natureza, claras, purificadoras, correndo para o oceano; aqui, deusas, deixem essas águas proteger-me. Aqueles entre os quais vai Varuna o soberano, o que distingue nos homens a verdade da mentira - Destilando hidromel, o claro, o purificante; aqui, deusas, deixem essas águas proteger-me. Aqueles de quem Varuna o rei, e Soma, e tôdas as deidades sorvem força e vigor, Aqueles em quem Vaishvanara Agni entrou; aqui, deusas, deixem essas águas proteger-me.(1) (7.49) 3 . A Aurora Ela brilhou como uma mulher jovem, despertando para o movimento todas as criaturas vivas. Agni veio alimentar-se no combustível dos mortais. Ela fêz luz e espantou a treva.