dádiva e o utilitarismo na cena cultural – Alexandre

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V SEMINÁRIO INTERNACIONAL – POLÍTICAS CULTURAIS – 7 a 9 de maio/2014.
Setor de Políticas Culturais – Fundação Casa de Rui Barbosa – Rio de Janeiro – Brasil
TEATRO DAS MEMÓRIAS:
DÁDIVA E UTILITARISMO NA CENA CULTURAL
Alexandre Fernandes Corrêa1
RESUMO: Reflexão sobre a preservação dos patrimônios culturais e das memórias sociais na
atualidade. Análise crítica das políticas do patrimônio cultural e natural na sociedade
brasileira contemporânea, através de aproximações teóricas com outras disciplinas, numa
perspectiva transdisciplinar. O ponto crítico da abordagem recairá sobre as possibilidades
heurísticas da teoria da dádiva desenvolvida por Marcel Mauss.
PALAVRAS-CHAVE: Memória Social – Patrimônio Cultural – Antropologia
O presente texto2 é o resultado de reflexões realizadas a partir de trabalho de campo
elaborado no centro urbano antigo da cidade de São Luís do Maranhão, tombada pelo IPHAN
(1974) e inscrita na lista do Patrimônio Cultural da UNESCO (1997). Esse é o espaço social
empírico privilegiado, todavia observações feitas em outras cidades e centros urbanos antigos
do país, como Recife, São Paulo e Rio de Janeiro, serviram de base comparativa alargando o
alcance da interpretação sugerida.
No ambiente de trabalho de pesquisa e extensão universitária, além do ensino teórico,
temos produzido uma espécie de escavação ‘arqueológica’ dos processos de conservação,
preservação e promoção sociocultural dos acervos arquitetônicos e históricos em sítios
urbanos inscritos no Livro do Tombo do IPHAN. A partir dos anos de 1990, e logo após a
defesa da tese de doutorado (2001), intensificamos a prospecção dos valores e dos sentidos da
patrimonialização
nesses
espaços
sociais
hoje
tão
concorridos.
Investimentos
socioeconômicos de larga monta já foram alocados nessas áreas urbanas, ultrapassando fases
cíclicas de abandono, recuperadas através de diversos programas de parceria público/privado:
Monumenta/BID, PRODETUR, PAC-Cidades Históricas/2010, entre outros.
Nossas reflexões, portanto, refletem os embates e enfrentamentos teóricos e práticos
ocorridos nesses espaços sociais cada vez mais disputados na sociedade contemporânea:
teatros da memória e do patrimônio da atualidade. Para reconhecer o campo empírico e
desenvolver estudos adequados sobre a realidade local, nos movimentamos no sentido de
1
Professor Associado em Antropologia da Universidade Federal do Maranhão - Redistribuição Universidade
Federal do Rio de Janeiro Campus/Macaé. Doutorado em Ciências Sociais (PUC/SP). Pós-Docs Antropologia
(UFRJ-2006 e UERJ-2010). Coordenador do CRISOL: Grupo de Pesquisas em Estudos Culturais. E.mail:
[email protected]
2
Diferentes versões desse texto foram apresentados nos seguintes eventos: Encontro Nacional do Grupo de
Trabalho Patrimônios e Museus da ABA, realizado entre os dias 25 e 28 de maio de 2010, na cidade de Recife;
SIMPÓSIO ESPECIAL 7: Em Torno da Defesa do Patrimônio Cultural, ocorrido na 27ª Reunião Brasileira de
Antropologia, realizada entre os dias 01 e 04 de agosto de 2010, Belém, Pará, Brasil. Texto publicado: Dádiva e
utilitarismo nas políticas culturais (Corrêa, 2011).
1
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estudar a história e a geografia dessa regiões e cidades. Seguimos a reflexão teórica
problematizando os conceitos que serviam de base: nação, região, etnia, cultura, gênero, etc.
Conceitos canônicos que em alguns momentos tornaram-se verdadeiros obstáculos
epistemológicos.
Com o tempo da elaboração reflexiva, e superado o momento romântico – fonte
inspiradora inicial dos trabalhos com os estudantes e com a comunidade – diversos embates e
conflitos políticos começaram a emergir no espaço social pesquisado. Esse texto é um dos
resultados do trabalho crítico que foi preciso realizar.
A articulação entre a crítica dos conceitos e a elaboração política resultou, entretanto,
na complexificação do processo investigatório, para além do academismo e das pretensões
universitárias. O pesquisador se viu aí numa encruzilhada não prevista, repercutindo nos
textos, nas avaliações e revisões, que resultaram em diversas comunicações, palestras e
reflexões sobre esse assunto (Corrêa, 2013). Esse breve artigo não poderia deixar de refletir
esse processo de transformação.
Como foi adiantado, o espaço social do patrimônio está hoje repleto de interesses
diversos e divergentes, espelhando e refletindo as ações dos diferentes agentes em embate e
em confronto. A riqueza desse cenário se tornou muito estimulante. Aos interesses
econômicos avançados, somam-se interesses ingênuos e românticos, atravessados por
subjetividades contaminadas e abaladas pelos fluxos da globalização e da mundialização; num
processo de aceleração vertiginosa testemunhado vivamente3. Nostalgia e romantismo
misturam-se aos interesses econômicos sofisticados e complexos, que fogem ao
esclarecimento dos agentes presos ao cotidiano de suas ações. Só um olhar crítico, clínico e
distanciado poderia atingir significados mais profundos. Contudo, o olhar crítico, clínico e
distanciado, causa todo tipo de desconforto, tanto no pesquisador, como nos pesquisados e
nos agentes institucionais da ação patrimonial. Desconforto que produz a escusa da reflexão,
em nome de uma suposta urgência e emergência de ações de salvaguarda – merecedoras de
avaliação avançada no mérito e no valor, antes de serem implementadas sem qualquer rigor
teórico, crítico ou científico. É o reino dos corações bem intencionados e atraídos pelo
passado, dos iluminados e encantados pela boa ação sagrada e sacralizada pela missão de
salvar o passado a todo custo.
3
Colocando a ‘subjetividade’ numa perspectiva transdisciplinar, cito a percepção do psicanalista Paulo Sternick
sobre o momento atual: “essa subjetividade recebe o influxo da ideologia neoliberal, fruto do hipercapitalismo
globalizado, que explodiu as amarras da cultura moderna, enfraqueceu os limites e detonou a rede de valores,
regulamentos e instituições até então vigentes” Qual psicanálise para as crises financeiras?, Revista
Inteligência (2010, p.78). Disponível: http://www.insightnet.com.br/inteligencia/49/PDFs/06.pdf
2
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Tal estado de coisas, e de ânimo, lamentavelmente difundido ideologicamente por uma
retórica narcísica e auto-ilusória, cria obstáculos epistemológicos abismais, entre a reflexão
teórica necessária e a pressa de salvaguardar acervos e bens ‘forjados’4 a ‘toque de caixa’;
‘inventados’ para aplacar a angústia irrefletida do luto antecipado pela suposta perda de
signos identitários e simbólicos. Há um consenso pré-estabelecido de que se deve salvar tudo
a todo custo; o que paradoxalmente só vem ativar e promover, agora numa velocidade sem
precedentes, a destruição e solapamento dos bens e acervos que estão correndo os riscos reais
e iminentes de desaparecimento.
Nossa hipótese heterodoxa é essa: contaminados por excessos na dramaticidade da
suposta destruição implacável do passado, agora romantizado e sacralizado, corações e
mentes preservacionistas, sem realizar a reflexão crítica necessária – presos à emergência de
sua ação missionária – não percebem que sua própria ‘ação’, acrítica e irrefletida, é o próprio
agente da destruição e erosão cultural que acusam. Entretanto, nos cabe tentar responder:
como ‘isso’ pode se dar?
É o momento de começarmos o trabalho mais difícil, isto é, analisar e criticar o
consenso e a precessão da simulação da preservação (Baudrillard, 1991, 1996). Encena-se a
pretendida ‘preservação’ em práticas e rituais controlados e premeditados pelos agentes da
‘preservação’. A retórica poderosa da ‘perda do passado’, pela intensificação das
transformações sociais e econômicas vistas a olho nu; ajudam a promover e a intensificar uma
vertigem transtornante de mudança a todo instante. Uma equação silogística se estabelece: a)
nossa sociedade é a da mudança, b) o passado é testemunho do que fomos; c) logo, deve ser
preservado, pois é a ‘prova’/documento ainda viva/o de que não somos mais aqueles que
fomos. A pratica discursiva que nos domina parte do enunciado: somos modernos! E para
sustentar essa posição precisamos das provas concretas e visíveis de que somos modernos.
Os poderes estabelecidos logo promovem a produção intensificada das provas, e
providencialmente teatralizadas, com a criação de parques temáticos do admirável mundo
novo do passado (Huxley, 1932): os ‘sítios históricos’ nos centros urbanos antigos. Para nós,
tais efeitos têm um sentido metafórico próximo ao efeito do trompe l’oeil5! Como se sabe,
esses sítios tornaram-se locais privilegiados de investimentos vultosos de agências de
hotelaria e turismo; além de empreiteiras de restauração civil. Há, então, uma combinação
4
Termo recorrente em dissertações, teses e discursos dos agentes de ação patrimonial e cultural.
Trompe-l'oeil é uma técnica artística que, com truques de perspectiva, cria uma ilusão óptica que mostre
objetos ou formas que não existem realmente. Provém de uma expressão em língua francesa que significa
engana
o
olho
e
é
usada
principalmente
em pintura
ou
arquitetura.
Disponível:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Trompe-l'oeil
5
3
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contraditória
de
interesses
aparentemente
antagônicos;
os
dos
pesquisadores
e
preservacionistas de um lado (aparente-ilusório) [pólo romântico]; e de outro os agentes das
indústrias hoteleiras, turísticas e dos seus respectivos bancos de investimento [pólo
capitalístico]. Temos, numa equação simples, a consagração da chamada ‘privatização da
cultura’6.
As implicações dessa constatação são múltiplas, mas considerando tempo-espaço,
vamos escolher um tema específico que sintetiza como um ‘fato social total’ (MAUSS, 2007)
o processo multideterminado de fatores implicados nesses espaços sociais; objetos de
patrimonialização ativa e constante, nas últimas décadas. E o foco dessa análise será o nosso
olhar sobre a cultura popular e o folclore7, disputados nas cenas e arenas dos teatros da
memória e do patrimônio na atualidade.
Através do clássico texto de Marcel Mauss, Ensaio sobre a Dádiva [1925 (2007)],
tentaremos fazer um exercício crítico a luz de suas contribuições reflexivas e morais; contidas
nesse texto fundador: ao encontro das ‘rochas’ mais profundas dos assuntos humanos8. A
partir dessa referência canônica nos aproximaremos de autores contemporâneos que também
seguem essa perspectiva teórica, na crítica ao utilitarismo economicista dominante nas
práticas culturais e artísticas. Nesse trabalho crítico vamos testar o alcance da nossa hipótese
heterodoxa, exposta mais acima.
Entre nossas preocupações mais inquietantes está a ascensão de um modo específico
de imposição da lógica mercantil, no espaço social do patrimônio cultural e do artesanato
popular e tradicional. Trata-se da submissão à idéia de que é preciso ‘modernizar’ as práticas
de produção cultural e artística, para que elas assim possam, depois de moldadas por essa
lógica do mercado, entrar na ordem do consumo. O interessante é observar a difusão da
6
Como lembra Paulo Sternick: “Foucault (2008) observa que no neoliberalismo (...) há uma generalização
ilimitada da ‘forma econômica do mercado’, que provoca efeitos em todo corpo social, para além do econômico”
(idem, 2010, p. 79).
77
Um paralelo interessante pode ser feito com o que está ocorrendo entre os agentes e técnicos das secretarias de
agricultura da região amazônica, estudadas por Manuela Carneiro da Cunha e apresentada na Conferência de
abertura da 27ª RBA de Belém. Do mesmo modo como ocorre com os agentes de cultura, os técnicos agrícolas
tentam impor uma ‘modernização’ racionalizadora das práticas e conhecimentos ‘tradicionais’, solapando o
alcance verdadeiramente ‘preservacionista’ de políticas de salvaguarda que respeitassem as singularidades
culturais.
8
«Il s’inscrit en cela dans les traces d’un anthropologue qui s’appelait Marcel Mauss (…) qui est resté célèbre
pour un essai qu’il a écrit en 1923-24 et qui s’intitule l’Essai sur le don. Autrement dit, le don est anti-utilitaire:
la relation donatiste s’institue contre l’intérêt, ce qui ne signifie pas que des intérêts ne soient pas en jeux. Le don
est une relation cruciale pour Mauss [et le MAUSS], car le don est le « roc » des affaires humaines, comme le dit
Mauss : c’est par lui – la triple obligation de donner, recevoir et rendre - que nous transformons nos ennemis en
amis, tissons des alliances durables, et qu’une histoire commune peut commencer à s’écrire, pour le meilleur ou
pour le pire!» Sylvain Dzimira, Une vision du paradigme du don: Don, juste milieu et prudence. Acesso
16/07/2010. Disponível: http://www.revuedumauss.com.fr/media/Paradigmedudon.pdf. Informações sobre o
Movimento MAUUS, na Internet: http://www.jornaldomauss.org/periodico/
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crença de que essa é uma necessidade inevitável e inexorável, devendo ser seguida pelos
agentes culturais e patrimoniais, qual seja: condição sine qua non para entrar no ‘mercado
cultural’ avançado, promissor e próspero. Essa ideologia poderosa se sustenta na idéia
conformista de que estamos no estágio do capitalismo em que a virada cultural (Jameson,
2001, 2006) triunfou, significando a necessária adequação dos produtores e criadores de arte e
cultura a essa ‘nova lógica’9. Isso é reificado sem reflexão crítica e analítica. É paradoxal
vermos agentes de cultura e do patrimônio defendendo que para as formas de cultura e arte
popular, ou tradicional, sobreviverem, é preciso que se adéqüem a essa lógica modernizadora;
sob pena de ver desaparecer aquele signo do passado em perigo: que só pode ‘sobreviver’ se
se ‘modernizar’. Trata-se de uma ameaça com requintes de extorso, restando como única
saída a aceitação e a submissão a essa lógica; ou a morte. Há um consenso perigoso e
poderoso nesse processo. Acusam quem não compartilha dessa concepção apocalíptica, de
‘puristas’ e ‘inocentes’!
Essa é a natureza de nossa inquietação. Ao assumir como inevitável e de nodo acrítico a ‘nova cultura’ do ‘novo capitalismo’ (Sennet, 2008), tanto no plano da produção
material econômico-social, como no plano moral e subjetivo, os agentes culturais e
patrimoniais (‘pós-modernos’10) se esquecem que o que define sua prática de salvaguarda é
exatamente o fato de que esses bens culturais denotam e significam uma outra forma de
pensar a ‘produção cultural’, artística popular e tradicional. Esse ‘outro’, passa ser negado
duas vezes – primeiro na prática de rejeição pela ordem cultural burguesa historicamente
dominante; segundo, pelos agentes culturais e patrimoniais atuais, seduzidos por aquela
‘nova’ ideologia. Entrementes, encontramo-nos agora numa encruzilhada ou armadilha
incontornável11.
9
Até uma ou duas décadas atrás, o sistema produção-natureza (a relação produtiva exploratória do homem com a
natureza e com seus recursos) era percebido como uma constante, enquanto todos tratavam de imaginar
diferentes formas de organização social da produção e do comércio (o fascismo ou o comunismo, como
alternativas ao capitalismo liberal); hoje, como assinalou Fredric Jameson com muita perspicácia ninguém mais
considera seriamente as possíveis alternativas ao capitalismo, enquanto a imaginação popular é assombrada pelas
visões do futuro «colapso da natureza», da eliminação de toda a vida sobre a Terra. Parece mais fácil imaginar o
‘fim do mundo’ que uma mudança muito mais modesta no modo de produção, como se o capitalismo liberal
fosse o ‘real’ que de algum modo sobreviverá, mesmo na eventualidade de uma catástrofe ecológica global...
(Zizek, 1996, p. 7).
10
Pós-modernos na insistência em que se referem a um processo particular de re-significação dos bens e acervos
tradicionais. Noção de re-significação que só pode ser entendida como um tipo pseudo-sofisticado de
interpelação da ideologia. Afinal, o que presenciamos, e testemunhamos, de fato não é uma re-significação, mas
um novo significado, isto é, um novo produto cultural para consumo.
11
Mas, qual é afinal essa ‘nova cultura’ do capitalismo, nas palavras de Richard Sennet, é aquela que exige:
“Uma individualidade voltada para o curto prazo, preocupada com as habilidades potenciais e disposta a abrir
mão das experiências passadas (...)” (2008, p. 14). Em suma, o que a cultura popular tradicional ou arcaica não é
e não tem a oferecer. Eis o paradoxo da ‘modernização’ da cultura para o mercado: empreendedorismo fora de
lugar.
5
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O que consideramos ainda mais grave é o fato de testemunharmos o solapamento de
uma reflexão relativizadora e crítica patrocinada e forçada pelas agências de fomento estatal e
privado, interessados no bem econômico ‘cultural e artístico’. Ao abandonar os textos críticos
e a herança cultural da Sociologia, da Antropologia e dos Estudos Culturais, em nome de um
vale tudo pós-moderno, os agentes de cultura e patrimônio se entregam a um pseudorelativismo conformista (Castoriadis, 2004).
Na verdade, o apagamento da herança científica na prática dos agentes culturais e
patrimoniais – testemunhável e perceptível através de análises de entrevistas, de documentos,
de textos e de discursos – revela uma crise profunda da ‘cientificidade’. Nosso trabalho agora
tem duas dimensões, ou seja, além de recuperar a ‘alteridade’ solapada por práticas
supostamente auto-intituladas de "salvaguarda patrimonial", reabilitar o legado cultural da
própria Ciência Social.
Nesse caminho, retomaremos um texto seminal da cultura antropológica que, apesar
de muito cultuado ritualmente no meio acadêmico, paradoxalmente é pouco usado para a
reflexão crítica. Trata-se da já referida obra prima de Marcel Mauss (2007), O Ensaio sobre a
Dádiva de 1925; prestes a completar 100 anos de existência. Vamos retomá-lo sob um prisma
que causa vertigens na ordem subjetiva dominante, qual seja, o de suas lições morais12.
Parece-nos que essa obra é lida de forma ritual e iniciatória, como um ‘rito de passagem’, mas
pouco compreendida no seu plano moral e ético13. Daí essa falta de reflexão crítica profunda
acerca das relações de troca, reciprocidade e dádiva, ainda existentes e persistentes na cultural
popular e tradicional; mas que são ‘denegadas’14 nas pesquisas ditas ‘etnográficas’. Sob a
lógica cultural atual esses valores e bens se vêm em risco iminente de desaparecimento,
porém agora estranhamente sob as mãos dos próprios agentes que afirmam de coração
implementarem a boa causa da salvaguarda dos valores culturais15.
12
Seguimos na direção dos trabalhos de A. Caillé (1994, 2000), quando defende que: «La pensée maussienne du
don se place sous le signe de l’association et de la dissociation, au sens où il envisage les termes opposés (par
nous autres Modernes bien souvent de manière dichotomique) du don dans leurs relations dialectiques» (S.
Dzimira, op. cit., ver nota 4).
13
Nesse momento cito trecho do início da Parte I da Conclusão, designada de Conclusões de Moral: “Uma parte
considerável de nossa moral e de nossa própria vida permanece estacionada nessa mesma atmosfera em que
dádiva, obrigação e liberdade se misturam. Felizmente, nem tudo ainda é classificado exclusivamente em termos
de compra e de venda. As coisas possuem ainda um valor sentimental além de seu valor venal, se é que há
valores que sejam apenas desse gênero. Não temos apenas um moral de comerciantes. Restam-nos pessoas e
classes que guardam ainda os costumes de outrora, e quase todos dobram-nos a eles, pelo menos em certas
épocas do ano ou em determinadas ocasiões (MAUSS, 1974, p. 163).
14
"A estratégia defensiva contra o que escapa ao controle racional é da ordem da 'denegação', conceito freudiano
que indica a aceitação de algo na consciência para depois ser recusado". Paulo Sternick (Idem, 2010, p.83).
15
Tema que se aprofunda aqui: “O novo espírito do capitalismo”, diz Dufour (2005), “persegue um ideal de
fluidez, de transparência, de circulação e renovação que não se pode conciliar com o peso histórico desses
valores culturais. Nesse sentido, o adjetivo ‘liberal’ designa a condição de um homem ‘liberado’ de toda a
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No entanto, ainda é preciso dizer algumas palavras sobre a questão tão badalada da
‘diversidade cultural’ em voga. Nesse momento usaremos como recurso didático um
‘raciocínio por tipo extremo’16, para dramatizar e caricaturar, chamando a atenção para os
problemas que a política cultural na atualidade nos coloca no domínio da conservação,
preservação e, principalmente, da promoção cultural.
Como já foi adiantado, desenvolvemos há alguns anos o Projeto de Pesquisa e de Ação
Cultural, designado Teatro das Memórias17, em logradouros como a Comunidade de ItaquiBacanga (Vila Maranhão) e no Centro Histórico (Desterro) de São Luís do Maranhão.
Tentaremos fazer, a partir desse campo empírico, uma reflexão sobre a formação dos olhares
sobre as singularidades culturais plurais – numa região tão rica em diversidade cultural e
natural (biocultural), que hoje está sob crescente ameaça. De nossas experiências com a
extensão universitária e a ação cultural na área do patrimônio cultural e da memória social
(Corrêa, 2006), compreendemos algumas dificuldades que apareciam na formulação das
prioridades do trabalho científico e político. Foi nesse caminho de tentar revelar o que estava
subjacente a estas dificuldades no diálogo e na compreensão entre atores sociais de origens
sociais diferentes, que surgiram as preocupações que gostaríamos de compartilhar. Contudo,
não temos respostas para todos os problemas que vamos levantar – mas, colocar os problemas
de forma adequada e pertinente, é melhor do que ficar fixado na idéia de encontrar uma
solução imediata ou miraculosa (Canclini, 2003). Nesse domínio, uma reflexão científica
prolongada é necessária – a despeito de vivermos numa época ansiosa por soluções fáceis e
imediatas e com fobia em pensar e refletir de modo organizado, crítico e reflexivo. Nessa
linha, perguntamos: em função das demandas pelo registro do patrimônio cultural atual, quais
são as formações subjetivas dos “registradores” da cultura popular? Nós, pesquisadores,
professores, indivíduos formados na classe média e com visão universitária e formados em
padrões culturais diferenciados, temos condições de ser sensíveis as diversas coordenadas
temporais e espaciais dos diversos tipos culturais dos brasileiros? Quais são as bases
epistemológicas da formação de nosso olhar sobre a cultura popular? De que maneira
ligação a valores. Tudo o que remete à esfera transcendente dos princípios e dos ideais, não sendo conversível
em mercadorias e em serviços, se vê doravante desacreditado. Os valores (morais) não têm valor
(mercadológico). Por não valerem nada, sua sobrevivência não se justifica mais num universo que se tornou
integralmente mercantil. Além do mais, eles constituem uma possibilidade de resistência à propaganda
publicitária, que exige, para ser plenamente eficaz, um espírito ‘livre’ de todo aprisionamento cultural.” (apud,
STERNICK, 2010, p. 79).
16
Como escreveu José Carlos Rodrigues: “tomar algumas tendências constatáveis nos dados da pesquisa ou na
elaboração teórica e levar estas tendências até as últimas conseqüências lógicas” (RODRIGUES, 1992, p. 103).
17
Mais informações Grupo de Pesquisas em Estudos Culturais CRISOL: http://gpeculturais.blogspot.com/
7
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evitaremos que nossos sistemas de valores e concepções de mundo, acabem por se impor aos
‘outros’ que nós estudamos e pretendemos ‘preservar’ na sua diferença?18
São perguntas que instigam, agregando-se a outras, tais como: quem somos nós? Que
tipo de consumidores passivos de bens culturais, que não produzem ‘cultura’ e não são
membros de grupos culturais e artísticos populares? Formados num olhar de espectador de
TV e Cinema, muitas vezes deslumbrados e encantados com a cultura popular (‘exotismo’);
reflexo de uma vida oposta ao mundo das manifestações artísticas populares? Pessoas
essencialmente condicionadas pelo sistema de valores e de representações que nos formaram.
Então, que marcas indeléveis deixam em nós essa nossa origem sociocultural? Que marcas e
traços de subjetividade deixam na formação de nosso olhar sobre a alteridade cultural? Essas
perguntas conduzem a reflexão sobre o que é que estamos “registrando” ou “preservando” na
cultura popular atual. É preciso um exame criterioso sobre essas práticas. Pois, é sob a
influência dessas condicionantes que formamos um olhar sobre as outras formações culturais
e subjetivas.
Entramos, enfim, no ponto crítico crucial do texto, defendendo um princípio
heterodoxo: não convém impor uma lógica mercadológica às formações culturais que não
visam o ‘lucro’19; sob pena de vê-las sucumbir, erodidas por uma lógica que lhes é estranha.
Essas manifestações são ‘anti-lucro’. Como se diz: são “brincadeiras”; portanto, não são
“produtos”. Essa é a diferença fundamental entre “lazer” e “brincadeira”. A “brincadeira” tem
um valor cultural extraordinário, tem uma raiz cultural profunda: uma verdadeira herança
cultural humana ancestral20. “Lazer” e “Brincadeira” são conceitos sociológicos distintos, que
foram criados em formações culturais distintas (Morin, 1969).
A Antropologia oferece diversos instrumentos e ferramentas para a compreensão da
cultura popular. Lévi-Strauss no livro Antropologia Estrutural I coloca em destaque o que
designou Missões Próprias da Antropologia21. Nesse texto, intitulado O lugar da
antropologia nas ciências sociais e problemas colocados por seu ensino (UNESCO-1954),
18
Como escreveu Lévi-Strauss: "A exclusiva fatalidade, a única tara que pode afligir um grupo humano e
impedí-lo de realizar plenamente a sua natureza, é estar só." Raça e História. 1951.
19
Já que em nossa sociedade impera a ilusão fetichista: “Eis a mágica do liberalismo: o efeito final da busca
egoísta do lucro seria presumidamente o benefício de todos”. Paulo Sternick (Idem, 2010, p.79).
20
Uma das ‘rochas’ das civilizações humanas, como escreveu Eric Sabourin, no texto Marcel Mauss: da dádiva
è questão da reciprocidade: “considero uma contribuição primordial de Mauss não apenas a qualificação da
dádiva como forma de relação social e de transação econômica, mas, sobretudo, a universalidade da tríplice
obrigação ‘dar, receber e retribuir’ que permite hoje entender o princípio de reciprocidade como essa “rocha”,
matriz das relações e das civilizações humanas” (2008, p. 137). Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol. 23
nº. 66. Fevereiro/2008. Disponível: http://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v23n66/08.pdf
21
Missões Próprias da Antropologia: Objetividade, Totalidade, Significação e o Critério da Autenticidade
(STRAUSS, 1975, p. 404-10).
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estabeleceu que a tarefa do antropólogo é “reconhecer e isolar níveis de autenticidade” (1975,
p. 408-9). Diante dessa missão categórica, definida há décadas, e cada vez mais conscientes
de que é impossível viver em sociedade sem algum regime de autenticidade, se entende então
que sempre haverá a necessidade de um saber relativizador.
O processo de dominação de uma lógica cultural sobre as expressões da chamada
“cultura popular”, implica uma série de reflexões sócio-antropológicas importantes. A cultura
popular é plena de expressões autênticas, ou seja, possui “níveis de autenticidade”. É sobre o
que repousa o objeto próprio do antropólogo, “níveis de autenticidade” no qual o cientista
deve buscar alcançar na sua pesquisa de campo22.
Portanto, é preciso ter prudência para não estar reproduzindo ‘Livros de Registros’ 23,
como índices da reflexividade (JEUDY, 2005) do nosso olhar sobre as alteridades populares e
tradicionais ou arcaicas. Se pretendemos criar um Livro de Registro dos “Saberes” populares
devemos ter o cuidado de respeitar verdadeiramente os bens e valores culturais populares e os
fazeres e saberes populares da cultura. Nos parece que o legado das contribuições da
Antropologia, das Ciências Sociais e dos chamados Estudos Culturais, nos garante esse
domínio da reflexão relativizadora. O método científico serve para isso – descortinar o olhar,
desnaturalizar, historcizar, treinar o pesquisador para que ele coloque em questão a sua
própria formação subjetiva e possa compreender, pela intersubjetividade, pelo diálogo entre as
culturas, o sentido das dinâmicas culturais contemporâneas. E a Antropologia (etno/sociografia) é o exercício de uma abordagem intercultural. E como escreveu Maurice MerleauPonty: “A Etnologia não é uma especialidade definida por um objeto particular – etnia,
sociedades primitivas, etc. – é a maneira de pensar que se impõe quando o objeto é ‘outro’ e
que exige nossa própria transformação” (1984, p. 199).
Nesse sentido, uma pergunta importante: de quem é o desejo de ‘registrar’ o chamado
patrimônio cultural imaterial? O que é ‘registrar’? Qual o desejo que está subjacente a essa
práxis do ‘registrar’? O estranhamento das práticas sociais e culturais não deve ser exercido
apenas em relação aos ‘outros’, muitas vezes, ‘outros fabricados/inventados’ e fetichizados,
22
Nesse ponto nos aproximamos do texto Uma outra viagem de Lévi-Strauss de Ivete Lara Camargos Walty
(2001, p. 101): "Diferentemente de seus conterrâneos no passado, Lévi-Strauss penitencia-se por se ver como
agente contaminador de culturas novas e puras. Essa atitude parece, então, oposta à anterior, já que se baseia no
respeito ao outro e não em sua dominação. Devemos a Lévi-Strauss o reconhecimento da alteridade nas relações
sociais, mas podemos nos perguntar hoje se a atitude de se sentir responsável pela morte de uma cultura não
seria também outra forma de poder: o poder de salvar e o poder de matar. Paradoxalmente, aqueles que
pensam que salvavam, matariam, enquanto o que pensa que mata, salvaria, na medida em que volta seu
olhar para o outro. Observe-se que, no entanto, a situação não é tão diversa: o sujeito da ação é sempre ele, o
viajante. O outro é objeto, de catequização, de civilização ou de contaminação." (Negrito nosso).
23
Decreto n°3.551/2000 – Cria o Livro dos Registros do Patrimônio Cultural Imaterial brasileiro.
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no que se convencionou chamar de ‘cultura pós-moderna’: cujo dilema fundamental toca a
contradição entre produtos/mercadorias e sistemas/valores. Então, como esses ‘outros’
fabricados são simulacros de ‘diferenças’ fabricadas – para o turismo voraz e para sustentar a
moda do ‘elogio da diferença’, como aponta Paul Ricoeur no texto O Passado tinha um
Futuro (MORIN, 2003) – é sintomático que não se tem falado mais nas semelhanças – o que
vale é o ‘diferencial’ no mercado24. O exemplo mais forte disso está nas modas
contemporâneas expressas na museomania e na etnomania. Precisamos ter muita atenção com
o que está acontecendo nesse processo de ‘registro’ e ‘preservação’ da cultura popular na
contemporaneidade. Ao nos interessarmos pela cultura popular, não parece que estamos tendo
o devido cuidado em respeitar as expressões diversas e plurais das temporalidades e
espacialidades (das outras formações subjetivas, à margem da formação subjetiva dominante).
Esses grupos culturais têm outras coordenadas de tempo e espaço: ver, como exemplo,
as noções bem diversas do sentido de tempo e espaço do ‘lazer’, que nos é significativo, e o
da ‘brincadeira’, que é próprio da cultura popular. A importância da ‘brincadeira’, como
patrimônio cultural brasileiro e universal, é de uma expressão cultural extraordinária. De
modo açodado estamos tentando impor uma racionalidade e uma lógica dominadora sobre
esses ‘patrimônios’, que têm o direito de ser reconhecidos e respeitados pelas suas
singularidades, pelas suas formações subjetivas singulares; em diálogo com a nossa. Tempos
que ter cuidado com essas formações culturais singulares; manifestações culturais que muitas
vezes se misturaram e se hibridizaram, para sobreviver, mas que agora estão correndo o sério
risco de ‘morte final’ e definitiva – isto é, sucumbir a lógica dominante atual que vorazmente
devora – exotizando tudo, como mercadoria para o turismo nacional, regional ou mundial:
intensificado agora com a iminência dos mega-eventos Copa do Mundo de Futebol (2014) e
as Olimpíadas (2016).
Parece correto afirmar que devemos nos distanciar dos fenômenos sociais e adotar
uma perspectiva mais crítica, e num caso específico colocar em questão a pulsão de morte que
nos contamina atualmente. Em relação a esse tema da morte, ela está expressa no próprio
decreto presidencial:
Decreto No. 3551/2000. Institui o Registro de Bens Culturais e Natureza
Imaterial e cria o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial:
Art. 07 – O IPHAN fará a reavaliação dos bens culturais registrados, pelo
menos a cada dez anos, e a encaminhará ao Conselho Consultivo do
Patrimônio Cultural pra decidir sobre a revalidação do título de “Patrimônio
Cultural Brasileiro”.
24
Aspecto que mereceria uma pesquisa muito interessante, analisando slogans publicitários do tipo: “Pense
diferente!”; “Igual a você: diferente”; etc.
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Parágrafo único. Negada a revalidação, será mantido apenas o registro, como
referência cultural de seu tempo.
O prazo de validade é de apenas 10 (dez) anos! Num mundo de transformações
alucinantes como o nosso, parece irônico ser esse o tempo suficiente para testemunharmos a
agonia dessas manifestações. Assim, nos foi dado um prazo de validade (ou de validação),
dos bens registrados nesses livros burocráticos. Consideramos que, ao contrário dessa
posição, deveríamos juntar esforços no sentido de enfrentarmos essa pulsão de morte que está
sobre a cabeça dos agentes culturais. É preciso, outrossim, ‘promovermos’ essas
manifestações, tendo o cuidado de respeitar suas singularidades, sem tentar impor uma lógica
cultural; que não é própria desses grupos.
A população soube preservar sua herança cultural nesses séculos de história cultural.
A população soube preservar seus costumes e valores. Como disse Ferreira Gullar: “Quem faz
arte é o povo”! A angústia da perda é nossa – somos nós é que não temos ‘cultura’,
consumidores passivos de produtos mercadológicos e fonográficos: nossa cultura é de
‘consumo’ e de ‘consumidores’. A ênfase nesse ponto não é gratuita; é um ponto que nos
distingue do folclorismo nostálgico ingênuo e a-crítico. Em termos metodológicos e
epistemológicos, devemos ter muita prudência com a nossa formação subjetiva – temos que
colocar sob crivo científico as nossas opiniões, sentimentos e olhares naturalizados sobre a
cultura popular e o folclore. Temos que estranhar não só os outros, o que é muito fácil, mas,
devemos estranhar a nós mesmos, a nossa formação subjetiva e desnaturalizá-la; o que é
muito mais difícil de fazer. Só através de um procedimento reflexivo e científico teremos
condições de compreender as outras lógicas culturais e a nossa: e sabermos, enfim, a que
senhores nós servimos. Portanto, as palavras-chave nesse trabalho de elaboração crítica e
científica, são: estranhamento e distanciamento, das alteridades e das subjetividades. Para ter
acesso as alteridades e a diversidade cultural, devemos colocar em perspectiva antropológica,
nossas próprias formações subjetivas constituintes. Todo cuidado é pouco nesse espaço social,
dominado pelas inautenticidades e simulações que se utilizam e fazem pirataria da cultura
popular (‘apropriações’); que alguns classificam como “atitudes pós-modernas”.
Ao colocarmos essas questões não se está a dizer que se trata aqui de uma pesquisa
acabada. Hoje nós estamos em pleno processo civilizatório de longa transformação.
Entretanto, o que temos de resguardar para o interesse científico, e que deve chamar nossa
atenção, é o que os Estudos Culturais têm chamado, já a algum tempo, de ‘virada cultural do
capital’. Essa virada do capital para o investimento na cultura vem desde as décadas de 1950 e
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60, logo após a IIª Guerra. Na atualidade o capital se alastra sobre novos domínios naturais e
culturais25. Hoje da virada na cultura se soma aos investimentos na cibernética, nos
patrimônios genéticos, conhecimentos tradicionais26 e na bio-tecnologia (Corrêa, 2008, 2009,
2010, 2013). Não precisamos ir tão longe aqui, nessa breve exposição; mas, a lógica
econômica que se impõe é a mesma.
Para terminar, reafirmamos os argumentos e reforçarmos o alerta no sentido de não
perdermos o verdadeiro foco da questão da cidadania cultural e dos direitos culturais; tema
em voga nos debates, mas que, infelizmente, continua dominado por essa ansiedade
produtivista e instrumental. A garantia de uma prática cultural de salvaguarda digna e
responsável deve ter como guia de orientação, procedimentos científicos e filosóficos claros e
objetivos. Não é possível aceitar improvisos ou imposições de lógicas econômicas
reducionistas. Devemos colocar em questão estas práticas salvacionistas de circunstância e
relativizar nossos pontos de vista. Isso só pode ser feito através de um trabalho antropológico
contundente e cientificamente preparado. É o momento de retomar algumas palavras de
Marcel Mauss, inspiradoras desse breve texto; habitando o núcleo de nossa inquietação27.
Trata-se daquelas passagens do início do Ensaio sobre a Dádiva, em que aponta para a
importância de seu achado antropológico:
Veremos a moral e a economia que regem essas transações. E, como
constataremos que essa moral e essa economia funcionam ainda em
nossas sociedades de forma constante e, por assim dizer, subjacente,
como acreditamos ter aqui encontrado uma das rochas humanas sobre
as quais são construídas as nossas sociedades, podemos deduzir disso
algumas conclusões morais sobre alguns problemas colocados pela
crise do nosso direito e da nossa economia (...) (1974, p. 42).
E esse é o ponto em que nos detemos aqui. Para enfrentar a atual crise nas políticas do
patrimônio, voltemos nosso olhar para as rochas humanas fundamentais, referidas por Mauss,
quando lembra: “Felizmente, nem tudo ainda é classificado exclusivamente em termos de
25
Teria razão Jacques Lacan, para quem “o discurso capitalista é loucamente astucioso, funciona perfeitamente,
não pode funcionar melhor. Mas justamente por funcionar depressa demais, se consome. Consome-se tão bem
que se esgota?” LACAN, Jacques. “Conférence à l’université de Milan”, 12/05/1972, texto inédito, citado por
Dani-Robert Dufour in “O homem neoliberal: da redução das cabeças à mudança dos corpos”, Le Monde
Diplomatique, Brasil, 2005.
26
Mais uma vez lembro os paralelos com a reflexão de Manuela Carneiro da Cunha, exposta na Conferência de
abertura da 27ª RBA, Belém 2010; referente aos estudos sobre os conhecimentos tradicionais entre comunidades
da Amazônia legal.
27
Navegamos, mais uma vez, contra a onda dita ‘pós-modernista’ que vaticina: “as velhas regras de avaliação
não mais se aplicam”. Ao contrário, consideramos ainda as reflexões morais de Marcel Mauss válidas e um
verdadeiro antídoto contra o estado de espírito dominante na área das políticas culturais. Contudo, aspectos
metodológicos apontados por Marc Augé, na obra Não-Lugares: uma introdução à antropologia da
supermodernidade (1994) serem absolutamente pertinentes, merecendo a atenção dos antropólogos e sociólogos
da cultura urbana contemporânea.
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compra e de venda. As coisas possuem ainda um valor sentimental além de seu valor venal, se
é que há valores que sejam apenas desse gênero. Não temos apenas uma moral de
comerciantes” (Idem, p. 163). Esse é o patrimônio cultural [da humanidade] que é preciso
salvaguardar, ao invés de tentar incutir nas comunidades o ‘valor venal’, tornando-nos
"registradores" de fósseis culturais. Por fim, fica claro que essas palavras se direcionam para
uma reflexão aprofundada sobre a Política Cultural na atualidade, cujos temas da gestão do
patrimônio e da memória estão vinculados28. De novo aqui, voltamos às palavras fundadoras
de Marcel Mauss, que no final do Ensaio sobre a Dádiva, escreveu:
Estudos desse gênero permitem, com efeito, entrever, medir e
equilibrar os diversos móveis estéticos, morais, religiosos, os diversos
fatores materiais e demográficos cujo conjunto fundamenta a
sociedade e constitui a vida em comum e cuja direção consciente é a
arte suprema, a Política, no sentido socrático da palavra (Mauss, 1974,
p. 184).
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CASTORIADIS, Cornelios. Figuras do Pensável. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004
28
Tentativas próximas do que estamos indicando se pode encontrar nos trabalhos do Setor de Estudos de Política
Cultural da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro (CALABRE, 2010).
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