Introdução O presente texto contém algumas observações e reflexões envolvendo os documentos Programa e Metas Curriculares, Matemática A (Ensino Secundário) e Caderno de Apoio, 10.0 Ano. Não se trata de uma análise abrangente, antes pelo contrário, este texto centra-se exclusivamente nos aspectos envolvendo a Lógica e a Teoria de Conjuntos e todas as considerações que aqui se fazem dizem respeito apenas a estes aspectos. Infelizmente a forma absolutamente medíocre como estes domínios da Matemática foram considerados nas Metas para o Ensino Básico, onde se chega ao ponto de falar em demonstrar todas as verdades, emanando um optimismo que contraria os celebrados teoremas da incompletude de Gödel, não deixava antever um cenário favorável. A catástrofe anunciada surgiu finalmente gravada em pedra na forma dos documentos agora em apreço. Os autores, certamente nada versados nestes assuntos, decidem abordar o tema de um ponto de vista excessivamente formalista, sem se aperceberem nem do verdadeiro papel desse formalismo nem do contexto em que se revela necessário. E, quando não estão entretidos com este devaneio, ocupam-se com a redução da lógica formal ao papel de uma abreviatura, assassinando-a assim duplamente. A formalização é uma necessidade da Lógica Matemática pois este é o veículo para o estudo sistemático, do ponto de vista da própria Matemática, de noções como demonstrabilidade, satisfatibilidade e outras. Não se trata pois de uma característica essencial da Matemática ordinária. A obsessão formalista evidenciada nestes documentos acabará por constituir o veículo ideal para o obscurantismo. As noções de Lógica e Teoria de Conjuntos necessárias a um aluno deste nível são afinal noções que devem ser naturalmente incorporadas na sua forma de pensar. Tão naturalmente quanto o são os diferentes mecanismos que nos permitem caminhar. O que aqui se pretende é dotar o caminhante de uma checklist que ele deve consultar antes de iniciar cada passo. Sempre existiu e (provavelmente) existirá uma barreira entre aqueles que vêm a Escola como um mecanismo utilitário, produtor de indivíduos preparados para a acção (no mesmo sentido em que um objecto inerte, largado de uma certa altitude, se encontra preparado para cair em direcção à Terra), e aqueles que a vêem como uma oportunidade de tornar o Homem bom, i.e. torná-lo intelectual e eticamente capaz. Como os autores destes texto estão convictos de estar absolutamente certos nas suas propostas (como bem o ilustra o altivo desprezo a que votaram todas as contribuições [que eles próprios pediram] a propósito das Metas do Ensino Básico) estão também mais afastados da verdade e menos capazes de saber porquê. Nesse sentido, não é minha intenção inaugurar um debate deste cariz. Procurarei assim apontar nada mais que aspectos concretos, mesmo que consciente de que não será possível resgatar estes documentos da mediocridade a que os autores os condenaram. 1 Texto: Metas Lógica e teoria de conjuntos (p. 3) A dado ponto os autores pretendem definir o que é uma proposição aproveitando para introduzir o princípio do terceiro excluído como uma espécie de mecanismo limitador. Pode ler-se: «Designar por «proposição» toda a expressão p suscetível de ser ‹verdadeira› ou ‹falsa›, designar estes atributos por «valores lógicos» e por ‹Princípio do terceiro excluído› o facto de apenas se considerarem como proposições as expressões a que se atribua um daqueles dois valores lógicos.» O princípio do terceiro excluído não é aquilo que aqui se sugere. Os autores confundem o princípio da bivalência, ou seja o princípio segundo o qual qualquer proposição só pode receber um de dois valores lógicos, com o princípio do terceiro excluído, ou seja, o princípio segundo o qual a sentença p∨¬p é tautológica. A lógica intuicionista, por exemplo, é uma lógica bivalente no entanto, o princípio do terceiro excluído não vale nessa lógica. Por outro lado, numa lógica booleana, onde o conjunto dos valores lógicos coincide com os elementos de uma álgebra de Boole completa, satisfaz o princípio do terceiro excluído muito embora a quantidade de valores lógicos disponíveis possa ser infinito não se tratando, por isso, de uma lógica bivalente (em geral). De resto, este mesmo fragmento introduz uma ambiguidade insustentável na definição do termo proposição. Por um lado define proposição como uma expressão susceptível de ser verdadeira ou falsa. Por outro, quando menciona o princípio do terceiro excluído (erradamente como se argumentou acima), estabelece que só são proposições aquelas a que se atribui um valor lógico. Ora, existe uma diferença fundamental entre potencialmente poder receber um valor lógico e efectivamente recebê-lo. De certa forma, não se consideram como proposições os enunciados dos problemas em aberto, mas apenas daqueles que entretanto se demonstraram ou se refutaram. Caderno do 10.0 Ano É apesar de tudo no Caderno de Apoio, 10.0 Ano que os autores exibem melhor a forma distorcida como encaram estes assuntos. É contristado que reconheço nesta abordagem algo que seria suposto estar erradicado de uma augusta instituição como deve ser a Universidade. Dos seus membros esperava eu, um sentido ético irrepreensível, uma modéstia racional própria dos que muito sabem e por isso, conhecem melhor que os outros o que não sabem. Em suma, uma atitude de adesão incondicional à racionalidade e total repúdio pelo charlatanismo. Não conheço a quase generalidade dos autores destes textos, tenho por todos o mais alto respeito pessoal, dos poucos que conheço, tinha (e quero continuar a ter) respeito intelectual, prefiro por isso crer que esta coisa é fruto de um processo pouco reflectido, eventualmente dum esforço de ser conforme aos requisitos do dono da obra. Mas saibam os senhores autores que obraram mal. 2 Página 3 Veja-se, por exemplo, o que se afirma na página 3, «O ‹abuso de linguagem› consiste em substituir uma afirmação acerca de proposições formais, entendidas como objetos matemáticos que pretendem modelar aspetos do nosso discurso (no quadro de uma teoria matemática designada por Lógica Formal) ou seja, uma afirmação em linguagem corrente acerca de determinados objetos matemáticos, por um desses objetos, porque neste caso esse objeto-proposição é interpretado intuitivamente como uma «afirmação» do nosso discurso; por outras palavras: mistura-se linguagem matemática, neste caso interna à teoria da lógica formal, com ‹meta-linguagem›.» Convém dizer que a lógica formal não é uma teoria matemática. (Como o não é a álgebra abstracta.) Trata-se de um meio para descrever teorias matemáticas, mas não é uma teoria em si mesmo. Os autores, que no documento congénere das Metas do Ensino Básico, já tinham feito um trabalho deplorável descrevendo a noção de teoria matemática tinham a obrigação de se lembrar que uma teoria matemática pressupõe uma axiomatização. Ora não pode haver uma axiomatização da lógica formal, na medida em que nesta classificação cabem coisas tão diversas como a lógica de primeira ordem, a lógica de segunda ordem, a lógica modal, as diferentes lógicas infinitárias, etc. A necessidade da lógica formal tem origem em dois aspectos: em primeiro lugar, o estudo sistemático de teorias matemáticas; em segundo, a necessidade de irradicar certos paradoxos semânticos associados à riqueza expressiva da meta-linguagem, associados à noção de propriedade. Desta forma, a lógica formal promove uma clara distinção entre a linguagem e a metalinguagem (os paradoxos semânticos decorrem da ausência desta distinção) e, se certas noções informais se podem traduzir formalmente isso deve-se a um processo de formalização e não a nenhum tipo de mistura entre a linguagem e a metalinguagem. Mais adiante, num texto que supostamente deve servir de orientação aos professores fala-se acerca da implicação nos termos que transcrevo abaixo, «No caso da implicação, a caracterização é uma vez mais muito simples, pois uma implicação só é falsa se o antecedente for verdadeiro e o consequente falso. Assim, afirmar a veracidade de uma implicação significa que a situação anterior não pode ter lugar, ou seja, que se o antecedente for verdadeiro o consequente também tem de o ser. Afirmações deste tipo também têm um papel crucial em Matemática, o que evidencia a utilidade da abreviatura proposta, ou seja, usar a própria implicação, sem mais, para, integrada em determinado discurso, indicar a respetiva veracidade. Tratase, de novo, de um abuso de linguagem no sentido já referido.» É no mínimo anedótico que os autores se contentem em caracterizar a implicação através de uma mera reafirmação do conteúdo da tabela de verdade correspondente. Só a quem nunca leccionou este tipo de assunto é permitido imaginar que a tabela de verdade da implicação é um assunto pacífico. (Nunca o é, felizmente, diria eu.) Não há nada de óbvio em considerar como verdadeira uma asserção do tipo eu tenho cinco metros de altura logo sou uma laranja. 3 Acontece que duas das linhas da tabela da implicação resultam de uma opção e de uma convenção que é útil tornar clara para os alunos. Atrevo-me a avançar com uma justificação que os autores poderão adoptar ou não mas que, assim o julgo, os convencerá de que uma justificação é possível e é necessária. Uma implicação traduz, de certo modo, uma relação análoga a uma relação de causalidade, ou seja, tal como entendemos esse tipo de relação, deve ser verdadeira quando observando-se o antecedente, se observa sempre o consequente. Não existe, por isso, qualquer problema com as duas primeiras linhas da tabela da implicação, i.e. 𝖵 ⇒ 𝖵 é verdade enquanto que 𝖵 ⇒ 𝖥 é falsa. De acordo com esta interpretação, quando o antecedente da implicação é falso, a relação não pode ser objectivamente testada. Face a esta situação restam duas hipóteses, ou se deixa a tabela incompleta ou a completamos de certo modo (convencional). Opta-se pela segunda hipótese de modo a possuir um cálculo definido em todas as circunstâncias. Temos quatro possibilidades de completar a tabela: q p p⇒q 𝖵 𝖵 𝖵 𝖵 𝖥 𝖥 𝖥 𝖵 𝖥 𝖥 𝖥 𝖥 q p p⇒q 𝖵 𝖵 𝖵 𝖵 𝖥 𝖥 𝖥 𝖵 𝖥 𝖥 𝖥 𝖵 q p p⇒q 𝖵 𝖵 𝖵 𝖵 𝖥 𝖥 𝖥 𝖵 𝖵 𝖥 𝖥 𝖥 q p p⇒q 𝖵 𝖵 𝖵 𝖵 𝖥 𝖥 𝖥 𝖵 𝖵 𝖥 𝖥 𝖵 O quadro da esquerda deve ser rejeitado pois se o adoptássemos estaríamos a identificar de um ponto de vista semântico a implicação com a conjunção o que é, claramente, inadequado. Quanto à terceira tabela (a contar da esquerda) ela revela-se igualmente inadequada visto que se a adoptarmos então a relação p ⇒ q depende apenas de p, ou seja p implica q seria, do ponto de vista semântico, o mesmo que p. Finalmente, a segunda tabela a contar da esquerda, deve ser rejeitada pois, em qualquer caso, torna p ⇒ q equivalente a q ⇒ p o que não corresponde à nossa intuição acerca da relação de implicação. Página 4 Já na página 4 somos confrontados com excertos de conteúdo no mínimo incompreensível: «Em alguns textos introdutórios de Lógica associa-se a cada condição p(x) um ‹universo› que constitui o domínio de variação admitido para a variável x. Optou-se aqui por começar por considerar condições sem domínio de variação pré-estabelecido, o que permite fundamentar a Teoria dos Conjuntos (e portanto a própria Matemática) numa Lógica de condições sem que seja necessário partir de conjuntos (‹universos›) a priori, isto é, de conjuntos que não sejam definidos por condições. Ainda assim, como é natural a este nível elementar, não se chega nesta introdução ao ponto de apresentar uma axiomática propriamente dita para a Teoria dos Conjuntos nem se 4 explora sistematicamente uma das possíveis vias para os Fundamentos da Matemática. Bastariam aos autores breves momentos de reflexão sobre a preciosidade supracitada para verificarem a sua ausência de sentido. Se formalizamos a teoria de conjuntos sem sequer supor que existe um universo de conjuntos então: o que é a Matemática? Um discurso acerca de entidades não-existentes? É verdade que a questão não é simples e evidentemente envolve um certo compromisso filosófico. Mas a teoria de conjuntos seria um nada sem esse compromisso. De resto, não existe nenhuma necessidade de supor que o universo de conjuntos é um desses objectos que a própria teoria descreve, i.e. não existe nenhum imperativo racional que nos leve a considerar que todas as colecções são conjuntos (isso seria até inconsistente). Já a expressão lógica de condições não tem correspondência em nada que se estude em Lógica Matemática. Por outro lado, nenhuma lógica permite, por si só fundamentar uma teoria matemática. Permitirá descrevê-la, na medida em que permite formular os seus axiomas mas, fundamentar é outra coisa . . . . Os autores parecem ainda defender a ideia segundo a qual os conjuntos são extensões de predicados, ou seja são da forma, {x ∣ q(x)}. Se assim for, isto contraria totalmente o espírito da teoria de conjuntos enquanto sistema fundacional, tal como é entendida actualmente. Adiante, revela-se pouco cuidado na utilização do conceito de definibilidade, «Por exemplo, a condição ¬x = x, negação da condição x = x, permite definir o chamado conjunto vazio (⋯)» Obviamente é preciso algum cuidado adicional nesta explicação. Em primeiro lugar, uma fórmula φ(x) define um objecto se esse objecto é o único que possui a propriedade descrita por φ. No contexto particular da teoria de conjuntos existe uma outra forma de entender a expressão φ define o conjunto A, o que acontece quando A = {x ∣ φ(x)}. Já agora, no contexto da lógica de primeira ordem (subentende-se que é aquela que está em causa) a palavra termo só tem relevância quando a linguagem possui constantes e símbolos para operações. No caso da linguagem da teoria de conjuntos, a palavra termo adquire um uso de certo modo impróprio e reserva-se para as construções do tipo {x ∣ φ(x)} onde φ é uma fórmula. Retomando a citação anterior, a fórmula x ≠ x só define o conjunto vazio no segundo sentido, i.e. ∅ = {x ∣ x ≠ x}.1 Fazem bem os autores em notar que nem todas as colecções podem ser conjuntos (pena que não tivessem tido isso mesmo em conta quando se detiveram em considerações acerca de não falar de um universo de conjuntos). Mas, apesar da boa intenção, revelam pouca atenção à História da Matemática: «Um exemplo famoso é a condição x ∉ x, que dá origem ao chamado «Paradoxo de Russell», enunciado por Bertrand Russell no início do século XX e que pôs em causa os fundamentos apresentados por Gottlob Frege para a Teoria dos Conjuntos; (⋯)» 1 Mais como nota marginal: não se percebe onde foram os autores buscar inspiração para escrever quantificadores universais seguidos de uma vírgula e quantificadores existenciais seguidos de dois pontos. A forma correcta de escrever é (∀x)p(x) ou ∀xp(x) e (∃x)p(x) ou ∃xp(x). 5 Em primeiro lugar não existe a Teoria dos Conjuntos. Existem concepções da noção de conjunto que distintas teorias tentam capturar. Se hoje se fala na Teoria de Conjuntos, como se houvesse apenas uma, isso deve-se ao facto de uma das concepções a concepção iterativa se ter tornado dominante e geralmente aceite como sistema fundacional. Contudo, Gottlob Frege não apresentou fundamentos para esta teoria de conjuntos. A concepção fregeana de conjunto corresponde àquilo que Gödel descreveu como uma concepção lógica, i.e. um conjunto resulta da divisão do universo em duas partes—aquela constituída pelos objectos que satisfazem um dado predicado e aquela constituída por aqueles que não o satisfazem. Pode até debater-se se o sistema de Frege é uma teoria de conjuntos no sentido convencional do termo—trata-se de uma teoria de segunda ordem com objectos e predicados onde apenas alguns objectos são conjuntos, visto tratarem-se de extensões de predicados. O próprio Frege nunca ambicionou formalizar uma teoria de conjuntos, e esta noção só surge indirectamente através da noção de extensão, para que ele pudesse descrever a noção de número. É verdade que o exemplo citado exibe a inconsistência do sistema de Frege, mas sabe-se que quando Russell enviou, em 1903, a carta a Frege, contendo este paradoxo, ele já tinha construído este mesmo argumento no contexto da teoria de conjuntos de Cantor (essa sim uma teoria de conjuntos), dois anos antes, pelo menos. Assim, o paradoxo de Russell, foi originalmente dirigido contra a teoria de Cantor e não contra a teoria de Frege que, por sua vez, não pretendia ser (e, de certo ponto de vista, não era) uma teoria de conjuntos. Conclusão Não tenho, como já o disse, nenhuma esperança de ver estes textos modificados substancialmente. Escrevi estas considerações com o propósito de descarregar uma obrigação ética. O futuro há-de sê-lo, apesar de tudo, mas sê-lo-ia pior se havendo registo de se ter produzido uma tal prosa, não houvesse registo de alguém a ter contestado. António Marques Fernandes Dep. de Matemática Instituto Superior Técnico 6