O caminho moral em Kant: da transição da metafísica dos costumes

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O caminho moral em Kant:
da transição da metafísica dos
costumes para a crítica da
razão prática pura
Jean Carlos Demboski*
A questão moral em Immanuel Kant é referência para compreender
as mudanças ocorridas na modernidade, afirmando-se como posição filosófica, derrubando as compreensões estabelecidas até então. É comum
o ser humano questionar-se em relação às suas ações, dependentes ou
livres de algum pensamento ou conhecimento crítico já fundado, ou então em relação às suas ações perante uma constituição de leis que o “obriga”, em certo sentido, a ser livre dentro dessa ou daquela determinação.
Como entender então a liberdade da autonomia da vontade? E ainda,
como exercer uma liberdade moral?
Kant, entre seus escritos, publica em 1785 a Fundamentação da Metafísica dos Costumes, desdobrada em três seções, sendo elas: Transição do
conhecimento moral da razão vulgar para o conhecimento filosófico; Transição da Filosofia moral popular para a Metafísica dos Costumes e Último
passo da Metafísica dos Costumes para a Crítica da razão pura prática.
Tratemos, pois, da natureza da ética. Todo ou qualquer conhecimento racional é constituído materialmente, considerando qualquer objeto;
ou formalmente, tendo ocupação somente da razão e da forma do entendimento em si próprias, e das regras universais do pensamento, sem que
se diferenciem dos objetos. Temos então o que nominamos de Física, ou
Teoria da Natureza; e de Ética, ou Teoria dos Costumes, ambas tendo,
portanto, uma parte empírica e outra racional, numa “dupla metafísica”
(KANT, 1980, p. 103). O ser humano é então o único objeto disponível
no mundo que ao mesmo tempo é suscetível às leis da natureza e às leis
da liberdade.
* A
cadêmico do terceiro Semestre do Curso de Bacharelado em Filosofia do IFIBE. Artigo
apresentado à disciplina de Ética ministrada pelo professor Paulo César Carbonari.
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A partir das suas críticas da razão, Kant apresenta a liberdade como
base para o caminhar do ser humano. Assim, uma metafísica dos costumes faz-se existente, uma vez que esses mesmos costumes costumem
opor-se à natureza por se tornarem inválidos ao mínimo resquício de
própria natureza presente neles. Se, de alguma forma, a ação humana
apoiar-se no mínimo que for natural, será então no máximo chamada de
regra prática, ou seja, nunca será chamada de lei universal. Ficando os
costumes sujeitos à perversão, a metafísica dos costumes, com seu dever
de investigar a ideia e os princípios de uma possível vontade pura, supre
aquela falta do fio condutor quando necessário, bem como a forma suprema do seu exato julgamento.
É de total importância que se afirme, nesse ponto, uma razão prática,
ou seja, uma razão suficiente em si, sem o mínimo de auxílio de impulsos
sensíveis, para um deslocamento da vontade.
A moral, sendo boa por buscar sua pureza e autenticidade numa
filosofia pura, sem prejudicar a pureza dos costumes e a sua própria
finalidade, não depende do Bem, depende apenas da vontade. A vontade é então o único bem sem limitação, sendo encontrada apenas no
ser humano. Não é desejo nem mesmo é um espasmo. Não se trata de
um voluntarismo. É uma produção da razão boa em si mesma. É o bem
supremo. Entende-se com facilidade que somente em circunstâncias de
leis morais com valor universal é possível que existam princípios morais
válidos, sem exceção para todos os humanos.
Mas porque o mundo inteligível contém o fundamento do mundo
sensível, e portanto também das suas leis, sendo assim, com respeito a minha vontade (que pertence totalmente ao mundo inteligível), imediatamente legislador e devendo também ser pensado
como tal, resulta daqui que, posto por outro lado me conheça
como ser pertencente ao mundo sensível, terei, como inteligência,
de reconhecer-me submetido à lei do mundo inteligível, isto é, à
razão, que na ideia de liberdade contém a lei desse mundo, e portanto à autonomia da vontade; por conseguinte terei de considerar
as leis do mundo inteligível como imperativos para mim e as ações
conformes a este princípio como deveres (KANT, 1980, p. 155).
O núcleo da moral é a boa vontade, e isso se dá no conceito de De
ver. Diz Kant: “Vamos encarar o conceito do Dever que contém em si o
da boa vontade, posto que sob certas limitações e obstáculos subjetivos
[...] a fazem antes ressaltar por contraste e brilhar com luz mais clara”
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(1980, p. 112). Não levando em conta aquilo que é contrário ao dever,
nem aquelas ações que são resultados de alguma força natural, é fácil
distinguir se a ação realizada conforme o dever foi praticada por dever ou com intenções egoístas. É importante distinguir o “por dever” do
“conforme o dever”. Uma coisa é ser bom por dever. Outra é sê-lo conforme o dever. Para o homem agir, segundo Kant, existem regras gerais,
princípios básicos práticos, determinações gerais da vontade, que se valerão da objetividade: princípio imperativo1 e da subjetividade: máxima.2
Na ação, o bem não está na “mediedade”. Ele está no princípio que
o determina, sendo que este pode ser hipotético3 ou categórico.4 O querer, como vontade, não tem nada a ver com desejo em seu sentido de
inclinação. Está em questão o respeito que em nenhuma hipótese pode
ser entendido como submissão. O dever é uma necessidade de ação por
respeito à lei, e somente aos imperativos categóricos pode-se chamar de
leis práticas, ou então de leis morais. Não se trata de leis físicas. São universais e necessárias por valerem para todo e qualquer ser racional, sem
exceção. Somente se é bom pelo bem, e por nenhum outro domínio que
não esse, e esse bem só pode ser captado pelo sentimento moral.
A ideia de liberdade faz, ao mesmo tempo, com que o indivíduo seja
parte do inteligível e do mundo sensível, assegurando que os imperativos
categóricos são possíveis porque todas as ações devem ser realizadas em
total conformidade com essa autonomia. E, mesmo assim, esse dever categórico continua representando uma proposição a priori, porque acima
da vontade que tende a inclinações, a apetites sensíveis, sobrepõe-se essa
mesma vontade, pura em si mesma, pertencente ao mundo inteligível.
Nada, senão a representação da lei em si mesma e enquanto lei que
determina a vontade pode construir o bem excelente ao qual Kant chama
de Moral. Ela, a lei moral, independe de conteúdo. É o imperativo categórico, incondicionado, válido por si mesmo. Se por algum motivo a lei
moral for subordinada ao conteúdo, há um desviar de caminho para o
1 E
ntenda-se aqui por imperativo os princípios práticos objetivos, ou seja, válidos para
todos. São mandamentos ou deveres, isto é, regras que expressam a necessidade objetiva da ação.
2 Princípios práticos que têm valor somente para os sujeitos que as propõem, mas não
para todos os homens, sendo assim, subjetivos.
3 Que apresenta necessidade de ação possível como meio de alcançar qualquer coisa
que seja querida (Meio-fim).
4 Que representa uma ação objetivamente necessária por si mesma, sem relação com
qualquer outra finalidade. É fim em si mesmo.
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empirismo e utilitarismo. Assim, a essência do imperativo categórico, da
lei moral, consiste sua racionalidade, e nada mais. Ela não ordena aquilo
que se deve querer, mas o como se deve querer aquilo que é querido. A
moralidade constitui-se então no como fazer aquilo que se deve fazer, o
dever fazer.
Kant apresenta como imperativos categóricos:
Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal. [...] Age como se a máxima da tua ação se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da natureza. [...] Age de tal maneira que uses a humanidade,
tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre
e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio
(KANT, 1980, p. 129-135).
A ação do homem deve ser tal, que a sua máxima (subjetiva) seja lei
universal (objetiva). O homem não é uma coisa entre outras coisas. Ele
renuncia a qualquer conceito de “fim”. A razão natural existe como fim
em si mesma e, dessa forma, ao estarmos submetidos a uma lei, deve-se
perceber a autonomia da vontade da lei moral, por essa lei ser fruto de
nossa racionalidade e depender de nós.
A vontade é determinada a priori, movida objetivamente na proposição do imperativo categórico. É prática a razão pura em si mesma pelo
fato de determinar a vontade sem levar em questão outros fatores. Da
mesma forma, a lei moral existe sem que precise ser justificada ou provada. Ela é imposta como fato da razão, fato que só pode ser explicado
pela liberdade.
Como define Kant ao iniciar a terceira seção da Fundamentação da
Metafísica dos Costumes:
A vontade é uma espécie de causalidade dos seres vivos, enquanto racionais, e liberdade seria a propriedade dessa causalidade,
pela qual ela pode ser eficiente, independentemente de causas
estranhas que a determinem; assim como necessidade natural é a
propriedade da causalidade de todos os seres irracionais de serem
determinados à atividade pela influência de causas estranhas
(1980, p. 149).
A liberdade é a propriedade da vontade de todos os seres racionais.
Assim como uma causa é apresentada, necessariamente trazemos para
junto dela um efeito, no entendimento de lei, mas não sem antes essa
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ser causalidade imutável, pois se nos fosse apresentado de outro modo,
“uma vontade livre seria um absurdo” (KANT, 1980, p. 149).
Apenas podemos ter consciência da liberdade porque anterior a
qualquer ato realizado temos a consciência do dever, da lei moral, e esse
imperativo que nos conduz à lei é que por conseqüência nos conduzirá
também à liberdade.
“O conceito da liberdade é a chave da explicação da autonomia da
vontade” (KANT, 1989, p. 149). A liberdade, que apresenta como aspecto
próprio e positivo a autonomia, é independência da vontade em relação
à lei natural dos fenômenos; é a característica singular da vontade, determinada sem conteúdo pela pura forma da lei. O contrário de tudo isso
seria fazer a vontade depender e ser determinada por algo diferente, que
não por ela mesma.
Importa reconhecer e orientar-se por uma conexão não simplesmente acidental, mas universal e necessária. Precisa-se, na vida prática,
ter em primeiro plano a lei moral, o dever, como puramente fato da razão, para que depois dela se possa inferir a liberdade como seu fundamento e como sua condição.
“A liberdade tem de pressupor-se como propriedade da vontade de
todos os seres racionais” (KANT, 1980, p. 150). O ser humano age sobre
a liberdade, está ligado à liberdade sendo a sua vontade livre em si mesma. Ele somente poderá agir livremente se naturalmente for atribuída a
ideia de liberdade em sua vontade.
Não se pode pensar em liberdade sem buscar o mundo inteligível e
sem reconhecer a autonomia da vontade. Assim, pensemos na moralidade como obrigados pelo dever e, da mesma forma, pensemo-nos pertencentes ao mundo sensível sem deixar de pertencer ao mundo inteligível.
Não basta que minhas ações sejam conformes à autonomia da vontade
por eu participar do inteligível. É preciso que minhas ações devam ser
puras e práticas em si mesmas.
A razão, em sua autonomia, além de possível, é necessária para que
essa vontade, distinta dos desejos e das inclinações, seja condição de suas
próprias ações voluntárias. A razão é então pura e prática por poder agir
não só na ideia, mas também no real, sem depender de fatores empíricos.
Realizado o exercício da autonomia sem nenhum tipo de intuição,
o princípio da moral é visto pelo homem como fato, não podendo explicar-se por nada sensível.
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Referências bibliográficas
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Trad. T.
M. Barnkopf. São Paulo: Abril Cultural, 1980. Os Pensadores.
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: do Humanismo a Kant. 3. ed. São Paulo: Paulus, 1990. Coleção Filosofia.|
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