conversa clara

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CONVERSA CLARA
Textos selecionados por leitores entre as colunas que Deonísio da Silva*
publica no Jornal do Brasil e no Jornal da Estácio, dentro do projeto
"língua portuguesa: a menina-dos-olhos da Estácio".
TEMAS:
1. PRESENÇA DO LATIM NO PORTUGUÊS
2. ROMANCES INDISPENSÁVEIS
3. O PORTUGUÊS DAS PROFISSÕES
4. DICAS PARA ESCREVER MELHOR
5. LULA E MACHADO DE ASSIS
6. NOVILÍNGUA NA MÍDIA
Português assassinado a tecladas
*Doutor em Letras pela USP, escritor e professor da Estácio, onde dirige o Curso de
Comunicação Social.
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1. PRESENÇA DO LATIM NO PORTUGUÊS
Diz-se que o latim é língua morta. Na internet, encontramos um sítio ou “saite”, em
latim. É o “Situs interretialis fautoribus Passionis, illa Productio Icon a Mel Gibson
confecta” (Sítio ou “saite” dos fãs do filme "A PAIXAO DE JESUS CRISTO" da Icon
Production, de Mel Gibson).
O latim morreu? Depende do ponto de vista. Um dos melhores exemplos são as
encíclicas. Foi o papa Bento 14 quem, em 1840, cunhou a expressão littera
encyclica, carta circular, depois reduzida a encíclica apenas. Designa documento
que periodicamente o Sumo Pontífice envia a toda a cristandade. É publicado
primeiramente em latim e depois em muitas outras línguas. Em caso de dúvida nas
traduções, recorre-se ao original latino. Sua influência sobre a sociedade e a cultura
dispensa comentários.
Várias outras palavras e expressões latinas são transcritas literalmente no português
e invocadas com freqüência, pois integram o arsenal de nossas referências. A priori,
presente
em
tantos
textos,
designa
conhecimento
admitido
previamente,
dispensando a experiência. Surgiu na Idade Média e servia aos filósofos para eximilos de justificar certas afirmações, de que é exemplo a admissão de que nosso
intelecto aceita certas categorias previamente, como o tempo e o espaço. Seu
contrário é a posteriori, que identifica argumentos, provas, raciocínios e
demonstrações que, a partir de fatos, leve a conclusões gerais e se baseiam na
experiência.
Outro exemplo é apud, invocado como principalmente nas citações bibliográficas.
Apud quer dizer junto a. Significa que o autor encontrou apoio em outro texto e dele
extraiu seu argumento.
O crítico literário Fábio Lucas narra episódio que envolve escrivão de cartório muito
cioso de seus conhecimentos em latim, ainda que precários. Um advogado
apressado chega ao fórum e pede um processo. O escrivão demora a encontrá-lo. O
advogado identifica a pasta no meio de uma torre de papel e começa a puxá-la. É
interrompido pelo escrivão: “a fortiori, não”. A expressão latina significa que
determinado argumento é ainda mais forte que os já referidos. O escrivão entendeu
que era apenas “à força”.
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Idem, o mesmo, e ibidem, no mesmo lugar que têm o fim de evitar repetições, são
outros exemplos. Com eles brincou o Barão de Itararé, imaginando tabela de preço
num açougue em que a carne custava um tanto; a carne com osso aparecia como
“idem, com osso”, seguida de “ibidem, sem idem”, designando, certamente em
insólito eufemismo, apenas o osso.
Ipsis litteris e ipsis verbis também aparecem com freqüência, principalmente em
textos jurídicos. São invocadas para reforçar a argumentação com as “mesmas
letras” ou as “mesmas palavras” utilizadas por outros autores. Também ad hoc (para
isto) é expressão muito utilizada.
O professor Cláudio Moreno explica que a preposição e o pronome latinos podem
ser usados “para criticar uma regra ou uma solução que tenha sido criada
especificamente para resolver um problema que não se consegue enfrentar com um
determinado princípio ou teoria”. E dá o seguinte exemplo: "O governo está
cometendo o equívoco de tentar deter o défice comercial com uma medida ad hoc,
que só pode ser temporária e não vai resolver o problema". O professor
aportuguesou outra palavra latina de largo uso no português: deficit, terceira pessoa
do singular do presente do indicativo do verbo deficere, faltar. Seu contrário é
superavit, que os dicionários registram com acento: superávit. No latim é a terceira
pessoa do singular do pretérito-perfeito, significando “superou”.
Ipso facto (pelo mesmo fato), o latim não é língua morta, quod erat demonstrandum
(o que era preciso demonstrar).
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2. ROMANCES INDISPENSÁVEIS
“A diferença entre o jornalismo e a literatura é que o jornalismo é ilegível e a
literatura não é lida”, escreveu o polêmico escritor irlandês Oscar Fingal O’Flahertie
Wills, mais conhecido como Oscar Wilde.
Faz tempo que a imprensa e a literatura, por ínvios caminhos, contrariam este dito
irreverente. Há alguns anos, a revista Época, então dirigida por Augusto Nunes,
chamou a atenção do leitor para os grandes romances dos séculos XIX e XX,
destacando 19 deles.
Da reportagem surgiu uma lista de 55 narrativas, nascidas da consulta a quatro
professores-doutores pátrios e ao crítico literário americano Harold Bloom. Foi
ousadia editorial extraordinária, um verdadeiro oásis no areal de denúncias de
corrupção e tragédias brasileiras, tão freqüentes numa imprensa que espelha o
Brasil.
Numa seleção mundial de futebol são vários os imortais brasileiros com presença
garantida. Tivemos nossa idade de ouro, quando pontificavam, em quase todas as
posições, mais gênios, “oxigênios” sem sobrenome, como Pelé, Garrincha, Didi,
Zico, Romário. Mas onde estão nossos romancistas imortais?
Talvez tenha faltado aos consultores o instinto de nacionalidade literária que sobra
em Harold Bloom. Numa lista de dez romances, ele encontrou seis de língua inglesa.
Os nossos consultores, fazendo cada um deles uma lista de vinte romances,
encontraram na literatura de língua portuguesa apenas dois romancistas, com
exceção de Massaud Moisés, professor aposentado da USP, que acrescentou Eça
de Queirós a Machado de Assis e a Guimarães Rosa.
Além do mais, a lista é de nutricionistas. E o leitor é antes de tudo um gourmet.
Harold Bloom já mudou seus critérios e faz questão de destacar o gosto como
categoria relevante no cânone. Muitos nutricionistas detestam Ulisses, mas se
curvam à onda acadêmica que endeusou esse romance. O gourmet não tem dúvida:
Joyce não é convocado, a menos que fique na reserva com Retrato do artista
quando jovem.
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Outra pequena estranheza é ver que nenhum deles citou José Saramago. Nem
Levantado do Chão, nem Memorial do Convento. Foram rigorosos com as nossas
letras e com a América Latina e complacentes com a Europa, ainda que submissos
a outras listas, de que são exemplos as ausências dos italianos Giovanni Verga,
Luigi Pirandello e Tomasi di Lampedusa, da francesa Marguerite Yourcenar e do
alemão Günther Grass. Da nossa América foram esquecidos todos, menos o
colombiano Gabriel García Márquez, lembrado por um deles apenas.
Não tomaram conhecimento de nutritivos e saborosos romances, como os Alejo
Carpentier e Mário Vargas Llosa, especialmente por O século das luzes e O recurso
do método, do primeiro, e A festa do bode e Pantaleão e as visitadoras, do segundo.
Outros esquecidos do resto do mundo foram o judeu Elias Canetti e o árabe Nagib
Mahfuz, especialmente por Auto de Fé e O palácio do desejo.
A tríade autor-obra-público leva-nos a discutir também o gosto que, à semelhança
da beleza, tem certos universais. Assim, se Balzac e Stendhal merecem ser
convocados, o que falta a Erico Verissimo, especialmente em O tempo e o vento?
Está entre os maiores escritores brasileiros do século XX. Mas parece que nem o
atestado de óbito, sempre exigido nesses casos, foi passaporte suficiente para ser
canonizado. Talvez se complicasse a vida do leitor, como faz Guimarães Rosa,
fizesse por merecer o panteão.
O Instituto da Palavra quer saber quais são para você, leitor, os escritores brasileiros
de sua preferência. Por favor, escreva para nós, manifestando sua opinião pelos
endereços
eletrônicos
[email protected],
[email protected]
ou
[email protected] .
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3. O PORTUGUÊS DAS PROFISSÕES
O domínio da norma culta da língua portuguesa é requisito indispensável para
qualquer profissão, mas em algumas atividades os deslizes prejudicam mais do que
em outras.
Vários profissionais têm reunido casos antológicos de falhas graves ou pequenos
desacertos de colegas, mantendo anonimato da autoria, pois o propósito de tais
coletâneas é corrigir os erros e evitar sua repetição, sem tripudiar sobre quem os
cometeu.
Há grande diferença entre erro e deslize, em português, como em direito e em
medicina. Uma coisa é errar o tempo e a conjugação de um verbo, a colocação de
um pronome ou de um advérbio. Outra, bem diferente, é levar alguém à prisão ou à
morte por tal incompetência.
Já ouvi que em nossas leis, que se dividem entre as que “pegam” e as que “não
pegam”, os verbos estão no futuro e este nunca chega: “o Estado promoverá, na
forma da lei, a defesa do consumidor”, diz o artigo XXXII de nossa Constituição.
Quando? Vale para os serviços 0800 e para as companhias telefônicas e provedores
de Internet? O cidadão quer saber!
Quer dizer, há deslizes também na Carta Magna. Mas o que é um deslize? Veio de
deslizar, verbo de provável origem onomatopaica, isto é, do som ou ruído (“lizzz”)
que alguma coisa produz ao escorregar suavemente sobre outra. São freqüentes os
deslizes de língua portuguesa no exercício das profissões, mas, embora não pareça,
poucos são tão rigorosos consigo mesmos como os advogados. Ainda que
diplomado em centros de excelência, nenhum deles pode exercer a profissão, se
não for aprovado em exames nacionais aplicados pela Ordem dos Advogados do
Brasil (OAB).
Como já são proverbiais algumas besteiras proferidas em documentos judiciários –
mais abundantes em petições do que em sentenças, por razões óbvias - algumas
publicações, dirigidas por advogados, tentam corrigir a situação, como é o caso da
revista Redação Jurídica, publicada em Niterói com apoio da OAB.
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No número treze, traz curioso artigo de Davi da Silva Sá, que reúne sob o título
Folclore Jurídico trechos extraídos do mundo judiciário. Eis alguns exemplos:
“Xingavam a todos com palavras de baixo escalão”. “Encontramos a vítima caída ao
solo, aparentando ter cometido um homicídio contra si mesmo”. “Constava um objeto
apreendido: duas latas de cera Odd e uma lata de cera ppO”. Os redatores, nos dois
primeiros casos, confundiram baixo calão, equivalente a palavras vulgares, com
“baixo escalão”, e suicídio com homicídio. No terceiro caso, o redator pensou que
uma das duas latas de cera, que ele referiu como “um objeto”, fosse de marca
diferente. Não era. Estava apenas de cabeça para baixo. A lata, não o redator.
Nascido do latim, o português guarda em seu vocabulário “pensamentos recônditos,
intenções torcidas, ódios secretos”, como diz Machado de Assis em Várias Histórias.
Certa vez o signatário, buscando entrevistar um juiz, recebeu convite para assistir a
uma audiência. Um dos querelantes -- palavra que veio do latim querella, queixa,
amparada na forma verbal queror, gritar – usava toda hora o verbo judiar com o
significado de maltratar. E o juiz era judeu! Em resumo, ofendia sem querer as
ancestralidades da etnia, sem racismo nenhum, apenas por descuido. Cometia, pois,
um deslize em sua argumentação.
Significados ocultos podem, entretanto, ser rastreados se pesquisarmos a viagem
que as palavras fizeram até chegar ao português. Nem todos os significados são
explícitos, alguns estão ocultos no seio dos vocábulos. São seios que não usam
sutiãs, como os seios da face (expressão corrente em medicina), o seio da família e
o seio da liberdade, este último definido como cidadela de resistência no Hino
Nacional: “em teu seio, ó liberdade, desafia o nosso peito a própria morte”.
De todo o exposto, ex positis, concluímos: os profissionais precisam estudar
português! E talvez um pouco de latim também, quod erat demonstrandum!
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4. DICAS PARA ESCREVER MELHOR
Em todas as oficinas de redação, há sempre uma pergunta que se repete. O que
fazer para escrever melhor?
A questão é cheia de sutis complexidades, mas em resumo o ato de escrever
semelha o de falar. Foi ouvindo que aprendemos a falar. Uma vez alfabetizados, foi
lendo que aprendemos a escrever. Quem lê, escreve melhor. Como aprendemos a
falar? Ouvindo nossa mãe, irmãos, avós, outros parentes, vizinhos, amigos etc.
Como aprendemos a escrever? Lendo os autores que demonstraram saber
escrever.
Mas como vai escrever bem quem desconhece as normas da língua culta? Assim
como um advogado não pode exercer a profissão ignorando as leis, também quem
escreve não pode ignorar a gramática, que é a constituição da língua portuguesa:
um conjunto de leis, normas e acordos (incluindo o ortográfico).
Muitas normas foram fixadas arbitrariamente. Para outras regras, porém, houve
consenso, pois, à semelhança das leis, também a língua-padrão adapta-se
constantemente a novos usos e costumes. Ou, na bela síntese de Millôr Fernandes:
“Ontem, ontem tinha agá, hoje não tem. Hoje ontem tinha agá e hoje, como ontem,
também tem”.
Entretanto, dizer e escrever, embora atos assemelhados, guardam complexas
diferenças. Se você falar sozinho, será dado por louco. Mas o que é um diário, se
não o ato de falar sozinho?
Quem escreve, usa outra voz, mas fala! Gosto da metáfora, presente nos
comentários que aludem a autores e livros: “Fulano diz isso no livro tal”. O leitor
afirma que o autor diz algo, mas ele não falou, escreveu!
A fala pressupõe um falante e um ouvinte. Mesmo em comícios, homilias e aulas, a
fala não é dirigida a todos. Isto é aparência. E as aparências enganam. O político
nos comícios, o padre na igreja e o professor na sala de aula falam a cada um dos
ouvintes, é a soma que dá uma fala para todos, é o conjunto que faz o milagre da
comunicação. Por isso, quando escrever ou der aula, imagine um leitor ou um aluno
apenas. E todos o entenderão.
Bons exemplos de tal diálogo entre quem escreve e quem lê, encontramos na
coleção 1000 Perguntas, iniciativa de grande sucesso editorial, agora reeditada pela
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Estácio e Editora Rio. Pergunta e resposta constituem minirredação sobre um tema.
Segundo o fundador de nossa universidade, João Uchôa Cavalcanti Netto, “esta
coleção espelha com fidelidade a pedagogia da ESTÁCIO”, cujas raízes são
encontradas no método preferido por Sócrates para ensinar.
O filósofo considerava o professor um parteiro, do grego maieutikós, profissão que
os antigos romanos denominavam, obstetrix, de onde veio obstetra, parteiro, palavra
que tem a mesma raiz de obstáculo. Em resumo, obstetra e professor (e autor)
fazem coisas semelhantes: afastam obstáculos para que a criança e o saber
nasçam.
No livro Jornalismo, do professor Felipe Pena, Doutor em Literatura, a pergunta 123
trata de grandes reportagens que se tornaram clássicos literários, de que são
exemplos Os Sertões, de Euclides da Cunha, e Memórias do Cárcere, de Graciliano
Ramos. E a 147 revela uma descoberta curiosa do mundo das palavras, feita pelo
escritor, tradutor e jornalista Eric Nepomuceno: “o pesquisador constatou que 147
palavras diferentes foram suficientes para 2/3 do JN e registrou que apenas três
verbos (ser, estar e ter) responderam por 27,3% do total de utilização dessa classe
de palavras no mesmo jornal. No TJ Brasil, a pesquisa não foi muito diferente: os
números foram respectivamente 21,6 e 26,6%”.
Para redigir no dia-a-dia, o uso da língua escrita é um; para escrever literatura, é
outro. Mas escreve melhor aquele que tem uma dieta de leitura compatível com o
ofício que pratica, entretanto com uma exceção: os especialistas estão ficando muito
ignorantes por evitarem a leitura de obras fundamentais, às vezes existentes antes
de surgir o ofício que praticam, de cuja leitura às vezes nasceu o próprio ofício. Karl
Marx, por exemplo, para se fazer entender, usa com freqüência citações literárias.
Que economista brasileiro faz isso hoje? E ele estava explicando O Capital, não a
inflação ou a taxa de juros do mês passado! Sócrates e Jesus falavam e ensinavam
a ignorantes lavradores e pescadores, mas também a ilustrados cidadãos. Os temas
eram complexos, eles falavam de filosofia e teologia, mas todos os entendiam, de
cobradores de impostos a doutores da Lei. O poeta gaúcho Mário Quintana resumia
assim a relação de autores e leitores: “quando o leitor não entende o que o autor
escreveu, um dos dois é burro”. Millôr Fernandes foi mais radical “Ás vezes você
está discutindo com um imbecil... e ele também”.
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Os leitores devem e podem entender o que escrevem médicos, advogados,
engenheiros etc. Quando autores, esses profissionais devem levar em conta, se
quiserem ser entendidos e compreendidos, que a língua portuguesa é uma só! A
especialidade que praticam não precede a língua. Muito ao contrário, não existiria
sem ela! Com efeito, são médicos, advogados e engenheiros no Brasil, onde o
idioma oficial é o português! Se são professores, então, daí mesmo é que devem
escrever de modo a que os leitores os entendam!
Nossa imprensa consagra palavras e expressões vazias, tudo porque fazem muita
falta leitura e gramática. Assim, nossos parlamentares falam em “urgência
urgentíssima” e “políticas públicas”, como se houvesse os seus contrários: urgência
vagarosa e políticas privadas. Ora, a urgência requer pressa e qualquer ação política
objetiva a coisa pública, o bem comum. Além do mais, o adjetivo “urgentíssima” está
no grau superlativo absoluto sintético. É mais do que suficiente!
Estas foram algumas dicas para escrever melhor. A palavra “dica” é redução do
verbo “dicar”, do latim vulgar “dicare”, variante do latim culto “dicere”, dizer. Tem a
mesma raiz de “indicar”. Um dos dedos da mão, muito utilizado em casa, na escola,
na rua etc, é o indicador, que serve para ajudar a dizer. Na fala e na escrita. Esta
coluna não quer fazer mais do que isso: apontar caminhos que nos ajudem a ler e
escrever melhor. Afinal, a língua portuguesa é a menina-dos-olhos da ESTÁCIO.
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5. LULA E MACHADO DE ASSIS
Em 2002, Lula, então em campanha para a presidência da República, irritou-se com
perguntas sobre sua escolaridade. Estava na Bahia, participando de um palanque
eletrônico, em rede de 20 emissoras de rádio que abrangem 350 dos 417 municípios
baianos.
Um ouvinte disse que rejeitava Lula por ele não ter freqüentado a universidade. Em
resposta, o candidato à Presidência da República pelo PT comparou-se a Machado
de Assis: ''Muitos brasileiros confundem inteligência com escolaridade. A essas
pessoas quero dizer que Machado de Assis nunca freqüentou a universidade. Nem
por isso deixou de ser um dos maiores escritores da língua portuguesa de todos os
tempos.'' Acrescentou: ''Não vou governar livros, não vou governar estatísticas, eu
vou governar crianças, eu vou governar gente como você.''
Machado de Assis era preto, pobre, gago, epiléptico, órfão, casou-se com uma
solteirona e não teve filhos. A vida oferecia-lhe um placar adverso: 7 x 0. Sete eram
os preconceitos vigentes contra ele naquela sociedade que escravizava os negros,
prezava a retórica, ainda que vazia, e considerava certas doenças, como as
nervosas, castigos que os descendentes pagavam por pecados cometidos por seus
ancestrais.
Por último, nas várias brumas que cobrem sua biografia, diz-se que Carolina casouse com ele porque tinha comido a merenda antes do recreio, em Portugal. Por
castigo, os parentes a teriam trazido para o Brasil. Por pirraça, ela teria se
aproximado de um mulato. Mas daí surgiu o amor, que tudo mudou nas duas
existências. Ser estéril era outro castigo, mas tudo indica que foi opção dos dois não
terem filhos. Como evitaram, é segredo que levaram para o túmulo. A Igreja não
gosta de casais sem filhos. A função essencial do casamento é procriar, diz a
doutrina. A missão essencial da mulher é ser mãe, dizem biólogos e antropólogos. E
à falta deles, a natureza.
Lula enfrentava um placar adverso em sua vida. Tinha todo o direito de comparar-se
a Machado de Assis. Ambos têm origens humildes, ambos deixaram a pobreza pela
via do trabalho e do talento combinados. Tal aliança é quase sempre indestrutível. É
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difícil vencer o talentoso que trabalha. Machado deixou a pobreza para tornar-se, no
mínimo, um grande escritor. Para quase todos, é o maior que já tivemos.
À semelhança do presidente Lula, Machado de Assis foi vítima de intolerância e
demagogia. No governo Floriano Peixoto, em abril de 1894, o jornalista Diocleciano
Mártir publicou uma lista de ''maus patrícios e hipócritas monarquistas, pagos
fartamente pelos cofres da nação para dizerem mal de si próprios e cavarem a ruína
da Pátria''. Machado de Assis estava nessa lista. Era uma calúnia infame, como são
todas as calúnias.
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6. NOVILÍNGUA NA MÍDIA
Português assassinado a tecladas
Na era dos insensatos, eis que surge mais um besteirol, a que os apressados de
sempre já deram até nome: idioma cibernético.
Recapitulemos, pois a memória não é o forte de nosso povo. O rádio parecia
dispensar a alfabetização. Tudo poderia ser ensinado exclusivamente pela fala. A
década de 1920 prometia resolver o grande impasse: para que ensinar a ler e a
escrever? Bastava usufruir dos benefícios do Marquês de Pombal, que nem sequer
era citado, pois em país católico como o nosso, como reconhecer mérito a estadista
que expulsara daqui os jesuítas, professores de nossas primeiras escolas? Mas foi
ele o principal responsável por termos uma língua que cobre todo o território
nacional, ensejando-nos avisar o distinto público que dia tal haverá vacina.
Depois veio a televisão. Daí, sim, era a pá de cal. As verbas para o ensino deveriam
ser diminuídas ainda mais, pois era possível aprender e ensinar pela televisão. Os
governos deveriam investir em televisão, como de fato o fizeram, e não em escolas!
E no auge da hegemonia da televisão, veio outro Plano Marshall. O sociólogo
canadense Herbert Marshall McLuhan, falecido em 1981, aos 70 anos, celebrizou-se
ao anunciar o fim do livro. Que meio usou para divulgar a sua profecia? Um livro!
Para quê?
A conquista seguinte foi a internet. A Humanidade encheu-se de navegadores nos
mares da rede mundial, invento tecnológico concebido para o caso de uma guerra
nuclear, então uma ameaça ainda mais aterradora do que podemos supor. Cessada
a Guerra Fria, porém, virou brinquedinho e instrumento dos que podem ter acesso a
uma linha telefônica e a um provedor, mais ou menos 10% da Humanidade.
O último que passou na escalada foi o telefone celular, que, como sabemos, ainda é
usado também para falar, mas essa função primordial foi rebaixada: celular é para
tirar fotos, gravar conversar e, principalmente, enviar torpedos. Em resumo, nunca
as pessoas escreveram tanto!
Surgiu, porém, um problema. O carro estava diante dos bois. Os pequenos
burgueses tinham internet e celular, mas não dominavam a língua escrita. E por isso
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criaram a deles. Nada espantoso. Também os habitantes das periferias não
dominam a norma culta da língua e criam suas gírias, devidamente circunscritas a
cada grupo de usuários. Assim, dois traficantes conversam num bar carioca e o
policial ao lado não sabe de que estão falando, o que estão combinando.
Mas eis que, abruptamente, irrompeu nas legendas da rede Telecine, nas TVs a
cabo Net e Sky, o Cyber Movie, em que as legendas dos filmes são escritas na
mesma pobreza vocabular e desarrumação comum aos ágrafos que se beneficiaram
das novas tecnologias.
Para eles, vale o que todo mundo vê na televisão: a tecnologia vai bem – alta
definição de cores, som estereofônico, cenários exemplares etc – tudo muito bonito,
mas para quê? Para aqueles programas? A tecnologia andou bem e rapidamente. A
escrita ficou para trás, pois a escola foi abandonada.
Glossário mínimo
O que não se pode entender é que respeitados intelectuais considerem normal o
que está ocorrendo: equivale a ir ao médico, este constatar disfunção em órgão
essencial e diagnosticar: ah, está indo ao banheiro mais vezes do que deveria?
Altere seu cronograma diário e adapte-se às novas exigências de seu organismo,
que acaba de entrar na era pós-moderna, a era do vale-tudo. Agora, as visitas ao
banheiro serão de hora em hora.
Pois na dita linguagem cibernética a língua portuguesa está sofrendo de diarréia e
tenesmo ao mesmo tempo. Ora o jovem diz demais e confusamente, economizando
em letras, mas se perdendo em prolixias, ora está preso ao reduzido universo
vocabular que o vitima principalmente na escola. Como aprender um texto
sofisticado, se professores e livros, por melhores que sejam, não conseguem
contato com repolhos e alfaces ali matriculados?
Falemos a verdade aos jovens, eles gostam da conversa clara. Com o glossário
presente nas mensagens instantâneas do ICQ, do Messenger e dos torpedos, não é
possível pensar. Somente a dispensa de vírgulas e pontos já levaria ao caos a
comunicação, fim principal que os usuários querem atingir. E se se restringirem à
linguagem cibernética perderão via de acesso indispensável ao êxito no trabalho, no
amor, na vida: a capacidade de entender e de serem entendidos.
Não bastasse o conceito equivocado do novo idioma, perguntemos: o que se
economiza – a economia é a regra básica da elegância, e por motivos de beleza e
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saúde, os jovens vivem fazendo regime – com a substituição de "não é brincadeira"
por "Ñ eh brincadeira"? "De jeito nenhum" por "Djeito nenhum"? "Não vou correr com
vocês" por "Ñ vou correr c/ vcs?"?
O glossário mínimo do novo idioma abrevia hora com "hr". Mas por quê, se já temos
"h"? "Onde" virou "ond". "Novidade" virou "9idade".
O preço da exclusão
O sintoma: falhamos em tudo na educação dos jovens, vitimados por tantas
carências, como vemos todos os dias. Comecemos a reconhecer que sequer lhes
transmitimos a língua que herdamos de nossos pais e professores num tempo em
que a família e a escola tinham mais atenção.
A norma culta da língua portuguesa não tem mais quem a defenda nem em
legendas de filmes na televisão! A confusão é geral. E a escola deu, por atos,
palavras e omissões, grande contribuição ao atual descalabro de que o idioma
cibernético é um dos mais óbvios sintomas.
Demos telefones celulares também aos pobres, que podem comprá-los bem
baratinhos e em suaves prestações no crediário. Não lhes demos o direito de
comprar livros com tamanhas facilidades. Para exemplificar: se os livros fossem
alardeados e promovidos como são celulares e computadores, o idioma cibernético
não teria lugar.
Ainda hoje é muito fácil comprar um automóvel ou um bicho de estimação. Vá o
prezado leitor comprar um trator ou uma vaca leiteira, para ver como será atendido
no crediário. É quase uma irresponsabilidade tratar de assunto tão complexo em tão
poucas linhas. Mas o contexto é este: os sem-terra e os sem-livro habitam o mesmo
Brasil. Fora da Galáxia Gutenberg, todo mundo será marginal e como tal será
tratado.
Assim como a gíria não livra os meninos pobres dos seculares males sociais, o
idioma cibernético não os livrará da marginalidade em que vivem, da falsa cultura
em que se movem, da pobreza vocabular que os leva a esses terríveis insucessos
numa simples redação de vestibular.
Nós lhes negamos o código, a chave da porta de entrada. E eles é que estão
pagando o preço da exclusão. Que pelo menos nós, os letrados, não nos
desculpemos com auto-indulgências que não nos ajudam a compreendê-los, apenas
nos eximem de responsabilidades.
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