18
Neurociências • Volume 6 • Nº 1 • janeiro/março de 2010
Perspectiva
Vírus como traçadores neuronais
Viruses as neuronal tracers
Judney Cley Cavalcante
Resumo
Os vírus vêm sendo utilizados como traçadores transneuronais por muitos anos. Recentemente eles têm sido utilizados como vetores de inserção em neurônios de moléculas marcadoras sob controle de promotores. Ao serem expressas, essas moléculas marcadoras
preenchem o citoplasma dando um aspecto de célula de Golgi ao neurônio, permitindo
assim o traçamento de sua projeção anterógrada. A principal vantagem na utilização de
vírus como traçador neuronal anterógrado é o estudo de vias neuronais específicas utilizando a inserção de moléculas marcadoras sob controle de promotores que podem ser
“lidos” apenas por células específicas.
Palavras-chave: vias neuronais, moléculas marcadoras, vetores de inserção.
Abstract
Viruses have been used as transneuronal tracer for a long time. Recently they have been
used to insert promoters-controlled markers inside the neuronal genetic machinery. When
expressed, those markers fulfill the cytoplasm giving the neurons an aspect of Golgi staining, allowing them to be traced. The main advantages of use the virus as an anterograde
neuronal tracer is to study specific neuronal pathways using markers controlled by specific
promoters that can be transcripted by specific cells.
Key-words: neuronal pathways, promoters-controlled markers.
Laboratório de Neuroanatomia,
Departamento de Morfologia,
Centro de Biociências, Universidade Federal do Rio Grande
do Norte
Correspondência: Departamento de Morfologia, Centro de
Biociências, Campus universitário, Av. Senador Salgado
Filho S/N, Lagoa Nova 59072970 Natal RN, Tel: (84) 3215
3431 Fax: (84) 3211 9207,
E-mail: [email protected]
Introdução
Traçadores neuronais são ferramentas muito importantes na descoberta de vias neurais e na elucidação de funções de áreas específicas.
Utilizando esta ferramenta sabemos quem conversa com quem no sistema nervoso. Mesclada com outras técnicas, o traçamento neuronal
pode revelar que tipo de linguagem os neurônios de uma determinada
área utiliza. Diversos tipos de traçadores já existem e o vírus é uma
categoria especial deles.
Com a capacidade de infectar um neurônio, se replicar e passar
para outro neurônio, os vírus se tornaram os melhores traçadores
transneuronais (ou transsinápticos) existentes. Enquanto os vírus se
replicam em cadeia, amplificando a marcação, outros traçadores que
têm a capacidade de ser tranferidos de um neurônio a outro se diluem
Neurociências • Volume 6 • Nº 1 • janeiro/março de 2010
no interior de cada neurônio de uma mesma cadeia
perdendo sua efetividade, portanto os vírus podem
ser traçados de forma mais satisfatória por uma
sequência longa de neurônios.
Diferentes vírus podem ser utilizados como
traçadores transneuronais. Vírus da raiva e o da
pseudo-raiva são os mais utilizados como traçadores
transneuronais retrógrados [1-3], enquanto o vírus do
herpes (HSV) pode ser utilizado como traçador retrógrado ou anterógrado, dependendo do subtipo [4,5].
A visualização destes vírus é normalmente feita
por imunoistoquímica utilizando um anticorpo específico para cada vírus [6].
Evolução
A utilização de vírus como traçador neuronal evoluiu na última década com a introdução de vírus que
não fazem transferência sináptica. Nesse caso, os
vírus utilizam outra maquinaria e funcionam apenas
como traçadores anterógrados. Os vírus desta nova
geração de traçadores não se replicam na célula, eles
carregam uma sequência genética que, quando acoplada ao DNA do neurônio, promove a transcrição e
tradução de uma molécula específica. Essa sequência
genética é composta basicamente de um promotor
que controla uma sequência de DNA que codifica uma
molécula marcadora.
Em princípio, esta tecnologia foi utilizada na terapia gênica [7,8], introduzindo novas moléculas ou
aumentando a expressão de moléculas pré-existentes
no organismo, mas o advento de moléculas marcadoras não tóxicas e sem ação neuromediadora, como
a proteína verde fluorescente (GFP), impulsionou a
utilização desta tecnologia no estudo das projeções
neuronais. Desta forma, estes vírus funcionam apenas como vetores que têm a missão de infectar e
acoplar seu material genético ao material genético
do neurônio, daí por diante é a própria maquinaria
molecular do neurônio que promove a expressão do
marcador.
Vantagens e desvantagens
A GFP é a principal molécula marcadora utilizada.
Apesar de ter uma fluorescência própria, revelação por
imunoperoxidase mostra que neurônios que expressam
GFP apresentam um aspecto de célula de Golgi, assim
como outros traçadores anterógrados, como a leucoaglutinina do Phaseolus vulgaris (PHA-L) ou a dextrana
amina biotinilada (BDA) . Então, qual a vantagem de
utilizar vetores virais como traçadores anterógrados?
PHA-L e BDA são ótimas ferramentas para o
traçamento neuronal anterógrado, mas apresentam
alguns problemas: ambos mostram, no local da injeção, marcação em neurônios que podem não ter
transportado o traçador; e, no geral, seus locais de
injeção apresentam um borrão central, o que torna
difícil determinar com precisão quantos e quais neurônios captaram o traçador (Fig. 1c). Em contraste,
no local da injeção do vetor viral, apenas neurônios
que captaram o vetor e encorporaram seu material
genético apresentam marcação para GFP, por isso
podemos ver a exata população de neurônios que
expressa GFP e está apta a transportá-lo (Fig. 1a e
b). Devido à necessidade da maquinaria genética
para a expressão de GFP, é praticamente impossível
a marcação devido à captação do vírus por fibras
de passagem, mesmo que estas estejam lesadas.
Outra vantagem está no fato de que, desde que o
vírus não seja tóxico ao neurônio, a expressão de
GFP pode perdurar por meses, permitindo o traçamento de longas projeções, enquanto que PHA-L e
BDA são degradados em torno de 5 semanas após
injeção [9, 10]. Portanto, o vetor viral pode se tornar
uma boa ferramenta para traçamento em sistemas
nervosos cujo exame só pode ser feito muito tempo
depois da injeção, como em alguns animais de grande
porte ou até em humanos voluntários na ocasião de
outra cirurgia, permitindo, após a morte “natural” do
indivíduo, a visualização de uma via traçada por uma
injeção feita meses ou até anos antes.
Tipos de vírus
Os principais tipos de vírus utilizados como vetores são o lentivírus e o vírus adeno-associado (AAV). O
lentivírus possui virulência e necessita de um cuidado
especial no transporte, manuseio e armazenamento.
O AAV é um tipo de vírus que não carrega nenhuma
proteína viral, à exceção da cápsula (que é eliminada
poucas horas após infecção), por isso não é virulento
e não ativa processos inflamatórios em demasia [11].
Além disso, AAV tipo 2 infecta apenas neurônios e
tem uma taxa de infecção alta [8,12,13].
Carga viral
Apesar do tipo de vírus determinar o tipo de célula
a ser infectada e a taxa de infecção, é a carga viral que
determina a eficácia e especificidade do traçamento.
Quando a intenção é utilizar o vírus como um traçador
geral, usa-se a molécula marcadora associada a um
promotor geral, ou seja, que será “lido” por qualquer
19
20
Neurociências • Volume 6 • Nº 1 • janeiro/março de 2010
Figura 1 - Injeção de vetor viral. (A) Neurônios expressando GFP, revelado por imunoperoxidase, após injeção
do vetor viral AAV no núcleo parabraquial. (B) Maior aumento da caixa em A. (C) Injeção de PHAL no núcleo
parabraquial. Note a diferença no aspecto da injeção. Abreviações: bc, pedúnculo cerebelar superior; IC, colículo inferior. Modificado de [11,15].
Perspectivas
A utilização de vírus como traçador ainda engatinha no Brasil, pois laboratórios de virologia local não
desenvolvem os vetores a serem utilizados. Além do
mais, os bons resultados trazidos por estudos com
traçadores mais acessíveis como o PHA-L e BDA,
põem em xeque a real necessidade da utilização de
vírus. No entanto, fica claro que, quando se trata de
traçamento de vias específicas ou após longo período
de sobrevida, os vírus se mostram como ferramenta
especial, única e de futuro promissor.
Agradecimentos
célula infectada. Os promotores gerais mais utilizados são o CMV (citomegalovírus) e o CBA (chicken
beta actin). No entanto, podemos gerar promotores
que só podem ser “lidos” por neurônios específicos,
tornando tais vírus traçadores específicos. Por exemplo, Card et al. [14] utilizaram injeção de lentivírus
que carregava a GFP sob controle de um promotor
sintético de dopamina-β-hidroxilase (DBH; primeira
enzima da cadeia de síntese das catecolaminas) para
traçar as projeções do grupamento C1 de neurônios
catecolaminérgicos. Como tal promotor só é lido por
neurônios catecolaminérgicos, apenas este tipo de
neurônio infectado pelo vírus expressou GFP e pode
ser traçado. Essa “brincadeira” com a carga genética
é talvez a maior vantagem da utilização de vírus como
traçador e abre a possibilidade da geração de uma
infinidade de tipos de traçadores específicos.
Agradecimento a Tanágara Irina de Siqueira Neves Falcão pela revisão do texto. JCC é apoiado pela
FAPERN e CNPq.
Referências
1.
2.
3.
4.
5.
Cavalcante JC, Canteras NS. Traçadores neuronais
anterógrados. In: Bittencourt JC, Elias CF, eds. Métodos
em Neurociência. São Paulo: Roca; 2007. p.133-46.
Cavalcante JC; Elias CF. Traçadores neuronais
retrógrados. In Bittencourt JC, Elias CF, eds. Métodos
em Neurociência. São Paulo: Roca; 2007. p.115-31.
Kelly RM, Strick PL. Rabies as a transneuronal tracer
of circuits in the central nervous system. J Neurosci
Methods 2000;103:63-71.
Norgren RB Jr, Lehman MN. Herpes simplex virus
as a transneuronal tracer. Neurosci Biobehav Rev
1998;22:695-708.
Kuypers HG, Ugolini G. Viruses as transneuronal
tracers. Trends Neurosci 1990;13:71-5.
Neurociências • Volume 6 • Nº 1 • janeiro/março de 2010
6.
Sita LV, Bittencourt JC. Imunoistoquímica,
In Bittencourt JC, Elias CF, eds. Métodos em
Neurociência. São Paulo: Roca; 2007. p.57-79.
7. Song S, Wang Y, Bak SY, Lang P, Ullrey D, Neve RL,
O’Malley KL, Geller AI. An HSV-1 vector containing
the rat tyrosine hydroxylase promoter enhances both
long-term and cell type-specific expression in the
midbrain. J Neurochem 1997;68:1792-803.
8. Kaplitt MG, Leone P, Samulski RJ, Xiao X, Pfaff DW,
O’Malley KL, During MJ. Long-term gene expression
and phenotypic correction using adeno-associated
virus vectors in the mammalian brain. Nat Genet
1994;8:148-54.
9. Gerfen CR, Sawchenko PE. An anterograde
neuroanatomical tracing method that shows the
detailed morphology of neurons, their axons and
terminals: immunohistochemical localization of an
axonally transported plant lectin, Phaseolus vulgaris
leucoagglutinin (PHA-L). Brain Res 1984;290: 219-38.
10. Brandt HM, Apkarian AV. Biotin-dextran: a sensitive
anterograde tracer for neuroanatomic studies in rat
and monkey. J Neurosci Methods 1992;45:35-40.
11. Chamberlin NL, Du B, de Lacalle S, Saper CB.
Recombinant adeno-associated virus vector: use for
12.
13.
14.
15.
transgene expression and anterograde tract tracing in
the CNS. Brain Res 1998;793:169-75.
Davidson BL, Stein CS, Heth JA, Martins I, Kotin
RM, Derksen TA, Zabner J, Ghodsi A, Chiorini JA.
Recombinant adeno-associated virus type 2, 4, and 5
vectors: transduction of variant cell types and regions
in the mammalian central nervous system. Proc Natl
Acad Sci U S A 2000;97:3428-32.
Kaspar BK, Vissel B, Bengoechea T, Crone S, RandolphMoore L, Muller R, Brandon EP, Schaffer D, Verma IM,
Lee KF, Heinemann SF, Gage FH. Adeno-associated
virus effectively mediates conditional gene modification
in the brain. Proc Natl Acad Sci U S A 2002;99:2320-5.
Card JP, Sved JC, Craig B, Raizada M, Vazquez J,
Sved AF. Efferent projections of rat rostroventrolateral
medulla C1 catecholamine neurons: Implications for
the central control of cardiovascular regulation. J
Comp Neurol 2006;499:840-59.
Bester H, Besson JM, Bernard JF. Organization of
efferent projections from the parabrachial area to the
hypothalamus: a Phaseolus vulgaris-leucoagglutinin
study in the rat. J Comp Neurol 1997;383:245-81.
21