A desagregação do império - Análise Social

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Valentim Alexandre*
Análise Social, vol. xxviii (121), 1993 (2.0), 309-341
A desagregação do império:
Portugal e o reconhecimento
do Estado brasileiro (1824-1826)
1. INTRODUÇÃO
Processo longo e multifacetado, a desagregação do império luso-brasileiro
conhece diversas fases, que vão da desarticulação económica, iniciada com
a abertura dos portos do Brasil em 1808, à ruptura política, verificada durante o triénio liberal vintista e consumada mais tarde, em 1825, pelo reconhecimento internacional do novo Estado americano. As páginas que agora
publicamos ocupam-se do momento final desse percurso, movendo-se em
torno do tratado luso-brasileiro de 29 de Agosto de 1825 — analisando as
negociações que a ele conduziram e as que lhe sucederam, até à morte de
D. João VI, em Março de 1826.
Bem estudado já pelo lado brasileiro1assim como na óptica da história diplo
mática inglesa2, o tópico foi raramente abordado entre nós: se exceptuarmos
algumas referências pontuais, teremos de recuar até 1922 para encontrarmos
no livro de António Viana, A Emancipação do Brasil, um tratamento mais
pormenorizado do assunto, seguindo correctamente a documentação disponível, mas obviamente datado sob o ponto de vista analítico. Em parte, este
desinteresse é compreensível: os anos em causa correspondem a um anticlímax;
quanto ao próprio tratado, não passa, aparentemente, de uma simples
confirmação da independência brasileira, já efectiva desde 1822. Mas as coisas
só tomam esse aspecto numa visão retrospectiva; na época tinha-se a questão
do império como ponto em aberto: para uns, a separação do Brasil não
era ainda um dado adquirido; para outros, conscientes da irreversibilidade
do processo de emancipação do reino americano, havia em todo o caso
que negociar as condições do reconhecimento do novo Estado, defendendo
os interesses portugueses no campo económico e resolvendo o problema
* Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
1
Boa síntese em O Brasil Monárquico, 1.° vol. do t. ii da História Geral da Civilização
Brasileira (publicada sob a direcção de Sérgio Buarque de Holanda), livro iv, S. Paulo,
1985 (6.a ed.).
2
Cf., nomeadamente, C. K. Webster, Britain and the Independence of Latin America, 2 vols.,
Londres, 1938, e H. W. V. Temperley, The Foreign Policy of Canning, 1822-1827, Londres, 1925.
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da sucessão na coroa de Portugal. Por isso mesmo, a desagregação do sistema luso-brasileiro continua a ser um dos factos centrais da vida política
do país de 1823 a 1826 — aí se jogando, subterraneamente, algumas das questões de fundo que vão condicionar os conflitos que sacodem a sociedade portuguesa nos anos seguintes.
2. DA INTEGRAÇÃO NACIONAL À UNIÃO DINÁSTICA
Ao extinguir-se com a «Vilafrancada», o primeiro período liberal caía, por
grande parte, vítima da sua incapacidade para resolver a questão brasileira.
Movimento nacional, o vintismo impusera-se como objectivo o restabelecimento da hegemonia de Portugal no império, pela submissão de todos
os domínios à «vontade geral» definida em Congresso, no qual a metrópole
tinha um peso determinante. Entrando em confronto, na defesa desta linha,
tando com as correntes autonomistas brasileiras como com o próprio
D. Pedro, as cortes liberais vão perdendo, sucessivamente, terreno a partir
dos meses finais de 1821. Um ano mais tarde, falhada a política até aí seguida, era a todos os olhos claro que o governo de Lisboa se encontrava num
beco sem saída, tolhido como estava pelo dilema em que o Congresso se deixara encerrar: ou aceitar a independência do Brasil como facto consumado,
correndo o risco de descontentar sectores económicos importantes e de ferir
o nacionalismo exacerbado, de que o vintismo fora precisamente a expressão,
ou manter, pelo menos verbalmente, uma política de força, para que não dispunha dos meios necessários. Neste quadro, ganhavam naturalmente peso
as teses, provenientes dos sectores absolutistas, que viam na reconciliação com
D. Pedro a forma de conservar o império, por via da união dinástica.
Abolido o regime liberal — e, por isso, extintas as «malditas cortes», sempre
indicadas por D. Pedro na correspondência com seu pai como o principal
obstáculo a um entendimento3 —, estava, aparentemente, aberto o campo
a uma política de aproximação com o herdeiro da coroa que evitasse a total
desagregação do sistema luso-brasileiro. Foi esse o caminho que o governo
saído do golpe de Estado tomou (depois de ter liminarmente afastado, na
primeira reunião do conselho de ministros, uma proposta de reconhecimento
imediato do Brasil, em troca da conclusão de um tratado comercial vantajoso, avançada por Mouzinho da Silveira)4: logo a 16 de Junho de 1823 um
despacho do novo ministro dos negócios estrangeiros, marquês de Palmeia,
3
310
Carta de D. Pedro a seu pai de 19-6-1822 in Documentos para a História das Cortes Gerais
da Nação Portuguesa, compilados por Clemente José dos Santos (doravante referidos por DHCG),
Lisboa, 1883, vol. i, pp. 358-360.
4
Relato da reunião do conselho in Mouzinho da Silveira, Obras, Lisboa, 1989, vol. i,
pp. 624-625.
Reconhecimento do Estado brasileiro
dava conta da decisão de D. João VI de enviar ao Rio de Janeiro «dois
comissários régios incumbidos de entregar uma carta que ele dirige ao seu
augusto filho, e com ordem expressa para fazerem cessar o derramamento
de sangue que desgraçadamente resulta de guerra civil entre dois povos»5;
e, com efeito, em finais do mês seguinte a missão partia de Lisboa com
instruções para negociar um acordo pelo qual se garantia ao Brasil uma «carta
particular acomodada à sua localidade e demais circunstâncias», bem como
uma regência, na pessoa do príncipe real, dotada dos mais amplos poderes —
mas ressalvando sempre a soberania de D. João VI, a quem caberia,
ao menos pro forma, a confirmação das leis promulgadas no território
americano 6 .
Simultaneamente, Palmeia transpunha a questão para o campo diplomático, ao comunicar os objectivos da missão às diversas potências europeias,
cuja «amigável intervenção, quando [...] necessária», se solicitava «para fazer
desaparecer o fatal exemplo da usurpação de um torno [...]»7. Pouco depois
o representante de Portugal em Londres, conde de Vila Real, discutirá com
Canning a possibilidade da mediação inglesa — que o ministro britânico
admitia, mas recusando-se a fazer «sentir ao Governo estabelecido no Rio
de Janeiro que nunca reconheceria a independência do Brasil sem o consentimento de Sua Majestade Fidelíssima». Por outro lado, posto perante
a hipótese de Portugal procurar o apoio dos países da Santa Aliança,
Canning esclarecia que «a Inglaterra nunca reconheceria às potências aliadas
o direito de se ingerirem nos negócios das colónias», ameaçando tomar nesse
caso todas as «providências que tivesse por mais conformes aos seus interesses particulares» 8 . Aceitando suspender a comunicação com as potências
continentais a este respeito, Palmeia vem a pedir, não já apenas a mediação,
mas o «apoio poderoso da influência Inglesa», por todos os meios possíveis,
«menos o da força armada» 9 . Mas sem ilusões: como dirá um pouco mais
tarde, tudo o que se podia pretender nesta fase, a nível diplomático, era travar
o reconhecimento do Brasil pela Grã-Bretanha, que se tinha por iminente.
Por isso mesmo se solicita na altura (com a anuência de Canning) a mediação
da Áustria: para além da possível pressão sobre D. Pedro (de quem o imperador austríaco era sogro), tratava-se sobretudo de levar Viena a exercer uma
influência moderadora no governo britânico, evitando que ele seguisse «um
rumo isolado e totalmente divergente»10.
5
Despacho in DHCG, vol. i, pp. 811-812.
Instruções da missão in DHCG, vol. i, pp. 812-813.
7
Despacho de Palmeia de 25-8-1823 in J. F. Júdice Biker, Suplemento à Colecção de Tratados, Lisboa, 1872-1879, vol. 21, p. 189,
8
Memorando de Vila Real de 23-9-1823, ibid., pp. 211 e segs.
9
Despacho reservado n.° 1 de Palmeia a Vila Real de 20-10-1823 in ANTT, fundo MNE, legação de Portugal em Inglaterra, reservados, livro n.° 1 (1823-1824).
10
Despacho reservado n.° 14 de Palmeia de 28-2-1824 in Biker, vol. cit., p. 378.
6
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Estavam as coisas neste pé — aguardando-se a resposta da Áustria, com
o compromisso da Grã-Bretanha de não dar entretanto qualquer passo decisivo sobre a questão brasileira — quando a 19 de Dezembro de 1823 chegavam
de regresso a Lisboa os comissários régios. Os resultados da missão não podiam ser mais decepcionantes: não estando mandatados para reconhecerem
a independência do Brasil — condição prévia exigida pelas autoridades do
Rio para qualquer negociação —, os emissários haviam sido tratados como
inimigos, sendo expulsos depois de apresada a própria embarcação em que
seguiam e recusando-se D. Pedro a receber a carta de seu pai 11 . Tornava-se
evidente o equívoco que fora toda a «malfadada expedição»: reduzir o conflito entre o Brasil e Portugal a uma simples consequência do descontentamento provocado pela política das cortes liberais era nada compreender da
força e motivações profundas do movimento autonomista brasileiro e da fragilidade das posições de D. Pedro, obrigado, para se manter no trono, a afastar
a mais leve suspeita de entendimento com os Portugueses.
Malograda a diligência em que a corte de Lisboa depositava o melhor das
suas esperanças, tornava-se necessário repensar a política a seguir na questão
brasileira. Do debate que teve lugar então na corte de Lisboa chegaram-nos
dois relatórios, um de Subserra e outro de Palmeia, datados ambos de 9 de
Janeiro de 1824 e apresentados em Conselho de Estado nesse dia reunido na
defesa das duas principais linhas em confronto 12 .
O documento de Subserra procurava atingir três objectivos principais.
O primeiro, de carácter preliminar, consistia em eliminar ou, pelo menos, atenuar a responsabilidade que lhe cabia no fracasso da missão enviada ao Rio,
por ele proposta em Junho do ano anterior. Daí que o imputasse, sem grande
verosimilhança, a um «funesto acidente» — a evacuação da Baía pelas tropas
portuguesas entretanto verificada. Uma segunda ordem de argumentos
destinava-se a demonstrar que, longe de corresponder a um movimento
de fundo, por isso irreversível, a secessão brasileira não passava do fruto ocasional e transitório das manobras dos «clubes» maçónicos. Esta interpretação
abria espaço para uma política de intervenção no território americano:
de momento dominado por uma «facção», o Brasil tinha em si, no entanto,
um forte partido favorável a Portugal, com a «preponderância da indústria
e da riqueza». Finalmente, um terceiro tipo de razões procurava mostrar que,
dado o «espírito vertiginoso» que tocara muitos brasileiros, «nenhuma estabilidade» seria de esperar de «qualquer transacção ou acordo» que se fizesse —
assim se pondo em causa antecipadamente uma eventual tentativa de compromisso, nomeadamente pela via diplomática. Postas estas premissas, fácil
se tornava a Subserra concluir que o único caminho que restava a Portugal
11
Relatório e outros documentos relativos à missão in DHCG, vol. i, pp. 817-845.
Relatório de Subserra in BN, reservados, caixa 149, n.° 106, e relatório de Palmeia in DHCG,
vol. i, pp. 846-849.
12
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Reconhecimento do Estado brasileiro
estaria em preparar-se para um conflito armado, tanto mais que o próprio
Brasil se colocara já de facto em estado de guerra contra a antiga metrópole.
Nesse sentido, já se haviam tomado medidas para proteger as outras possessões portuguesas, sendo de «indispensável necessidade [...] para melhor se
poder manter qualquer ulterior determinação que se aprontassem, esquipassem [sic] e guarnecessem o maior número de Vasos de que se compõem
fsicj a Real Armada nestes Reinos». Não se opondo embora a que se esgotassem primeiro os «meios de conciliação» a que se recorria «ainda» por mediação da Grã-Bretanha e da Áustria, Subserra estava tão certo da sua ineficácia que desde logo apresentou dois planos de intervenção militar no Brasil,
em alternativa, visando um a ocupação das duas províncias do norte do território americano, com penetração posterior pelo sertão, enquanto no outro
tudo se decidiria por um ataque directo ao Rio de Janeiro.
Não se opondo frontalmente às conclusões do ministro assistente ao despacho, que gozava então da confiança régia, o relatório de Palmeia demarca-se
de forma subtil, mas suficientemente clara, das análises anteriores em todos
os pontos capitais, inscrevendo-se numa lógica diferente. É assim que na revolução brasileira, onde Subserra via unicamente a mão das associações
secretas, Palmeia divisava o efeito do «espírito vertiginoso de inovação
e de democracia» que tomara os povos do Brasil — o que tornava, obviamente, muito mais improvável um volte-face da situação política no território
americano. Por isso, Palmeia privilegia abertamente a via diplomática para
a resolução da questão brasileira, salientando sobretudo a importância da
mediação inglesa, do mesmo passo que minimiza o papel das potências da
Europa continental, cuja acção não poderia nunca ultrapassar as «meras declarações oficiais», sem consequências. O ponto fraco desta argumentação
estava em que ela contava com o apoio do governo britânico, que se sabia
estar mais perto das posições brasileiras do que das portuguesas. Torcendo
algum tanto a verdade dos factos, o relatório procurava responder antecipadamente a esta objecção, ao referir uma recente inflexão da política
da Grã-Bretanha a favor de Portugal, que se esperava ver confirmada
no futuro.
Em última análise, a linha assim definida não representava senão o retorno
à política tradicional, que via na aliança inglesa o garante da conservação
do império, na sua condição de potência marítima hegemónica. Mas Palmeia
dava à aliança ainda uma outra função: a da defesa do regime saído
da «Vilafrancada» e da própria coroa de D. João VI contra os perigos que
internamente os ameaçavam, tendo para esse fim solicitado — e conseguido —
a presença permanente de uma frota britânica no Tejo13. Este apoio múltiplo
no governo de Londres implicava necessariamente que se seguissem
os parâmetros por ele fixados nas relações internacionais: é o que explica
13
Referido nas instruções a Vila Real de 25-8-1823 in Biker, op. cit, vol. cit., p. 186.
313
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a recusa de Palmeia em ligar a sorte do Brasil à das colónias espanholas,
negando-se a participar no congresso das potências proposto por Madrid
«para tomar em consideração os negócios da América» 14 .
Pelo contrário, a linha de Subserra supunha uma aproximação com as potências continentais — os «poderosos Aliados» que refere no seu relatório
como possíveis auxiliares num conflito com os independentistas brasileiros.
Quanto à ordem interna, ela seria assegurada, antes de mais, por uma atitude enérgica na questão do império, que alargaria a base de sustentação
do governo e do regime15.
Profundamente divergentes, as duas linhas não eram, no entanto, incompatíveis entre si no curto prazo: as duas vão ser prosseguidas em paralelo
ao longo do ano de 1824. Por um lado, deu-se início aos preparativos de uma
expedição naval: segundo um despacho de Palmeia datado de 29 de Fevereiro,
haviam-se mandado pôr em pé-de-guerra «todos os recursos marítimos» do
reino, devendo Sua Majestade estar «mui brevemente [...] em medida de oferecer um apoio aos realistas que sem dúvida existem no Brasil, e de auxiliar
a Sua Majestade Alteza Real para que possa conservar a autoridade delegada
que lhe compete [...]»16. Depois, já em Junho, uma vez ultrapassado o episódio da «Abrilada», Subserra decidiu enviar ao Rio um agente secreto,
na pessoa do médico Soares Leal, encarregado de propor uma solução política idêntica àquela de que um ano antes fora portadora a missão ao Brasil
e de «pôr todos os recursos de Portugal» à disposição de D. Pedro «para conservar no Brasil a autoridade que seu pai lhe confiou à sua partida». De imediato ofereciam-se-lhe 10 000 homens de boas tropas para esse efeito17.
Por outro lado, prosseguia a acção diplomática de Palmeia. Suspeitando,
ainda em Fevereiro, de que a Áustria recusava a mediação nos termos em que
o governo de Lisboa a solicitava (o que viria a confirmar-se), o ministro português não encontrou outro meio de evitar que o gabinete britânico seguisse
«a seu arbítrio a marcha que lhe parecesse mais conveniente» do que reclamar
a execução dos tratados que uniam os dois países, que dariam a Portugal
«o mais evidente direito» de exigir a seu favor «a cooperação activa da Grã-Bretanha»18. Palmeia tinha em vista uma negociação anglo-brasileira no Rio
de Janeiro, com o apoio de forças navais em diversos pontos do Brasil,
devendo as «condições da reconciliação» ficar próximas das desde o início
formuladas pelo governo saído da «Vilafrancada»19. Muito provavelmente,
os indícios de perturbação e de crise política no Brasil, subsequente à disso-
14
Relatório de Palmeia, op. cit., p. 848.
Cf. «Apontamentos» de Subserra de Janeiro de 1825 in BN, reservados, caixa 149, n.° 109.
16
Despacho de Palmeia de 29-2-1824 in Biker, op. cit., vol. cit., p. 383.
17
Instruções de Subserra a Soares Leal in Biker, op. cit., vol. 23, pp. 111-115.
18
Despachos de Palmeia a Vila Real de 28-2-1824 e a Porto Santo de 29-2-1824 in Biker, vol.
21, pp. 378-379 e 382, respectivamente.
19
Despacho de Palmeia a Vila Real de 28-2-1824, cit.
15
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Reconhecimento do Estado brasileiro
lução da Assembleia Constituinte, a 17 de Novembro de 1823, haviam convencido o ministro português de que chegara o bom momento para uma intervenção externa, e que o governo de Londres estaria disposto a efectuá-la,
contra as forças mais radicais e em defesa do próprio D. Pedro.
No entanto, vendo a situação brasileira por outra perspectiva, Canning
negou-se sempre a abandonar a sua posição inicial, formalmente neutral, de
facto favorável ao Brasil. Por fim, Palmeia viu-se constrangido a negociar
directamente com os representantes brasileiros, entretanto enviados a Londres, sob os bons ofícios ingleses e austríacos e sem condições prévias. Iniciadas apenas a 19 de Julho, as conversações vieram a centrar-se num «projecto de reconciliação e amizade entre Portugal e Brasil» apresentado por
Canning. No essencial, o documento determinava a cessação de todas as hostilidades, consagrando a completa independência do território americano.
D. Pedro renunciava aos seus direitos à coroa de Portugal, cabendo às cortes
portuguesas decidir qual dos seus filhos seria chamado à sucessão — o que
abria a porta à eventual reunião dinástica dos dois reinos, mas apenas por
morte do imperador do Brasil20.
Aprovado no Rio de Janeiro, o projecto foi mal recebido em Lisboa.
Nas palavras de Palmeia, com ele «tudo perderíamos, até mesmo a honra,
sem conservar ao menos a esperança de consolidar com tais sacrifícios
a integridade do Brasil e a soberania de Sua Alteza Real» 21 . A 14
de Outubro seguia para Londres um contraprojecto, insistindo em manter
a soberania de D. João VI sobre o Brasil, embora com a administração separada, e concedendo a D. Pedro apenas a regência. Caso a proposta fosse
rejeitada, o representante português deveria dar por finda a negociação22.
Manifestamente, não se procurava uma solução de compromisso no campo
diplomático — pelo menos enquanto não se conhecessem os resultados da
missão de Soares Leal. Qualquer que fosse a opinião de Palmeia, a política
externa subordinava-se, no essencial, à linha preconizada por Subserra, o qual,
em parecer datado de 11 de Outubro, continuava a defender uma intervenção
no Brasil, agora com o apoio mais claro, pelo menos de ordem moral, da
Rússia 23 .
Poucos dias depois chegava à Europa a notícia do fracasso de Soares Leal,
que, desmascarado como agente português, fora preso e expulso do território
brasileiro. Por seu turno, em Londres Canning suspendia as conversações. Em
finais de 1824 o impasse era total.
20
Projecto in António Viana, Apontamentos para a História Diplomática Contemporânea,
vol. ii, A Emancipação do Brasil, Lisboa, 1922, pp. 516-518.
21
Despacho reservado n.° 34 de 14-9-1824 in ANTT, fundo MNE, maço e livro cits.
22
Despacho reservado n.° 38 de 12-10-1824 e contraprojecto junto, loc. cit. na nota anterior.
23
P a r e c e r d e S u b s e r r a in B N , r e s e r v a d o s , m s . 149, n . ° 107.
315
Valentim Alexandre
3. A MISSÃO DE STUART EM LISBOA
Coube à Grã-Bretanha, em começos de 1825, quebrar o ponto-morto a que
havia chegado a questão brasileira, tomando a iniciativa e conduzindo a querela do reconhecimento até ao seu desenlace, meses mais tarde. A escolha do
momento decorria, em boa parte, dos objectivos mais gerais da política britânica para a América Latina: em Dezembro de 1824 Canning dera o passo
decisivo neste campo, dispondo-se a negociar tratados de comércio com os
Estados americanos resultantes da desagregação do império espanhol.
Antecipando-se às demais potências europeias, Londres assumia o papel de
protectora das novas nações, reforçando a sua influência na zona. Para o
Brasil valiam naturalmente as mesmas motivações — e ainda a de conservar
D. Pedro no poder, concedendo-lhe força contra as correntes republicanas,
que poderiam servir de base a uma extensão da influência dos Estados Unidos
no continente americano. Sem surpresa, à decisão sobre as antigas colónias
espanholas segue-se, logo no mês imediato, o anúncio da próxima partida
para o Rio de Janeiro, com trânsito por Lisboa, de um dos mais importantes
diplomatas britânicos, o embaixador Sir Charles Stuart, em missão especial.
Na capital portuguesa Stuart deveria «combinar» com o governo local as bases
da «reconciliação de Portugal com o Brasil», que apresentaria depois ao ministério de D. Pedro. Mas Canning desde logo prevenia que, caso não chegasse a acordo em Lisboa, Stuart seguiria da mesma forma para o Rio, com
o objectivo de «estabelecer» as relações comerciais da Grã-Bretanha com
o império brasileiro. Em qualquer hipótese, o assunto teria de conhecer uma
rápida resolução, não podendo prolongar-se a indefinição «muito além
da época em que expirava o Tratado de Comércio» anglo-português de 1810
(ou seja, em meados de 1825), altura em que — segundo o ministro inglês —
as principais cidades mercantis decerto fariam representações para que
se fixassem as relações com o Brasil (também abrangido pelo tratado de
1810)24.
Ao partir para Lisboa, a 16 de Março, Stuart ia munido de instruções para
procurar obter de D. João VI o reconhecimento espontâneo do império brasileiro, através de uma carta régia que desse a D. Pedro inteira soberania, com
a conservação dos seus direitos de sucessão à coroa portuguesa — o que teria
a vantagem de manter os laços entre os dois países, permitindo o estabelecimento de relações comerciais na base da nação mais favorecida e abrindo
mesmo a perspectiva de futura reunião das duas coroas na pessoa do herdeiro de ambas. Caso D. João VI se negasse à doação pura e simples, preferindo negociar um acordo com o Brasil, Stuart estava autorizado a servir
de plenipotenciário da corte de Lisboa em tal negociação, desde que
316
24
Ofício de Vila Real a Palmeia de 30-1-1825 in ANTT, fundo MNE, legação de Portugal
em Londres, caixa 750, 1825 (caixa 60 da numeração antiga).
Reconhecimento do Estado brasileiro
as condições do ajuste fossem as recomendadas pela Grã-Bretanha. Deveriam
desde logo afastar-se, por inaceitáveis pelos independentistas brasileiros,
as disposições do contraprojecto português de 1824 que previam a existência
de um exército e de um serviço diplomático comuns, bem como a que reservava para o rei de Portugal o direito de sancionar as medidas legislativas promulgadas no Brasil25. No essencial, as instruções de Canning retomavam as
estipulações do projecto que apresentara em Agosto do ano anterior, mas
agora reforçadas pela ameaça do reconhecimento imediato do governo do Rio
pela Grã-Bretanha, se Lisboa as recusasse de novo.
Quando Stuart chega a Portugal, em fins de Março, já o governo
de Subserra cessara de existir, derrubado que fora a 25 de Janeiro por força
das pressões britânicas. Não sendo directamente motivada pela questão
brasileira, a queda do ministério também não lhe era por inteiro alheia:
ao exigir a demissão do ministro assistente ao despacho — sob a cominação
da retirada da esquadra naval inglesa que, estacionada no Tejo, tinha o encargo de proteger o rei contra qualquer perturbação interna —, o embaixador
William A'Court visava sobretudo eliminar a influência que a França ganhara
em Portugal pela acção conjunta do seu representante, Hyde de Neuville,
e do conde de Subserra26; mas, do mesmo passo, contribuía para afastar
o membro do governo português mais renitente a aceitar o reconhecimento
do Brasil.
Estavam criadas as condições para que Stuart não encontrasse grandes resistências na corte de Lisboa. No imediato eliminara-se o perigo de a ver ceder
à tentação de mudar definitivamente de campo, ligando-se às potências continentais, uma vez abandonada pela Grã-Bretanha numa questão de tanto
peso como era a brasileira. Para mais, Canning conseguira que Metternich
desse a sua aprovação à missão Stuart, o que limitava a oposição às pressões, inócuas porque carentes de meios de acção eficazes, que tanto a Espanha como a Rússia continuavam a fazer27. Por outro lado — e sobretudo —,
ao demitir o seu ministério para conservar o apoio da frota britânica,
D. João VI colocara-se por inteiro nas mãos do governo de Londres, caindo
perante ele num ponto extremo de dependência política: desde então, e até
1828, a intervenção do embaixador A'Court nos negócios portugueses é constante e profunda, indo muito além da que resultaria do jogo normal de uma
política de aliança. Tal situação explica por grande parte a recusa da corte
de Lisboa de uma proposta de negociações directas, sem interferência inglesa,
avançada em Fevereiro de 1824 pelos agentes brasileiros em Londres 28 .
25
Cf. Oliveira Lima, O Reconhecimento
do Império, Paris-Rio de Janeiro, s./d., p p . 190-194, e H . Temperley, op. cit., p p . 220-221.
26
Cf. relato d a entrevista de A ' C o u r t e Subserra in Biblioteca Nacional, reservados, ms. 149,
doe. 152.
27
Cf. Oliveira Lima, op, cit,, p . 195, e Temperley, op. cit., p . 220.
28
Cf. nota de D. A n t ó n i o de Melo a Brant de 12-3-1825 in Biker, op. cit., vol. 23, p p . 14-16.
317
Valentim Alexandre
Confinando-se à mediação inglesa, o governo português trilhava um caminho
com uma estreita margem de manobra face ao quase ultimatum de Canning.
Neste contexto, a personalidade do novo ministro dos negócios estrangeiros,
conde de Porto Santo — de tendências legitimistas, partidário da Santa
Aliança —, não tinha peso algum.
As conversações entre Porto Santo e Stuart estenderam-se por cerca de sete
semanas — de fins de Março a meados de Maio de 1825 —, corporizando-se
em nove conferências formais 29 . Como revela um despacho ulterior do ministro português, ainda antes de elas se iniciarem já a corte de Lisboa se havia
conformado a ceder às pressões britânicas, reconhecendo, finalmente, que,
sendo a «reconciliação» com o Brasil «da primeira necessidade» e a «aplicação da força» para tal fim «muito incerta para Portugal, e talvez muito
prejudicial à sustentação do princípio monárquico» no território americano,
se deveriam conceder a D. Pedro «mais amplos poderes, contanto que disso
pudesse resultar o reforço do espírito monárquico no Brasil e a conservação
de todo o Império Português na augusta Casa de Bragança». Para esta nova
posição teriam também contribuído tanto o «sistema que o Gabinete Britânico havia adoptado algum tempo antes a respeito das colónias espanholas»,
que «podia mais tarde ou mais cedo ser aplicado ao Brasil», como o «nenhum apoio físico» a esperar das potências aliadas do continente europeu,
enquanto que do apoio moral que elas ofereciam pouco se aproveitaria,
«a tantas mil léguas de distância». Eram estas as razões aduzidas para aceitar
«com toda a franqueza» a mediação da Grã-Bretanha, marcando à negociação objectivos com ela consentâneos: «1.° conservar os direitos de legitimidade; 2.° reforçar o espírito monárquico em o Brasil; 3.° conservar o Império Português na legítima sucessão da augusta Casa de Bragança» 30 .
Tratava-se de uma total mudança de perspectiva, forçada pelas circunstâncias: a questão não estava já em obrigar o império brasileiro a submeter-se
à soberania última de D. João VI, mas tão-somente em criar as condições
para a cooperação futura entre Portugal e Brasil — não se perdendo de vista
a provável reunião das duas coroas na pessoa do mesmo monarca, fosse ele
D. Pedro ou um seu descendente.
Assim aproximadas as posições logo à partida, não foi difícil chegar a
acordo nas conversações quanto aos temas centrais em debate. É certo que
na primeira conferência Porto Santo voltou a propor o contraprojecto português de 1824 como base negociai — mas acrescentando de imediato que
Sua Majestade Fidelíssima se prestaria «ainda a fazer os sacrifícios [...] compatíveis com a sua dignidade e cujo fim» fosse firmar «a monarquia no
Brasil» 31 . E, face às objecções de Stuart, fielmente decalcadas das instru-
29
30
318
31
Cf. protocolos das conferências in Biker, op. cit., vol. 2 3 , p p . 18-109.
Circular de Porto Santo de 22-6-1825 in Biker, op. cit, vol. 23, pp. 176-183.
Cf. Biker, op. cit., vol. cit., p. 35.
Reconhecimento do Estado brasileiro
ções que trazia, o ministro português abandonou prontamente o contraprojecto,
aceitando a solução avançada pelo plenipotenciário britânico, que passava pela
promulgação de uma «carta-patente» por D. João VI, «com as cessões» que
houvesse «de fazer em favor de seu filho», e pela conclusão de um «pacto de
famílias», pelo qual se regulariam «a sucessão [de Portugal], a aliança defensiva [entre os dois países], os socorros mútuos, a quantia das indemnizações
[a prestar pelo Brasil] e as bases de um tratado de comércio [...]»32.
Sobre as questões assim enumeradas — a acordar no Brasil antes da entrega da carta-patente — chegou-se rapidamente a consenso entre Porto Santo
e Stuart. O primeiro ponto a estabelecer seria naturalmente a cessação imediata das hostilidades, com as estipulações conexas: libertação de todos os
perseguidos no Brasil por favoráveis a Portugal; restituição das presas feitas
ao comércio português e levantamento dos sequestros de propriedades. Igualmente se convencionava que o Brasil deveria quinhoar da dívida pública portuguesa, determinando-se para esse fim e para ressarcimento da coroa de Portugal, pelos bens que deixara em território americano, «uma quantia em
grosso», de que o governo brasileiro teria de satisfazer de pronto uma parte
«proporcional ao total pedido», ou fosse «o terço ou metade», ficando o resto
para liquidar por uma comissão mista, se as autoridades do Rio assim
o desejassem33. Ulteriormente — a 5 de Maio, na sétima conferência — fixou-se a quantia global em 3 milhões de libras, com 1,5 milhões a pagar de imediato, aceitando-se nesse pagamento os bilhetes do empréstimo que Portugal
contraíra em 1823 na Inglaterra, e convindo ainda, para facilitar a negociação,
que o governo brasileiro adoptasse qualquer outro meio para satisfazer aquela
importância, como fosse tomar sobre si o pagamento do capital e juros do
referido empréstimo. Ainda no capítulo financeiro, pretendia-se igualmente
que as autoridades do Rio se responsabilizassem pelas indemnizações que o
Tesouro de Portugal pagava aos donatários das diferentes capitanias do Brasil
desde que fizera cessar esse tipo de «domínio particular» 34 . Finalmente,
quanto às relações comerciais luso-brasileiras, admitia-se que, enquanto sobre
elas se não fizesse um tratado definitivo — que se desejava estabelecesse entre
os dois países «uma estreita união e uma protecção mútua de interesse com
preferência aos de outra qualquer nação» —, elas se restabelecessem «provisoriamente no mesmo pé em que estavam na ocasião da partida de Sua Majestade Fidelíssima do Rio de Janeiro», continuando Lisboa a conceder
o exclusivo para o consumo dos diferentes produtos do Brasil, com a condição de que o mesmo exclusivo fosse dado no território americano ao sal
português e de que os vinhos de Portugal e ilhas aí se admitissem livres de
direitos 35 .
32
Id.,
Id.,
34
Id.,
*s Id.,
33
ibid, p. 47.
ibid, pp. 59-63.
ibid., pp. 83-34.
ibid., pp. 61-63 e 84-85.
319
Valentim Alexandre
Restava definir o conteúdo da carta-patente. Aqui, resolvidas que estavam
as questões principais — a do reconhecimento da soberania plena do Brasil
e a da sucessão no trono português, que tanto Portugal como a Grã-Bretanha
aceitavam se fizesse na pessoa de D. Pedro —, as dificuldades vieram a surgir
sobre um ponto na aparência bizantino: o dos títulos que tomariam para si,
quer D. João VI, quer seu filho D. Pedro. Já no contraprojecto de 1824 se
pretendia conferir ao soberano português a qualidade de imperador, ficando
para o príncipe a de simples imperador regente. Agora a regência estava fora
de causa face à concessão da independência plena; quanto à questão do título, Canning considerava-a nas suas instruções a Stuart como um formalismo inútil, susceptível de levantar dificuldades no Brasil, onde fora concedido a D. Pedro por voto popular, sendo por isso bem melhor que D. João VI
conservasse a sua melhor e inatacável designação de rei36. Mas não se entendia assim na corte de Lisboa, onde se dava ao assunto um grande peso
simbólico na defesa dos princípios da legitimidade: a assumpção do título
de imperador por D. João VI — com a delegação subsequente em seu filho
— seria essencial para «legitimar o título de Imperador, adoptado pelo Príncipe real», apagando a ilegalidade que estava na origem da autoridade soberana de D. Pedro. Nas palavras de Porto Santo, «a negociação tornar-se-ia
tão inútil quanto incoerente se nela se reconhecesse o princípio subversivo
de que o povo é autorizado a eleger os seus soberanos ou a conferir-lhes títulos»: ora, sendo necessário confirmar o título de que o príncipe se achava
«investido ilegitimamente [...] seria coisa irrisória que Sua Majestade delegasse os seus poderes a um Imperador, tendo ele próprio o título de Rei»37.
Perante a insistência de Stuart, que pretendia se deixasse «à sua discrição nas
suas discussões futuras com o Governo do Rio de Janeiro a latitude neste
particular que as circunstâncias pudessem exigir», o ministro português
mostrou-se irredutível, consentindo apenas em que a questão se regulasse
«pelo único facto da indicação dos títulos de Sua Majestade» que se poderiam «pôr no princípio do acto legal por que Sua Majestade fizer as cessões
a seu filho [...]»38. Nesta conformidade se redigiu uma carta-patente pela qual
D. João VI, depois de substituir, para o futuro, a denominação de reino
do Brasil pela de império, tomava para si e seus descendentes o título
de «Imperador do Brasil e Rei de Portugal e dos Algarves», cedendo e transferindo de imediato, de sua «livre vontade», a seu filho e sucessor, o príncipe D. Pedro, «o pleno exercício da soberania do Império do Brasil, para
o governar, denominando-se 'Imperador do Brasil e Príncipe Real de Portugal e Algarves' [...]»39. Como Stuart insistisse nos inconvenientes desta
36
Cf. Temperley, op. cit., p . 221.
Cf. Biker, op. cit., vol. cit., pp. 47-49.
38! i
Id., ibid., p. 49.
39
Id., ibid., pp. 68-69.
37
320
Reconhecimento do Estado brasileiro
solução, que poderia levantar objecções no Brasil, Porto Santo aceitou se redigissem dois outros diplomas, a utilizar caso o primeiro «encontrasse oposição invencível no Rio de Janeiro»: por um deles, a denominação de império
abrangia Portugal, Brasil e Algarves, cabendo a D. João VI o respectivo título de imperador e a D. Pedro o de «Imperador do Brasil e Príncipe Imperial de Portugal e Algarves»; pelo outro, o monarca português mantinha
a designação de rei de Portugal, dos Algarves e do Brasil, cedendo a seu filho
a soberania sobre o território americano, com o título de rei do Brasil e Príncipe Real de Portugal e dos Algarves40.
Em qualquer dos casos, procurava defender-se o princípio da legitimidade,
mantendo a ficção da cessão da soberania e da delegação de poderes — e
daqui não se demoveu o ministro português. Na raiz desta irredutibilidade
estava decerto o apego à ideologia legitimista, em que comungavam Porto
Santo, o governo a que pertencia e a corte de Lisboa em geral. Mas sobretudo tentava-se dar força à autoridade de D. Pedro no Brasil, conferindo-lhe
um poder independente dos movimento populares 41 . Do mesmo passo, pretendia dissipar-se qualquer dúvida sobre a sucessão ao trono de Portugal —
dúvida fundada, enquanto se visse a soberania do príncipe herdeiro na América como resultado de uma rebelião, mas insubsistente desde o momento em
que se legitimava a separação dos dois reinos por uma transferência
voluntária de direitos. Regulada a sucessão na pessoa de D. Pedro, ficava
aberta a via para a reunião das duas coroas, reconstituindo o império: esta
era — como referia D. João VI em carta então escrita a seu filho — «talvez
a última ocasião» que se lhes oferecia «de consolidar a felicidade dos povos
que a Divina Providência» lhes confiara e de assegurarem «intacta a Coroa»
que haviam herdado de seus «augustos antepassados» 42 .
A 27 de Abril, na sexta conferência, Stuart aceitou encarregar-se dos plenos
poderes para tratar com D. Pedro da «reconciliação entre Portugal e o Brasil»,
recebendo dias depois as correspondentes instruções, baseadas no conteúdo
das actas das conversações anteriores, a que se acrescentou apenas um ponto:
a recomendação instante ao plenipotenciário para «empregar todos os seus
esforços e servir-se de todos os meios possíveis para que a forma de Governo»
a estabelecer no Brasil fosse «a mais própria para segurar a integridade do
império e a mais conforme aos princípios do Governo Monárquico, objecto
este que Sua Majestade» considerava «como da mais alta transcendência para
tranquilidade e felicidade dos povos não só no Brasil como em Portugal, porquanto» — aduzia-se, «se não se adoptarem sãos princípios no Brasil,
a comunicação que vai reviver entre aquele e este país exporia Portugal a ser
contaminado pelas doutrinas subversivas que no Brasil se propagassem, além
40
42
Id., ibid., pp. 71 e 91-92.
Despacho de Porto Santo a Stuart de 23-5-1825, ibid., p. 99.
Carta in Biker op. cit, vol. cit., pp. 100-101.
321
Valentim Alexandre
de que este objecto é de uma importância vital para a estabilidade do trono
dos dois países na augusta Casa de Bragança e até para a consistência de todos
os tronos da Europa» 43 . Não pode deixar de relacionar-se com esta uma outra
recomendação, esta expressa em instruções suplementares, para que Charles
Stuart manifestasse a sua disposição para enviar «algum socorro de tropas
ou forças navais Portuguesas» a qualquer ponto do Brasil a «consolidar» a
autoridade de D. Pedro, logo que este o requeresse44. Parece claro que, embora se visse obrigada a reconhecer a soberania plena do Brasil, Lisboa não
perdia inteiramente de vista a hipótese de intervenção ao lado do príncipe
e do «partido português» na América, numa perspectiva afinal próxima à
que Subserra sustentara no ano anterior.
Munido destas instruções, Charles Stuart partiu para o Rio de Janeiro a 26
de Maio de 1826, revestido da dupla qualidade de plenipotenciário português
(no que dizia respeito às negociações luso-brasileiras para reconhecimento do
império) e inglês (nomeadamente para a conclusão de um tratado de comércio
entre a Grã-Bretanha e o Brasil). Que, numa questão tão importante como
a que estava em jogo, os interesses de Portugal ficassem entregues a um diplomata britânico dava bem a medida da perda de autonomia política da corte
de Lisboa nesta fase. Sendo em parte divergentes os objectivos de ambos os
países na negociação com o Brasil, era de presumir que em Stuart prevalecesse
a lealdade para com o seu próprio governo. Acresce que estava por definir a
atitude que a Inglaterra tomaria caso o ministério brasileiro se recusasse a
aceitar as condições ajustadas em Lisboa. Face às respostas evasivas de Canning — que já em Junho revelou que Stuart levava ordens para não sair do
Brasil antes de concluir um tratado anglo-brasileiro de comércio —, Palmeia,
agora embaixador em Londres, procurou obter do ministro inglês um compromisso explícito sobre dois pontos precisos: o apoio da Grã-Bretanha
às negociações que se iam iniciar no Rio, convencendo «bem os brasileiros de
que o Governo Britânico considera inteiramente justas, razoáveis e liberais as
condições oferecidas por Sua Majestade Fidelíssima», e o envio de instruções
a Stuart para não passar a tratar dos interesses britânicos enquanto se não resolvesse a pendência luso-brasileira45. Anuindo facilmente quanto ao primeiro
ponto, Canning mostrou-se menos claro sobre o segundo; mas, do que lhe foi
dado a entender das instruções reservadas então enviadas para o Rio, Palmeia
veio a concluir que o governo inglês, embora se negasse a fazer «a promessa
de não entrar em negociação alguma com o Brasil» enquanto se não verificasse o reconhecimento por Portugal, determinava agora que, na falta de acordo
luso-brasileiro, Stuart não iniciasse as negociações do tratado de comércio, ficando a aguardar novas ordens de Londres46.
43
Id., ibid., p . 86.
Id., ibid., p p . 103-104.
45
N o t a d e Palmeia in Biker, op. cit., vol. 2 3 , p p . 149-153.
46
Cf. nota d e Palmeia a Canning d e 12-6-1825 e o seu ofício a Porto Santo d e 21-6-1825, ibid.,
p p . 157 e 167 e p . 146, respectivamente.
44
322
Reconhecimento do Estado brasileiro
Colmatada, melhor ou pior, esta primeira falha, o embaixador português
não escondia as suas críticas a outros aspectos dos resultados das conversações de Lisboa: na questão da sucessão, a ausência de disposições precisas,
a aplicar depois da morte de D. João VI, sobre a ausência do soberano
e a regência a estabelecer em Portugal; no domínio mercantil, a insuficiência
das vantagens acordadas, quando seria talvez possível obter em troca
do reconhecimento uma eliminação dos direitos mútuos, ou pelo menos um
abatimento de dois terços ou metade das taxas que recaíam sobre os produtos
dos outros países. Mas Palmeia lamentava sobretudo que não se houvesse reclamado a garantia do governo inglês para o tratado que se concluísse
no Rio — garantia que, para além de consolidar qualquer acordo comercial,
«seria porventura a melhor fiança da futura reunião das duas Coroas num
só Soberano e numa só linha de sucessão, objecto principal dos desejos de
todos os portugueses honrados e ilustrados e único preço do imenso, mas
temporário, sacrifício que El-Rei meu Senhor resolve fazer com tão magnânima generosidade»47 (formulação que mostra bem as expectativas de reconstituição do império que subsistiam ainda numa fase tão avançada do processo negociai para o reconhecimento do Brasil).
4. A MISSÃO STUART NO RIO: O TRATADO DE 29 DE AGOSTO DE 1925
Fosse como fosse, os dados estavam lançados. A 17 de Julho chegava Stuart
ao Rio, iniciando-se as negociações, ainda informalmente, logo nos dias seguintes. À partida, eram boas as perspectivas de um acordo rápido, ajustado
que ficara em Lisboa o princípio do reconhecimento pelo governo português.
Do lado brasileiro, a integração do novo Estado no concerto das nações
tornara-se urgente face às ameaças que se adensavam sobre o regime
de D. Pedro. Ameaças externas, por um lado: isolado como único país
monárquico das Américas, o Brasil estava, além disso, então a braços com
a insurreição da província cisplatina (ocupada em 1816-1817 e incorporada
no território brasileiro em 1821), apoiada abertamente pela Argentina.
Ameaças internas, por outro lado: as que resultavam das forças centrífugas
no império, bem manifestas no ano anterior na frustrada tentativa republicana da Confederação do Equador em Pernambuco, e as que decorriam
no próprio Rio de Janeiro da oposição radical ao imperador, suspeito
de tendências absolutistas e de contemporizar com os interesses e as posições pró-portugueses. Tudo isto aconselhava a consolidar rapidamente a coroa
de D. Pedro pela sua legimitação internacional, em particular pela Grã-Bretanha, potência dominante, com grande peso na América Latina.
47
Ofícios de Palmeia a Porto Santo de 18-5-1825 e 21-6-1825, publicados por Reis e Vascon-
celos in Despachos
respectivamente.
e Correspondência
do Duque
de Palmeia,
vol. II, p p . 7-10 e 23-29,
323
Valentim Alexandre
Mas, no caso da oposição interna, impunha também limites às concessões
negociais quanto à forma do reconhecimento, impedindo a aceitação de fórmulas que pusessem em causa os princípios da soberania nacional e da vontade popular.
Quanto a Charles Stuart, a sua condição de plenipotenciário duplo impelia-o naturalmente a abreviar as negociações em que intervinha como representante da corte de Lisboa para passar, sem mais demoras, ao cumprimento
da sua missão principal: a da conclusão do tratado comercial anglo-brasileiro.
A isso o incitaria ainda a notícia, que teve já no Rio, de que a França, através
do seu agente diplomático, Mr. de Gestas, se lhe antecipara, oferecendo ao
Brasil o reconhecimento do governo de Paris em troca do estabelecimento
de relações mercantis privilegiadas. Na perspectiva britânica, importava sobretudo evitar, nas conversações com os plenipotenciários brasileiros, um impasse que obrigasse a novas consultas em Lisboa — o que predispunha Stuart
a forçar o sentido das instruções que recebera de Portugal, negociando sub
spe rati, se tal se mostrasse necessário para chegar a acordo com D. Pedro.
Assim balizadas, as conversações centraram-se logo de início nas questões
mais sensíveis sob o ponto de vista político: a da forma do reconhecimento
do Estado brasileiro; a do título a assumir por D. João VI, e ainda a da sucessão ao trono de Portugal. As duas primeiras circunscreviam-se, afinal,
a um problema de «palavras», como escrevia na altura um dos membros do
Conselho de Estado do Brasil, o futuro marquês de Inhambuque 48 (mas de
palavras carregadas de peso simbólico, acrescentaremos nós). «Sua Majestade Fidelíssima», dizia o conselheiro, «quer que se dê a entender que
Sua Majestade Imperial entra no exercício da soberania em consequência
de sua cessão ou abdicação desta parte da sua monarquia. E como consentiremos que se diga isso contra o que está declarado e jurado na Constituição
do Império? Bem sabemos que este princípio é antipático com os da legitimidade e sistema dos soberanos, mas que havemos de fazer em uma crise
tal como a do Brasil em que tomaram os malvados pretextos para excitar a
desordem e iludir os povos incautos?» Quanto à questão do título, não haveria «dúvida» em que D. João VI tomasse também o de imperador, «mas
de maneira que seja meramente titular [...]; pois pode apelidar-se como quiser,
contanto que se não inculque que este título foi por ele transmitido a seu filho,
por não parecer que antecedeu o efeito à causa» 49 . Era pôr o assunto nos
exactos termos em que o colocara a corte de Lisboa — mas vendo-o agora
pelo ângulo inverso. Já a respeito do problema da sucessão as posições brasileiras se mostravam mais ambíguas. Retomando uma atitude que vinha
de 1822, D. Pedro afirmará por várias vezes no decurso das negociações
48
Carta de Inhambuque in «Correspondência do marquês de Resende», Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, vol. 80 (1916), p. 162.
324
49
49
Ibid.
Reconhecimento do Estado brasileiro
com Stuart a sua recusa em suceder no trono de Portugal, tendo chegado
a propor que no tratado em discussão se incluísse um artigo estipulando
a impossibilidade de reunião futura das duas coroas 50 . Na citada carta
de Inhambuque vem a razão: impunha-se não dar motivo «aos demagogos
para dizerem que se quer por esta maneira unir-se Portugal com o Brasil, sem
fazerem a observação de que não é o mesmo regerem-se duas nações debaixo
de um mesmo ceptro que se confundirem em uma fé, que é todo o seu
receio» 51 . Melhor seria, portanto, no entender do conselheiro, que se silenciasse o ponto, deixando implícitos, mas intactos, os direitos de D. Pedro
à sucessão na coroa portuguesa: «e quando», concluía Inhambuque, «por
falecimento de el-rei, os portugueses façam esforço para o terem, pode Sua
Majestade Imperial (visto não poder para lá ir por causa da Constituição [brasileira]) abdicar em um filho e reservar para si as ilhas dos Açores ou Madeira e seus domínios da Ásia, África, etc.» 52 .
Dadas estas linhas de resistência, as conversações centraram-se de imediato
no ponto para onde todas elas remetiam — as cartas-patentes trazidas de
Lisboa por Stuart, cujas fórmulas os plenipotenciários brasileiros rejeitavam
liminarmente: as duas primeiras, porque nelas o monarca português começava por tomar para si o título de imperador, nele associando depois seu filho,
e a terceira, porque retirava a D. Pedro esse mesmo título, que lhe fora
conferido pela constituição do país 53 . Logo a 27 de Julho, apenas realizada
a primeira conferência da ronda negociai, já Stuart comunicava, em ofício,
a Porto Santo que, «quanto à forma», lhe seria «muito difícil, para não
dizer impossível», regular-se pelas suas instruções, acrescentando que
os seus interlocutores se haviam esforçado «inutilmente» para o «fazerem
concordar numa redacção que contivesse a aprovação, ao menos tácita,
de tudo quanto se fez aqui desde o embarque do Rei e o abandono do princípio da legitimidade». Mas, irredutível neste último ponto, o diplomata
britânico teria já conseguido que os brasileiros consentissem em que «todas
as cessões emanassem de Sua Majestade [o rei D. João]», embora persistissem
em recusar a carta-patente 54 . Mantendo-se tal recusa, Stuart veio a aceitar
dois dias depois, na conferência de 29 de Julho, que os plenipotenciários do
Brasil extraíssem das três versões das cartas-patentes trazidas de Lisboa o que
melhor julgassem «conciliar os interesses de ambas as partes» 55 — o que,
representando uma entorse grave das instruções formuladas pela corte
portuguesa, implicava que o acordo, a fazer-se, fosse assinado meramente
sub spe rati.
50
Ofício de Stuart a Porto Santo de 27-7-1825 in Biker, op. cit., vol. cit., p. 261.
Cf. «Correspondência do marquês de Resende», cit., p. 163.
51
Ibid.
53
Cf. Oliveira Lima, op. cit, pp. 235-236.
54
Ofício in Biker, op. cit., vol. cit., pp. 260-263.
51
55
Ibid., p . 242.
325
Valentim Alexandre
Deste compromisso resultou um projecto de tratado, submetido a Stuart
a 3 de Agosto, que consagrava, no essencial, os pontos de vista do Rio
de Janeiro, subvertendo por inteiro a lógica da carta-patente que alegadamente
tomava como base: enquanto nesta última tudo começava com a passagem
do Brasil de reino a império, por acto unilateral de D. João VI, a que se seguia a assumpção pelo monarca português do título de imperador, só depois
se procedendo à transferência da soberania sobre o território brasileiro para
D. Pedro, na qualidade de sucessor dos títulos e direitos de seu pai, no projecto agora apresentado tanto o Estado do Brasil como a própria dignidade
imperial eram tidos como realidades preexistentes que Portugal se limitava
a reconhecer — reconhecimento a que se acrescentava uma cessão pessoal
dos direitos de D. João VI em seu filho, sem qualquer referência aos direitos
dinásticos que porventura lhe pertencessem. Nesse contexto, a concessão
do título de imperador ao soberano português perdia todo o significado; para
mais, dizer-se — como se dizia no projecto — que D. Pedro «convinha» em
que Sua Majestade Fidelíssima tomasse a designação de imperador do Brasil
«durante a sua vida» constituía mesmo uma inversão total do espírito da
carta-patente, marcando uma condescendência que não poderia deixar de ter-se por ofensiva em Portugal 56 .
Mas a Charles Stuart importava, acima de tudo, seguir a linha de consenso.
Daí que não objectasse aos artigos propostos, pondo apenas reservas ao respectivo preâmbulo, onde insistiu em que «se fizesse menção do acto assinado
pela mão de Sua Majestade Fidelíssima», pelo qual se fazia o reconhecimento 57 : era a concessão mínima à base negociai acordada em Lisboa, sem
a qual a ratificação do tratado pela corte portuguesa estaria decerto comprometida. Finalmente, os plenipotenciários brasileiros acabaram por aceitar
uma referência ao «diploma régio» de 13 de Maio 58 , convindo ainda em receber a carta-patente das mãos de Stuart, desde que se estabelecesse que ela
não seria publicada, sendo, se possível, substituída por outro diploma, mais
conforme aos termos do preâmbulo. E assim se convencionou através de notas
reversais da mesma data do tratado 59 . Obviamente, estas condições retiravam
todo o seu peso à carta-patente: prevalecia a lógica do projecto brasileiro
(que era a da realidade da afirmação nacional baseada na soberania popular)
contra a do acordo feito com Stuart em Lisboa (que era a da ficção
legitimista).
Entretanto, iniciara-se já, na conferência de 8 de Agosto, a discussão sobre
as indemnizações exigidas por Portugal ao Brasil a títulos diversos (sendo
o principal a dívida pública, que o governo português desejava ver assumida
56
57
58
326
59
Projecto in Biker, op. cit., vol. cit., p p . 246-249.
Ibid., p. 244.
Ibid., p p . 249-250.
Ibid., p p . 258, 269 e 280-281.
Reconhecimento do Estado brasileiro
em metade pelo novo Estado). Em si, o princípio de uma compensação
a pagar à antiga metrópole não levantou qualquer dificuldade no Rio
de Janeiro, onde foi prontamente admitido («quanto às indemnizações, tudo
se fará» — tal fora o comentário lacónico do futuro marquês de Inhambuque
na já citada carta, onde expunha as posições do Brasil; e acrescentava, um
pouco mais tarde: «por dinheiro seria indiscreto que deixássemos de aproveitar esta boa ocasião de terminar negócios de que tanto depende a nossa
estabilidade e segurança» 60 ). Confirmando esta disposição, o projecto apresentado pelos plenipotenciários brasileiros na conferência de 6 de Agosto incluía três artigos onde se previa, para além do ressarcimento de particulares
por propriedades apresadas, sequestradas ou confiscadas e por ofícios vitalícios de que haviam sido privados, a satisfação de reclamações de governo
a governo, devendo estas últimas ser objecto de «uma convenção directa
e especial»61.
Os problemas só surgiram quando se tratou de determinar o montante
a pagar pela indemnização pública e as formas de a liquidar. Admitido, na
conferência de 16 de Agosto, que se fixaria «uma quantia dada por uma vez
somente, ficando extinto todo o direito para tais reclamações»62, Stuart
propôs três dias mais tarde que o governo brasileiro tomasse por sua conta
o empréstimo contraído por Portugal em Londres em 1823 (cujos encargos
estimava em cerca de 1,3 milhões de libras esterlinas), pagando, além disso,
mais 1,5 milhões — ao que o Brasil contrapôs uma oferta de 1 milhão de
libras, considerando que seria possível ponderar um acréscimo de 250 000
libras como compensação pelas propriedades de D. João VI no Brasil
e 110 000 para indemnizar os donatários e os detentores de ofícios vitalícios.
Como Stuart se dispusesse a diminuir em 0,5 milhões o seu pedido inicial,
restava uma margem de desacordo de cerca de 1 milhão de libras 63 .
Na conferência seguinte, a 23 de Agosto, essa margem foi estreitada por
virtude de proposta brasileira que subia o montante oferecido a 2 milhões
de libras — cedência que resultava de uma forte pressão entretanto exercida
pelo diplomata britânico sobre D. Pedro com a ajuda do representante austríaco no Rio 64 . E foi ainda o imperador quem afastou o último obstáculo,
decidindo que para satisfazer tal quantia o Brasil tomaria sobre si directamente o empréstimo português em Londres, pagando o remanescente no prazo
de um ano a contar da data da apresentação da convenção ao parlamento
brasileiro65. Em todo o caso, ficava-se longe dos 3 milhões de libras exigidas
60
Cartas de Inhambuque in «Correspondência do marquês de Resende», loc. cit.,
pp. 163 e 171.
61
Cf. Biker, op. cit, vol. cit., p. 248.
62
Id., ibid., p p . 253-254.
63
I d . , ibid., p p . 254-255.
64
Ofício de Stuart a Canning de 30-8-1825, ibid., pp. 282-283.
65
Ibid., p . 285, e acta d a conferência, ibid., p . 256.
327
Valentim Alexandre
nas instruções do governo português; mas Stuart considerou este um bom
compromisso, argumentando para Lisboa que as indemnizações das despesas
com o transporte de tropas, que ele fizera excluir do montante global e incluir num artigo específico, compensariam a diferença66.
Quanto à terceira grande questão de fundo a tratar por Stuart — a regulamentação das relações comerciais luso-brasileiras —, as referências que a ela
encontramos tanto nas actas das conferências como nos ofícios do diplomata
britânico são singularmente escassas e fugidias. O assunto foi abordado pela
primeira vez na conferência de 25 de Julho, num conjunto de «artigos» propostos pelo diplomata britânico para discussão: no 10.° previa-se a «liberdade
e entrada do comércio português nos portos do Brasil, pagando provisoriamente 15% de direitos»67. Deste modo, logo no começo das conversações formais Stuart tomava a iniciativa de se afastar do que as suas instruções lhe prescreviam neste ponto, não apenas porque não fez nenhum esforço para obter
o exclusivo no mercado brasileiro para o sal e o vinho de Portugal, mas também
porque o regime assim estabelecido era menos favorável ao existente antes da
partida de D. João VI do Brasil (quando vários artigos, em particular produtos
manufacturados, pagavam menos do que os 15%). Muito provavelmente,
a questão das relações comerciais fora já tocada nas negociações preliminares,
entre 18 e 25 de Julho, e Stuart, face às presumíveis resistências da corte
do Rio, resolvera-se a deixar de lado as pretensões portuguesas — cuja defesa
o obrigaria a prolongar as negociações, pondo em causa a sua missão na qualidade de plenipotenciário da Grã-Bretanha. Fosse como fosse, o certo é que
a estipulação avançada na primeira conferência vem a reaparecer no projecto
de tratado que os plenipotenciários brasileiros apresentaram a 6 de Agosto68,
transitando depois, com um acrescento de pormenor sobre os direitos de baldeação e reexportação, para o artigo 10.° do acordo definitivo69. Igualados
aos britânicos — que também pagavam 15% —, os produtos portugueses não
gozavam de qualquer preferência, frustrando-se, assim, as esperanças de obter
um regime especial por ocasião do reconhecimento. Para mais, sendo a disposição recíproca, sobre os artigos coloniais brasileiros passariam também a recair os mesmos 15% à sua entrada em Portugal (onde ainda gozavam de exclusivo), o que obrigava a alterar as pautas alfandegárias, com prejuízo das
finanças estatais. Apesar de tudo, no seu ofício a Porto Santo de 20 de Agosto
Charles Stuart, reconhecendo embora que não havia podido «repor as causas
no seu antigo pé», pretendia ainda que as «estipulações comerciais» que conseguira estavam «muito conformes» às suas instruções70 — afirmação que dificilmente poderia fazer de boa fé.
66
Ofício de Stuart a Porto Santo de 30-8-1825, ibid, p . 275.
In Biker, op. cit., vol. cit., p . 241.
Ibid., p. 246.
69
Tratado de 29-8-1825 in A n t ó n i o Viana, op. cit., p p . 523 e segs.
70
Ofício in Biker, op. cit., vol. cit., p p . 267-269.
67
68
328
Reconhecimento do Estado brasileiro
Recapitulando os três grandes temas das negociações de Stuart no Rio
na qualidade de plenipotenciário de Portugal — a forma do reconhecimento,
a indemnização, a regulamentação das relações comerciais —, é fácil concluir que em qualquer deles os resultados obtidos ficaram muito aquém dos
prescritos nos despachos do governo de Lisboa. Visto no seu todo, o tratado
mostrava-se ainda mais decepcionante: na perspectiva da corte portuguesa,
o reconhecimento do Estado brasileiro deveria ser compensado pela criação
de relações preferenciais, de fortes laços de união entre os dois países, tanto
no campo político como no económico, abrindo o caminho a uma futura
reunião das duas coroas na pessoa do mesmo soberano; pelo contrário,
o acordo firmado pelo diplomata britânico não representava mais do que uma
simples convenção de paz, consagrando a separação absoluta entre Portugal
e Brasil. Particularmente grave, sob este ponto de vista, era a omissão de toda
e qualquer referência à questão sucessória (embora neste ponto Stuart
pudesse alegar que evitara a inclusão no tratado de uma cláusula expressa,
aparentemente desejada por D. Pedro, contra a futura reunião das duas
coroas 71 ). Num balanço final parece claro que na dupla missão do plenipotenciário luso-britânico prevaleceu largamente a sua lealdade à Grã-Bretanha.
A contraprova, se necessária fosse, estaria no zelo com que fez inserir no
acordo um artigo que interessava sobretudo ao governo de Londres (e que
as instruções de Lisboa, todas voltadas para a reconstituição do império, haviam omitido): o que proibia o Brasil de aceitar se lhe unisse qualquer das
colónias portuguesas.
5. A REACÇÃO AO TRATADO EM PORTUGAL
«Publicou-se enfim a empada concertada por Stuart o desgosto é tão geral
e tamanho que se não pode explicar. O pobre povo português está petrificado da afronta e sente o peso todo da sua humilhação. Os grandes vêem
aniquilados todos os meios de manter o seu esplendor, e perdida a sua mais
rica herança, que era a venda das graças. O comércio desesperado, porque
se não fez uma excepção a seu favor, não pode competir com os produtos
fabris das outras nações. Os lavradores do vinho vêem-se na necessidade de
arrancar as vinhas, porque os seus vinhos não podem competir com o catalão e outros.» Não é de todo insuspeita a fonte donde extraímos este trecho:
trata-se de uma «carta» proveniente de Lisboa, inserta em O Popular, jornal
publicado em Londres por liberais portugueses exilados72. Mas outras a confirmam, na imagem que nos dá de um país profundamente ferido nos seus
interesses e nos seus sentimentos pelos termos do tratado concluído por Stuart
71
Ofício de Stuart a Porto Santo de 27-7-1825 in Biker, op. cit., vol. cit., pp. 260-261.
72
N.° 16 (1825), pp. 248-285.
329
Valentim Alexandre
no Rio de Janeiro. Do outro lado do espectro político, um periódico absolutista como a Trombeta Final dirá um pouco mais tarde que em Portugal só
se «respirava luto e tristeza» quando se tomou conhecimento do acordo
feito73. E um retrato semelhante ao da carta referida aparece-nos depois em
Oliveira Lima, que não indica as suas fontes, mas se baseia, provavelmente,
em documentos diplomáticos da época: «[...] a grita foi geral. Os absolutistas
queriam ver para todo o sempre cancelados os títulos de sucessão de D. Pedro
ao reino de Portugal. O comércio e a viticultura queixavam-se da ruína que
se derivaria infalivelmente de uma pauta que taxava igualmente os vinhos portugueses e os vinhos franceses. Os adversários da Inglaterra verberavam-lhe
a perfídia e a traição, aconselhando o rei a demitir o ministério e a suspender
as ratificações. Os que sonhavam com a recolonização (e neste número incluem o governo) viam o perigo no facto de não estar definida a qualidade
que a D. Pedro cabia como herdeiro da coroa portuguesa. Os cortesãos, finalmente, julgavam supérfluo e contraditório com o preâmbulo e atentatório
da dignidade real o artigo 2.° do tratado, pelo qual D. Pedro anuía a que
D. João VI tomasse na sua pessoa o título de Imperador 74 .» Mau-grado algumas imprecisões — não nos parece, por exemplo, que qualquer sector absolutista contestasse já nesta altura os direitos de D. Pedro à sucessão —, estas
linhas recobrem algumas das principais críticas ao tratado. A acrescentar estão
os comentários, feitos de uma perspectiva mais técnica, de um homem como
Mouzinho da Silveira (então administrador da Alfândega Grande de Lisboa),
que em vários textos procurou mostrar os prejuízos que à economia e às finanças portuguesas trazia o acordo, assinalando, por um lado, a falta de reciprocidade da diminuição dos direitos consentida pelos dois países na sua
pauta (de 30% para 15%, no caso dos produtos brasileiros exportados para
Portugal, e de 24% para os mesmos 15%, quanto às mercadorias portuguesas
entradas no Brasil), referindo, por outro lado, as condições desfavoráveis em
que os artigos nacionais concorreriam no mercado brasileiro, face aos dos
países industrializados, contra os quais não deteriam qualquer privilégio fiscal,
e apontando as consequências graves para as finanças públicas que trazia
a redução a 15% da taxa na importação dos géneros coloniais do Brasil.
Resumindo as suas críticas em duas fórmulas lapidares, Mouzinho concluía
que o tratado tinha vindo dar «o último golpe nas rendas do Estado» e que
«bastava por si só [para] fazer perder o resto do comércio de Lisboa com
o Brasil»75. Noutro passo, os seus reparos vão além dos aspectos económicos,
tocando a própria índole política de toda a negociação: «era justo que o Brasil
fosse independente; era mais que justo mesmo, porque era necessário; mas
que para isso fosse necessária a intervenção inglesa, mas que isso se fizesse
73
74
330
75
N.° 69 (14 de Maio de 1828).
Oliveira Lima, op. cit., pp. 253-254.
Cf. Mouzinho da Silveira, Obras, Lisboa, s. d., vol. i, pp. 156-157, e does. aí citados.
Reconhecimento do Estado brasileiro
mediante um tratado mais oneroso para Portugal do que era o estado mercantil
anterior a respeito do consumo dos géneros do Brasil, e que sobretudo se chamasse Imperador a um Soberano no dia em que perdeu a maior parte da herança de
seus antepassados, é agregado de circunstâncias sumamente odioso, e, se a obra
havia de ser a mesma, então é consolante que fosse feita por um inglês»76.
Há indícios de que também na corte o tratado foi recebido com maus olhos.
Pelo próprio rei, em primeiro lugar: na memória que acabámos de referir,
Mouzinho da Silveira pinta-o acabrunhado e «sofrente», «sentindo o peso
da perda do Brasil» 77 . Na versão avançada por um texto de inspiração ultra-absolutista —, «A conspiração contra D. Miguel [...] Por um Leal Português» 78 — D. João VI teria procurado opor-se à ratificação; «mas», acrescenta, «nos diversos Conselhos do Estado feitos em Mafra os Ministros,
rastejando debaixo da vontade do Governo Inglês, não cessaram de lhe inspirar receios da parte de Inglaterra, e o Ministro da Justiça tornou-se famosíssimo entre os outros, pronunciando um longo discurso, tão revolucionário
como a sua pessoa». E concluía: «Se o Rei de Portugal não estivesse detido
prisioneiro no seu próprio Palácio por malvados, decerto a humilhação de
Portugal não teria sido sancionada, e o desgraçado monarca não teria sido
oprimido de tristeza, e conduzido ao túmulo.» Mais tarde, já em 1828, um
conhecido jornal da mesma tendência — A Trombeta Final — pretenderá
também que o monarca fora obrigado pelos seus ministros a aceitar o acordo
negociado por Stuart 79 . A versão é, obviamente, inaceitável, não passando
de um simples tópico da propaganda miguelista. Mas já podemos ter por certo
que se discutiu em Conselho de Estado se se devia conceder a ratificação ao
tratado logo após a sua recepção em Lisboa a 9 de Novembro80. Como Porto
Santo salienta em despacho para Palmeia, a «alteração manifesta» entre o
acordado no Rio de Janeiro e as instruções dadas ao plenipotenciário daria
a «Sua Majestade Fidelíssima todo o direito de recusar-se à ratificação
do mesmo acto; porém», continuava o despacho, «tendo o mesmo augusto
Senhor muito especial consideração em que o seu mais antigo aliado foi mediador nesta negociação, e que uma não ratificação poderia interpretar-se
como menos apreço dos desejos manifestados e serviços oferecidos pela Grã-Bretanha», havia decidido ordenar a ratificação, a realizar no dia seguinte,
15 de Novembro 81 . Era a explicação diplomática, que não iludia a cedência
forçada à política de facto consumado praticada por Stuart com a aprovação
do governo inglês — política forçada ainda pela publicação do tratado
76
77
78
79
80
81
82
Id., ibid., p . 630.
Id., Ibid.
Biblioteca Nacional, reservados, c ó d . 11 205, p p . 33-35.
N.° 69 (14 de M a i o d e 1828).
Referido por Oliveira Lima, op. cit, p. 251.
Despacho de Porto Santo a Palmeia de 14-5-1825 in Biker, op. cit., vol. cit., pp. 316-317.
Ofício de Stuart a Porto Santo de 31-8-1825 in Biker, op. cit., vol. cit., pp. 290-291.
331
Valentim Alexandre
no Rio a 7 de Setembro, que o diplomata britânico se resolvera a deixar fazer
sem protesto para «facilitar a troca das ratificações respectivas», apesar de
bem ciente da «irregularidade de tal procedimento»82. Criada esta situação,
não ratificar o tratado traria custos incomportáveis para Portugal, que se veria
isolado e ultrapassado nas suas relações com o Brasil não apenas pela Inglaterra, mas também pela França, cujo agente, Mr. de Gestas, há já vários meses
intrigava na corte de D. Pedro no sentido de obter privilégios comerciais em
troca do reconhecimento83. Provavelmente, duas outras considerações se juntaram a esta na decisão de ratificar: a necessidade de não cortar definitivamente as pontes com D. Pedro, herdeiro da coroa portuguesa e por isso portador das últimas esperanças de reconstituição do império, e, simultaneamente,
a de fortalecer o «princípio monárquico» no Brasil, tendo em conta o seu
«estado precário», como se reconhecia. Neste sentido vai ainda o despacho
de Porto Santo há pouco citado84.
Apesar de tudo, a ratificação foi acompanhada de um acto pelo qual se
pretendia alterar-lhe o significado político: a publicação da carta-patente datada de 13 de Maio de 1825, que, como vimos, Charles Stuart em vão procurara fazer aceitar no Rio de Janeiro e que agora era de novo tomada como
base legal para a cessão da soberania sobre o Brasil e para o respectivo
reconhecimento85, contrariando frontalmente o acordo firmado na capital
brasileira através de notas reversais. Assim se procurava fundar de novo a negociação no princípio da legitimidade, minimizando tudo o que no tratado
o contrariava. É o que exprime com clareza um despacho pouco depois remetido pelo ministro dos negócios estrangeiros, conde de Porto Santo, ao
representante português em Madrid, onde se observava que toda a negociação
estava «fundada na carta-patente de 13 de Maio do corrente ano, pela qual
Sua Majestade foi servido elevar o Brasil à categoria de Império, tomando
desde logo para si o título correspondente, e cedendo depois a soberania do
mesmo Império na pessoa de seu filho», sendo essa carta-patente «mencionada como base no preâmbulo do Tratado, e [...] como tal recebida pelo
Governo Brasileiro, passando dela um recibo: tudo o mais que se encontra
no tratado», acrescentava, «não pode invalidar o acto em que ele se firma,
e são mais depressa palavras vãs, que se procuraram para calmar a efervescência do partido revolucionário no Brasil, que procura todos os meios possíveis para destruir naquele país a realeza». A concluir, o ministro apontava
uma das consequências práticas que a seu ver resultava desta reafirmação,
embora indirecta, do princípio da legitimidade: «[...] Sua Majestade, adoptando o título de Imperador do Brasil, mostra mais clara e explicitamente
o direito da sua cessão, e não sendo esta feita senão a favor de seu filho
83
84
332
85
Referido por Temperley, op. cit., p. 221.
Despacho de Porto Santo de 14-5-1825 in Biker, op. cit., vol. cit., p. 317.
Cf. a carta de lei de 15-11-1825 in DHCG, vol. i, pp. 912-913.
Reconhecimento do Estado brasileiro
e sucessores, se por algum acontecimento sinistro esta sucessão faltasse,
ou mesmo a forma de governo mudasse, Sua Majestade reassumia então de
novo os direitos anexos ao seu filho» 86 . Nesta interpretação — que forçava
gravemente a letra e o espírito do acordo, tal como Stuart o assinara — tudo
se reduzia a uma simples transferência pessoal de direitos do soberano para
o seu herdeiro, no que ao Brasil respeitava, antecipando o que se passaria
no momento da sucessão. Por morte de D. João VI, aos direitos assim transferidos se juntariam os relativos à coroa de Portugal, propiciando a reconstituição do império, de novo com a sede da corte no reino americano, como
acontecera de 1815 (ou, de facto, embora não de direito, desde 1808) a 1821.
Era a prevalência de uma perspectiva imperial, ao arrepio dos sentimentos
mais estritamente nacionalistas que tanto se haviam afirmado na segunda
década de Oitocentos, conduzindo à revolução de 24 de Agosto de 182087.
Sensível aos perigos de uma solução que de novo menosprezasse estes sentimentos — e partindo ele próprio de uma concepção mais europeia do império, que exigia para o reino português o lugar de centro do sistema —, o
marquês de Palmeia não deixa de chamar a atenção para os inconvenientes
da via adoptada, atendendo, além do mais, à «repugnância manifesta» que
D. Pedro mostrava em aceitar a sucessão da coroa portuguesa (segundo notícias chegadas do Brasil a Londres em Setembro) — tudo contribuindo para
tornar «triste a sorte de Portugal, e grande a humiliação [si] dos portugueses», se D. João VI não adoptasse as «medidas e precauções» inspiradas
pelo «seu paternal coração, para assegurar a todo o tempo a conservação da
paz interior», a qual «certamente» corria «o risco de ser perturbada», a subsistirem «para alucinar os povos, pretextos semelhantes aos que se alegaram
em 1820»ss. Tratava-se, como vemos, de um apelo discreto a que se regulamentasse rapidamente a questão da sucessão, evitando os perigos que resultariam, quer de uma renúncia de D. Pedro aos seus direitos sobre Portugal, quer
da sua subida ao trono português, conservando a sua residência no Brasil.
Mas as reservas à perspectiva imperial traçada pela corte de Lisboa vinham
também de outros quadrantes ideológicos. Em O Popular (periódico então
publicado em Londres por dois conhecidos liberais vintistas, José da Silva
Carvalho e Margiochi) encontramos uma crítica ao tratado e às soluções nele
implícitas, onde o tema dominante é o perigo de «colonização de Portugal»
pelo Brasil num futuro próximo, reproduzindo-se a situação existente entre
1808 e 1820, uma vez que, no entender do articulista, o acordo do Rio
marcaria apenas uma separação temporária dos dois reinos, até à morte
86
D e s p a c h o de Porto S a n t o de 3-12-1825 in Biker, op. cit., vol. cit., p . 2 2 3 .
Como procurámos mostrar em Os Sentidos do Império — Questão Nacional e Questão
Colonial na Crise do Antigo Regime Português, parte iv.
88
Ofício de Palmeia a Porto Santo de 27-9-1825 in Reis e Vasconcelos, op. cit., vol. cit.,
pp. 81-85, itálico no original.
87
333
Valentim Alexandre
de D. João VI, ao qual sucederia D. Pedro. Repudiando a ideia da reconstituição do império por via dinástica, por implicar a transferência da sede do
poder para o Brasil e a formação em Portugal de uma regência que não poderia deixar de caber a D. Carlota Joaquina ou a D. Miguel, O Popular recusava igualmente a extensão à antiga metrópole da carta constitucional então
vigente no império brasileiro, que tinha por pouco liberal, «porque nela todo
o poder efectivo é do Imperador», conduzindo a um «despotismo prático».
Por outro lado, a união seria prejudicial também ao próprio Brasil, o qual,
levado a seguir a política da Europa, serviria de «alavanca» do «despotismo»
na América. De novo se obrigariam os soldados portugueses a ir combater
no reino americano. Haveria ódios, contendas e desavenças. No fundo, só
a Grã-Bretanha ganharia com o tratado, porque passaria a ter maior influência nos negócios luso-brasileiros e maior consumo para os seus produtos,
em prejuízo do comércio e das manufacturas portugueses. A tudo isto contrapunha o jornal uma solução própria, ao concluir: «Se o governo de Lisboa
andara de boa-fé, reuniria as Cortes, e com elas trataria de proclamar uma
sincera emancipação do Brasil, unindo-nos por mútuos interesses comerciais,
e não dividindo-nos com enganos e perfídias, causa perpétua de futura discórdia.» Na instauração do sistema representativo em Portugal estaria também
o remédio para o terrível problema de sucessão dinástica que se poria por
morte de D. João VI: com cortes não faria medo nem a regência de D. Carlota Joaquina nem a sucessão de D. Miguel, haveria governo, reforma, recursos, ordem, leis, segurança e propriedade 89 .
A crítica de teor nacionalista de O Popular à perspectiva imperial não constituía um facto novo: ela inseria-se numa corrente que se afirma na imprensa
portuguesa do exílio já na segunda década do século, sobretudo a partir
de 1814, e que vai depois ter grande peso em todo o triénio vintista, contribuindo para a prevalência de uma política que sobrepunha os interesses estritamente nacionais à perspectiva de conservação da integridade do império90.
Mas o tratado de 29 de Agosto estava longe de consagrar a reconstituição
do sistema luso-brasileiro que assim antecipadamente se criticava e que a corte
de Lisboa de facto almejava: mudo sobre a sucessão, o acordo deixava a porta
aberta às mais diversas opções por morte de D. João VI; quanto à carta-patente, o seu valor era para esse ponto ilusório, servindo apenas fins de política interna, publicada como fora por acto unilateral, sem o consentimento
das autoridades do Rio. Por seu turno, a regulamentação das relações mercantis, muito insatisfatória para Portugal, como vimos, era tomada no próprio tratado como meramente provisória. Qualquer destes dois pontos
89
334
90
O Popular, n.° 15 (1825), pp. 145 e segs., e n.° 16 (1825), pp. 221-226 e 242-253.
Cf. Os Sentidos do Império, partes iv e v.
Reconhecimento do Estado brasileiro
exigia, portanto, uma actividade diplomática suplementar, que foi efectivamente levada a cabo tanto junto do governo de Londres como da corte de
D. Pedro no Rio.
As primeiras diligências para fazer face ao problema da sucessão começaram ainda antes de recebido na Europa o tratado de 29 de Agosto e mesmo
antes de conhecidos os primeiros resultados das negociações de Charles Stuart.
Com efeito, é já em 21 de Junho de 1825 que Palmeia, em ofício para Porto
Santo, refere a questão da garantia inglesa a um eventual acordo luso-brasileiro, dizendo-se «persuadido» de que o governo de Londres se prestaria a dá-la «ou a conceder de algum modo a sua acessão aos outros ajustes,
ou sejam políticos ou comerciais», que se fizessem «para assegurar a transmissão e a conservação das duas coroas na linha directa dos legítimos sucessores do nosso augusto soberano». E acrescentava: «Mr. Canning mesmo a
quem fiz [...] esta pergunta não teve dúvida em me responder afirmativamente.
Tanto é certo que o interesse da Grã-Bretanha consiste em se conservarem,
por quanto puder ser, unidas as duas Coroas 91 ». Mas tratava-se de um equívoco do diplomata português, talvez fomentado voluntariamente por Canning, a fim de melhor congregar a boa vontade da corte de Lisboa em relação à missão de Stuart no Rio. Menos de um mês depois, a 8 de Julho,
um outro ofício de Palmeia mostrava o ministro britânico já mais reticente
sobre este ponto, recusando-se a tratar da garantia antes de recebidas notícias do Brasil e avançando desde logo que, se ela poderia ser prestada às «transacções pecuniárias» e outras «condições preliminares», não se alargaria em
caso algum à sucessão, «não se devendo esperar que o Governo Britânico se
obrigasse por meio de uma garantia, nem a intervir nas contendas intestinas,
ou a sufocar as revoluções, a que pudesse estar exposto qualquer dos dois
países, nem mesmo a expor-se a sustentar guerras para manter a sua União».
Quanto muito, a Grã-Bretanha poderia aceder ao ajuste, se isso lhe desse
«consistência», mas sem garantia expressa e formal 92 .
Esta posição não representava mais do que um afloramento do sistema de
não intervenção de Canning 93 (ou, melhor dizendo, do seu sistema de intervenção limitada e pontual nos assuntos internos de outros Estados, salvaguardando os interesses britânicos, mas evitando, tanto quanto possível, um
envolvimento militar no continente europeu). Mas a questão sucessória tinha
demasiado peso para que o governo português abandonasse sem mais as suas
instâncias: a 30 de Julho um despacho de Porto Santo insistia em reclamar
a garantia inglesa para a sucessão na pessoa do legítimo herdeiro da casa de
Bragança — sem o que, escrevia, Portugal correria o risco de se ver envolvido numa guerra civil, de que a Espanha se poderia aproveitar, com prejuízo
91
Ofício in Biker, op. cit., vol. cit., pp. 146-147.
92
Ofício de Palmeia n.° 14, reservado, de 8-7-1825 in ANTT, fundo M N E , legação de Portugal em Londres, caixa 750 (60 d a numeração antiga).
93
Cf. Temperley, op. cit., pp. 458-459.
555
Valentim Alexandre
para a Grã-Bretanha94. Perante as evasivas de Canning, o ministro português
passará pouco depois a invocar os tratados que, em seu entender, obrigariam
a Inglaterra a defender a integridade do império luso-brasileiro — nomeadamente o artigo 6.° da convenção de 1807 (quanto ao reino de Portugal)
e o artigo 15.° do tratado de 1661 (quanto aos domínios) 95 . Para Canning,
porém, os antigos acordos só valeriam contra agressões externas, não podendo
o governo inglês «tomar sobre si a garantia indefinida e ilimitada contra riscos
diversos, impossíveis de prever»; para mais, as notícias recebidas do Brasil
de que D. Pedro relutava em aceitar a sucessão de Portugal tornavam vã essa
garantia, que não poderia forçar a vontade do próprio herdeiro da coroa.
«O verdadeiro meio de obstar a tamanhos inconvenientes», concluía Canning, segundo ofício de Palmeia de 6 de Outubro de 182596, «está em que
o vosso Soberano [...] providencie, de acordo com seu filho, a todos os futuros contingentes; que designe a Regência que [...] deverá governar o Reino;
e que legisle como Soberano e como Pai.»
Quando, já depois de recebido em Inglaterra o tratado luso-brasileiro de
29 de Agosto, se passou da fase das comunicações verbais à dos documentos
escritos, a respeito da garantia da sucessão, as posições do governo britânico
mantiveram-se inalteráveis: respondendo só em 3 de Fevereiro de 1826 a uma
nota de Palmeia de 7 de Dezembro do ano anterior, Canning reiterava a sua
interpretação dos acordos anglo-portugueses, negando que eles se pudessem
aplicar às circunstâncias existentes, uma vez que eles obrigariam apenas «cada
uma das partes contratantes a respeitar as pretensões de qualquer Potência
estrangeira para derrubar a dinastia reinante no país da outra, e, se necessário, a resistir, a essas pretensões», mas já não «a intervir nas mudanças internas e nos ajustes resultantes ou de lutas civis ou de medidas legislativas,
em relação às quais todas as Nações independentes rejeitam a arbitragem de
uma Potência estrangeira»97. Particularmente quanto ao tratado de Outubro
de 1807 — invocado por Lisboa, e no qual existia de facto uma estipulação
pela qual a Grã-Bretanha se comprometia a não aceitar no trono português
outra dinastia que não a de Bragança —, o ministro inglês defendia que tal
estipulação não representava «uma garantia geral da sucessão à Coroa
de Portugal na linha directa da família reinante», mas sim um «ajuste específico de não reconhecimento de uma dinastia estrangeira ao trono da Casa
de Bragança», dirigido contra a ocupação francesa do território de Portugal98.
336
94
D e s p a c h o reservado n.° 11 d e 30-7-1825 in A N T T , fundo M N E , m a ç o 136, reservados, livro
2.° (1824-1826).
95
Despacho de Porto Santo a Palmeia de 1-10-1825 in ANTT, fundo M N E , maço 134, livros
de registo para Londres, 3. a série, livro 3.° (1823-1827).
96
In Reis e Vasconcelos, op. cit., vol. cit., p p . 88-89.
97
Nota in Biker, op. cit., vol. cit., pp. 358-359 (corrigimos a tradução).
98
Ibid.
Reconhecimento do Estado brasileiro
Passando depois a analisar a questão sob outro ângulo — o de saber se,
dadas as circunstâncias, deveria a Grã-Bretanha, por simples «obrigação
moral e conveniência política», garantir voluntariamente a sucessão —, Canning repetia, no essencial, a argumentação que já desenvolvera nos meses
anteriores perante Palmeia: o governo de Londres não poderia dar o seu aval
à subida de D. Pedro ao trono de Portugal «contra a sua própria hesitação
em aceitá-lo», só podendo tomar uma decisão perante um novo acordo, cujos
elementos deveriam ser «amadurecidos e combinados pela negociação portuguesa e brasileira, antes de a Grã-Bretanha ser chamada a aprová-los e
apoiá-los». Para além disso, tornar-se-ia sempre necessário ponderar quais
«as formalidades e usos em Portugal num negócio tão grave como o da sucessão ao trono», verificando se bastaria a decisão do soberano ou se seria
«exigido em teoria» ou pedido «pela prudência na prática» que a essa vontade se juntasse «alguma expressão de consentimento nacional» para a auxiliar e confirmar. Insistindo neste ponto, a nota inglesa aconselhava a que sobre
o assunto se ouvisse o «parecer da Nação portuguesa, pela maneira e pelos
trâmites» indicados pela história de Portugal".
Finalmente, quanto à garantia do tratado de 29 de Agosto — que Palmeia,
para facilitar uma resposta positiva, separara da questão da sucessão —,
Canning recusava-se igualmente a dá-la, de forma global, aceitando apenas
assegurar a intervenção «pronta e eficaz» da Grã-Bretanha contra qualquer
tentativa do Brasil para se apoderar das colónias portuguesas 10° (o que correspondia ao interesse britânico de evitar a formação de um império sul-atlântico sob o domínio do Rio de Janeiro).
Era, obviamente, um resultado muito escasso, sobretudo se tivermos em
conta os objectivos e as expectativas iniciais da diplomacia portuguesa na fase
que se abre com a missão Stuart. Igualmente claras, as razões do fracasso
têm as suas raízes na debilidade da posição de Portugal no contexto das relações internacionais, que a desagregação do império acentuara em extremo.
Face à Inglaterra, a aliança desequilibrara-se: já pouco havia a oferecer como
contrapartida da protecção política que a Londres se solicitava. Para mais,
pela mesma altura — desde Junho de 1825 — o governo de Lisboa dera início
às negociações para revisão do tratado de comércio de 1810, nas quais aparecia também em situação de fraqueza, na medida em que procurava manter
e alargar os privilégios do vinho do Porto no mercado inglês. Suscitado
decerto por uma necessidade imperiosa de política interna, a iniciativa de proceder de imediato à revisão do acordo de 1810 vinha complicar nesta fase
a diplomacia portuguesa, prejudicando os objectivos prosseguidos na questão
brasileira. Como compensação para todos os seus pedidos, no âmbito
económico e político, Lisboa podia apenas referir — e fê-lo de facto
99
Ibid., p p . 362-371.
100
Ibid..,pp. 370-373.
337
Valentim Alexandre
a propósito da garantia da sucessão — o interesse que a Grã-Bretanha tinha
em conservar a estabilidade em Portugal, evitando perturbações que favoreceriam o domínio franco-espanhol sobre a Península Ibérica. Mas, não sendo
de modo nenhum certo que a subida de D. Pedro ao trono português assegurasse essa estabilidade, o governo britânico preferia manter as mãos livres,
actuando segundo as circunstâncias, de modo a consolidar a situação política em Portugal. É neste contexto que se deve entender a actividade do embaixador inglês em Lisboa, William A'Court, no início de 1826: mais do que
uma qualquer opção por um regime liberal, as suas manobras para levar
D. João VI a outorgar finalmente uma carta constitucional têm em vista sobretudo a criação de uma fonte de legitimidade que pudesse enfrentar com
um mínimo de sobressaltos a questão dinástica.
Iludida a expectativa de obter o apoio britânico, restava à corte de Lisboa
a esperança de levar o Brasil a melhores termos, tanto no aspecto político
como no comercial. As primeiras diligências nesse sentido surgiram logo após
a recepção e a ratificação do tratado de 29 de Agosto: a 22 de Novembro,
um despacho de Porto Santo a Carlos Matias Pereira (então nomeado encarregado de negócios no Brasil) apontava como da «maior transcendência
[...] o tratar de ajustar quanto antes estipulações comerciais definitivas para
as relações mercantis» luso-brasileiras, que o acordo negociado por Stuart
regulava apenas provisoriamente e por forma menos favorável a Portugal do
que prescreviam as suas instruções. Cumpria, por isso, tentar de novo obter
um exclusivo para o sal português e um «favor» aos vinhos nacionais que
fosse «real, e de tal natureza, que do concurso dos vinhos franceses e espanhóis» lhe não pudesse «resultar o menor mal». Conseguido isso, e também
«algum favor nos direitos dos mais géneros sobre os da Nação mais favorecida, sobretudo naqueles das nossas manufacturas que tinham maior extracção», estaria alcançado tudo o que se desejava «quanto a géneros».
Finalmente, deveriam definir-se os direitos de porto a pagar pelos navios de
ambas as nacionalidades, numa base de reciprocidade, de preferência dando
aos da contraparte em cada país um tratamento igual ao dos nacionais101.
Assim instruído, Matias Ferreira partiu para o Brasil pouco depois. Mas não
lhe coube mais do que um papel marginal nas negociações aí conduzidas, que
tiveram de novo Charles Stuart como plenipotenciário português. Com efeito,
o próprio Pereira foi o portador de um despacho de Porto Santo para o diplomata britânico, onde, para além de se referirem igualmente as estipulações de
ordem comercial que se pretendiam, se lhe rogava que pusesse «em prática todos
os esforços possíveis [...] para aclarar [...] o importante negócio da sucessão»,
assunto «de primeira necessidade» para Portugal, a tratar apenas com o próprio
imperador. Temia-se, provavelmente, em Lisboa que Matias Ferreira não fosse
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l()1
Despacho in Biker, op. cit, pp. 326-327.
Reconhecimento do Estado brasileiro
de imediato reconhecido no Brasil como encarregado de negócios (já que havia
indícios nesse sentido), o que paralisaria a resolução das questões pendentes.
Em qualquer caso, a entrega desta nova missão a Stuart, apesar dos maus resultados da anterior, vinha, mais uma vez, confirmar a incapacidade da corte
portuguesa de prosseguir pelos seus próprios meios uma política autónoma num
campo onde por grande parte se decidia o futuro do país102.
Os reflexos desta incapacidade fizeram-se sentir de imediato: de novo colocado na posição ambígua de duplo representante de Portugal e da Grã-Bretanha,
e posto perante instruções divergentes dos dois governos a que estava ligado —
o de Lisboa reclamando a sua intervenção como mediador no problema da sucessão, o de Londres recomendando que o assunto fosse objecto primeiro de
um «acordo de família» entre D. João VI e seu filho, sem a intervenção de qualquer potência —, Sir Charles Stuart optou, obviamente, pelas últimas, limitando-se a uma posição de expectativa das resoluções de D. Pedro103. O imperador,
por seu turno, mantinha-se hesitante, alterando com frequência as suas posições sobre o partido a tomar por morte de seu pai. Já em Outubro do ano transacto um ofício de Stuart fizera-se eco de uma dessas mutações: relutante nos
meses anteriores em admitir suceder no trono português, D. Pedro, «tendo estabelecido o seu poder no Brasil sobre uma base sólida em resultado da negociação» do tratado de 29 de Agosto, teria acabado de «mudar, de algum modo,
as suas vistas sobre Portugal», importando-se agora mais do que os brasileiros
desejariam com tudo o que pudesse «assegurar os direitos eventuais à sucessão
de seu pai, não ocultando aos seus afeiçoados as reformas e os projectos de
Carta» que desejava «de futuro apresentar»104. Agora, dirigindo-se ao mesmo
conde de Porto Santo em ofício de 14 de Março de 1826, o diplomata britânico
assinalava que o imperador «falava há poucos dias de casamento futuro de sua
filha mais velha com o Infante D. Miguel», ideia que parecia depois ter abandonado, dada a «perspectiva do nascimento de um segundo filho, e talvez o
desejo de reter a parte dos bens da sua herança». Mas acrescentava: «porém
é impossível prever as novas mudanças que poderão suceder-se no seu espírito
de um momento para o outro» 105 .
Mas havia boas razões políticas para o recuo de D. Pedro em relação às posições mais abertas que Stuart assinalava em Outubro. Na realidade, longe de consolidar a soberania do imperador no Brasil, dando-lhe uma nova legitimidade,
o tratado de 29 de Agosto de 1825 contribuíra ainda para a minar, pelo desagrado que provocara a indemnização a pagar, vista como um preço cobrado
pela independência. A publicação da carta-patente de 13 de Maio de 1825 pela
corte de Lisboa, pondo em causa o princípio da soberania popular como fundamento do império brasileiro, reforçara a desconfiança face ao poder estabele102
Despacho de 20-11-1825, ibid., pp. 322-323.
Ofício de Stuart a Porto Santo de 14-3-1826, ibid., pp. 410-411.
104
Ofício de Stuart a Porto Santo de 25-10-1825, ibid,, pp. 314-315.
105
Ibid., pp. 412-413.
103
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eido e a hostilidade por qualquer tentativa de aproximação a Portugal. Na mente
dos liberais do Brasil, partido português e partido absolutista tendiam a identificar-se 106. Em tal contexto tornava-se perigoso para D. Pedro afirmar abertamente uma eventual intenção de fazer valer os seus direitos à coroa portuguesa.
Daí a sua irresolução, que se mantinha quando, a 24 de Abril, chegou ao Rio
a notícia da morte de D. João VI.
Discreta na questão dinástica, a acção de Stuart foi um pouco mais longe
no âmbito da outra das missões que o governo de Lisboa lhe confiara — a de
renegociar o sistema de relações mercantis luso-brasileiras. Mas também neste
ponto as reservas políticas da corrente nacionalista dominante no Brasil se fizeram sentir, levando mesmo D. Pedro a recusar liminarmente o exclusivo concedido ao conjunto dos géneros brasileiros no mercado português, a fim de «se
desvanecer a ideia de união»107. Estabelecido que as concessões mútuas se fariam numa base de «reciprocidade perfeita»108, rapidamente se acordou em que
sobre a generalidade dos produtos de ambos os países se cobrassem 10% de direitos alfandegários109 (o que representava um abatimento de um terço nos direitos que recaíam sobre os artigos de outras nacionalidades, nomeadamente os
britânicos) e em que os navios brasileiros e portugueses pagariam em Portugal
e no Brasil, respectivamente, direitos de porto idênticos aos das embarcações
nacionais. Insistindo Stuart em pedir o exclusivo para o sal e direitos de 7,5%
para o vinho e azeites portugueses, em troca de favores análogos no café, açúcar
e aguardente do Brasil, os plenipotenciários brasileiros resistiram, ficando o assunto em aberto tanto na conferência de 17 como na de 21 de Abril110. Nesta
mesma reunião se admitiu o princípio da continuação do comércio directo do
reino americano com as colónias portuguesas de África e de Ásia, mas ficou
ainda em suspenso a questão das taxas que o onerariam111.
Nesta fase das negociações se estava — longe ainda do fim, mas sem obstáculos de grande monta no caminho — quando chegou ao Rio a notícia da morte
de D. João VI. Reunidos a 29 de Abril, os plenipotenciários de ambos os países
acordaram em suspender as conversações, por terem caducado os poderes recebidos por Stuart do monarca português112. Finalmente, o diplomata britânico
chegou ainda a propor que os pontos já ajustados favoráveis a Portugal fossem
publicados em decreto, «quando o Imperador declarasse as suas intenções acerca
da soberania que lhe era devolvida», mas o governo brasileiro achou preferível
106
Cf. Oliveira Lima, op. cit, pp. 254-255.
Ofício n.° 4 de Carlos Matias Pereira de 11-3-1826, in ANTT, fundo MNE, legação de Portugal no Brasil, n.° 1 (1826-1830).
108
Ofício d e Stuart d e 14-3-1826, in Biker, op. cit., vol. cit., p p . 404-405.
109
Cf. o projecto de Stuart junto ao seu ofício de 14-3-1826 in Biker, op. cit, vol. cit.,
p. 409, e o relato da conferência de 17-4-1826, ibid, pp. 429-430.
110
Relato das conferências in Biker, op. cit, pp. 428-431.
111
Ibid
nl
Ibif., p. 432.
107
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Reconhecimento do Estado brasileiro
deixar tudo para um tratado definitivo a concluir depois de decidida a questão da
sucessão113, o que teve como consequência o adiamento da regulamentação mercantil por prazo indefinido. Assim se frustrava uma das ocasiões mais favoráveis
para conseguir um regime privilegiado para as relações económicas luso-brasileiras.
Quanto ao problema sucessório, sabe-se como, após um breve mas muito intenso debate na corte do Rio, ele conduziu à abdicação condicional de D. Pedro
em sua filha Maria da Glória em Maio de 1826 — uma solução que, longe de
resolver a questão, a fez entrar na sua fase mais crítica.
CONCLUSÃO
O tratado de 29 de Agosto de 1825 e as negociações que a ele directamente
conduzem são habitualmente vistos como um tema sem grande relevo na história da questão brasileira — o simples remate jurídico de um processo, no
fundo, já decidido desde finais de 1822. Numa visão retrospectiva de carácter
global, é esse, sem dúvida, o aspecto mais evidente do acordo então firmado.
Mas, na época, o reconhecimento do Brasil tinha para a corte de Lisboa um
outro significado: tratava-se de uma derradeira tentativa para inverter a lógica
subjacente à emancipação brasileira, dando-lhe como matriz, não já os princípios da soberania nacional, mas os da legitimidade dinástica. Assim se cumpririam dois objectivos: em primeiro lugar, o de reconstituir o império, no momento da acessão de D. Pedro à coroa de Portugal, por morte de D. João VI;
em segundo lugar, o de assegurar a tranquilidade política do reino português,
gravemente ameaçada tanto pelo confronto entre liberais e absolutistas como
pelas divisões no seio da corte. Nesse sentido iriam não apenas a legitimação
da posição de D. Pedro, mas também o pacto a estabelecer sobre a regência que
em Lisboa o representaria depois da sua subida ao trono e ainda a garantia da
Grã-Bretanha aos pontos deste modo acordados.
Vimos como esta estratégia se frustrou, sabotada que foi pelo próprio plenipotenciário encarregado de a prosseguir, o diplomata britânico Charles Stuart,
que muito naturalmente sobrepôs os interesses do seu governo aos da corte portuguesa, quando confrontado com a oposição suscitada pelo nacionalismo brasileiro. Depois, o escasso tempo que mediou entre a recepção do tratado na Europa e o falecimento de D. João VI — apenas quatro meses — comprometeu
as diligências em curso para regular a questão da sucessão, com a garantia da
Grã-Bretanha, e para conseguir uma posição privilegiada nas relações mercantis
com o Brasil. Em Março de 1826 tudo estava em suspenso, subsistindo apenas
o tratado de 29 de Agosto, que, na perspectiva de Lisboa, constituía um acto
falhado. Na ausência de mecanismos de contenção, ficava aberto o campo a
todos os conflitos que nos anos seguintes marcarão a história portuguesa. O
espírito imperial, até então dominante na corte de Lisboa, visando a reconstituição do sistema luso-brasileiro, vai apagar-se definitivamente, cedendo o passo
a nacionalismos de várias cores ideológicas.
113
Ofício de Stuart de 294-1826 in Biker, op. cit, vol. cit., pp. 426-427.
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