gt – 08: geografia histórica urbana

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GT – 08: GEOGRAFIA HISTÓRICA URBANA
METODOLOGIA PARA A GEOGRAFIA HISTÓRICA URBANA:
DEPOIMENTOS ORAIS [OU TESTEMUNHOS] COMO DOCUMENTOS
Everaldo Batista da Costa
Universidade de Brasília
[email protected]
À memória do professor Antônio Carlos Robert de Moraes.
Eterna gratidão pelos muitos ensinamentos.
RESUMO
Parte-se do pressuposto de que o passado é noção que sintetiza fatos memoráveis para
todo sujeito situado ou em situação espacial. Esse argumento ganha relevo ante ao
objetivo de defender depoimentos orais ou testemunhos como documentos caros à
pesquisa em Geografia Histórica Urbana, por subsidiarem pesquisas que não devem
perder de vista a referência espacial do passado. A retomada da história, o respeito às
categorias e aos princípios do pensamento geográfico, o tratamento das fontes
documentais primárias e secundárias são apontadas como balizamento dessa Geografia
voltada ao pretérito. Logo, metodologicamente, é feita uma aproximação à recente
Geografia Histórica brasileira, são sugeridos depoimentos orais ou testemunhos como
documentos nessa Geografia e, por fim, é apresentada uma agenda de pesquisa para
uma Geografia Histórica Urbana do Distrito Federal do Brasil, com fundamento nos
depoimentos dos operários da construção da cidade e de suas esposas [1956-1960].
Palavras-chave: Geografia Histórica Urbana. Metodologia. História oral. Distrito
Federal.
1
1. INTRODUÇÃO
A observação direta é um recurso de conhecimento geográfico por excelência.
Contudo, os meios de investigação do passado espacial visível ou invisível estão,
também, no repertório técnico de outras ciências. Por um lado, se a Geografia é una por
seu objeto, por outro, é diversa em suas formas de conhecimento, a utilizar
metodologias de abordagem elaboradas com outras finalidades por ciências que
concorrem para sua informação global (George, 1986).
Nessa lógica, é possível argumentar a favor dos princípios lógicos que carecem
de estudo nuançado, ainda hoje, por parte dos epistemólogos e metodólogos da
Geografia, uma vez que distância, conexão, extensão, escala, posição, localização,
distribuição, dentre outros, é que dão unidade à disciplina. 1 Esse prelúdio serve para
dizer que se pretende desvendar, neste ensaio, quais princípios são assumidos pela
Geografia História Urbana a caracterizá-la. Para tanto, recorre-se a estudos de Maurício
de Almeida Abreu, Pedro de Vasconcelos e Antônio Carlos Robert Moraes, bem como a
trabalhos apresentados, nos últimos anos, em mesas relativas a esse recorte.
Após o reconhecimento metodológico atinente às pesquisas mais atuais voltadas
à área, propõe-se o testemunho ou depoimento oral como mais um tipo de fonte
primária muito relevante à pesquisa em Geografia Histórica Urbana.
1
O autor tem em andamento o projeto de um livro sobre os Princípios lógicos e a unidade da Geografia.
2
2. APROXIMAÇÃO METODOLÓGICA
HISTÓRICA URBANA BRASILEIRA
À
RECENTE
GEOGRAFIA
Tem-se como premissa a necessidade científica de investigação permanente dos
novos rumos ou mudanças metodológicas ocorridas nas diferentes áreas da Geografia.
No caso deste trabalho, elegeu-se a Geografia Histórica [especificamente com viés na
formação territorial urbana] como objeto analítico. Para tanto, adotam-se duas
estratégias: a) interpretação do debate assumido por alguns dos principais geógrafos
brasileiros debruçados sobre a atual Geografia Histórica; b) análise-síntese dos trabalhos
apresentados em mesas relativas à área, no II ENHPG - Encontro Nacional de História
do Pensamento Geográfico, ocorrido na Universidade de São Paulo, em 2009 [mesa
Geografia Histórica e História Territorial], e no XIII SIMPURB - Simpósio Nacional de
Geografia Urbana, realizado na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, em 2013
[mesa Geografia Histórica Urbana].2
Muitos são os autores [geógrafos e não geógrafos] que contribuíram e continuam
a contribuir para o caminho de uma consolidação da área tida por Geografia Histórica.
No entanto, pelo parco espaço que se tem para este ensaio [que não é de revisão
bibliográfica, mas de proposta metodológica], opta-se por dialogar, neste item, com os
que são considerados aqui como principais pensadores geógrafos voltados à temática, na
atualidade [por mais que não haja consenso sobre tal consideração]: Maurício de
Almeida Abreu, Pedro de Almeida Vasconcelos e Antônio Carlos Robert de Moraes.
A obra de Maurício de Almeida Abreu é basilar de um percurso da Geografia
Histórica brasileira. O autor assumiu o debate da geografia urbana histórica da cidade
do Rio de Janeiro e, no entanto, contribui, de maneira mais ampla, para a construção
metodológica desta área. Pressupostos metodológicos presentes em algumas de suas
obras serão analisados.
2
Justifica-se a escolha destes dois importantes eventos para análise em função da participação do autor
nas mesas descritas.
3
Em Construindo uma geografia do passado, Maurício de Abreu reconhece três
regras fundamentais para o estudo geográfico do passado. Entende, inicialmente, que as
categorias de análise da Geografia são universais, mas as variáveis que as dão corpo não
o são, o que exige atenção na adequação destas variáveis ao seu espaço-tempo. A
segunda observação é a da importância da contextualização do “presente de então”, ou
seja, do passado. “Embora informado pelo presente, o passado não é presente” (Abreu,
2000, p. 18), o que exige pesquisa indireta (fontes secundárias) e pesquisas diretas
(arquivos de memórias documentais). Por fim, o autor argumenta que as geografias do
passado não trabalham com o passado propriamente dito, mas com fragmentos deixados
por ele. “Por isso, é preciso sempre desconfiar dos vestígios que encontramos, pois os
documentos não são neutros, isto é, incorporam estruturas de poder” (Abreu, 2000, p.
18). Para esse geógrafo, deve-se buscar dar conta também daquilo que não deixou
vestígios, mas que se desconfia da ocorrência.
Essas ponderações iniciais apontam, especialmente, para a coerência do
tratamento categorial em Geografia Histórica. Por exemplo, concepções mais atuais de
espaço, território e paisagem fazem-se pela evidência do mundo técnico mais presente, a
demandar adequação aos princípios sociais (ou da relação sociedade-natureza) e morais
relativos ao espaço-tempo pretérito da análise, o que requer o máximo cuidado histórico
do geógrafo. Isso quer dizer que a Geografia Histórica tem nas categorias do campo do
saber geográfico instrumental potencial necessário para o resgate não somente
morfológico ou de objetos geográficos que existiram ou que permanecem, mas dos
processos de relações socioespaciais do passado, ou seja, das feições expressivorepresentativas da política, da economia e da cultura pretéritas. Pode-se argumentar, a
partir disso, que o pesquisador que tenta enquadrar seu estudo em Geografia Histórica
deve conhecer, a contento, a epistemologia da Geografia, para não incorrer no equívoco
do mal uso ou da interpretação rasteira da categoria espaço ou dos conceitos território,
paisagem, lugar e região.
Outra questão relevante posta por Maurício de Abreu no trabalho supracitado
condiz com a ideia de algumas escolas e pensadores de que a Geografia é uma “ciência
4
do presente” ou de que ela deveria se ocupar de estudar fatos e fenômenos atuais, tendo
o passado como subsídio de entendimento do presente, perfazendo-se, assim, uma
ditadura do presente. Contudo, pode-se levantar a questão: não seria o presente um
quadro espaço-temporal em metamorfose e decorrido de processos sucessivosimultâneos do passado? Sendo o espaço geográfico a sociedade, reconhecer ou
potencializar o enquadramento socioespacial do passado em seu decurso não seria
importante na dialetização socio-temporal da própria categoria espaço geográfico?
Como anunciado em estudo anterior, a dialética do espaço geográfico exige
esmiuçamento epistemológico da tríade espaço-tempo-sociedade, bem como a
abordagem do universal-particular-singular que atravessam os fenômenos, para a sua
compreensão e a do mundo, em seu passado-presente-futuro, ou seja, no seu devir
histórico (Costa, 2011).
É certo dizer que os trabalhos de Maurício de Abreu trazem como mote a
história da formação social e territorial [notoriamente, do Rio de Janeiro], fundado em
pesquisa de base, isto é, diretamente em fontes primárias, mas também em estudos já
realizados referentes aos fatos e fenômenos já estudados. Importante exemplo desse seu
esforço, que demarca uma Geografia Histórica preocupada com a formação social e
territorial fluminense, refere-se a Um quebra-cabeça (quase) resolvido: os engenhos da
capitania do Rio de Janeiro – séculos XVI e XVII. Nesse estudo, o autor reconhece a
ausência de trabalhos geográficos na temática, o que se agrava pelo incêndio que atingiu
o arquivo municipal carioca em 1790; porém, o autor identifica e localiza os engenhos
fluminenses dos séculos XVI e XVII, através de “quadros agregadores de informações”,
onde cada quadro corresponde a um engenho identificado em documentos distintos.
Assim, por exemplo,
uma informação sobre a venda, em 1664, de um partido de canas situado nas
terras de um engenho não identificado, mas que estava localizado em Irajá, foi
inicialmente considerada como um dado independente e deu origem a um
quadro que intitulamos, provisoriamente, de ‘Engenho em Irajá, 1664’. Da
mesma forma, a arrematação em praça pública, em 1683, de um engenho sem
localização declarada, mas que soubemos ser ‘de invocação Nossa Senhora do
Rosário’, constituiu nova informação isolada e deu origem a outro quadro
intitulado ‘Engenho Nossa Senhora do Rosário, 1683’. Aos poucos, entretanto,
5
foi sendo possível detectar, por indícios os mais diversos, que muitas dessas
informações ‘independentes’ referiam-se, na realidade, à mesma moenda, o que
possibilitou que todas as informações referentes a ela fossem reagrupadas num
quadro único. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o engenho citado acima.
O remembramento permitiu que descobríssemos que o engenho de Nossa
Senhora do Rosário, localizado em Irajá, já estava erguido em 1664, quando
pertencia a fulano de tal, e continuava a existir em 1683, ano em que foi
arrematado em praça pública por beltrano de tal. Esse agrupamento de
informações num quadro único possibilitou, por outro lado, que
introduzíssemos a diacronia na análise e resgatássemos a trajetória da moenda
no tempo. (Abreu, 2006, p. 06).
Essa abordagem revela uma metodologia que trata da história social do espaço,
de forma que a constituição da localização do fato engenho [enquanto uma variável
datada] operou-se pela descoberta processual de evidências em distintos documentos.
“Aos dados fornecidos pelos livros cartoriais, agregamos, a seguir, informações obtidas
em inventários, verbas testamentárias, livros de tombo das ordens religiosas, autos de
medição de terras, autos de demandas judiciais, etc., muitas das quais faziam referência
à existência de moendas ou partidos de canas” (Abreu, 2006, p. 06). Tal metodologia
sugere, em seu trabalho, princípios que não se restringem à Geografia Histórica, mas
denotam a fundamentação da Geografia como campo do conhecimento, a saber,
princípios de localização, distribuição e conexão.
Um terceiro trabalho de Maurício de Abreu que interessa destacar é Sobre a
memória das cidades, vastamente citado, especialmente por aqueles dedicados aos
estudos do urbano e da cidade (distintamente) em sua dimensão memorial, patrimonial e
documental históricas. Abreu (1998) versa sobre a importância de se preservar a
“memória urbana” e o lugar da Geografia nessa abordagem. Interessa aqui entender com
o autor que a histórica de uma determinada cidade não dispensa a análise da dimensão
única, ideográfica, do lugar, a sugerir que, para tratar da memória de um lugar há que
se trabalhar na recuperação simultânea da história no e do lugar. Essa proposição se
deve ao posicionamento de se escapar do que parece um erro crasso: a produção de
trabalhos históricos que analisam muito bem os processos sociais ocorridos num
determinado lugar, mas que pouco ou nada falam desse lugar. De forma particular, na
Geografia Histórica, Abreu (1998) argumenta que os trabalhos dedicados às cidades tem
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se limitado, em sua maioria, à reconstituição de antigas morfologias, minuciosamente
acompanhadas no tempo, a valorizar o resgate das pregressas paisagens da cidade; o
autor assinala a importância de se contextualizar as formas morfológicas pretéritas
produzidas pela sociedade com as normas e com os processos sociais que lhes deram
origem. Essa questão será retomada adiante.
Em suma, é vasta e referencial a obra de Maurício de Abreu, coroada com sua
Geografia Histórica do Rio de Janeiro. Arrisca-se sintetizar sua perspectiva
metodológica assumida em Geografia Histórica pelo respeito dado às fontes de pesquisa
direta, ou seja, nos arquivos históricos e de memória, sem negligenciar as fontes
literárias. Acima de tudo, o respeito às categorias geográficas com sua “maleabilidade”
ou “adequabilidade” às variáveis do passado, onde a morfologia territorial pouco
significa à Geografia, se apartada das normas e processos sociais históricos que a
confabulam em um singular espaço-tempo ou lugar.
Outro importante geógrafo brasileiro debruçado sobre a Geografia Histórica
[com viés na formação territorial urbana], com relevância nacional nacional, é Pedro de
Almeida Vasconcelos, cuja contribuição perpassa, também e não restritamente, a
constituição socio-territorial de Salvador.
Por uma escolha analítica intencional de sua obra, parte-se de seu artigo Como
estudar a cidade na longa duração (a noção de tempo em Geografia). Neste trabalho, o
autor valoriza os princípios teóricos e metodológicos relativos ao espaço-tempo, postos
por referenciais autores geógrafos, desde Richard Hartshorne até Milton Santos,
passando por Olivier Dolfuss e Brian Goodall.
Pedro de Vasconcelos é categórico quanto ao estudo geográfico histórico,
reconhece como principal enfoque o espaço, sendo a questão temporal um
enquadramento complementar. “Se o nosso objetivo é o de estudar uma cidade na longa
duração, é necessário para estabelecer uma periodização, não partir necessariamente dos
eventos históricos, mas inverter a questão, partir das principais mudanças espaciais, que
ocorreram no tempo” (Vasconcelos, 1999, p. 87). Essa consideração do autor revela
uma dicotomia espaço/tempo que deve ser problematizada oportunamente. Importa
7
agora sintetizar que o autor contribui ao indicar que o estudo da cidade no tempo pode
ocorrer com a escolha de alguma abordagem; exemplifica com a prioridade às
mudanças tecnológicas nos transportes como um dos indicadores principais das
transformações urbanas (outras possibilidades anunciadas são o exame de outras
tecnologias, dos tipos de ocupação do solo, ou do papel do Estado, dos agentes
econômicos, etc). A periodização de longa duração para o caso das mudanças
tecnológicas nos transportes é feita pelo autor da seguinte forma: a) a cidade do pedestre
(pré-industrial), onde os habitantes viviam em um espaço que se atravessava a pé
(séculos XVI ao XIX); b) a cidade dos transportes coletivos, com a implantação das
primeiras linhas coletivas (veículos conduzidos por animais; bondes de tração animal;
primeiros trens urbanos, de meados do XIX, no Brasil); c) a cidade dos transportes
coletivos modernos, dos bondes elétricos e ônibus (final do século XIX e início do XX),
em que a cidade segue o crescimento das linhas e pontos dos bondes; cidades ainda
mononucleares; d) cidade do automóvel, que é a da produção automobilística de meados
do século XX, seguida pelo desenvolvimento das infraestruturas urbanas. Para Pedro de
Vasconcelos, uma periodização como esta aplicada ao caso de Salvador deverá
esclarecer: mudanças espaciais em diferentes escalas; principais mudanças sociais;
registrar permanências espaciais e sociais; explicar a cidade e a sociedade urbana atual.
Fica claro que a periodização, em respeito à longa duração anunciada por Pedro
de Vasconcelos [subsidiado em Fernand Braudel] e aplicada ao caso de Salvador, revela
uma preocupação com os dados espaciais históricos [não fica claro no trabalho se as
transformações ou evoluções técnicas são apreendidas em uma dimensão de
simultaneidade espaço-temporal ou de uma sucessão histórica; advoga-se aqui pela
primeira]. Explica-se a transformação morfológica urbana pela metamorfose técnica,
sem perder de vista o caráter mutante dos processos sociais engendrados no e pelo
espaço. É um trabalho de encaminhamento teórico-metodológico para a Geografia
Histórica, que sugere fontes secundárias.
Tema que aparece com frequência na obra de Pedro de Vasconcelos refere-se à
questão racial no Brasil urbano, o que induziu à análise de Complexidade histórica e
8
questões raciais em Salvador, Bahia. No cerne do compromisso com a formação social
brasileira, notoriamente com a singularidade social da Bahia, o autor revela capacidade
singular com o tratamento das fontes, a caracterizar sua Geografia Histórica. O artigo
adota como estratégia metodológica o entrecruzamento das ideias de referenciais
historiadores [Ignácio Accioli, Charles Boxer, Robert Smith, etc.], das convicções de
consagrados antropólogos [Darcy Ribeiro, Manuela Carneiro Cunha, etc.], das
informações dadas por importantes viajantes europeus no Brasil Colônia [Johann Spix e
Carl Martius, Louis Tollenare, Robert Avé-Lallemant, etc.] e, sobretudo, dados de
pesquisa direta ou de arquivos [Arquivo de Marinha do Ultramar, Arquivo Público do
Estado da Bahia, Atas da Câmara da Prefeitura Municipal de Salvador, etc.].
Pedro de Vasconcelos propõe apresentar uma contribuição à Geografia Histórica
Urbana, via esmiuçamento da situação dos escravos e dos libertos nas cidades; enfatiza
a situação histórica dos negros, dos pardos (mestiços), dos brancos e dos pobres, no país
que teve a escravidão mais longa da América e que atingiu todo o território nacional,
apesar das enormes diferenças regionais. Observa-se, desde o início do trabalho, a
referência a uma formação social casada com as particularidades econômicas e espaciais
brasileiras.
Embora o estudo pareça dar ênfase a dados reveladores da situação dos negros,
pardos e mulatos de Salvador [crescente e decrescente demográficos, quantitativo
patrimonial, grau de mestiçagem, propriedades ou bens das igrejas e irmandades, etc.],
faz muito relevante alusão a dimensões geográficas qualificadoras da vida urbana
histórica dos cativos e libertos, o que assinala para uma análise de espacialidades
urbanas, tais como locais de moradia dos negros e sua situação na divisão social e
territorial do trabalho. De acordo com Vasconcelos (2007, p. 05, 08),
De fato, os libertos negros moravam tanto em áreas centrais como nas
periféricas: a descrição do vigário da freguesia de Santo Antônio, em 1757,
informa que “até o rio ... Camarugipe, cujo logar é ... cituado de varias rossas, a
maior parte dellas de homens pretos libertos ...”. Mas os libertos também
residiam em freguesias urbanas: dos 92 pais de família pretos registrados na
freguesia de São Pedro em 1775, 31 eram artesãos (um barbeiro tinha sete
escravos), 26 trabalhavam no comércio (sendo 21 “ganhadeiras”), quatro eram
domésticas, três viviam de seus bens e 11 eram pobres. Dos 77 agregados
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pretos, 29 não tinham profissão e 16 eram pobres. Do total dessas famílias, 28
por cento possuíam escravos...
Quanto à concentração espacial dos pardos, em 1939 Pierson indicou os
seguintes bairros com predominância de mestiços (mixed-bloods) em bairros
em torno da área central de Salvador: Santo Antonio, Barbalho, Barris, Tororó e
Itapagipe. Já foi comentada a pesquisa publicada em 1953, por Thales de
Azevedo, que encontrou importantes diferenças entre a situação dos negros e
pardos na mesma cidade...
Havia também posturas que tentavam separar as atividades no espaço urbano: a
de 1775, sobre arruamentos, determinou a localização dos estabelecimentos dos
negociantes (nas ruas principais), assim como a dos artesãos, por categorias (em
ruas secundárias) em Salvador.
Essas passagens ilustram o enfoque ou a contribuição ao pensamento geográfico
urbano histórico que não deve perder de vista a referência espacial do passado. Este
trabalho - brevemente comentado - retrata a recorrente preocupação do autor com a
fidedignidade dos dados ou informações espaciais históricas, para além das fontes
secundárias.
Por último, será comentado um ensaio que se julga aqui de extrema relevância,
por se referir ao debate metodológico em Geografia Histórica. Cabe dizer da raridade de
artigos deste teor, nessa área, como se atestou na pesquisa das fontes bibliográficas. Em
Questões metodológicas na geografia urbana histórica, Pedro de Vasconcelos sugere os
conceitos de “períodos densos” e de “hiatos temporais”, para o tratamento da
periodização na análise histórica das cidades.
“Períodos densos” são reconhecidos como de “longa duração” [embora possam
ser de curta duração]; relacionam longos períodos, com predomínio de questões do
cotidiano, e períodos que saem da rotina, com ocorrência de eventos mais significativos
capazes de modificarem a sociedade urbana, assim como funções, estruturas e formas
espaciais. Exemplificam “períodos densos” os intercursos de guerras e invasões
estrangeiras. “Hiatos temporais” são dados pela perda ou inexistência de documentação
histórica, que leve a uma continuidade temporal, perfazendo longos intervalos sem
10
informação espacial (Vasconcelos, 2009). Sua análise concorda, mas em dimensão
geográfica, com Fernand Braudel, em Histoire et sciences sociales. La longue durée.3
Em síntese, a proposta de Pedro de Vasconcelos é que, metodologicamente, se
articule a pesquisa na Geografia Histórica Urbana pelas seguintes bases: a) periodização
de longas durações, vendo continuidades e grandes rupturas, conforme os eventos
históricos de maior relevância para a cidade examinada; b) averiguação do contexto de
cada período em análise, extraindo de fontes primárias e secundárias os eventos mais
notórios em distintas escalas (da internacional à local), enaltecendo questões de ordem
ideológica, política, econômica, cultural ou espacial singulares na história da cidade; c)
identificação dos agentes mais importantes, externos e locais, que contribuíram para
modelar a cidade, como o Estado, a Igreja, os Agentes Econômicos, os diferentes
estratos da população, a respeitar papeis e pesos diferenciados conforme o período em
exame; d) exame do desenvolvimento espacial da cidade em cada período, tomando
como referência principal a cartografia original [e iconografia], completada por
informações escritas [inclusive estatísticas], de preferência de fontes primárias.
Outro importante e atual geógrafo brasileiro dedicado à Geografia Histórica é
Antônio Carlos Robert Moraes. Distintamente dos outros dois professores elencados,
este assume uma postura de abordagem que é, sobretudo, metodológica sedimentada na
perspectiva histórico-dialética, que aponta para o entendimento da Geografia “como
uma modalidade de abordagem histórica, dedicada à análise dos processos sociais de
formação dos territórios. Isto é, a visão da geografia humana como uma história
territorial” (Moraes, 2000, p. 11). O posicionamento é assumido já em seu doutorado
referente às Bases da formação territorial do Brasil.
No referido estudo, A. C. Robert Moraes busca uma interpretação da formação
socioespacial do Brasil. O recurso à História aparece como “imposição do método
adotado”, pois suas orientações genéricas advém da teoria social de Karl Marx. O
3
Pedro de Vasconcelos reconhece que Braudel avalia a dialética da duração entre o instante e o tempo
lento. Aponta sua trilogia: (1) tempos curtos (do indivíduo, do cotidiano), quando os eventos apresentam
caráter jornalístico; (2) conjunturas, tempos menos curtos, quando destaca as conjunturas econômicas e
sociais; e (3) a longa duração, com tempos muito longos, e destaca os obstáculos geográficos, algumas
realidades biológicas, certos limites de produtividade e obstáculos espirituais.
11
conhecimento da obra de A. C. Robert Moraes revela sua convicção de uma Geografia
Humana como ciência social dedicada ao processo universal de apropriação do espaço
natural e de construção de um espaço social pelas diferentes sociedades no decurso da
história, ou seja, fenômenos e situações devem ser avaliadas a partir dos movimentos da
história e mediados pelo trabalho, por ser “ato teleológico de incorporação e criação de
valor, acata-se que a formulação categorial mais precisa e genérica para expressá-lo
deva ser a da valorização do espaço” (Moraes, 2000, p. 15).
É inegável que seu trabalho assume duas dimensões filosóficas incorporadas ao
seu pensamento geográfico, a saber, a ontológica e a epistemológica,4 como se verifica
na seguinte passagem:
Valorização do espaço e formação territorial, dois níveis de abordagem de um
mesmo processo. De um lado, as determinações genéricas, fornecendo os
macroindicadores que delimitam grandes períodos e iluminando suas lógicas
estruturais de funcionamento. De outro, a malha fina do desenrolar das
conjunturas, permitindo identificar vontades e atitudes individualizadas,
interesses específicos, enfim, movimentos singulares. Tem-se, assim, dois
planos de análise e reflexão, em cuja união se desenha o projeto de uma
Geografia interpretativa, social e histórica. (Moraes, 2000, p. 18)
Entende-se como a riqueza deste trabalho específico a capacidade de articulação
ou entrecruzamento de distintos espaços-tempos, cuja singularidade se faz na formação
do território brasileiro. A “economia mundo capitalista” tem na particularidade da
“expansão ultramarina e na economia européia” a singular “produção do espaço iberoamericano”. Avalia-se a história da formação territorial brasileira, em resumo, pela
4
Os campos da investigação filosófica são três: 1º o do conhecimento da realidade última de todos os
seres, ou da essência de toda a realidade. Como, em grego, ser se diz on e os seres se diz ta onta, este
campo é chamado de ontologia. 2º. o do conhecimento das ações humanas ou dos valores e das
finalidades da ação humana: das ações que têm em si mesmas sua finalidade, a ética e a política, ou a vida
moral (valores morais) e a vida política (valores políticos); e das ações que têm sua finalidade num
produto ou numa obra: as técnicas e as artes e seus valores (utilidade, beleza, etc.). 3º. O do conhecimento
da capacidade humana de conhecer, isto é, o conhecimento do próprio pensamento em exercício. Aqui,
distinguem-se: a lógica, que oferece as leis gerais do pensamento; a teoria do conhecimento, que oferece
os procedimentos pelos quais conhecemos; as ciências propriamente ditas e o conhecimento do
conhecimento científico, isto é, a epistemologia. (Chauí, 2000, p. 50)
12
História Econômica e Geral europeia, cujas fontes estão, notoriamente, nos trabalhos de
mesmo perfil, ou seja, históricos secundários.
Outro trabalho do autor que se quer dar relevo é Geografia histórica do Brasil,
cinco ensaios, uma proposta e uma crítica. Pelo título, poderia se pensar em algo
continuador de Bases da formação territorial do Brasil, o qual revela particularidades [e
singularidades] da formação social e territorial do país. No entanto, são apresentados
subsídios teórico-metodológicos para uma Geografia Histórica, enquanto área da
Geografia, fundada em preceitos notórios da História, da Sociologia e da Antropologia.
São problematizados, do ponto de vista do método [e da epistemologia e da
ontologia] pontos e categorias significativas de abordagens as mais diversas possíveis
para a Geografia Histórica. Nacionalidade de domínio estatal de âmbitos espaciais,
gênese ou afirmação de identidades nacionais, o território como materialidade [de
ocupação prática] e como representação [legitimação simbólica], elementos de uma
geopolítica tanto da instalação portuguesa quanto da independência no Brasil são alguns
dos muitos aspectos tratados pelo autor. Ainda, define “sua” Geografia Histórica como
“caminho de reconstituição (em várias escalas) do processo de formação dos atuais
territórios, postura que - inapelavelmente - repõe uma ótica de história nacional (mesmo
no âmbito de uma perspectiva crítica)”. Especialmente a partir do enfoque do processo
colonizador, A. C. Robert Moraes (2009, p. 62) afirma que “a expansão espacial – em
suas motivações estratégias – em si é um primeiro objeto da investigação da Geografia
Histórica, sendo a consolidação do domínio territorial seu corolário: a transformação
dessas novas terras em áreas descontíguas de soberania estatal de cada metrópole. Em
outros termos, em territórios coloniais”.
Os dois livros apresentados muito sinteticamente [e outros trabalhos do mesmo
autor] asseguram uma abordagem particular da Geografia Histórica não pautada em
fontes documentais primárias, mas na articulação de princípios incorporados de outros
campos de saberes para a Geografia, como a História [principalmente], a Sociologia e a
Antropologia, sendo protagonista no debate o tema dos desígnios passados e presentes
da formação territorial do Brasil. O valor de sua obra para a Geografia Histórica revela-
13
se no tratamento argumentativo dos princípios geográficos, problematizados, também, à
luz Sociologia, sua segunda formação acadêmica.
Pode-se afirmar, em resumo, que há uma correlação metodológica significativa
entre o pensamento de Maurício de Abreu, Pedro de Vasconcelos e Antônio Carlos
Robert Moraes, com algumas nuanças individuais, notadamente relativas ao último.
Abreu e Vasconcelos reconhecem a importância da pesquisa documental direta em
arquivos, bem como o tratamento das fontes secundárias, para o conhecimento amplo
dos casos empíricos já tratados; cada qual destes dois autores apresentam pesos distintos
ou aprofundamentos relativos quanto às categorias geográficas da análise, de forma a se
valorizar mais ou menos, em um ou outro trabalho, as categorias do pensamento
geográfico, grande importância é dada às fontes colhidas diretamente em arquivos;
arrisca-se dizer que Pedro de Vasconcelos traz um caráter epistemológico mais aguçado,
frente à dimensão mais ontológica de Maurício de Abreu. Ambos os autores contribuem
relativamente a dois muito simbólicos espaços nacionais, respectivamente, Salvador e
Rio de Janeiro. No caso de Antônio Carlos Robert Moraes, vigora uma preocupação
metodológica, epistemológica e ontológica [em que o método materialista histórico
dialético é assumido como referência de pensamento] de caráter mais universal e menos
singular da análise, ou seja, seus casos são genéricos e se referem aos movimentos
econômicos e políticos que redundam na produção material e representacional espacial
da Colônia, do Império e da República. Entende-se que existe entre os três autores uma
unidade que baliza a Geografia Histórica brasileira do ponto de vista metodológico, que
é o recurso à História e o respeito tanto às categorias e aos princípios do pensamento
geográfico quanto aos possíveis vieses de periodização [apesar da dicotomia
espaço/tempo que parece escorregar aos três autores; debate a ser retomado em
momento futuro].
Para alcançar o objetivo deste item, que é o de realizar uma aproximação
metodológica à recente geografia urbana histórica brasileira, será feita, agora, uma
análise geral dos estudos apresentados em mesas relativas à área, no II Encontro
Nacional de História do Pensamento Geográfico, ocorrido na Universidade de São
14
Paulo, em 2009 [mesa Geografia Histórica e História Territorial], e no XIII Simpósio
Nacional de Geografia Urbana, ocorrido na Universidade Federal do Rio de Janeiro, em
2013 [mesa Geografia Histórica Urbana].
O tema da Geografia Histórica abordado no encontro de São Paulo, em 2009, foi
contemplado na mesa dividida em três partes: duas dedicadas à Geografia Histórica e
História da Geografia e outra simplesmente Geografia Histórica. A primeira (Parte I –
Geografia Histórica e História da Geografia) congregou quatro trabalhos; a segunda
(Parte II – Geografia Histórica e História da Geografia) trouxe outros quatro estudos; a
terceira (Geografia Histórica) concentrou mais três artigos, cuja análise está sintetizada
no Quadro 01.
QUADRO 01 – TRABALHOS APRESENTADOS NO II ENHPG – MESA GEOGRAFIA
HISTÓRICA
Autor
Instituição
Tema
Enfoque
Leonardo Civale
UFV
Ideias evolucionistas e meio
geográfico no Brasil no séc.
XIX
Renato Coimbra
UFRJ
Crise de abastecimento de
água no RJ década 1860 e
dinâmica urbana
Flora de Lahuerta
USP
Rio de Janeiro como Capital
do Império (1808-1820)
Raimundo Assis e
José Sampaio
UFC
Modernização do território no
Ceará – ferrovias (1870-1930)
Everaldo Costa
UnB
Carlo E. Nogueira
UFMT
Mineração e articulação
territorial brasileira – rede
urbana séc. XVIII
Geografia histórica em áreas
de fronteiras – GO e MT, séc.
XIX
Rafael Straforini
Unicamp
Território e circulação com a
mineração do séc. XVIII
Samuel Frederico
Unesp/RC
Formação territorial de Minas
Gerais
Rildo Duarte
USP
Fabrício Lima
Unesp
Telegrafia, integração e
identidade nacional na
República (1889-1930)
O ideário rondoniano na
construção da geografia e do
território nacional
15
Pensamento Geográfico / Ideia de meio /
ideias evolucionistas lamarckistas / sem
precisão de categorias geográficas / Sem
fontes primárias
Geografia Histórica / sem precisão das
categorias geográficas, mas na busca de
transformações espaciais / Com fontes
primárias
Geografia Histórica / Precisão da categoria
espaço geográfico / Consideração dos
viajantes europeus do XIX / Com fontes
primárias
Geografia Histórica / Precisão do conceito
território / Precisão da categoria valor e
modernização em Marx / Sem fontes
primárias
Geografia Histórica / Precisão do conceito
território / Subsídio em historiadores / Sem
fontes primárias
Geografia Histórica / Precisão do conceito
território / Subsídio em historiadores / Sem
fontes primárias
Geografia Histórica / Precisão da categoria
espaço e do conceito território / Subsídio
em historiadores / Com fontes primárias
Geografia Histórica / Precisão do conceito
território / Subsídio em economistas / Sem
fontes primárias
Geografia Histórica / Precisão do conceito
território / Subsídio em historiadores / Sem
fontes primárias
Pensamento Geográfico / Ideia de
positivismo / Precisão do conceito território
/ Sem fontes primárias / Ecletismo de áreas
Júlio F. Santos
USP
Pacto Federativo e território
nacional no volver da
República
Fonte:
Elaboração
do
autor.
Trabalhos
https://enhpgii.wordpress.com/trabalhos/
na abordagem
Geografia Histórica / Anúncio sem precisão
do conceito território [raros geógrafos na
bibliografia] / Subsídio em historiadores /
Sem fontes primárias
pesquisados
nos
Anais
do
Encontro
O apanhado aos trabalhos apresentados na mesa de Geografia Histórica do II
Encontro Nacional de História do Pensamento Geográfico indica uma maioria de
estudos sem sustentação
em
fontes
documentais
primárias,
mas pautados,
especialmente, na análise de historiadores consagrados ou geógrafos dedicados à
Geografia Histórica [apenas 2 dos 11 estudos fundaram-se em fontes primárias]. Neste
evento [voltado à História do Pensamento Geográfico], aceitou-se para a mesa aludida
trabalhos de História do Pensamento, como se verifica no quadro 1 [o que pode revelar
pouco rigor com o tratamento metódico da área]. Identifica-se, ainda, uma falta de
precisão no emprego do conceito território ou da categoria espaço geográfico [somente
3 dos 11 trabalhos analisados seguem esse rigor]. Verifica-se, em suma, nesta
amostragem, uma tendência a se classificar os estudos como de Geografia Histórica
pelo reducionismo de se reconhecer trabalhos de “feição” geográfica [por vezes
duvidosos, pela falta de precisão ou clareza conceitual e de princípios disciplinares]
realizados em momento recuado do presente.
O XIII Simpósio Nacional de Geografia Urbana, ocorrido no Rio de Janeiro, em
2013, trouxe para o seu 8º GT o tema Geografia Histórica Urbana, o qual computou 14
estudos apresentados oralmente. O GT foi subdividido em 3 subtemas, a saber: a)
Cidade, História e Formação Territorial; b) Cidade, Discursos e Diálogos; c) Cidade,
Paisagem e Memória.5 O Quadro 02 traz alguns aspectos sobre os trabalhos
apresentados.
5
Foram coordenadores do GT: Prof. Dr. Pedro de Almeida Vasconcelos [UFBA], Prof.ª Dr.ª Doralice
Sátyro Maia [UFPB], Prof.ª Dr.ª Fania Fridmam [IPPUR / UFRJ], Prof. Dr. José Aldemir [UFAM],
Prof. Dr. Nelson da Nobrega Fernandes (UFF).
16
QUADRO 02 – TRABALHOS APRESENTADOS NO XIII SIMPURB – MESA GEO. HIST.
URBANA
Autor
Instituição
Tema
Enfoque
Roberto Souza
UEAL
Parcelamento do solo e
morfologias urbanas em
Olinda-PE (1931-2006)
Vitor Alves
UFRJ
Apropriação territorial do
sertão do oeste fluminense
(sec. XVII-XIX)
Luciana Gennar
IPPUR
Estruturação da zona urbana
do Rio de Janeiro (1875-1928)
Pierre Costa
Unicentro
Análise geohistórica da
Baixada Guanabara (ferrovia e
Duque de Caxias)
Geografia histórica da
distribuição de meios de
hospedagem em Salvador (sec.
XIX e XX)
Luis C. Requião
Silva
UEBA
Joaquim Maloa
USP
Gênese da urbanização dual
em Moçambique – exploração
histórica
IFET-RJ
Espaço e tempo na área central
do Rio de Janeiro – leituras do
Morro Sto. Antônio
Paulo Cesar Barros
Joel Outtes
UFRS
Gênese do urbanismo no
Brasil e Argentina (18941945)
Maria Clelia Costa
UFCE
Discurso médico-higienista e
ordem urbana
Rebeca Nascimento
UFPB
Privatização da terra urbana na
cidade da Parahyba
Adriano B. Andrade
UFBA
A Igreja como agente produtor
do espaço no Rec. Baiano
setecentista
Everaldo Costa e
Marília Peluso
Rita Andrade e
Maria Soares
Glauco Rodrigues
UnB
PucPeru
UFF
Territórios da memória
operária na história da
construção de Brasília
Geografia histórica da cidade
de Coremas
Autogestão territorial
anarquista na Guerra Civil
Espanhola (1936-39)
Fonte:
Elaboração
do
autor.
http://www.simpurb2013.com.br/anais/
Trabalhos
17
Geografia urbana histórica / Precisão das
Leis Urbanísticas / ecletismo de áreas de
abordagem / Sem precisão da categoria
território e espaço /Sem fontes primárias
Geografia urbana histórica / Sem precisão
do conceito território / Ecletismo de áreas
de abordagem de valor histórico-territorial
/Sem fontes primárias
Arquitetura e história da habitação / Sem
precisão do conceito território e da
categoria espaço / Sem fontes primárias
Geografia urbana histórica / Sem precisão
do conceito território / História local / Com
fontes primárias
Geografia e paisagem / Sem precisão da
categoria espaço e do conceito território /
Parcial abordagem de autores de descrição
histórica / Sem fontes primárias
Geografia urbana histórica / Sem precisão
da categoria espaço e do conceito território
/ Ecletismo de áreas de abordagem de valor
histórico-territorial / Sem fontes primárias
Geografia urbana histórica / Precisão da
categoria espaço e do conceito território /
Abordagem de valor históricoarquitetônico / Sem fontes primárias
História do urbanismo / Sem precisão da
categoria espaço e do conceito território /
Abordagem da Arquitetura e da História /
Sem fontes primárias
História urbana / Sem precisão da categoria
espaço e do conceito território /
Abordagem da Arquitetura e da História /
Sem fontes primárias
Geografia urbana histórica / Sem precisão
da categoria espaço e do conceito território
/ Ecletismo de áreas de abordagem de valor
histórico urbano / Com fontes primárias
Geografia urbana histórica / Precisão na
ideia de espaço urbano regional /
Abordagem no urbanismo / Com fontes
primárias
Geografia urbana história / Precisão na
ideia de território / Abordagem eclética em
história e filosofia / Com fontes primárias
[oral]
Geografia urbana história / Imprecisão na
ideia de espaço e território / Abordagem na
história da arquitetura e urbanismo / Com
fontes primárias
Geografia e história / Precisão na ideia de
espacialidade / abordagem histórica do
anarquismo / Com fontes primárias
pesquisados
nos
Anais
do
Simpósio
A avaliação dos trabalhos apresentados no XIII Simpurb, na mesa Geografia
Histórica Urbana, distintamente do Encontro de São Paulo, sugere um predomínio do
uso de fontes primárias [8 dos 14 trabalhos apresentados]. A imprecisão do uso da
categoria espaço [mesmo em variações de abordagem] ou do conceito território, em
uma dimensão geográfica [10 dos 15 estudos], indica uma carência de conhecimento
epistemológico da Geografia, o que pode encaminhar problemas de método e
metodológicos na definição da própria Geografia História. Identifica-se, no rol de
trabalhos, uma propensão a se classificar os estudos como de Geografia Histórica dada a
ênfase na História e na Arquitetura e Urbanismo [ora com clareza da utilização dos
conceitos geográficos, ora sem esse compromisso].
Esse apanhado muito sintético sinaliza para o problema: quais são os princípios
definidores da Geografia Histórica? Esses princípios advêm da Geografia ou podem ser
considerados oriundos de outros campos de saberes [mesmo que sem base geográfica
sólida ou de forma difusa, como aparece em boa parte dos trabalhos apresentados nos
eventos avaliados]? A seguir as orientações dadas às pesquisas dos principais geógrafos
brasileiros voltados à temática, um dos caminhos para a consolidação da Geografia
Histórica - como área de conhecimento individualizada na Geografia – parece estar
tanto no real conhecimento epistemológico e ontológico geográficos, quanto no
amadurecimento do tratamento das fontes primárias e secundárias. Estas que devem ser
alinhadas ou interpretadas à luz dos princípios lógicos da disciplina, a saber: distância,
conexão, extensão, escala, posição, localização, distribuição, dentre outros, os quais
são pensados em correlação às variáveis caracterizadoras de um dado espaço-tempo ou
de um momento da história das técnicas.
O item seguinte defende o tratamento metodológico de testemunhos como
documentos em Geografia Urbana Histórica, a ampliar seu leque instrumental analítico
com respeito aos princípios do campo do saber geográfico, quando o sujeito situado e
em situação é capaz de legar, pela memória, um conhecimento espacial passível de
perecimento, se não registrado.
18
3. DEPOIMENTOS ORAIS [OU TESTEMUNHOS] COMO DOCUMENTOS
EM GEOGRAFIA HISTÓRICA URBANA
Será necessário tratar, sintética e preliminarmente, a ideia de documento e de
oralidade, para então vislumbrar a história oral enquanto recurso metodológico factível
à Geografia Histórica Urbana.
Questão crucial à discussão historiográfica e geográfica histórica [de interesse
neste trabalho] refere-se à validade da prova documental oral. Estimula o
questionamento, com o viés no testemunho, Paul Ricoeur (2007, p. 156), ao assegurar
que “tudo tem início não nos arquivos, mas com o testemunho, e que, apesar da carência
principal de confiabilidade do testemunho, não temos nada melhor que o testemunho
(...) para assegurar-nos de que algo aconteceu, a que alguém atesta ter assistido
pessoalmente, e que o principal, se não às vezes o único recurso, além de outros tipos de
documentação, continua a ser o confronto entre testemunhos”.
O testemunho, o relato, faz-se documento histórico antes mesmo de sua
constituição nos arquivos, “ressurge no fim do percurso epistemológico no nível da
representação do passado por narrativas, artifícios retóricos, colocação em imagens”
(Ricoeur, 2007, p. 170). Ao questionar a confiabilidade do testemunho, Ricoeur
argumenta que a desconfiança tem início no nível da percepção de uma cena vivida,
continua no da retenção da lembrança, para se concentrar na fase declarativa e narrativa
da reconstituição dos traços do acontecimento. As distorções só podem ser superadas
pelo flagrante dado para uma realidade conhecida por outros meios ou fontes [já escritas
ou outros depoimentos] e a própria narrativa em análise, ou seja, importa o cruzamento
de informações para a o argumento da mais próxima veracidade do testemunho
arrolado. Da mesma forma que um depoimento ou testemunho podem ser distorcidos
pelo declarante, uma Ata de Câmara Municipal [também fonte primária, mas escrita e
normalmente de período bastante pregresso] também o pode, o que exige do
pesquisador atenção no enlaçamento de dados, outras fontes ou outros arquivos.
19
Ricoeur (2007, p. 172-175) sintetiza em seis pontos os componentes essenciais
do ato de testemunhar ou por à prova um conhecimento da história por parte do sujeito:
a) Duas vertentes são articuladas, a asserção da realidade factual do acontecimento
relatado e a certificação ou autenticação da declaração pela experiência de seu
autor, o que é denominada confiabilidade presumida [presunção a ser lançada
sobre o documento passado, pode-se argumentar].
b) A especificidade do testemunho consiste no fato de que a asserção da realidade é
inseparável de seu acoplamento com a autodesignação do sujeito que
testemunha, cuja fórmula típica é: ‘eu estava lá’. Atesta-se a realidade da coisa
passada e a presença do narrador nos locais da ocorrência. É a testemunha que,
de início, declara-se testemunha e nomeia a si mesma [as asserções ligam o
testemunho pontual a toda a história de uma vida, onde a história pessoal é ela
própria enredada em histórias, de forma que a impressão afetiva de um
acontecimento capaz de tocar a testemunha com a força de um golpe não
coincide necessariamente com a importância que lhe atribui o receptor do
testemunho].
c) A autodesignação da testemunha da história se inscreve numa troca que impõe
uma situação dialogal, ela pede que lhe deem crédito. Ela não se limita a dizer:
‘eu estava lá’, ela acrescenta ‘acreditem em mim’ – o que pode fazer do
testemunho não apenas autenticado, mas acreditado pelo receptor da informação
[é nesse momento que ganha relevo a confiança ou a suspeita – pela boa ou má
percepção, boa ou má retenção, boa ou má reconstituição de fatos declarados].
d) A suspeita exige o confrontamento de testemunhos [o próprio relator tende a
dizer ‘eu estava lá, acreditem em mim, se não acreditam, perguntem a outra
pessoa’, o que exige estratégia de tratamento de variegados depoimentos].
e) Uma dimensão suplementar a qual o pesquisador deve se atentar é na
disponibilidade moral do narrador. Para reforçar sua credibilidade e a
confiabilidade de seu testemunho, de alguma forma, ela passará a confiança para
reiterar seu depoimento, quando a testemunha confiável é aquela que mantém
seu testemunho no tempo, quase que como uma promessa.
20
f) A disposição em testemunhar, relatar ou narrar fatos históricos ou acontecimento
faz do testemunho um fator de segurança no conjunto das relações constitutivas
do vínculo social. O nível médio de segurança de linguagem de uma sociedade
depende da confiabilidade, da atestação biográfica de cada testemunha ou
narrador histórico. A narrativa, o depoimento ou o testemunho [aqui vistos como
congruentes, podendo ser empregado o termo segundo a circunstância da
entrevista – objeto de uma pesquisa científica ou relato em um tribunal]
constituem argumentos adiantados pelos protagonistas da história ou sujeitos
‘confiáveis’ de histórias cruzadas.
Não deve ser desconsiderado que critérios emocionais podem alterar
lembranças, que o ato de narrar envolve seleção, exclusão e gradação de capacidade
mnemônica do narrador, além de que mal se sabe como funciona, efetivamente, a
memória humana. “A memória não é um fenômeno exclusivamente individual, mas
resulta de determinações sociais complexas” (Hall, 1992, p. 157). Todavia, essa
memória do passado que narra no presente, oralmente ou em forma de depoimento,
difere-se da memória que captou o mundo, seus fatos e seus dados, os fenômenos, à sua
maneira, no século II ou no século XVIII, registrando-o naquele instante e legando-o
para o agora? Há uma tendência a se valorizar, nas ciências do espaço e do tempo, mais
o passado pregresso em detrimento ao passado recente? Há uma estratégia
preconceituosa [ideológica, política e de manutenção de um poder (ou status quo)]
referente às fontes primárias a serem adotadas ou vigora um real desinteresse em
aprofundar o conhecimento naquelas pouco utilizadas? São questões para o debate.
A função do relato oral ou da história oral não se restringe à metodologia
aplicada; também tem função social democrática, relevante e instigante; permite a
investigação de fenômenos ou questões e de camadas sociais, normalmente,
negligenciadas na documentação oficial escrita dada ao presente. Contudo, atenção deve
ser dirigida a alguns problemas relativos aos depoimentos orais, tais como: falha da
memória em relação aos acontecimentos específicos e, sobretudo, à sua sequência
[lembranças do processo de trabalho dentro de uma fábrica, por exemplo, vão ser quase
21
sempre mais fidedignas do que a memória da cronologia política de uma greve (Hall,
1992, p. 158)]; exageros na importância de acontecimentos, dissimulação de ações e
enaltecimento de ressentimentos; transferência de opiniões atuais para o passado; o
direcionamento das questões pode induzir a uma ou outra resposta [fontes escritas
também podem ser altamente subjetivas, mas no caso de depoimentos de história oral
ou ao testemunho o pesquisador é posto diante de problemas especialmente delicados de
interpretação (Hall, 1992, p. 159)]; inevitabilidade da sobrevivência dos sujeitos que
presenciaram o acontecimento investigado; necessidade de explicitar com precisão a
base das amostras da pesquisa; reconhecimento de que linguagem corporal, sotaque,
tom de voz, desaparecem do depoimento trabalhado [e também da fonte escrita]; perigo
de se buscar, na pesquisa, apenas documentação oral, sem recorrência a outras fontes, o
que pode personificar vontades e ações políticas - o estudioso que considera o
depoimento oral como uma fonte suficiente em si, corre o risco de não ver muito mais
do que seus informantes viram (Hall, 1992, p. 160).
Os relatos obtidos de história oral são complementares e não podem suplantar a
capacidade do pesquisador em contextualizar os fatos, buscar suas determinações,
reconhecer as alterações socioespaciais no transcorrer do tempo, via outras fontes; mas,
constituem-se em matéria importante para a reconstituição do passado. A história não
teria sido possível sem os traços do passado, sem o seu conhecimento registrado em
“suportes da memória coletiva” (Le Goff, 2003). Os vestígios da cultura material
[objetos de coleção, tipos de habitação, a paisagem, os fósseis], bem como os
documentos-registros que substituem e perpetuam as marcas do passado fazem-se
documentos ao mesmo tempo verdadeiros e falsos; argumento que exige entendimento
das condições de produção e das dimensões do poder inerentes não apenas aos objetos
estudados, mas às próprias fontes (Le Goff, 2003). Essa matéria serve aos documentos
tanto escritos como gravados, quando se amplia a noção de documento, por parte da
História [e por que não na Geografia Histórica?]. Há quem advogue, de longa data, pela
ampliação do sentido da palavra documento, a envolver o escrito, o ilustrado, a imagem,
o transmitido pelo som, o gravado [sobre a pedra ou por meio dos mais recentes
22
aparatos técnicos]; o cuidado deve estar no manuseio, interpretação e postura crítica
contextual, estrutural e conjuntural sobre as fontes.
Caso se conjecture que “são raros os dados geográficos inteiramente visíveis,
podendo-se mesmo considerá-los como inexistentes sob certos aspectos, já que a
explicação do visível quase sempre deve ser buscada no invisível”, os depoimentos ou
testemunhos orais tornam-se rico arsenal para a análise espacial histórica, sabendo que
“a especificidade da Geografia desaparece quando se nega o exame do processo de
causalidade” (George, 1986, p. 20-21). O geógrafo adota metodologias por ele
elaboradas durante a avaliação do visível [o ver em Geografia é parte de seu método], a
valorizar outros instrumentos de pesquisa para analisar o invisível e reassumir sua
condição de geógrafo na proposição da referência global, particular e singular do
espaço, feita do visível e do invisível, no devir histórico.
Nesse aspecto, depoimentos ou testemunhos de fatos passados, enquanto
constituição parcial da memória espacial, são representações individualizadas para a
pesquisa histórica em Geografia, a lembrar que qualquer registro guarda dimensões de
poderes, de maneira que dar voz aos poucos ouvidos pode representar, ainda, uma
possibilidade de contra-hegemonia da informação face aos poderes instituídos.6 Ainda,
pode-se argumentar a favor do testemunho oral [e outras fontes] como recursos à
superação da recorrente dicotomia espaço/tempo [presente na Geografia Histórica], a
qual urge superação por meio de uma revisão epistemológica, se se considerar espaço
geográfico como uma totalidade dinâmica, a própria sociedade em sua história. Como
destaca Suzuki (2011) [geógrafo que assume a oralidade como metodologia na
Geografia], a história oral possibilita o resgate de modos de vida que, longe de serem
cópias miméticas de antigos cotidianos vividos, vêm à tona como mosaicos de
fragmentos, onde a memória remete ao passado, o qual ressurge não como o
6
Por ocasião do tombamento de cidades no Brasil do século início do século XX, foram eleitos,
notoriamente, os bens referentes à elite branca, burguesa e católica feitos no período colonial. Muitos
poderiam ter sido os registros orais coletados de negros ex-escravos que viveram as agruras desse período
nebuloso de nossa história, através daqueles que vivenciaram, efetivamente, os espaços-tempos da
escravidão. A opção foi pelos registros arquitetônicos, inicialmente.
23
acontecimento de um fenômeno fidedigno ao que foi, mas como reelaboração do
acontecido a ressignificar experiências vivenciadas no espaço-tempo presente.
A referência seguinte a Pierre George auxilia a entender o lugar da História (e da
história) na pesquisa geográfica; possibilita apreender a importância de novas formas de
abordagem do passado, como a aqui sugerida via oralidade constituída pelos
testemunhos; indica, ainda, preocupação com a distinção entre o estrutural e o histórico,
como elementos caros ao fazer geográfico.
Com efeito, a explicação dos fatos de observação lança mão de duas séries de
dados: os dados estruturais e os dados históricos. Será conveniente incluir entre
os dados estruturais tudo que entra na composição de um estudo geográfico,
tudo que entra nas combinações cujo conjunto é atingido pela observação, sob
forma de paisagem geográfica, física e humana (...) Incompleta é a distinção
entre os dados estruturais e os dados históricos, de onde provêm os elementos
que permitem o estabelecimento de uma interpretação evolutiva, já que a
própria estrutura representa o resultado de uma evolução (...) Do ponto de vista
metodológico, impõe-se uma distinção entre o estrutural e o histórico, mas a
estrutura representa o resultado final de processos históricos e sobre ela paira a
ameaça das contradições de forças que constituem os elementos motores da
histórica contemporânea. Ora, se a história pode ser considerada uma só, pelo
fato de operar a síntese na curva da evolução geral, num ‘ponto’ situado antes
do ‘ponto geográfico’, a análise estrutural, esta, é múltipla. De maneira muito
simples, o geógrafo parece destinado a recorrer ao historiador para conhecer os
antecedentes globais e particulares da situação diante da qual se encontra, e aos
especialistas das diferentes ciências humanas para se munir das imagens
estruturais analíticas relativas à sociedade, à economia, à população, à cultura,
aos relacionamentos políticos etc. Entretanto, a história manifesta uma
propensão a se mostrar mais setorial que global e a se interessar de maneira
mais especial pelos setores que apresentam menor número de incidências
primaciais sobre o fato geográfico (história política, diplomática, militar).
(George, 1986, 30-32; 34-5, grifo do autor)
Essas resumidas anotações sobre a ideia de testemunhos orais enquanto
documentos históricos merecem aprofundamento futuro; o que se deseja aqui é fazer um
prelúdio desse debate metodológico para a Geografia Histórica [notoriamente a urbana],
diante da possibilidade de entendimento do passado das cidades também por meio de
relatos dos sujeitos efetivos da história cotidiana das cidades; sujeitos partícipes de
minúcias de sua construção, conhecedores das desventuras de seu desenvolvimento ou
até provas oculares de catástrofes de destruição parcial ou total passadas, dentre outros
eventos possíveis atinentes à reprodução das cidades e do urbano.
24
4. AGENDA DE PESQUISA PARA UMA GEOGRAFIA URBANA
HISTÓRICA DO DISTRITO FEDERAL BRASILEIRO
A avaliação dos trabalhos desenvolvidos, em Geografia Urbana, ao largo de
mais de quatro décadas de existência do Departamento de Geografia da Universidade de
Brasília revela uma lacuna significativa, que é a de estudos capazes de apreender a
formação e o desenvolvimento do Distrito Federal brasileiro através de metodologias
atinentes à valorização da história e da memória espaciais, com respeito a fontes
primárias. Essa observação leva a uma proposição de ordem prática com função social:
reconhecimento da situação histórica e das lutas do trabalhador na construção da nova
Capital do Brasil, ocorrida entre os anos de 1956-1960, seguindo, no decorrer dos anos
subsequentes à inauguração de Brasília, a formação dos primeiros núcleos
populacionais oriundos da batalha de famílias desses construtores operários em prol da
permanência ou fixação no Distrito Federal. Cabe lembrar que o desejo e as estratégias
do Governo se davam no sentido de que a massa dos trabalhadores da construção, após
sua finalização, retornasse aos seus locais de origem [outras regiões do Centro-Oeste, do
Nordeste e do Sudeste, especialmente].
Do ponto de vista prático, a proposta aqui aludida poderá, no decorrer de
décadas, constituir um arquivo de história oral e de memória dos próprios operários da
construção de Brasília, hoje sujeitos ainda vivos que possuem idade média entre 60 e 80
anos.7 Este trabalho teve início em 2012, cuja reflexão teórica introdutória foi
apresentada no XIII Simpurb, na cidade do Rio de Janeiro, na mesa Geografia Histórica
Urbana, com o artigo Territórios da memória candanga na construção da capital do
Brasil (1956-1971). Porém, reconheceu-se, após o evento, a necessidade de uma
discussão mais apurada sobre a metodologia da história oral aplicada à Geografia
Histórica, o que se busca agora. Há trabalhos com esse viés na Antropologia e na
7
O Arquivo Público do Distrito Federal já guarda depoimentos dos construtores de Brasília, nesse viés
metodológico, mas restrito a algumas das antigas cidades-satélites e bem focados nos construtores
engenheiros, arquitetos e outros profissionais, faltando ênfase significativa aos operários da construção.
25
Sociologia da Universidade de Brasília, mas não na Geografia [sabe-se que o enfoque
que relaciona a vida ativa de trabalho dos sujeitos e o território que se forma distinguese em cada campo do saber, por seus princípios particulares]. Em suma, a ideia é que se
realize um arquivamento geográfico histórico da memória operária e do trabalho, por
meio da leitura pregressa da construção da cidade e da formação territorial do Distrito
Federal, em sua amplitude.
Na primeira publicação referente a essa proposta, argumentou-se da seguinte
maneira,
A análise da formação territorial urbana por meio do resgate da memória social
sugere, no âmbito da geografia histórica urbana, um percurso metodológico
calcado: em relatos daqueles que vivenciaram e conceberam seu espaço da vida
ativa; em fontes documentais; e em iconografias. Nesse sentido, esta pesquisa
visa a resgatar e a reforçar, introdutoriamente, a memória candanga sobre a
relação entre a construção da nova capital brasileira (Plano Piloto de Brasília) e
a formação de seus primeiros núcleos populacionais periféricos decorrentes das
chamadas ‘invasões’ originadas do desejo de fixação dos imigrantes
construtores. (Costa; Peluso, 2013, p. 01)
Qualquer ser humano tem consciência ou noção do passado, o qual se refere ao
período correlato e também imediatamente anterior aos eventos registrados na memória
de um indivíduo, em virtude de conviver com os mais velhos, que o transmite. “O
passado é uma dimensão permanente da consciência humana, um componente
inevitável das instituições, valores e outros padrões da sociedade humana. O problema
para os historiadores é analisar a natureza desse ‘sentido do passado’ na sociedade e
localizar suas mudança e transformações” (Hobsbawm, 2013, p. 25). O período
guardado na memória faz-se passado ao servir de suporte àqueles que, pela recente
idade, pela negligência ou pelo deslocamento, o desconhecem. Logo, há de se defender
o argumento de que as pessoas mais velhas são guardiões de um pretérito e, desta
maneira, da memória coletiva. Se em história, na maioria das vezes, lidam-se com
sociedades e comunidades para as quais o passado é essencialmente o padrão para o
presente, como argumenta Eric Hobsbawm, tratar dos testemunhos vivos de uma
formação espacial significa a possibilidade de eleger como leitores informantes
protagonistas desse mesmo passado, sujeitos pouco ou mal incorporados naquilo que é
26
definido “oficialmente” como passado. Autora brasileira de relevo nesse debate é Ecléa
Bosi;8 a passagem seguinte revela sua importância para a proposta aqui apresentada,
Um verdadeiro teste para a hipótese psicossocial da memória encontra-se no
estudo das lembranças das pessoas idosas. Nelas é possível verificar uma
história social bem desenvolvida: elas já atravessam um determinado tipo de
sociedade, com características bem marcadas e conhecidas; elas já viveram
quadros de referência familiar e cultural igualmente reconhecíveis: enfim, sua
memória atual pode ser desenhada sobre um pano de fundo mais definido do
que a memória de uma pessoa jovem, ou mesmo adulta, que, de algum modo,
ainda está absorvida nas lutas e contradições de um presente que a solicita
muito mais intensamente do que uma pessoa de idade (...) Ao lembrar do
passado [o velho] não está descansando, por um instante, das lides cotidianas,
não está se entregando fugitivamente às delícias do sonho: ele está se ocupando
consciente e atentamente do próprio passado, da substância mesma da sua vida.
(Bosi, 1994, p. 60)
Por que é preciso aguardar o falecimento dos operários da construção da nova
Capital do Brasil para tratar como o seu passado, no futuro, unicamente o discurso
oficial registrado em arquivos públicos? Não seria compromisso social das ciências
ditas humanas o registro direto das memórias históricas dos homens operários e suas
esposas [tidos por pioneiros] que, no caso do Brasil, são ofuscados dos discursos
oficiais [desde a Colônia]? O testemunho da história individual signo de memória
coletiva [tratadas sistematicamente] não pode oferecer dados relevantes sobre a história
espacial? Em que medida uma rejeição à metodologia da oralidade [ou o não
reconhecimento ou citação de determinados autores] não significa, por parte do
pesquisador, um posicionamento tático hegemônico [no limite, egoísta e contraditório
do ponto de vista científico, quando não se reconhece referências] de valorização das
fontes escritas, de determinados grupos sociais históricos e de escolas específicas?
Outro pressuposto deste trabalho é o de que o espaço-tempo-sociedade não o é apartado
dos sujeitos que o constituem em vivências [estando vivos ou mortos], de maneira que a
história e a memória individuais-coletivas de velhos são as do próprio espaço
experienciado no decurso da vida latente ou pregressa [a memória individual e coletiva
8
Está em curso um apanhado de autores historiadores, filósofos, antropólogos e sociólogos referenciais
no estudo de metodologias atinentes à oralidade, como: Jan Vansina, Peter Burke, Pierre Nora, Maurice
Halbwachs, dentre outros. A incorporação desses autores se dá em respeito, sobretudo e
imprescindivelmente, aos princípios geográficos.
27
de 100 anos guarda feitos e fatos de um século do espaço]; esse registro é crucial, se
feito dentro de preceitos metodológicos científicos aceitáveis. Deve-se lembrar que há,
portanto, “para o velho, uma espécie singular de obrigação social, que não pesa sobre os
homens de outras idades: a obrigação de lembrar, e lembrar bem” (Bosi, 1994, p. 63).
Parece que os questionamentos aqui apresentados são recorrentes na literatura da
Geografia Histórica. Na introdução ao seu livro O outro lado da baía: gênese de uma
rede urbana colonial, Andrade (2013, p. 33) indaga: “Qual o valor da história? O que é
real a despeito dos fatos históricos? Qual é o limite entre o acontecido e o
contado/escrito?”. Estas são questões que desafiam o autor em sua proposta de história
das cidades e do urbano. Os pressupostos de Andrade levam ao pensamento do
potencial da oralidade como mais uma dentre outras fontes para apreensão do passado,
pois testemunhos podem desmantelar a ideia de uma “lógica cronológica progressiva”
como necessária ao estudo do passado espacial. O pressuposto condutor do argumento
[que é do autor deste artigo, e não de Andrade] é o de que a “história urbana acontece de
forma não linear, como um conjunto de temporalidades múltiplas e assimétricas que
coexistem e se sobrepõem (...) rompe-se com a pretensão de conhecer o urbano a partir
de uma lógica cronológica progressiva, que toma como verdade vivida apenas uma
temporalidade técnica que se apresenta como evento principal do discurso dominante”
(Andrade, 2013, p. 38).
O contado ou relatado, o testemunho ou depoimento trazem um mundo social
rico e diverso não conhecido e que pode ser revelado pela memória dos velhos que,
efetivamente, transgrede a lógica cronológica progressiva relativa ao espaço.
“Momentos desse mundo perdido podem ser compreendidos por quem não os viveu e
até humanizar o presente. A conversa evocativa de um velho é sempre uma experiência
profunda: repassada de nostalgia, revolta, resignação pelo desfiguramento das paisagens
caras, pela desaparição de entes amados (...) O narrador tira o que narra da própria
experiência e a transforma em experiência dos que o escutam” (Bosi, 1994, p. 82, 85).
28
A oralidade é mais uma possibilidade rica e humanizada de valorização do
passado espacial, quer seja contada no aqui agora, quer seja registrada em papel (ou
novas mídias) para a posteridade; os documentos históricos oficiais possibilitam a
categorização de dados, mas nem sempre trazem minúcias, afetos ou mesmo dados da
vida cotidiana pregressa que se fazem presentes no discurso do orador velho ou do
narrador vivo ou morto [quando registrado]. Não foi por meio da oralidade, mas através
de uma estratégia metodológica sui generis que Maurício de Abreu propôs os mapas
conjecturais. A falta de documentação cartográfica urbana dos primeiros tempos do Rio
de Janeiro [de seu sítio original], fez com que o autor tentasse reconstitui-lo através de
fragmentos de documentos antigos, “exigência que transforma a análise em verdadeiro
exercício de dedução” (Abreu, 2005, p. 193). Nessa proposta, o autor reconstituiu,
minimamente, o Rio de Janeiro quinhentista mesmo com fontes de momentos
progressos, algumas até do século XX, com elementos estruturais e paisagísticos
posteriores ao período que se quis estudar. Abreu reconheceu a fragilidade da própria
metodologia, quando “nada pode garantir que a cidade tenha sido exatamente como ela
será apresentada”, de maneira que, “se a cidade não foi exatamente como os mapas a
irão apresentar, também não terá sido muito diferente dessa caracterização” (Abreu,
2005, p. 193-194). Registros orais realizados no século XVI [caso existam ou
existissem] seriam mais uma referência analítica aos pesquisadores do presente.
No caso do Distrito Federal, é possível reconstituir elementos sociais e
memoriais do trabalho relativo à construção da nova Capital, através de testemunhos.
Caso notório ligado à agenda de pesquisa que se propõe é o de São Sebastião, Região
Administrativa estritamente ligada à história da feitura do Plano Piloto, no meados do
século XX. Nessa localidade, funcionaram próximo a uma centena de olarias e
cerâmicas cuja negligência arquivística pouco relata e não espacializa tais objetos
geográficos referenciais da história da construção da Capital. Nesse aspecto, a
recorrência ao relato dos pioneiros construtores pode ser fundamental na metodologia
de um mapa conjectural que localize e explique a estratégia das olarias para a
edificação de Brasília. Essa pesquisa está em curso. Além de fontes documentais do
29
Arquivo Público do Distrito Federal, recorre-se ao antigo morador tido popularmente
por fundador de São Sebastião, em fins da década de 1960, o senhor Tião Areia, cuja
história e papel são reconhecidos em variadas pesquisas de pós-graduação na
Universidade de Brasília. Este antigo morador de São Sebastião (que, inclusive, dá
nome ao lugar – Sr. Sebastião de Azevedo Rodrigues, nascido na década de 1940),
pessoalmente, indica cada localização de olarias e cerâmicas em São Sebastião, uma vez
que foi proprietário de alguns desses empreendimentos e importante mercador local.9
Essa espacialização poderá ser desenvolvida para outros objetos ou ações históricas
ligadas à formação territorial do DF.
Ainda na defesa dos testemunhos ou depoimentos orais como recursos
metodológicos à Geografia Histórica Urbana, quer se estabelecer mais um breve diálogo
com Pedro de Vasconcelos. O geógrafo, ao defender algumas bases metodológicas para
o estudo urbano histórico, entende que,
(...) mais importante para nós, examinar o desenvolvimento espacial da cidade
em cada período, tomando como referência principal a cartografia original (e a
iconografia existente), mas complementada pelas informações escritas
(inclusive as estatísticas), e de preferência de fontes primárias. A partir de um
certo nível de crescimento da cidade, as partes da mesma poderão ser
examinadas individualmente, segundo os vetores principais de expansão. Mas,
a opção pelas transformações espaciais, privilegiando as mudanças das partes e
dos eixos da cidade, se por um lado dá um caráter mais geográfico do que
histórico ao estudo, e permite descobrir relações espaciais que estavam ocultas,
por outro lado, criam uma dificuldade suplementar: como adicionar
informações pontuais no tempo, como, por exemplo, os relatos dos viajantes ou
dos cronistas que escreveram durante o período, por uma ordem que não seja a
cronológica, sobretudo considerando que a maior parte das descrições referese, em sua grande maioria, às áreas centrais da cidade? (Vasconcelos, 2009, p.
155)
A preocupação do autor é extremamente relevante e pertinente. Contudo,
assegura-se que testemunhos registrados no passado ou depoimentos colhidos no
presente sobre o passado urbano referem-se a fontes cruciais para reconstituição de
bairros históricos menos antigos das cidades, os quais não foram conhecidos pelos
9
A pesquisa não se atem ao relato deste autor, mas busca referências documentais escritas e orais junto a
outros pioneiros. Percorre-se toda a cidade com Tião Areia e, com GPS, é identificada a localização de
cada equipamento histórico, a maioria dos quais não existe mais.
30
viajantes do século XIX, muito menos parecem ser objetos diretos de preocupação dos
historiadores, no presente. Em tese defendida na Universidade de São Paulo, adotou-se
a metodologia dos testemunhos ou depoimentos orais colhidos dos moradores mais
velhos dos bairros periféricos de Ouro Preto [antiga Vila Rica] e de Diamantina [antigo
Arraial do Tijuco], para o resgate da formação dessas áreas, ao se reconhecer uma
“ditadura” do enfoque da chamada cidade colonial pelo seu sítio original, sobretudo.
Uma grande lacuna nos estudos que se referem às cidades hoje patrimonializadas e
ligadas à história econômica brasileira do açúcar, do ouro e dos diamantes, da pecuária e
mesmo do café, diz respeito à formação territorial em sua totalidade urbana, ou seja,
desfocada de uma “ditadura do centro histórico patrimonializado” [ver Costa, 2011, que
compreende ambas as cidades coloniais enquanto totalidade urbana e busca entender, no
viés da geografia urbana, a formação dos bairros além limites da área tombada].
Parece que essa “ditadura”, em que as áreas centrais são privilegiadas pelas
pesquisas de diferentes campos reproduz-se para Brasília. A Capital Federal é
vastamente reconhecida [em estudos e projetada pela mídia] por sua expressão
geopolítica, artística e administrativa, de maneira que a compreensão da formação
territorial que se deu concomitantemente à própria construção da Capital [pelas suas
bordas e para bem além delas] parece pouco revelada. Quando se refere à história dos
construtores de Brasília, os nomes de importantes arquitetos e artistas [Lúcio Costa,
Oscar Niemayer, Athos Bulcão e Burle Marx] são enaltecidos. Esta agenda de pesquisa
prioriza, ao contrário, os “artistas construtores” que puseram pedra sobre pedra na nova
Capital Federal e, pelos desígnios do poder e da hegemonia atinentes à história ou
daqueles que a protagonizam no discurso, parecem esquecidos ou, no máximo, pouco
lembrados. A tendência na qual operários pioneiros foram jogados à margem da história
e do território do Plano Piloto [Brasília] tem sido revertida.
Logo, para dar voz a esses “novos” protagonistas de Brasília, propõe-se, em
resumo, como agenda de pesquisa:
1. Refinamento da metodologia atinente à história oral aplicada ao estudo
geográfico da formação do território [em andamento].
31
2. Estudo das nuanças da construção da nova Capital Federal Brasília [Plano
Piloto], nos vieses das estratégias governamentais, das resultantes
socioeconômicas da operação, da dinâmica territorial na escala da metrópole
e na escala nacional [primeira aproximação dessa proposta foi realizada em
Costa; Steinke, 2014].
3. Análise da constituição histórica das 31 (trinta e uma) Regiões
Administrativas [antigas cidades-satélites] – pautada em fontes documentais
[escritas e orais, primárias e secundárias]. Estudo já iniciado conjuntamente
com discentes da graduação e da pós-graduação da UnB incorporados nessa
proposta maior. A ideia é a da análise de uma cidade ou região por ano [em
Costa e Peluso, 2013, foi realizada uma primeira aproximação ao Núcleo
Bandeirante, Ceilândia e Taguatinga; a própria crítica ao trabalho exige
retomada metodológica para o encaminhamento do projeto, bem como
revisão de cada R. A, individual e profundamente]. Essa proposta deverá ser
executada ao longo de três ou mais décadas.
4.
Constituição de um arquivo geográfico de história oral, fundado no
depoimento de testemunhas do passado, pela memória dos operários e seus
familiares, todos vinculados diretamente à construção da nova Capital do
Brasil [entre 1956-1960]; sujeitos ainda vivos com idade média entre 60 e 80
anos [acervo a ser catalogado no âmbito do Departamento de Geografia da
Universidade de Brasília, Laboratório GEOredes, Grupo de Pesquisas
Cidades e Patrimonialização, GECIPA, diretório CNPq].
32
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A geografia material do mundo tem na história fundamento imprescindível de
sua explanação. O tratamento histórico do espaço - por si só - parece insuficiente para
dar sentido à Geografia Histórica Urbana. Antes de indagar o espaço pela dimensão
histórica é necessário inquiri-lo do ponto de vista categorial geográfico. Problematizar o
espaço geograficamente significa reconhecer os princípios da própria Geografia em sua
história,
antes
de
qualquer
encaminhamento
de
pesquisa
[necessidade
de
reconhecimento epistemológico].
Se as categorias de análise da Geografia são universais, como se aventou no
início deste texto, as variáveis que as dão sentido não o são, o que exige situá-las em
seu espaço-tempo. Contextualiza-se, por assim dizer, não apenas o objeto, o fato ou o
fenômeno da análise, mas a própria categoria ou o conceito empregado, a oferecer sua
revisão ou adequação se o objeto assim o exigir, dado o recuo do tempo ou o momento
das técnicas que o perfaz.
O pensamento geográfico da cidade na história exige, especialmente, o
entendimento de que universalidade, particularidade e singularidade fazem-se
simultaneidade na produção histórica do lugar. Por isso, o tratamento do passado
espacial urbano exige reconhecimento da ideia de totalidade [filosófica e não empírica].
A restrição da análise urbana histórica a suas formas ou morfologia da paisagem parece
negar a dimensão essencial da história espacial, que envolve contextualização das
próprias formas pretéritas resultantes de normas e processos sociais genéticos.
Por último, a Geografia Histórica [especialmente de viés urbano] carece, ainda,
de matização epistemológica e metodológica, quando os trabalhos apresentados nos
mais recentes congressos da área apresentam um alinhamento difuso e pouco claro com
as categorias e os princípios da Geografia Humana enquanto “história do território”,
como sugere A. C. Robert Moraes; também merecem questionamento metodológico
com respeito às fontes primárias a serem estudadas tendo como pauta os princípios da
33
disciplina, como esboçam os trabalhos de Maurício de Almeida Abreu e de Pedro de
Vasconcelos.
Longe de os argumentos aqui apresentados pretenderem-se verdades resolutas
sobre o temário. Foram apresentadas questões propositivas para um debate que se deseja
aberto, honesto e esclarecedor àqueles que advogam por uma Geografia Histórica
Urbana fundada em princípios claros da Geografia enquanto disciplina do saber
espacial, antes e durante o diálogo com outros importantes e irrefutáveis campos de
saberes.
6. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
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