Música é arte e o corpo faz parte: as relações entre movimento corporal e construção musical The body as part of musical art: the relationship between body movement and musical development Patrícia Fernanda Carmem Kebach RESUMO: Neste artigo abordam-se os estudos realizados na área de Educação Musical que refletem sobre as relações entre movimentação corporal e construção musical. Os autores investigados e citados neste trabalho propõem uma pedagogia musical que utilize a movimentação corporal como forma significativa de apropriação do conhecimento musical, pois, através de uma visão construtivista, pensa-se que a ação precede qualquer compreensão e o organismo como um todo está implicado nos processos de construção do conhecimento musical. Traz-se na primeira parte do texto a reflexão sobre os Métodos Ativos, onde se abordam alguns dos pedagogos musicais que pioneiramente refletiram sobre as relações entre corpo e construção sonoro-musical e, posteriormente, abordam-se as novas pesquisas na área. A autora, com estas reflexões, pretende trazer um referencial teórico capaz de contribuir para práticas de musicalização mais significativas, e apontar para a importância da movimentação corporal, especialmente nos processos de sensibilização musical, para a compreensão dos elementos da linguagem musical. Palavras-chave: Educação Musical – Métodos Ativos – movimento corporal e musicalização Abstract: In this article, we intend to approach several Music Education studies that concern the relationship between body movement and musical construction. The authors we investigate and quote come up with a musical pedagogy that uses body movement as a great way to develop musical knowledge. Through constructivism, we believe that the action goes before any comprehension and our whole body is involved in the musical development processes. In the first part of the article, we discuss the most popular actives methods for Music Education of the twentieth century and the last researches that speculates about body movement and music learning. This article intends to contribute and to foster the discussion about more significant musical experiences and to point toward the relevance of the relationship between body movements and music on musical awareness and to understand the musical speech elements. Keywords: musical education – actives methods - body movement and musical learning Introdução Atualmente, vários educadores musicais já estão tomando consciência sobre a importância da movimentação corporal para a apropriação do conhecimento musical durante as aulas de música. O precursor destas ideias foi o vienense Émile JaquesDalcroze, que acabou se radicando na Suíça. Este autor considera a educação musical, pela primeira vez do ponto de vista do sujeito, introduzindo em suas aulas o movimento corporal e a atividade reflexiva de modo consonante. A importância do movimento corporal na compreensão musical, baseada nas ideias de JaquesDalcroze, é citada em pesquisas atuais como a de Ciavatta (2003), Bündchen (2005), Lima & Rüger (2007) e Rodrigues (2009). Na obra desses autores fica claro que na construção musical, a ação precede a compreensão (PIAGET, 1978). A temática deste estudo surgiu das participações da autora em Oficinas ministradas por colegas da área de Educação Musical, que basearam seus trabalhos nos métodos ativos e na importância da movimentação corporal para a apropriação musical, e também das reflexões realizadas junto à professora Denise Bündchen (BUNDCHEN & KEBACH, 2005), que foram amadurecendo conforme a autora deste texto participava de tais oficinas e realizava suas próprias em várias cidades do estado e fora dele. Assim, ao aprender a utilizar o corpo como recurso para aulas de sensibilização musical, a autora criou situações de ensino e aprendizagem musical, procurando mesclar métodos e priorizar por ações que envolvessem a movimentação corporal no fazer musical. Um dos cursos criados pela autora deste texto, em sua instituição de vínculo, foi o curso de extensão chamado “O corpo como instrumento musical: práticas alternativas de musicalização”. Na primeira aula deste curso, propôs-se uma prática de rondó, cujo trecho que deveria ser repetido por todos, como episódio de retorno, era o pequeno verso “Música é arte e o corpo faz parte”, criado pela professora, para que os participantes pudessem improvisar uma apresentação individual musical, procurando criar pequenos versos, intercalados com este verso principal, que se repetia a cada final de apresentação individual. O pequeno verso ficou ressoando como imagem mental e acústica na mente dos participantes, professores em formação, e serviu como norte para as reflexões sobre textos que eram debatidos no curso sobre o uso da movimentação, vocalização e percussão corporal como possibilidade de experimentação musical. A recorrência de referências a este verso chamou a atenção da autora o foi o que provocou a redação do presente artigo. Assim, neste artigo, além das pesquisas atuais sobre o tema, pretende-se trazer as concepções teóricas de alguns dos representantes dos Métodos Ativos que também pensam que o ser humano, para se apropriar da linguagem musical, precisa vivenciá-la com todo seu corpo, antes de transformá-la em uma audição interior. 68 Os Métodos Ativos em Educação Musical A palavra método, conforme Jaramillo (2004), em seus primórdios de adoção no contexto educacional, remetia ao aspecto do ensino de algum conteúdo. No caso dos métodos musicais, tratava-se de se ensinar algum instrumento ou solfejo, mediante exercícios ordenados, segundo o que cada autor considerava como dificuldade crescente em seu período histórico. Nesse sentido, poderia se considerar o método como um texto ou uma listagem de exercício, acompanhada ou não por algum tipo de reflexão, segundo cada época em que foi elaborado. O conceito de ensino-aprendizagem de seu criador estaria implícito nestes escritos. No século XIX, os mestres elaboravam, a partir da observação sobre as dificuldades específicas de seus discípulos, aprendizes de música, exercícios personalizados para que este músico iniciante pudesse se guiar e ultrapassar suas dificuldades. O racionalismo cartesiano deste período permeia o olhar destes mestres, pois todos os exercícios são ordenados por grau de dificuldade. O valor dado ao virtuosismo a partir do século XVII foi o que desencadeou esta sistematização de estratégias para a aprendizagem técnica refinada e interpretação cada vez mais precisa, o que permitia exaltar compositores e intérpretes – cantores e instrumentistas – como sendo “extraordinários”. Certamente esta ênfase na reprodução perfeita de partituras, cuja fidelidade interpretativa garantia na época aos músicos reconhecimento, contribui muito para que se instaurasse o mito do “dom natural” ou “talento”, pois somente algumas famílias mais abastadas poderiam garantir a seus filhos o acesso a tal tipo de educação personalizada. O virtuosismo garantia à técnica um papel de “primeiro plano”, e à criatividade interpretativa era menosprezada. Assim, esses métodos eram compostos basicamente por exercícios repetitivos. Ainda hoje em alguns ambientes de Educação Musical podemos encontrar esta perspectiva teórica no ensino da música, cujo educador elabora as tarefas de acordo com graus de dificuldade que ele considera, a partir de sua própria perspectiva. Esta perspectiva desconsidera que a criança, desde muito cedo, consegue realizar tarefas complexas, de acordo com seus próprios interesses. Nesse sentido, a complexidade ou simplicidade não estaria no produto destas atividades, mas sim, na 69 tarefa demandada. Este tipo de educação musical tem como base o valor no produto musical que será elaborado pelo aluno, não em seu processo de aprendizagem ou comunicativo e vivências suscitadas pelo aprendiz durante a realização das atividades musicais. Do ponto de vista da educação e da pedagogia, poderíamos considerar que o conceito de método está ligado a um procedimento ou modo ordenado de proceder para chegar a um resultado ou fim determinado. Estaria, portanto, ligado à ação de um docente em sala de aula. A filosofia que está por trás das reflexões, no momento de ordenação dos procedimentos didático-pedagógicos, serve de norte para a criação de estratégias, neste sentido. Assim, percebe-se a complexidade do fenômeno educativo e, portanto, a complexidade relacionada à adoção de um determinado método, não só no que tange à educação musical, mas à educação, de modo geral. Ao contrário dos Métodos Ativos, na educação musical tradicional e na geral, durante muitos anos, o objetivo do planejamento de um método se focou apenas nos conteúdos a serem transmitidos e no ensino do professor, sem levar em conta os processos de aprendizagem do aluno. Com o princípio dos Métodos Ativos, os conceitos de ensino e aprendizagem vão se modificando, e os novos pedagogos musicais buscam nas observações sobre as condutas gerais de seus aprendizes, reflexões para criarem seus próprios métodos, baseados nas informações que a reincidência de condutas poderia lhes proporcionar. Assim, a eleição de certos conteúdos ou certos procedimentos (ou métodos) são expressões deste universo de concepções que permeiam as organizações do docente. No micro universo da sala de aula podemos enxergar um sistema complexo de crenças e valores que podem ser inconscientes, mas que possuem caráter determinante nos processos de formação musical dos discentes. Como explica Jaramillo (2004, p. 10) “A atividade do docente tem uma função especificamente social e é por isso que deve ser analisada e realizada de modo consciente e crítica”. 70 O modelo mais tradicional para se trabalhar a musicalidade dos aprendizes concentra sua atenção na atividade do professor que deve transmitir conhecimento. Os Métodos Ativos, por sua vez, centram sua preocupação na participação ativa do aluno, que deverá compreender os elementos musicais trabalhados, criar expressões sonoro-musicais diversificadas, através da realização de novas descobertas e investigações. A nova pedagogia da música vislumbra o ambiente cultural e seu papel na construção do conhecimento de cada um. Os Métodos Ativos em Educação Musical têm sua origem em pensadores como Rousseau, Pestalozzi, Froebel, entre outros, e exerceu sua influência a partir do século XIX, e mais fortemente, no século XX. Esses métodos desviaram a atenção das ações sobre as condutas dos professores para se focar nas ações dos alunos, como participantes ativos dos processos de aprendizagem. Assim, o movimento da Escola Ativa foi muito importante no âmbito da Educação Musical, pois seus princípios estavam implícitos nas filosofias dos Métodos Ativos nesta área. Os Métodos Ativos que unem a movimentação corporal à apropriação musical: Jaques-Dalcroze, Willems e Orff A influência indireta do movimento da Escola Nova pode ser evidenciada nos pressupostos do método de Jaques-Dalcroze (1919) chamado “Rítmica”. Ele percebeu que o erro da educação musical estava no fato de que os aprendizes não podiam experimentar sonoramente aquilo que escreviam. Naquela época, os professores de música, durante as aulas de harmonia, não deixavam que seus alunos recorressem ao teclado para verificar se aquilo que estavam registrando estava correto. Ao observar que seus alunos, durante as aulas de teoria musical, movimentavam-se, procurando mapear corporalmente determinados intervalos de duração, ou seja, não conseguiam ouvir internamente os sons que escreviam, contentando-se em aplicar as regras aprendidas ou tentando mapear intervalos com o corpo, Jaques-Dalcroze começou um profundo trabalho de pesquisa. Assim, ele desenvolveu progressivamente um sistema de coordenação entre música e movimento, convencido de que a atividade corporal participava da elaboração de imagens mentais dos sons, que com o ensino tradicional não eram atingidas. Essas 71 primeiras reflexões abrem caminho para novos pensadores aprimorarem e ampliarem o espectro de relações entre construção musical e movimento corporal. Ele valorizou, portanto, a interação entre organismo e meio no processo de aprendizagem musical. Descobriu que as crianças deveriam aprender música desde muito cedo, para desenvolverem a capacidade de audição interior, a partir da audição e dos movimentos corporais. Sua conclusão foi a de que tudo em música, que é de natureza motriz e dinâmica, depende não somente do ouvido, mas do corpo, como um todo. Através da constatação de movimentos corporais que seus alunos faziam ao executar o piano, como a ajuda dos pés, oscilações do tronco e da cabeça etc., foi levado a pensar que as sensações musicais, de natureza rítmica, apóiam-se sobre a totalidade do organismo. Desse modo, Jaques-Dalcroze criou exercícios de caminhadas e paradas, entre outros, habituando seus alunos a reagir corporalmente à audição de ritmos musicais. Este foi o começo do que chamou de Rítmica. Jaques-Dalcroze abriu caminho para se pensar a prática de ensino musical de uma forma completamente inovadora. Ele chegou à conclusão de que a musicalidade unicamente auditiva é incompleta e de que existem ligações entre a mobilidade e o instinto auditivo, a harmonia dos sons e durações, entre o tempo e a energia, a dinâmica e o espaço, a música e o caráter, entre a música e o temperamento, entre a arte musical e a dança. Enfim, Dalcroze observa que existe uma dialética entre os processos e que esses possuem um caráter dinâmico. Assim, o pensador abre espaço para as explorações vocais e instrumentais (piano e percussão), a aprendizagem rítmica através da movimentação corporal (andar, pular, saltar, correr, etc.), enfim, para uma educação do ouvido através do canto, do jogo e do movimento. Na concepção de Jaques-Dalroze, sentindo a música através do movimento, seus alunos seriam capazes progressivamente de tocar expressando uma maior musicalidade. Aluno e seguidor das ideias de Dalcroze, o belga Edgar Willems também se radicou na Suíça, aonde aprendeu com seu mestre uma nova forma de se relacionar com a Educação Musical. Willems (1987) relaciona a música à natureza humana e, em sua 72 proposta, dedica-se ao estudo da audição em seus três aspectos correlativos: físico (ou sensorial), afetivo e mental. O pedagogo musical propôs que toda a criança pode ser preparada auditivamente, de modo a aprender a ouvir os materiais sonoros básicos que compõem a música e a organizá-los com a experiência musical. Edgar Willems propõe que o preparo auditivo deve preceder o ensino de um instrumento musical específico, pois a escuta é a base da musicalidade. Na sistematização de seu método, Willems propõe exercícios especiais para a distinção auditiva dos parâmetros do som, especialmente no que tange ao parâmetro altura, procurando desenvolver não somente a capacidade de diferenciação dos tons e semitons, mas também o espaço intra-tonal. Ele atribuiu grande importância à renovação na educação musical, que passaria primeiramente pela admissão do fato de que existe uma ligação bem estreita entre a arte e a psicologia. Assim, a música deveria ser olhada sob o ângulo psicológico, ou seja, o estudo das ligações que unem a música e seus elementos essenciais à natureza humana. Esses elementos (o ritmo, a melodia, a harmonia, a composição e a inspiração), segundo Willems, receberiam seus impulsos de certos aspectos correspondentes à natureza do homem. Dessa forma, o ser humano no seu todo, sensorial, afetivo e mental, vivenciaria a prática musical e para ela contribuiria. A educação do ouvido musical é um ponto-chave na teoria de Willems. Na obra em que trata da preparação musical das crianças pequenas, Willems (1987) descreve a importância de um despertar musical precoce. No período pré-escolar, de três a seis anos, a criança se encontraria num amplo amadurecimento cerebral. Desse modo, as características de seu método estão preconizadas a partir de duas características essenciais: o conhecimento aprofundado dos princípios psicológicos da educação musical, princípios esses baseados nas relações existentes entre os elementos fundamentais da música e os da natureza humana, e a disposição de um material musical apropriado para o começo de uma educação sensorial das crianças. Assim como Jaques-Dalcroze, Willems (idem) revela a importância dos movimentos para o desenvolvimento rítmico e também do ponto de vista das ligações entre o som e o ritmo. Compôs uma série de músicas específicas para trabalhar padrões 73 rítmicos variados, em que as crianças deveriam marchar, correr, galopar, saltar conforme a música tocada. Em uma ordem de associações, diz o autor, devemos dar grande importância, no começo, às relações diretas e reais que existem entre o ritmo musical e o movimento e, como em meio a todos os sentidos o movimento é o mais desenvolvido na criança, é importante explorar essa necessidade de se mexer que a criança possui em benefício da música. Willems sugere que a movimentação através da música conduz a criança a uma escuta geradora de aprendizagem e, por isso, a uma resposta criativa, em que se torna capaz de explorar as ideias expressivas contidas no objeto sonoro assimilado. Segundo ele, o movimento deve ser visto como modo de expressão criativa da música. Willems (1981, p.29) salienta ainda a relação entre melodia e movimento: “O elemento principal da melodia é o intervalo melódico, o qual representa um movimento de um som ao outro. Este movimento, que acontece no tempo, pode sentir-se como realizado no espaço”. Outro Educador Musical que dá ênfase à movimentação corporal para a apropriação do conhecimento musical é Carl Orff. Este compositor alemão, além de ter produzido uma série de obras renomadas, foi um dos grandes nomes a incorporar em linha de frente os Métodos Ativos em Educação Musical. Iniciou seus trabalhos em pedagogia da música em Munique, junto a Dorothee Günther com quem criou a Günther-Schule, “escola para educação moderna corporal e de dança”. Vemos já aí as raízes da filosofia educacional de Orff, uma vez que este intentou unir a linguagem verbal, a dança e a música, na busca de um método capaz de sensibilizar musicalmente as crianças, desde muito cedo. Para Orff, a aquisição das habilidades avançadas em improvisação com o piano poderia ser substituída pela utilização de uma grande variedade de instrumentos de percussão. Jaramillo (2004) conta que foi necessário enriquecer as ideias iniciais de Orff para adaptar o método para os pequenos. Assim, Orff propôs um material adequado, criando instrumentos de percussão e trabalhando com a expressividade vocal, palavras faladas, rimas, cantos e um repertório baseado em escalas 74 pentatônicas. A movimentação corporal, no momento da expressividade musical é algo essencial na concepção de Orff. Orff parte da premissa que não existem adultos ou crianças que não possam aprender música. Uma formação adequada, portanto, poderia desenvolver a capacidade de se perceber ritmos, alturas e formas musicais, além de tornar possível a participação de todos em atividades criativas coletivas. O conceito de educação musical de Orff nasce da necessidade de expressividade e tem como núcleo a união entre gesto, música e palavra, considerando esta última em seus significados literais, como substância rítmica e de articulação de frases e sílabas. Chama a isto de “música elementar”. Assim, as ideias de Orff conectam-se, da mesma forma que as de Jaques-Dalcroze e Willems, ao conceito de Método Ativo, pois a partir delas, possibilita-se aos alunos a plena atividade, criatividade, motivação, autonomia, mesmo que trabalhem em produções musicais coletivas, e se parte da ação à compreensão. As propostas atuais de musicalização com base na relação movimento corporal e produção sonoro-musical São muitas as propostas atuais de musicalização que unem a movimentação corporal e a produção musical, com base nos Métodos Ativos citados no item anterior, a fim de possibilitar construções musicais progressivas. Nesta parte do texto, abordam-se primeiramente os estudos atuais brasileiros sobre o tema e, posteriormente, algumas pesquisas que foram realizadas na França. Lima e Rüger (2007) investigam o trabalho corporal nos processos de sensibilização musical e afirmam que os educadores musicais que trabalham com o movimento corporal podem “desbloquear tensões e inibições, conscientizando seus alunos e livrando-os dos preconceitos e condicionamentos sociais que criam inúmeros empecilhos para a livre manifestação do ser em sua integralidade, tornando-os mais criativos” (p.113). Eles afirmam ainda que a tomada de consciência sobre a 75 importância de se efetivar as relações entre o trabalho corporal e a musicalização, por parte dos professores, pode contribuir muito para um trabalho pedagógico mais significativo. Ao encontro destas ideias, a pesquisa de Bündchen (2005) procurou investigar a relação do movimento corporal na construção do conceito de ritmo a partir de um trabalho de composição coletiva. O estudo foi desenvolvido a partir da observação sobre uma situação de musicalização em ambiente de canto coral, cujos sujeitos investigados foram 30 meninas com idades entre 11 e 18 anos. A autora propõe que a integração do movimento corporal às situações de ensino e aprendizagem musical compreende uma proposta de canto coral construtivista, a partir da qual se deve levar em conta a trilogia cognição-música-corpo. Assim, o corpo teórico da autora, além de basear-se nos autores dos Métodos Ativos citados anteriormente, busca um aprofundamento na teoria construtivista interacionista de Jean Piaget. O conceito piagetiano de tomada de consciência é amplamente utilizado para explicar os fenômenos observados, ou seja, o processo de construção rítmica dos sujeitos pesquisados, no momento de realizarem as tarefas demandadas, com base na exploração, expressão e construção musical através da movimentação corporal. A pesquisadora demonstra, em suas conclusões que [...] o movimento corporal favorece a compreensão da estruturação rítmica, desencadeando tomadas de consciência a partir da observação de si mesmo, pois é o próprio corpo em movimento que desenha os tempos no espaço. Além disso, sentir o próprio corpo nesse processo tem favorecido a performance de modo geral, contribuindo com a afinação, a descontração e a expressividade do grupo. (BÜNDCHEN, 2005, p. 5) Outro autor que vem apontando para a importância da movimentação corporal para a apropriação musical é o professor Ciavatta (2003), que criou um método especial para se trabalhar o desenvolvimento rítmico e melódico dos aprendizes de música. Chamou-o de “O Passo”. O autor diz que a relação entre movimento corporal e movimento musical pode alterar e definir as produções musicais e explica: Nesse sentido, um processo de ensino-aprendizagem na área de Música que desconsidere estes dois tipos de movimento se verá sempre fragilizado e, dependendo da compreensão ou habilidade requerida, apresentará lacunas que apenas o resgate desta relação poderá preencher (idem, p. 64) 76 Seu método é realizado para trabalhar a pulsação através de “uma série de marcações, audíveis ou não, com intervalos regulares de tempos entre si, utilizadas como referência para que se possa tocar, cantar, compor, registrar ou ler um determinando ritmo” (ibidem, p. 18). Ciavatta descreve o método da seguinte forma: “Caminhar para frente e para trás, terminando assim no mesmo lugar. Simples e objetivamente, dar um passo para frente com o pé direito, trazer o esquerdo completando o deslocamento, dar outro passo para trás com o pé direito e trazer novamente o esquerdo” (idem, p. 28). Esses quatro passos, portanto, formam um ciclo constante, quaternário, que com o tempo o autor passou a denominá-lo “O Passo”. Também Rodrigues (2009) estuda as relações entre o movimento corporal e a construção musical investigando as relações possíveis de serem estabelecidas entre a música e a dança. Assim, a autora procura compreender como a movimentação corporal provocada pela dança pode contribuir para a aprendizagem em música. Rodrigues propõe que “para a música, cada gesto explorado e ampliado proporciona uma maior interpretação, musicalidade, dinamismo, melhora da técnica e execução da obra musical” (idem, p. 48) e afirma que “Como a música e a dança são artes afins, completando-se em gesto e sentido, é necessário um novo olhar sobre ambas, desprovido de preconceito, carregado de uma sensível leitura por parte do educador e do sujeito/artista” (idem, p. 49). O pensamento de Rodrigues vai ao encontro de pesquisadoras francesas, que também pensaram as relações entre o movimento e a musicalização. Uma delas é Claire Noisette (1997). Ela desenvolveu uma metodologia de ensino da música, em conjunto com a dança, voltada para a pré-escola. A professora de música e coreógrafa aborda a importância da iniciação conjunta da música e da dança e procura responder, baseada especialmente em sua experiência de sete anos em iniciação musical, ao porquê desse acoplamento, em quais condições pedagógicas ele deve se dar, quais os métodos, os resultados e perspectivas oferecidas hoje por essa iniciação conjunta. 77 Noisette defende a tese de que o preparo das crianças rumo à evolução no mundo cultural e artístico aberto e criativo é possibilitado pela forma interacionista de proporcionar conhecimento e técnica de base, facilitando a aprendizagem musical e coreográfica das crianças. A autora salienta ainda a necessidade que as crianças do maternal possuem de se movimentar e, por isso, uma atividade física, fundamentada em jogos, nesta fase de desenvolvimento, proporciona o prazer da descoberta das possibilidades corporais. Tanto músicos quanto dançarinos se beneficiam, diz ela, desta aprendizagem conjunta, já que os dançarinos devem estar à escuta de seu corpo, do corpo dos outros, dos sons e do espaço em volta, e o músico, por sua vez, deve aprender a conhecer seu próprio corpo, a se mexer, a procurar melhorar sua atitude corporal, aprimorando, assim, sua execução e sua capacidade de expressão. A diferenciação das qualidades do som passa, segundo a autora, naturalmente pelo corpo, pelo movimento e deslocamento no espaço, sendo a escuta essencial também para os bailarinos. Assim, constrói-se uma escuta através do deslocamento no espaço e “essa diferenciação é simples de sentir se for vivenciada corporalmente, num primeiro momento, com uma referência contínua através do suporte gráfico” (ibidem, p.12), diz ela, baseada na pedagogia de Jaques-Dalcroze. A pulsação e sua interiorização têm, assim, uma grande importância no começo dessa aprendizagem conjunta. Logo em seguida, o reconhecimento do tempo forte, trabalhando diferenciações de pesos relacionados ao tempo em música (o tempo forte é pesado, e o seguinte é leve, por exemplo) e das direções. Noisette afirma que o som só se torna música através de suas modificações no tempo, estando, assim, relacionado à ideia de movimento. O pensamento de que o sujeito apreende primeiramente o mundo pelo próprio corpo é uma das maiores justificativas para esse método de ensino conjunto entre música e dança. Outras professoras de música francesas que também apoiam a ideia de um despertar musical precoce são Agosti-Gherban e Rapp-Hess (1986). As autoras afirmam que o professor precisa respeitar a personalidade das crianças, que não são apenas pequenas pessoas a serem educadas, mas sujeitos que constroem seu conhecimento musical a partir de brincadeiras e experimentação de vários tipos de 78 sons, a fim de tomar consciência do todo, organizando-o, a partir de uma escuta ativa e da movimentação corporal. Trata-se, desse modo, de uma pedagogia relacionada a uma educação do ouvido rumo a uma nova escuta, ativa e criativa. Segundo elas, a criança deve [...] tomar consciência do ambiente sonoro, dos parâmetros do som, dos barulhos exteriores e corporais, do silêncio, por intermédio do movimento, do jogo, da imaginação, do grafismo. Viver todas as noções antes de verbalizá-las, a análise permitindo ultrapassar o estágio de manipulação pura, que é fundamental, para a utilização consciente do objeto sonoro. Tudo isso permite à criança a obtenção da coordenação de si mesma, de ter uma maior consciência de si e do grupo” (AGOSTI-GHERBAN & HAPPHESS, 1986, p.16). Na mesma linha das autoras supracitadas, Gagnard (1977) sugere que a personalidade da criança é uma criação contínua e que os educadores têm o dever de ajudar nessa construção, utilizando pedagogias que permitam o desenvolvimento de todas as possibilidades que a criança possui. Sobre o plano musical, a autora propõe atividades que visam a um duplo objetivo: o desenvolvimento potencial das faculdades criativas da criança e a contribuição a estruturar interiormente este ser que está se desenvolvendo. Nas palavras da autora, [...] este despertar sensorial musical deverá então ser começado o mais cedo possível, no momento em que a criança é permeável a todas as sensações, pois nesse estágio de sua evolução, ela não sabe diferenciar ainda a causa do som, o objeto do qual ele emana e aquilo que escuta. Ela se deixa impregnar pelas vibrações sonoras que interioriza, a ponto de se identificar com elas (GAGNARD, 1977, p. 15). Gagnard (idem) reafirma a importância da pesquisa em psicologia musical, apoiada na teoria piagetiana, para fornecer as bases de criação de uma pedagogia ativa. A passividade, segundo ela, deve ser descartada, pois, nos primeiros anos de vida, a criança adquire certas noções, não totalmente via intelecto, mas especialmente pela ação motora, assimilando com seu corpo os conceitos de espaço e de tempo, os quais serão ancorados nela própria porque os terá vivenciado. Musicalmente, isso se traduziria pelos jogos de exercícios rítmicos, que intervêm na sua atividade motora e sensorial, visto que a criança comprova a necessidade de concretizar suas percepções sob a forma de movimentos, de desenhar no espaço formas e figuras, transpondo, assim, os sons e os ritmos para o próprio corpo. Esse fato, além de ajudar o refinamento da audição da criança, também faz com que ela sinta a música 79 através de seus músculos, contribuindo na sua evolução geral, pois esse tipo de prática mexe na constituição interna e fornece as bases da inteligência especulativa partindo da música (ibidem, p. 16). Considerações finais Para que o sujeito possa representar a música mentalmente, abstraindo-a formalmente (PIAGET, 1995), são necessárias ações concretas musicais, o mapeamento corporal dos sons (CIAVATTA, 2003), a vivência prática musical, pois de acordo com o pensamento piagetiano, pensa-se que as tomadas de consciência (PIAGET, 1978) sobre os elementos musicais e a abertura de novas possibilidades de organização sonoro-musical só é possível pela generalização na ação concreta. Portanto, propõe-se neste estudo que a prática, a ação concreta através da movimentação corporal possibilita ao aprendiz de música uma construção progressiva e sólida musical (KEBACH, 2008). Esta proposição parece sintetizar o pensamento de todos os autores citados no presente artigo e vem norteando cotidianamente as ações da autora deste texto, enquanto professora e pesquisadora da área de Educação Musical. Música é arte e o corpo faz parte! Referências AGOSTI-GHERBAN, C. & RAPP-HESS, C. L’enfant, le monde sonore et la musique. Paris: Presses Universitaires de France, 1986. BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. BÜNDCHEN, Denise B. S. A relação ritmo-movimento no fazer musical criativo: uma abordagem construtivista na prática de canto coral. Dissertação de Mestrado. UFRGS – FACED, 2005. BÜNDCHEN, Denise Sant’Anna; KEBACH, Patrícia Fernanda Carmem. A criação de novos esquemas musicais com base na relação som-movimento. In: BEYER, Esther (org.). O som e a criatividade: reflexões sobre experiências musicais. Santa Maria: UFSM, 2005. p. 133-149. 80 CIAVATTA, Lucas. 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