ENGENHEIROS MILITARES DO IMPÉRIO

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ENGENHEIROS MILITARES DO IMPÉRIO: ATUAÇÃO E INTERVENÇÃO
NO ESPAÇO URBANO DE CAMPOS DOS GOYTACAZES
Empire military engineers: performance and intervention in urban space of
Campos dos Goytacazes
PRATA, Maria Catharina Reis Queiroz
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense
Rua Dr. Siqueira, 273 - Parque Dom Bosco - Campos dos Goytacazes, RJ
[email protected]
RESUMO
O presente artigo pretende realizar uma primeira leitura dos mapas das localidades elaborados por engenheiros militares
com o objetivo de utilizá-los como fontes historiográficas. A partir do século XIX, a categoria de profissional liberal
dos engenheiros militares foi considerada a mais importante no Brasil. A implantação das linhas férreas, abertura de
estradas, medição de lotes e esgotamento sanitário, os identificavam com o progresso e a modernização das cidades na
reafirmação do poder real. Trataremos, portanto, da ação da Engenharia Militar do Império na representação gráfica da
cidade de Campos dos Goytacazes, precisamente nos anos de 1837 e 1858, entendendo o papel desempenhado por estes
em sua evolução urbana.
Palavras chaves: Cartografia urbana, engenharia militar, Campos dos Goytacazes.
ABSTRACT
This article intends to conduct a first reading of the maps of the locations designed by military engineers in order to use
them as historiographical sources. From the nineteenth century, the category of liberal professional military engineers
was considered the most important in Brazil. The introduction of railways, construction of roads, lots of measuring and
sanitation, identified with the progress and modernization of cities in the reassertion of royal power. We will try,
therefore, the action of Engineering Military Empire in the graphical representation of the city of Campos dos
Goytacazes, precisely in the years 1837 and 1858, understanding the role played by these in its urban evolution.
Keywords: Urban Cartography, Military Engineering, Campos dos Goytacazes.
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1. INTRODUÇÃO
Calvino (1990) já dizia que “o homem que cavalga longamente por terrenos selváticos sente o desejo de uma
cidade”. Esta cidade desejada não é apenas um nome, um lugar geográfico ou uma qualificação. Não pode ser reduzida
a uma classificação baseada em sua forma de povoamento ou estrutura espacial. É acima de tudo “[...] o espaço
produzido resultante do meio físico e da acção humana, que participou no nascimento e desenvolvimento urbano e
oferece agora, à cidade contemporânea, um quadro susceptível de ser modificado e de pesar, por sua vez, na cidade
numa longa sequência de pontos e contrapontos nunca interrompidos” (BEAUJEU-GARNIER, 1980).
O espaço urbano e sua formação são objetos de estudos da Geografia Histórica Urbana, indicados nesse
contexto como uma “interpretação dos lugares” (ABREU, 1996), que atenta para as formas sociais como produtos
históricos, consequência direta da ação humana sobre o território.
Composto basicamente por estudos realizados num projeto de pesquisa de doutorado em andamento, a
intenção deste artigo é conjecturar sobre a evolução do espaço urbano de Campos dos Goytacazes, situada ao norte do
estado do Rio de Janeiro, observando como seus principais elementos morfológicos configuraram traços que são
particulares na sua estrutura espacial, fundamentados na opinião de Darby (1991) que considera a possibilidade de
realizar “uma geografia no tempo para reconstrução das geografias do passado”.
De acordo com Abreu (1998), na interpretação dos espaços do passado é fundamental definir quais os
conceitos e variáveis adequados à análise do tempo que se decidiu estudar, procurando recuperar o seu enquadramento
espaço-temporal. Devemos estar atentos em não nos limitarmos em conhecer a antiga morfologia urbana, apesar de sua
importância na recuperação da produção material das sociedades do passado, mas relacioná-las aos agentes sociais que
às edificaram.
Ainda segundo o mesmo autor, faz-se necessário seguirmos algumas regras metodológicas para alcançarmos
sucesso em nossas pesquisas sobre o passado:
Embora informado pelo presente, o passado não é o presente. Daí, para compreendê-lo, há
que se investir muito em pesquisa indireta, via leitura do que já foi produzido sobre o
tempo que se decidiu estudar, e também em pesquisa direta, realizada nas mais diversas
‘instituições de memória’ [...]. Finalmente, há também que levar em conta que as geografias
do passado trabalham, não com o passado propriamente dito, mas com os fragmentos que
ele deixou. Por isso, é preciso sempre desconfiar dos vestígios que encontramos, pois os
documentos não são neutros, isto é, incorporam estruturas de poder [...]. Por outro lado, há
também que tentar dar conta do que não deixou vestígios, mas que sabemos que ocorreu ou
que deve ter ocorrido (ABREU, 2000, p. 18). (grifo nosso)
Entendendo os fragmentos como representações de “geografias do passado”, estes vestígios incluem os
documentos (mapas, registros de doações, iconografias, etc.) e os elementos arquitetônicos da cidade pretérita.
Etimologicamente, segundo Le Goff (1994), a palavra documento provém do latim documentum - ensino,
lição, aviso, advertência, modelo, exemplo, indício, sinal, indicação, prova, amostra, prova que faz fé, documento.
Qualquer objeto de valor documental (mapas, fotografias, papéis, filmes, construções, monumentos, etc.) que elucide,
prove ou comprove cientificamente algum fato, acontecimento ou dito.
Até o século XIX, os documentos dignos de conservação e estudo eram aqueles que contavam a história dos
grandes acontecimentos ou feitos dos estadistas, ou seja, a história política. Já no século XX presenciamos a reabilitação
do documento não escrito, abrangendo dimensões até então teóricas da noção de fonte, fortalecido pela fundação da
revista Annales e da instituição de pesquisa e investigação em Ciências Sociais e Humanas, a École des Hautes Études
em Sciences Sociales, em 1975, onde a crítica ao fato histórico e a colaboração com outras ciências serviram para uma
nova orientação ao estudo da história.
Bloch (2001), um dos fundadores da Annales, insistia em dizer que “a diversidade dos testemunhos históricos
é quase infinita. Tudo quanto o homem diz ou escreve, tudo quanto fabrica, tudo que toca, pode e deve informar sobre
ele”. Iniciava-se o diálogo da história com a geografia, a sociologia, a economia, a psicologia, a semiótica, dentre
outras, estabelecendo relações e ampliando o domínio da história.
Retornando à reflexão sobre a história das cidades, Pesavento (2007) esclarece que “cada cidade é um
palimpsesto de histórias contadas sobre si mesma, que revelam algo sobre o tempo de sua construção e quais as razões
e as sensibilidades que mobilizaram a construção daquela narrativa”. (grifo nosso)
A Geografia aponta a periodização como uma das formas de percebermos e estudarmos esse tempo, através de
recortes temporais, somados aos recortes espaciais, que permitem estabelecer articulações entre ambos, tempo e espaço,
contribuindo para a análise simultânea de padrões espaciais e temporais.
Nesse contexto, o século XIX é o tempo escolhido, e o centro histórico de Campos dos Goytacazes é o cenário
definido como objeto de estudo. A partir da análise de mapas elaborados por engenheiros militares do império,
confrontados ainda às informações bibliográficas pesquisadas, tentaremos refletir sobre a forma de expansão urbana de
sua região central, iniciada em 1627, destacando a atuação local dos engenheiros militares e a lógica de urbanização
consolidada na urbe fluminense por estes profissionais a partir do período de sua atuação.
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Pedro Vasconcellos (1999) indica a cartografia como sendo de grande importância para o conhecimento das
“transformações espaciais” do espaço urbano:
[...] a cartografia de cada época tem uma importância fundamental – apesar das
imprecisões, das impossibilidades de uma mensuração correta, das diferenças de escala etc.
–, porque os próprios mapas são marcos definitivos de etapas das transformações espaciais
da cidade, nos dando uma informação precisa (em diferentes graus) do que já existia, do
que estava consolidado, e do que tinha importância em ser registrado e mapeado (desde a
superfície documentada, até o que é representado ou colocado em destaque: igrejas,
fortificações, logradouros etc.) (VASCONCELLOS, 1999, p. 148)
Considerando a afirmativa acima, podemos sugerir que um mapa, na condição de documento, pode ser uma
imagem usada para auxiliar na interpretação e comprovação de determinadas hipóteses, apresentando-se como a
expressão perfeita da técnica, produto de uma cultura material e cultural, parte da construção de um espaço.
Considerado num sentido mais elementar, ele é uma representação convencional da superfície terrestre, vista de cima,
na qual se colocam elementos e códigos para identificação. A análise desta representação gráfica busca compreender o
desenho a fim de utilizá-lo como fonte historiográfica.
Ainda de acordo com Pesavento (2007):
Imagens de cidade são representações, factíveis ou não, baseadas em cidades existentes, e
elas descortinam para o historiador um panorama fascinante de rastros do passado. Elas são,
todas elas, marcas de uma cidade sensível que um dia se impôs ao olhar, à técnica e às
emoções daqueles que as traduziram em imagem.
Factíveis ou não, ao utilizarmos o mapa-imagem como fonte histórica e documental, esta representação passa a
ser entendida como monumento-documento, fornecendo pistas do passado que a construiu. Constitui-se no registro que
depende ainda das escolhas de quem a produziu, e das observações de quem a estuda.
Sabemos, entretanto, que nenhum documento é neutro. O uso político de muitas imagens deve ser citado,
sendo que algumas foram o resultado de encomendas reais que buscavam o controle e o prestígio assegurados pelas
“visualizações do reino” e que tinham a cidade retratada como suporte da conquista efetuada pelos monarcas (KAGAN,
1981).
Um mesmo fato também pode ser interpretado de várias maneiras a partir de pontos de vista diferenciados. Por
tal motivo é que devemos observar os limites da cartografia para interpretarmos o urbanismo, pois, senão, corremos o
risco de se criar um falso testemunho. É preciso que busquemos o maior número possível de informações sobre
qualquer objeto cartográfico produzido: como e quando foi produzido, sua finalidade, os agentes sociais envolvidos,
seus significados e valores para a sociedade que o produziu. Devemos, ainda, realizarmos a leitura das entrelinhas,
percebermos as ausências significativas e compreendermos que elas, as imagens, não foram produzidas com este
propósito para a qual hoje as utilizamos.
Entendemos, por fim, que a harmonização da cartografia com outros documentos seria o fundamental para
criarmos uma interpretação mais realista dos fatos históricos, bem como os valores que vierem a contribuir para a sua
formação num contexto social, temporal e espacial.
2. ENGENHEIROS MILITARES DO IMPÉRIO: ATUAÇÃO E INTERVENÇÃO NO ESPAÇO URBANO DE
CAMPOS DOS GOYTACAZES
Na América Portuguesa, o primeiro documento oficial que se conhece referente à formação de engenheiros
militares é a carta régia datada de onze de janeiro de 1699, determinando a criação de uma “[...] escola de artilharia e
architectura militar” na Bahia, no Rio de Janeiro [1699], no Maranhão [1699], em Recife [1701] e Belém do Para
[1758] (REIS FILHO, 1968).
Apesar de preferencialmente militar, voltada para as obras de defesa, a educação dos engenheiros militares os
tornavam aptos a realizar obras de construção civil como pontes, colégios, chafarizes e igrejas. Os professores
acumulavam a função para exercer, além da atividade docente, as de engenheiro, trabalhando a serviço da Coroa ou
governadores em obras de defesa e elaboração de projetos de construção civil e particular. Principalmente, não devemos
esquecer a sua intervenção ao nível de concepção, construção ou manutenção de equipamentos de defesa: fortes, fortins,
fortalezas, redutos, etc.
Portugal, em suas colônias de África, América e Índia, possuía a necessidade de desenvolver um trabalho de
reconhecimento e representação do território, de avaliação das necessidades de cada vila e de intervenção sobre a
mesma. Conhecer o território, palmilhá-lo, reconhecer seus acidentes geográficos, era uma forma de defini-lo. E esta
definição tinha como intenção o seu posterior controle, de acordo com Bueno (2011).
Foram eles, os engenheiros militares, devido ao seu elevado nível de formação e de competência técnicocientífica, os principais responsáveis por tão árdua tarefa. Assim, pouco a pouco, diante das necessidades mínimas
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apresentadas pelos centros populacionais, os engenheiros militares foram exercendo as funções devidas aos arquitetos e
urbanistas, planificando cidades, traçando ruas, estradas, praças, construindo edificações essenciais, de obras públicas,
de igrejas, casas de pólvora, chafarizes, armazéns, residências e quartéis.
A partir do século XIX, segundo Chrysóstomo (2006), a categoria de profissional liberal dos engenheiros
militares foi considerada a mais importante no Brasil. A implantação das linhas férreas, abertura de estradas, medição
de lotes e esgotamento sanitário, os identificavam com o progresso e a modernização, apesar de sua atuação na América
Portuguesa neste período estar dividida por outro tipo de reflexão urbana que também passou a ditar as regras de
intervenção no espaço: o pensamento higienista, advindo de uma “política ilustrada” e da reafirmação do poder real.
Este conceito, segundo a autora, passou a ter grande importância nas vilas e cidades a partir do ensino de Medicina no
Brasil e da criação da Sociedade de Medicina no Rio de Janeiro em 1829. Em função desse pensamento e das epidemias
frequentes, o Governo Imperial passou a interpor sua autoridade nos governos municipais exigindo o cumprimento de
normas e hábitos de higiene.
Entende-se, portanto, que sob as luzes desse entendimento, o Estado entendia ser necessário intervir na cidade,
administrando a urbanidade através de medidas de proteção à população, promovendo a salubridade local.
Foi neste espaço de tempo, precisamente no ano de 1835, que a então vila de Sam Salvador dos Campos dos
Goytacazes, fundada em 1677, é elevada à categoria de cidade, num período de grande prosperidade econômica, e passa
a contar com várias intervenções urbanísticas, tais como construção de canais, de estradas de ferro, instalação de água,
esgoto e luz elétrica, realizadas por engenheiros militares.
Antes de iniciarmos nossa interpretação dos dois primeiros mapas da cidade, vamos primeiro nos deter ao
conceito de análise formal, que entendemos como as relações formais entre cheios e vazios, entre estruturas construídas
e espaços livres, e a necessária correspondência entre eles, possuindo como motivação principal o conhecimento
evolutivo do modo como a cidade foi sendo edificada ao longo do tempo. A sua forma é apenas a forma de “um
momento” histórico da cidade, possuindo um “antes” e um “depois”, configurando-se, portanto, num organismo vivo,
sujeito a diversas transformações. De acordo com Lamas (2004), esta forma urbana não depende apenas da sociedade
que a produz e de suas condições históricas e sociais, mas também de juízos estéticos e culturais de quem as idealiza e
constrói.
Interpretemos, portanto, a cidade de Campos dos Goytacazes, sob a ótica dos engenheiros militares que a
visitaram no século XIX e construíram um registro cartográfico sobre a mesma.
No momento embrionário de sua gênese urbana, supomos ser o rio o elemento que estrutura a pequena vila de
Sam Salvador dos Campos dos Goytacazes ao cortar a sua planície. Ele conforma e limita, em sua margem direita, o
desenho urbano, em um local dotado de “centenas de lagoas, de brejais e alagadiços; charcos intermináveis, chupados
pelo sol e que se alagam depois sob chuvaradas” (LAMEGO, 1974).
A vila colonial é implantada a partir de dois pontos de irradiação: a praça principal, denominada Praça São
Salvador, e o rio Paraíba do Sul. Segundo Alves (2009), “é desses dois polos que saem as principais ruas; partindo desse
centro é que a cidade se expande”.
No recorte temporal desse estudo a vila possuía como principal atividade econômica as lavouras de cana de
açúcar, e foi se desenvolvendo em estreita relação com a área rural, pontuada por várias chácaras e canaviais. De acordo
com Rodrigues (1988), em 1785 existiam 245 engenhocas, crescendo para 300 em 1798, e atingindo o número de 700
engenhos no ano de 1828.
Essa prosperidade, aliada ao nascimento de uma nobreza rural atrelada ao açúcar, levou Joaquim José Torres,
presidente da Província, a elevá-la à condição de cidade, no ano de 1835. De acordo com a bibliografia consultada
(Sousa, 1985; Rodrigues, 1988; Faria, 2000), a precariedade da higiene na cidade foi o fator que levou o governo
provincial a enviar a Campos o engenheiro militar, major Henrique Luiz Niemeyer Bellegarde, estando o mesmo
incumbido de várias tarefas: construir muralhas no limite da cidade com o rio Paraíba, buscando evitar os alagamentos
durante as cheias do mesmo, e criar medidas de melhoramentos urbanos, como arruamentos e arborização. Devemos
lembrar que no período em questão, “em função dos terrenos de Campos apresentarem baixa altitude, os problemas de
enchentes e doenças eram constantes na região” (CHRYSÓSTOMO, 2006), o que favorecia a preocupação com as
cheias do rio e a salubridade local.
O mapa executado por este engenheiro é o primeiro registro cartográfico do núcleo urbano da cidade (Figura
1), datado de 1837, onde podemos observar a sua conformação ditada pelo rio Paraíba, crescendo em direção ao sul,
acompanhando os limites da estrada que interligava Campos a Macaé, podendo ser previamente definido como o
“percurso matriz” (CANIGGIA, 1979). Nesse período, segundo Sousa (1985), existiam “dúzia e meia de ruazinhas
estreitas e tortuosas, seis travessas quase todas sem pavimentação, crivadas de atoleiros, à míngua de iluminação
pública”, e, complementando, somente uma praça e quatro largos (RODRIGUES, 1988). Ainda segundo o mesmo
autor, “em quase todas as ruas, grandes atoleiros dividindo os portos, [...], dificilmente se podia passar por causa dos
pântanos”.
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Figura 1: Recorte da “Carta Corographica da Provincia do Rio de Janeiro[...]”, Bellegarde (1837).
Fonte: Arquivo Digital da Biblioteca Nacional
Todas essas afirmações são confirmadas no relatório de Bellegarde à Diretoria da Província, onde o militar
destaca Campos como sendo uma “cidade opulenta, coberta de pantanaes e atoleiros capazes de sorver carros inteiros, e
que se estende desde o rio Ururahy, até junto da Praça principal da Cidade” (BELLEGARDE, 1837).
Sabemos que esta imagem compõe uma parte da Carta Corográfica da província do Rio de Janeiro, onde
várias de suas vilas e cidades estão representadas ao redor do mapa topográfico e político da região (Figura 2). No
relatório já citado, o engenheiro explica que a carta é uma “soffrivel baze para começo das operações topographicas” e
que deve ser tomado como “simples reconhecimento”.
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Figura 2: “Carta corographica da provincia do Rio de Janeiro, segundo os reconhecimentos feitos pelo Coronel
Conrado Jacob de Niemeyer [e outros]... [Cartográfico] / Coordenada e desenhada pelo Engenheiro Pedro Taulois”.
Fonte: Arquivo Digital da Biblioteca Nacional
É Bueno (2004) que nos explica o sentido da palavra carta e as diferentes interpretações para o genérico:
Carta vem do latim tardio carta, que deriva do grego khártés, em italiano é carta e em
inglês chart. Designativo genérico, para o fim que nos interessa cabe precisá-lo em: carta
geográfica (terrestre geral), carta corográfica (terrestre regional), carta topográfica
(terrestre local), cartas náuticas e cartas cosmográficas (planisférios, mapas-múndi). (grifo
nosso)
Esta pode ser a justificativa para o desenho apenas esquemático, com poucos detalhes ou indicações urbanas,
executado pelo engenheiro Henrique Bellegarde, sem descrição nominal de ruas, largos ou praças, realçado apenas
pelos quarteirões (cheios) e ruas (vazios) da cidade, visto se tratar de uma representação “terrestre regional”.
Nesta cartografia estão realçados os limites do rio, o vazio da praça central com o Paço da Câmara Municipal
em destaque, frontal ao rio, e a grande Lagoa do Furtado, de formato tendendo ao circular. Somente a comparação com
o mapa de outro engenheiro militar, Pedro D’Alcântara Bellegarde, irmão do primeiro, datado de 1858, nos fornece
maior entendimento deste primeiro registro da cidade (Figura 3). Também este mapa compõe outra Carta Corográfica
da província do Rio de Janeiro, mas, neste caso, os detalhes estão em maior evidência, possibilitando identificar as
permanências urbanas, arquitetônicas e paisagísticas do período imperial na atualidade.
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Figura 3: Recorte da “Carta Corographica da Provincia do Rio de Janeiro [...], Bellegarde (1858 a 1861).
Fonte: Arquivo Digital da Biblioteca Nacional
Na leitura do mapa de 1858 identificamos uma sugestão de crescimento da cidade no sentido leste-oeste,
tomado em relação à praça, com várias ruas e quarteirões demarcados em planos retilíneos, ortogonais e geométricos,
indicados em finas linhas tracejadas. A vocação técnica e racional dos engenheiros militares é confirmada, destacandose a possível intenção de uma tentativa de ordenamento ao já existente núcleo urbano. A “racionalização” dos projetos,
segundo Toledo (2000), deve-se principalmente à preocupação com a salubridade, regida pela "estética do iluminismo",
instaurado em Portugal após o terremoto de 1º de novembro de 1755.
A Rua Direita mantém-se inalterada em seu tortuoso caminho de interligação da praça, o centro da nascente
cidade, ao sul da província. Gomes (1997) nos elucida:
[...] Era talvez a Rua Direita; a rua Direita que existe em todas as cidades portuguesas. Na
maior parte das vezes, como sabemos, as ruas direitas eram tortas. Chamavam-se direitas
porque iam direitas às praças principais, à Casa da Câmara, por exemplo, [...], ao Hospital,
à Casa dos Governadores [...]
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A precisa e detalhada marcação dos principais elementos arquitetônicos, nomeados por letras e explicados pela
legenda na lateral do mapa, indicam a importância conferida aos edifícios religiosos, que através de sua arquitetura, são
o maior destaque da cartografia, tal como a Igreja Matriz de São Salvador, localizada na praça de mesmo nome,
indicada pela letra “A”. A esta se sucedem várias igrejas e ruas de maior importância, assim como o antigo Paço da
Câmara Municipal, indicado pela letra “T”. Este é nomeado por Bellegarde (1858) como “Cadea e Municipalidade”,
tendo sediado a administração municipal e sala para audiência dos juizados do termo da freguesia de São Salvador,
dentre outras funções. Segundo Alves (2009), o seu funcionamento como cadeia foi curto, devido à pressão da
população pela construção de outra prisão em área mais afastada e menos nobre da cidade.
Num estudo comparativo entre os dois mapas, Figuras 1 e 3, podemos observar uma mudança bastante
significativa na morfologia urbana da cidade realizada em menos de vinte e cinco anos. O primeiro é o aterro da Lagoa
do Furtado e a construção do canal Campos-Macaé. O início de sua construção data de 1844, e sua inauguração em
1872, alguns anos após a passagem de Pedro Bellegarde pela cidade. Entendemos, portanto, que o canal encontrava-se
bastante desenvolvido em Campos, mesmo em fase de construção, por já constar no referido mapa.
Pequenos portos de nomes sugestivos – Grande, Gramacho, da Ana Maria, da Pedra, das Escadas, do
Pelourinho, da Banca, etc. - foram criados às margens do rio Paraíba, desenvolvendo-se pelos continuados aterros da
frente ribeirinha, utilizando a marginal como local de desembarque e como cais de ancoragem de barcos. Eram estes
ancoradouros de “grande importância porque o rio Paraíba era a maior estrada líquida de penetração na região”,
segundo Chrysóstomo (2006). Sinais da intensa convivência com o rio, perdida na atualidade.
Os tempos mudam, a vida passa, a cidade cresce, mas alguns mapas ficam para nos contar sobre a urbe
pretérita, e “constatar a presença ou ausencia de determinados predios, o estado das ruas, o trajar dos habitantes, os
sinais da modernização urbana — ou a sua falta, captando a vida presente em um momento do tempo, congelado para
sempre na imagem que se grava no papel” (PESAVENTO, 2007).
3. CONCLUSÃO
O conhecimento da cartografia urbana histórica, documentos-imagens de uma cidade ou país, é uma forma de
compreender seu processo de urbanização. Entender suas mudanças morfológicas, decifrar seu imaginário e o processo
histórico da qual se originou, pode nos ajudar a compreender seu momento atual.
A partir desse estudo, compreendemos ser possível obter conhecimentos sobre a formação e posterior
transformação da urbe no tempo atual, contribuindo para alcançarmos conhecimentos essenciais para posteriores ações
de reabilitação dos espaços públicos e do edificado, gerando um diagnóstico crítico e independente para melhorar a
qualidade das intervenções, quer na sua perspectiva mais geral e estratégica, quer no projeto urbano. O objetivo é que
essas análises sejam instrumentos de trabalho, de reflexão e sirvam diretamente ao projeto de reabilitação urbana.
Segundo Fridman (2011), para se entender a gênese de uma região, faz-se necessário os “estudos de modo a
contar com um repertório dos diversos projetos, agentes sociais e conflitos para sua definição [...]”. Nesse sentido,
entende-se que a cidade deve ser estudada não apenas em sua morfologia, mas também nos processos históricos que
pautaram a sua evolução, quase sempre com repercussões na primeira, nos quais participaram homens e poderes que a
foram modelando e que deles deixaram testemunho.
Entendemos, por fim, que a morfologia urbana registrada não é só memória, mas um documento, uma
narrativa visual, revelando estratégias de ocupação e algumas tendências espaciais que serviram aos interesses da
prática administrativa. Através dela enxergamos a cidade por elementos morfológicos, entre cheios e vazios, estando
esta visão condicionada à forma como a cidade se organizava, produzindo assim uma imagem final da sociedade
embrionária e urbana de Campos dos Goytacazes.
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