Visita de Estudo à Basílica da Estrela APH

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Visita de Estudo à Basílica da Estrela organizada pela Associação de Professores de História
16 de Dezembro de 2006
História da pedra ou pedra com história?
Manuel F.C. Pereira 1
Introdução/Motivação
Ao visitarmos edifícios históricos, tendemos a considerá-los como registos do passado humano, que
podem ser lidos de forma a transmitirem-nos vivências e mentalidades de determinadas épocas.
Esquecemo-nos, a maior parte das vezes, que os edifícios são, igualmente, testemunhos de uma outra
história mais vasta, e da qual também fazemos parte integrante – a história da Terra. De facto, os
materiais usados na sua construção passam-nos, a maior parte das vezes, despercebidos, a não ser
que se tratem de materiais ditos «nobres» como o ouro, a prata, as pedras preciosas e uma ou outra
madeira exótica. Na linguagem corrente o edifício é de «pedra» e as estátuas são de «mármore»,
ficando a nossa análise por aí. Na realidade os edifícios escondem, na variedade de materiais
geológicos que os compõem, uma quantidade imensa de outros registos, assim interligados a
realizações humanas. Ruída a construção, os materiais geológicos serão, na sua maior parte,
reaproveitados para outras construções, dando início a um novo ciclo da sua existência na história dos
homens.
Que materiais geológicos foram explorados na região de Lisboa? Quais as suas
principais aplicações?
Em Lisboa, tal como em muitos locais do mundo, a fixação do núcleo urbano e o seu desenvolvimento
temporal foram condicionados por factores geológicos e geomorfológicos. Existe uma estreita ligação
entre as actividades extractivas e o desenvolvimento económico e social da cidade, assim como a
evolução dos espaços urbanos. O primeiro uso significativo das pedras regionais verificou-se na época
romana (ex. Teatro Romano, ao Caldas, século I d. C.), mas o maior surto da actividade extractiva dá-se
com a reconstrução de Lisboa após o terramoto de 1755.
Os principais materiais geológicos explorados na região de Lisboa foram os calcários2 (Figura 1), as
margas3, o basalto4, o sílex5, as areias e as argilas. Algumas destas actividades de exploração marcam
a sua presença na toponímica local (ex. Areeiro, S. Sebastião da Pedreira, Barreiro, etc.).
As pedras tiveram ou têm aplicação em alvenarias, enrocamentos, aterros, ornamentação e escultura,
cantarias, calçadas6, fabrico de cal e indústrias química e do vidro.
1
Centro de Petrologia e Geoquímica – Departamento de Minas e Georrecursos - Instituto Superior Técnico – Lisboa:
[email protected] . Uma das grandes linhas de investigação deste Centro é o estudo da alteração de materiais pétreos
utilizados nos monumentos nacionais ou da Bacia Mediterrânica.
2
Pedra constituída essencialmente por calcite (carbonato de cálcio), de origem sedimentar química ou bioquímica
3
Pedra constituída por uma parte calcária e uma parte argilosa, utilizada sobretudo na produção do cimento
4
Pedra de origem vulcânica, de cor negra, utilizada frequentemente na calçada portuguesa.
5
Explorados no Vale de Alcântara e em Campolide nos tempos pré-históricos (Zbyszewski, 1963).
6
Ver http://gougon2.tripod.com/id39.html
As areias e argilas exploradas na região de Lisboa foram amplamente utilizadas na construção, em
argamassas, telhas e tijolos, cerâmica e indústria do vidro. Dessa actividade resistem ainda algumas
chaminés em tijolo dispersas pela cidade.
O mapa apresentado na Figura 1 mostra uma recolha das localizações das pedreiras calcárias no
concelho de Lisboa, bastante completa mas não exaustiva, efectuada por Pinto (2005). A área mais
importante compreende a envolvente do Vale de Alcântara e a região de Monsanto. Na região mais
oriental do concelho exploraram-se rochas calcárias bastante diferentes das que encontramos na
Basílica da Estrela, que se encontram, por exemplo na Sé e no Castelo de S. Jorge. A título de
curiosidade, e dada a proximidade ao local da Basílica, citam-se pequenas explorações na área da Av.
Infante Santo (Gasómetro), junto à rua do Borja (Tapada das Necessidades) ou na Estufa-fria (Parque
Eduardo VII).
Figura 1 - Localização de pedreiras de calcário (manchas mais escuras) no concelho de Lisboa (Pinto, 2005).
Os calcários explorados na zona ocidental do concelho de Lisboa são do Cretácico
a 65 Ma) enquanto os da parte oriental são do Miocénico8.
7
Superior (entre 80
Alguns aspectos gerais sobre a origem das pedras/rochas e localização de algumas
pedreiras na região de Lisboa/Sintra/Cascais.
Como se observa na Figura 2, a região Lisboa/Sintra/Cascais é bastante rica em materiais geológicos,
que são utilizados como rochas ornamentais, nomeadamente os de natureza calcária. A maioria das
explorações desta região está, contudo, actualmente inactiva. Para além das explorações de rochas do
7
8
O Período Cretácico (135 – 65 Ma) segue-se ao Período Jurássico (180 -135 Ma)
Compreende o intervalo 38 a 23 Ma e ocupa praticamente toda a região central e oriental do concelho.
Cretácico, extraíram-se calcários do Jurássico, na periferia da Serra de Sintra. Sobre este assunto,
atente-se à descrição apresentada por Pereira de Sousa (1898):
"O districto de Lisboa, constituido por terrenos jurassicos, cretacicos e terciarios, é riquissimo em rochas
calcareas. (...), e n'elle se encontra os bellos marmores brancos, amarellados ou rosados do Cretacico
superior e cinzentos azulados do Cretacico medio, e os marmores negros do Jurassico de Cintra (.. .).
Lisboa, collocada no centro d'este districto, é das poucas cidades do mundo que possue, quasi por
assim dizer na sua propria area, materiaes de tão boa qualidade e os mais indespensaveis para as suas
contrucções. (.. .). (…)na parte occidental de Lisboa é mais explorado o Cretacico e na oriental o
Terciario. (...). Teem sido, comtudo, mais exploradas por serem de melhor qualidade e mais facil
exploração as do concelho de Cintra, aonde se encontram riquissimos marmores. (...), as grandes
pedreiras antigas, que existem em Pero Pinheiro, Morlenas e outros pontos, mostram-nos quanto esta
pedra foi apreciada pelos antigos. E' provavel que fossem as pedreiras de Pero Pinheiro, pela grande
quantidade de pedra que n 'ellas se reconhece ter sido antigamente extrahida, as que primeiro foram
mais conhecidas e exploradas, e, por isso, ficou-se chamando cantaria de Pero Pinheiro a toda a
d'aquella região, comprehendendo Morlenas, Lameiras, Fervença, Penedo da Colhoa, Maceira, Pedra
Furada, etc.”.
Figura 2 - Pedreiras de calcários ornamentais na região Lisboa/Sintra/Cascais. Adaptado de Figueiredo P. (1997)
Que tipos principais de Pedra encontramos na Basílica da Estrela? Como distingui-los?
No que respeita à origem dos materiais importa sublinhar, citando Vasconcelos (1989), que "(...), muito
se deve louvar o facto de, tirante os retábulos de Batoni, tudo ser português: desde os arquitectos aos
materiais empregados; desde a mão-de-obra ao trabalho artístico, às alfaias, ao mobiliário; e também o
órgão, os sinos, o relógio."
As pedras utilizadas na construção da Basílica da Estrela são provenientes quase exclusivamente da
região Lisboa/Sintra/Cascais, o que embarateceu a obra. Sobre este assunto, diz Manuel Pereira Cidade
nas suas Memórias, na página 163, «ao Mestre canteiro Cypriano Francisco encarregou (Reinaldo
Manuel dos Santos) a direcção dos dois Telheiros, e o mandar vir para elles toda a pedraria competente;
isto é a pedra branca chamada liós, do Lugar de Peropinheiro; a azul de Cintra; a vermelha dos Negrais;
a amarella chamada Sallema de Loisa; e a preta que se acha nas molduras dos Retabulos da Bazilica,
de Cascáes».
Pinto (2005) refere que algumas construções de Lisboa, como a Igreja da Estrela, o Palácio da Ajuda e o
Teatro de S. Carlos foram construídos com muita pedra proveniente das proximidades do Vale de
Alcântara e da Ajuda.
Todas as pedras aplicadas nos pavimentos, na cantaria, na ornamentação ou nas esculturas da Basílica
da Estrela são de natureza calcária, ou seja a sua composição mineral global é muito semelhante. As
diferentes variedades distinguem-se a olho nu pelas suas cores e texturas, e são identificadas,
actualmente, pelo seu NOME comercial que, muitas vezes, reflecte o seu local de origem. A única
excepção pode ser a pedra das magníficas esculturas da Escola de Machado de Castro, possivelmente
de origem italiana (Carrara).
Existem dois tipos principais de rochas calcárias: (1) os calcários propriamente ditos, de origem
sedimentar, que resultam da deposição de matéria mineral de composição calcária, em ambiente
predominantemente marinho; (2) os calcários cristalinos ou mármores, que resultam da
transformação de rochas calcárias por efeito da temperatura9.
Existem muitas variedades de calcários sedimentares, em função do ambiente onde estes se formam.
É comum apresentarem fósseis de animais marinhos, acumulados no local de formação da rocha após a
sua morte. As texturas10 observadas nos calcários dão-nos informações sobre os locais onde estas
rochas se formaram e sobre as transformações posteriores à sua formação. As diferentes cores dos
calcários devem-se, essencialmente, a pequenas variações na sua composição. Mesmo em pequenas
quantidades, algumas “impurezas” do calcário podem afectar a qualidade da pedra, quando esta é
aplicada em obras de arte ou nos monumentos.
Os calcários cristalinos e os mármores distinguem-se dos calcários sedimentares por serem
constituídos por um mosaico de cristais, que exibem um brilho intenso. A distinção entre calcário
cristalino e mármore é um pouco artificial, sendo reservado o termo mármore para as rochas com
grãos/cristais muito finos, quase imperceptíveis quando a rocha se encontra polida. De um modo geral,
os mármores têm melhores propriedades que os calcários, no que respeita à sua aplicação em obra. Por
esta razão, a que acresce o facto de serem menos comuns que os calcários, os mármores são
geralmente mais caros.
Antes de passarmos à distinção, um pouco mais pormenorizada, das pedras aplicadas na Basílica
apresenta-se uma ilustração (Figura 3) que mostra como, a partir de um mesmo material em bruto, se
podem extrair painéis de rochas com diferentes texturas. Este aspecto, que teremos oportunidade de
verificar no local da visita, tem particular importância, para além dos aspectos estéticos referidos. De
facto, alguns dos problemas que se detectam em muitas aplicações da pedra, devem-se às diferenças
entre a sua posição original no terreno e a posição de colocação em obra. Outro aspecto a considerar
numa pedra é o tipo de acabamento utilizado, que depende do local onde será colocada e do efeito que
se pretende alcançar – por exemplo, esconder alguns defeitos ou exaltar toda a sua beleza.
9
Essa transformação designa-se por metamorfismo (alteração da forma) e os calcários assim transformados são considerados
metamórficos. Na região de Lisboa este efeito térmico está relacionado com vulcanismo e com a formação da Serra de Sintra.
10
A textura reflecte a forma, o tamanho e o arranjo dos componentes da rocha.
Figura 3 – O tipo de corte dos blocos de pedra afecta o tipo de textura observado dos painéis
Como distinguir as diversas variedades de Pedra utilizadas na Basílica da Estrela?
A pedra principal é o Liós ou Lioz, que marca a sua presença nos principais monumentos da capital e
nas suas habitações, no seu termo e mesmo mais além (ex. Alcobaça). Também a encontramos
espalhada pelos territórios do Império Português11. Existem diversas variedades comerciais de Liós, mas
tipicamente apresentam cor clara, creme, rosada ou amarelada (Figura 4a).
Ao longo da visita serão apresentadas as diferentes particularidades destas variedades de rocha. Uma
vez que grande parte dos calcários do Cretácico apresenta bastantes fósseis de rudistas, em particular o
Liós, fornecemos aqui alguns exemplos desses animais, que viveram em recifes de coral e cuja extinção
data do final do período referido (Figura 4b).
a
b
Figura 4 – Pormenor do Liós (a) e exemplos de rudistas (b).
Outras variedades de pedra patentes no interior, no chão, no tecto, em painéis verticais ou em outros
pormenores arquitectónicos incluem o Encarnadão (Figura 5a), o Amarelo de Negrais (Figura 5b equivalente ao Sallema), o Negro Mem Martins (Figura 5c) e o Azul de Sintra (Figura 5d). Estas duas
últimas são do Jurássico.
O Azul de Sintra é um calcário cristalino de cor azul acinzentado, que tem como particularidade o facto
de ser fétido quando percutido. A pedra da estatuária é, como se disse, mármore branco com alguns
veios, possivelmente italiano.
11
Ver http://www.salvador2003.com.br/igrejas.htm#Catedral%20Basílica
a
b
c
d
Figura 5 - Pormenores do Encarnadão (a) , Amarelo de Negrais (b), Negro Mem Martins (c) e do Azul de Sintra (d).
A degradação da pedra. Causas e Consequências.
“No dia em que a estátua é acabada, começa de certo modo a sua vida. Fechou-se a primeira fase em que, pela mão do
escultor, ela passou de bloco a forma humana; numa outra fase, ao correr dos séculos, irão alternar-se a adoração, a
admiração, o amor, o desprezo ou a indiferença, em graus sucessivos de erosão e desgaste, até chegar, pouco a pouco, ao
estado de mineral informe a que o escultor a tinha arrancado.(…). Estátua exposta ao vento marinho, apresenta a brancura e a
porosidade de um bloco de sal a esfarelar-se.”
Marguerite Yourcenar in O tempo esse grande escultor
O estudo da alteração das rochas, assim como de outros materiais utilizados em bens patrimoniais,
merece cada vez maior atenção de diversos especialistas (engenharia, arquitectura, reabilitação,
conservação, restauro, arqueologia, etc.), pois envolve o problema fundamental da preservação do
Património Construído. Actualmente, este domínio de estudo constitui um dos três eixos principais de
Investigação do CEPGIST12 do IST, através do Projecto DECASTONE. Os principais monumentos
nacionais, incluindo a Basílica da Estrela, foram e continuam a ser alvo de investigação aprofundada, de
forma a avaliar correctamente as condições e os mecanismos responsáveis pela sua degradação e a
encontrar as soluções correctivas mais adequadas a cada situação.
Ao longo da visita teremos oportunidade de encontrar pedras diferentes, colocadas lado a lado,
ostentando diferentes graus de degradação ou “doença da pedra” (em linguagem mais científica, graus
12
http://cepgist.ist.utl.pt
de alteração); por outro lado, a mesma pedra pode apresentar óptimas características num local e noutro
apresentar sinais de degradação avançada. Porquê?
Como reconhecer uma patologia na pedra?
A par da visualização de exemplos de pedras praticamente inalteradas, haverá a oportunidade de
reconhecer diferentes graus de degradação das rochas utilizadas no edifício. Ao vermos como estes
materiais eram originalmente, podemos recuar no passado e imaginar as cores fortes que davam vida ao
espaço interior da Basílica da Estrela, o que em parte poderá justificar o menor peso dado aos restantes
elementos decorativos.
As infiltrações de água a partir das zonas superiores, entretanto impermeabilizadas, são consideradas
como a principal causa da degradação apresentada pelos painéis verticais de Amarelo de Negrais
(Figura 6). Esta pedra é, sem dúvida, a pedra mais vulnerável utilizada na Basílica.
Figura 6 – Pormenor de um painel lateral de um altar. O Amarelo de Negrais encontra-se visivelmente afectado por fenómenos
de alteração, que se traduzem pela atenuação da cor e pela saída de lascas e libertação de pó. A moldura de Liós e o Azul de
Sintra não apresentam sinais significativos visíveis de alteração.
Figura 7 – Pormenor do terraço da Basílica antes dos recentes trabalhos de impermeabilização e de limpeza. A rocha
encontrava-se amplamente infestada por líquenes – degradação biológica.
Nota: Incluem-se algumas referências bibliográficas para quem pretender aprofundar aspectos relativos
à conservação e ao restauro do património construído, uma claramente transversal à nossa Sociedade
no sentido de preservar a nossa memória colectiva.
Referências Bibliográficas
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Vol II. IPAR.p.378-387.
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Publ. Da Biblioteca Nacional de Lisboa (Secretaria de Estado da Cultura – Direcção Geral do
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Pinto, M.J. P. R. S. (2005) – Gestão Urbanística - Levantamento cartográfico de locais de
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Moita, I. (1988) – Basílica da Estrela, in Monumentos e Edifícios Notáveis do Distrito de Lisboa,
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Zbyskewski, G. (1964) – Carta geológica dos arredores de Lisboa na escala 1/50 000. Notícia
explicativa da Folha 4 (Lisboa). Serviços Geológicos de Portugal. Lisboa.
Convite
Para os amantes da Mineralogia, ou da Geologia em geral, convidam-se os interessados a
visitar (sob reserva) os dois Museus científicos do Departamento de Minas e Georrecursos do
IST – Lisboa (Museu Décio Thadeu - Geologia e Jazigos Minerais e Museu Alfredo
Bensaúde – Mineralogia. Cristalografia e Petrologia).
Contacto - [email protected]
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