O estatuto ético do zigoto humano: terá direito à vida? Pergunta: Terá o zigoto humano direito à vida? Resposta: o Se a resposta for SIM, então o zigoto humano merece a mesma protecção legal que reconhecemos a qualquer ser humano nado vivo, ou seja, o direito à vida deve ser reconhecido desde a fertilização (surgimento do zigoto) até à morte natural; o Se a resposta for NÃO, então deve existir um momento, durante a maturação intrauterina do ser humano, no qual se dá uma mudança substancial que faz surgir uma pessoa com direito à vida. Definições prévias: 1. Zigoto (ou zigócito): célula inicial diplóide (com 46 cromossomas: 23 pares homólogos) que representa um novo organismo vivo produzido através da reprodução sexual, pela união de dois gâmetas haplóides (cada qual com 23 cromossomas); o zigoto é uma célula totipotente (capaz de dar origem a todas as células diferenciadas de um organismo); 2. Humano: para este efeito, considera-se que a presença de genoma humano (23 pares de cromossomas característicos da espécie Homo Sapiens) define de forma unívoca que determinado material biológico é humano; 3. Vida: não há definições fechadas, mas há várias formas de definir algo como uma forma de “vida” dependendo do ponto de vista: Bioquímico: apresenta metabolismo1, homeostase (capacidade de um sistema aberto manter e regular o seu estado interno); Físico: possui movimento próprio; Teoria dos Sistemas: apresenta uma rede mais ou menos complexa de mecanismos de auto-regulação (com “feedback” negativo) orientados para objectivos como o crescimento e a reprodução e que se adaptam a estímulos externos; Darwiniano: sistema auto-sustentado capaz de evoluir (como espécie). Das definições prévias, decorre que o zigoto que resulta da fertilização do óvulo pelo espermatozóide é uma forma de vida humana, ou melhor, um ser humano, pois: 1. Está vivo (cumpre os requisitos atrás indicados) 2. É humano (possui a totalidade dos cromossomas representativos do genoma da espécie Homo Sapiens) 3. Além disso, é um ser individual, ou seja, não faz parte do organismo de outros seres2, pois tem o seu próprio organismo; por ser uma célula totipotente, o zigoto é capaz de gerar todas as células diferenciadas características da sua espécie. Mesmo assim, o zigoto, mesmo sendo um ser humano, poderia não ter direito à vida. Por isso, importa passar agora à discussão ética acerca do eventual direito à vida do zigoto. 1 Por não possuírem metabolismo, os vírus são considerados como não sendo formas de vida. Mesmo necessitando do ambiente protector e nutritivo da mãe, o zigoto nunca vai precisar de material genético adicional da mãe para se desenvolver, pois o seu genoma fica determinado aquando da fertilização. Enquanto que todas as células da mãe têm o genoma característico da mãe, as células do zigoto, ao longo de toda a sua vida, terão sempre o mesmo genoma do zigoto, diferente do da mãe e do do pai, pois o genoma do zigoto é uma recombinação única dos genomas do óvulo materno e do espermatozóide paterno. Adicionalmente, o zigoto não desempenha nenhum papel fisiológico no corpo da mãe, pelo que não pode ser considerado como uma parte, ou um órgão, do corpo da mãe. 2 Bernardo Sanchez da Motta – Junho de 2010 1 O estatuto ético do zigoto humano: terá direito à vida? O problema ético do direito à vida dos seres humanos Em traços gerais, os que consideram que os fetos humanos têm direito à vida usam um silogismo formulado deste modo: (1) Todos os seres humanos têm direito à vida (2) Os fetos são seres humanos (3) Logo, os fetos têm direito à vida Para o caso do zigoto, e porque atrás vimos que o zigoto já é um ser humano, pode-se reescrever o silogismo desta forma: (1) Todos os seres humanos têm direito à vida (2) Os zigotos são seres humanos (3) Logo, os zigotos têm direito à vida Como já vimos atrás que, por razões científicas, a premissa (2) está certa, só resta resolver a premissa (1), que é uma premissa filosófica e, por isso, a mais difícil e polémica… Se a premissa (1) for verdadeira, então como a (2) é verdadeira, a (3) também o será. A esmagadora maioria dos que defendem que se pode destruir um zigoto, um embrião, ou mesmo um feto, contestam a premissa (1)3. Eles acham que a premissa (1) não é verdadeira. Eles acham que há alguma ou algumas características que quando presentes garantem o direito à vida, e que quando ausentes não garantem esse direito. Alguns exemplos dessas características são a presença de actividade no córtex cerebral, a consciência de si mesmo, a auto-determinação ou o uso da razão. Os defensores desta posição, negando o direito à vida ao zigoto, ao embrião ou ao feto, pretendem que estas formas de vida humana (que eles reconhecem como tal) não são “pessoas”, no sentido de “ser humano com direito à vida”. Como garantir a verdade da premissa (1)? o Pela positiva, defendendo-a: A vida humana é um processo contínuo, desde a fertilização (constituição do zigoto) até à morte, pelo que não há qualquer tipo de mudança substancial no ser humano durante esse processo: ele desenvolve-se, cresce, mas não vê alterada a sua substância, a sua essência humana, o que ele é na sua essência (ser vivo individual da espécie Homo Sapiens); na fertilização, há uma disrupção clara, que marca o início da vida humana4, e que pode ser estabelecida em “sentido fraco”, quando a fusão dos gâmetas (singamia) marca o seu fim enquanto gâmetas, ou uns instantes mais tarde, em “sentido forte”, quando se dá o início do metabolismo e da respiração celular do zigoto; a partir de então, o processo que dá pelo nome de “vida humana” é contínuo até à morte; O zigoto, enquanto ser vivo humano, tem o direito à vida, pois tem direito ao seu futuro5: visto que um zigoto, entregue ao seu crescimento, sem que este seja 3 Há uma argumentação a favor do direito ao aborto que aceita as premissas (1) e (2) e que considera este silogismo como verdadeiro, e a conclusão (3) como verdadeira, mas considera que o direito à vida do zigoto, embrião o feto devem submeter-se a outros direitos, nomeadamente ao direito de a mulher grávida poder decidir se quer ou não alojar e sustentar um ser vivo no seu útero. Judith Jarvis Thomson é a histórica proponente e defensora deste argumento. O argumento é inconsistente, pois todo o direito natural e legal (civil) deve apoiar-se no direito primordial à vida: para se usufruir de certos direitos secundários, tem que se ter o direito a viver. O direito a viver é o primeiro e o mais elementar dos direitos, e sobrepõe-se a todo e qualquer outro direito legítimo. 4 Os gâmetas não são um ser humano nem têm direito à vida: deixados entregues a si mesmos, não dão origem a nova vida. Do mesmo modo, uma qualquer célula do nosso corpo, mesmo tendo o genoma da espécie “Homo Sapiens”, não tem direito à vida pois tal célula não é totipotente, não constituindo um ser vivo individual da nossa espécie. 5 Tese do filósofo norte-americano Donald Marquis, 1989. Ver MARQUIS, Donald, “Why abortion is immoral”, The Journal of Philosophy, 86, 4, 1989, pp. 183-202. Bernardo Sanchez da Motta – Junho de 2010 2 O estatuto ético do zigoto humano: terá direito à vida? interrompido ou inviabilizado por causas externas, cresce e desenvolve-se até ao ponto de ter consciência, auto-determinação, uso da razão e tudo o mais que define uma existência humana completa, então não é justo privar o zigoto desse futuro: ele tem direito a esse futuro6; o Pela negativa, refutando a sua negação: Se a premissa (1) é falsa, então conclui-se que há seres humanos com direito à vida e seres humanos sem esse direito fundamental; pode-se então falar em “seres humanos de primeira categoria” e “seres humanos de segunda categoria”; sobretudo após a terrível experiência da Segunda Guerra Mundial, e dos programas racistas do Terceiro Reich, este conceito causa repulsa a qualquer defensor dos direitos humanos; Se a premissa (1) é falsa, então há um momento em que o ser humano adquire o direito à vida; como há várias propostas para esse momento, umas mais precoces (por exemplo: actividade no córtex cerebral), outras mais tardias (por exemplo, a auto-determinação ou o uso da razão), é caso para se dizer que não há consenso, mesmo nos defensores do direito ao aborto, acerca do momento em que se ganha o direito à vida: por prudência, para evitar o crime de destruir seres humanos com direito à vida, devia-se optar pela posição mais segura: a fertilização; Para mais, o direito à vida não seria garantido por aquilo que se é, mas sim por aquilo que se é capaz de fazer, e coerentemente, isto levar-nos-ia a permitir que se matem pessoas desprovidas daquilo que consideramos essencial para o direito à vida: se o essencial é ter actividade no córtex cerebral, podemos matar quem não a tem, se o essencial é ter consciência, podemos matar as pessoas sem consciência (desmaiadas, por exemplo, ou em coma), se o essencial é usar da razão, poderíamos matar quem não fosse capaz de a usar (pessoas dementes, por exemplo), e assim por diante; Se a premissa (1) é falsa, então há um momento em que o ser humano adquire o direito à vida; ora isso implica que, a dada fase do seu desenvolvimento intra-uterino, o ser humano passa por uma mudança substancial, que lhe confere um novo estatuto ético; qual é a base científica para essa mudança substancial, visto que o desenvolvimento intrauterino é um processo contínuo (ver atrás)? Conclusão? Como todos estamos de acordo em que todo o ser humano adulto tem direito à vida, é preciso olhar para as propriedades importantes que foram invocadas como essenciais na definição de um ser humano completo (consciência, racionalidade e auto-determinação) e perguntar: de onde vêm? Aparecem por magia? Elas decorrem do desenvolvimento embrionário de um zigoto humano. Têm origem, e já estão presentes, no zigoto humano. Logo, o zigoto humano tem, em si mesmo, tudo o que é essencial a um ser humano. Se, no zigoto, ainda não está actualizada uma actividade cerebral consciente, racional e auto-determinada, pois o cérebro ainda não está formado, essa actividade não vai surgir do nada, como que por milagre, ou ser adicionada a partir do exterior, pois o cérebro também não surge do nada, como que por milagre, ou adicionado a partir do exterior: o surgimento desse órgão decorre do desenvolvimento natural do zigoto. Logo, tais propriedades fundamentais do ser humano já estão latentes no zigoto humano. A actualização de tais propriedades, a dada altura do desenvolvimento humano, seria impossível se elas não estivessem latentes desde o início, a não ser que surgissem milagrosamente do nada7, ou que fossem adicionadas posteriormente a partir do exterior do zigoto8. Logo, o zigoto humano é tão ser humano como nós, adultos, e portanto tem direito à vida. 6 A morte natural não é uma violação deste direito, pois estamos a falar de um direito a viver sem que essa vida seja interrompida por outros seres humanos (aborto), e não de um absoluto direito a viver a todo o custo, escapando mesmo a todas as causas naturais da morte. 7 É de duvidar que os defensores da negação do direito à vida do zigoto concordem com explicações milagrosas. 8 Claramente, não são. Bernardo Sanchez da Motta – Junho de 2010 3