271 DISCURSO POLÍTICO, ETHOS E CENA ENUNCIATIVA EM CAMPANHA ELEITORAL DO TSE 2008 Josie Ubiali - Universidade de Franca INTRODUÇÃO Na perspectiva da Análise do Discurso e integrando o projeto de pesquisa “Processos enunciativos e constituição de identidades políticas nas mídias”, sob a responsabilidade da Profª.Dra. Maria Silvia Olivi Louzada, reflete-se neste trabalho sobre as relações entre discurso político e mídias contemporâneas em que diferentes posições enunciativas são sustentadas tanto pelo linguístico como pelas imagens que se colam aos discursos. Compreendendo-se que a noção de ethos está relacionada à cena enunciativa e à constituição da identidade, analisa-se uma propaganda integrante de uma campanha do Tribunal Superior Eleitoral veiculada pela rede de TV brasileira no primeiro semestre de 2008 que se destina a persuadir os eleitores a votarem nas próximas eleições. Com base nas teorias de Dominique Maingueneau, buscou-se analisar, principalmente, o modo como a cenografia e o ethos, estabelecem uma identidade ao enunciador. Entendendo-se que, além dos textos verbais, as imagens também participam da constituição discursiva das identidades, indagaram-se o discurso e sua produção de sentidos no vídeo “Heróis”, integrante da campanha eleitoral do TSE. O acontecimento midiático, no caso, é objeto de uma dupla construção: a de uma encenação levada a efeito pelo TSE com transmissão pela TV, a qual revela o olhar da instância política e a leitura realizada pela instância cidadã - o leitorouvinte-telespectador - que a recebe e a interpreta. Entende-se que o estudo de diferentes práticas políticas midiatizadas pode revelar interessantes modos de construir os sujeitos, seus traços e sua filiação ideológica, sua relação com a memória social e discursiva, os discursos repetíveis, os deslizamentos e as subversões de sentido, os “pontos de deriva possíveis” (PÊCHEUX, 1983). 272 Esta pesquisa buscou investigar como os discursos políticos produzidos pelas mídias também espelham, de certo modo, a mentalidade e a cultura vigentes, como esses discursos, plenos de historicidade, integram o processo de seleção dos acontecimentos que se deseja recordar no futuro, como fixam sentidos, ao veicular as diversas vozes que constituem o imaginário de uma dada época. Entendendo, pois, os discursos políticos midiatizados como práticas sociais produtoras de sentidos, pretende-se estudar como fomentam a formação da opinião pública, interferindo nos destinos do povo e contribuindo em larga medida para a transformação do poder. É nisso também que reside a relevância científica e social do presente trabalho de pesquisa. A perspectiva teórica da Análise do Discurso de linha francesa – AD se presta singularmente à realização desse trabalho de investigação, pois estende a possibilidade analítica do pesquisador para as condições sócio-históricas de produção discursiva. Enfim, acredita-se que a proposição desta pesquisa encontra amplo respaldo quando se sabe o quanto e como em um mundo globalizado os discursos propagados pelas mídias podem interferir significativamente na vida dos povos e das nações, em virtude tanto da rapidez com que propagam ideologias, como do quanto podem concorrer para a transformação das instâncias do poder. 1. CENA ENUNCIATIVA E ETHOS A etimologia de ethos é grega e significa “costumes, modo de ser, caráter” e permite que o co-enunciador crie uma “imagem”, uma “figura” que represente esse possível “caráter” enunciativo, fundamentado, pela sociedade, em estereótipos culturais. A essência do ethos está relacionada diretamente com a enunciação, e é por meio dessa relação que o co-enunciador se submeterá a uma avaliação dos efeitos de sentido do discurso. Não se trata aqui de um pré-juízo sobre o enunciador, um ethos falado, dito, mas de um “ethos mostrado”. Para entender melhor essa distinção entre o “mostrado” e o “dito”, distinguiremos o ethos pré-discursivo do ethos discursivo, tendo como base os estudos de Maingueneau sob a perspectiva de ser o ethos um “fiador”. De acordo com Maingueneau (2005b, p.69-72), o co-enunciador já detém ou constrói representações do ethos do enunciador antes mesmo que ele fale – o ethos pré-discursivo, noção intimamente relacionada à de identidade de posicionamento. 273 No que se refere ao discurso político, em especial, a cada nova cena enunciativa, o co-enunciador retoma esse ethos prévio e usa-o como um parâmetro, um norteador para realizar a interpretação do novo discurso proferido. Por outro lado, o ethos discursivo refere-se a uma ’vocalidade específica” um “tom” que permite relacionálo com uma fonte enunciativa. Sobre a corporalidade do enunciador, Maingueneau explica que se trata de “um conjunto difuso de representações sociais valorizadas ou desvalorizadas, de estereótipos sobre os quais a enunciação se apóia e que, por sua vez, contribui para reforçar ou transformar”. (LOUZADA, 2008) Para a distinção entre ethos prévio e ethos discursivo, definiremos o primeiro como sendo uma imagem preexistente ou predefinida que “condiciona a construção do ethos discursivo e demanda a reelaboração dos estereótipos desfavoráveis que podem diminuir a eficácia do argumento.” (AMOSSY, 2005, p.148). No campo político, principalmente devido à forte influência midiática, o ethos discursivo pode “afirmar-se ou infirmar-se”, segundo Maingueneau (Apud Amossy, 2005, p.71), e induzir expectativas até mesmo por meio do gênero do discurso, pois o coenunciador pode suscitar uma imagem prévia do enunciador só pelo fato de saber que se trata de um gênero político. Segundo a concepção de Maingueneau (2005b, p. 72) pode-se atribuir ao enunciador a função de “fiador” do discurso e é através desse fiador que o enunciatário irá posicionar-se em relação à veracidade do discurso. Em relação ao ethos discursivo -, “cuja figura o leitor deve construir com base em indícios textuais de diversas ordens, vê-se, assim, investido de um caráter e de uma corporalidade, cujo grau de precisão varia conforme os textos” - pode-se dizer que é o fiador de um discurso. No entanto, a produção de sentido de um discurso não existe por si só, pois se insere em um meio, um momento histórico, em uma ideologia; o discurso se produz em uma dada cena de enunciação e é em relação a ela que os enunciados serão pertinentes ou não. O sujeito que enuncia encontra-se num lugar discursivo que o legitima e que lhe atribui uma autoridade vinculada à uma dada posição: uma instância enunciativa. 1 enunciador Para interpretar um discurso é necessário que o co- identifique o tipo do discurso, ou seja, a que cena englobante (MAINGUENEAU, 2005a, p.86) ele corresponde: política, religiosa, publicitária, jurídica, etc., permitindo coligar a finalidade contratual entre o “EU”, enunciador, e o “OUTRO”, co-enunciatário. No entanto, caracterizar apenas um discurso como político, literário, publicitário ou outros, não é suficiente, pois o co-enunciador é aquele que irá definir os papéis dos parceiros do discurso, o lugar e o tempo em que 274 se enuncia, a finalidade discursiva entre outros, definindo dessa maneira as cenas específicas dos gêneros do discurso. A cenografia, fator imprescindível na formação discursiva, é estabelecida no próprio corpo do texto como, por exemplo, no caso de um político: ele não precisa necessariamente se dirigir aos seus eleitores sempre por meio da mesma cenografia, ele pode apresentar-se como um jovem, amigo, experiente, executivo, operário dentre outros, que fala de política à sociedade. Como afirma Maingueneau (2005b, p.76): “o discurso político mobiliza cenografias variadas uma vez que, para persuadir seu co-enunciador, devem captar seu imaginário, atribuir-lhe uma identidade invocando uma cena de fala valorizada”. A cenografia, como o ethos que dela participa, implica um processo de enlaçamento paradoxal: desde sua emergência, a fala supõe uma certa cena de enunciação que, de fato, se valida progressivamente por essa mesma enunciação. A cenografia é, assim, ao mesmo tempo, aquela de onde o discurso vem e aquela que ele engendra; ela legitima um enunciado que, por sua vez, deve legitimá-la, deve estabelecer que essa cena de onde a fala emerge é precisamente a cena requerida para enunciar, como convém à política, à filosofia, à ciência. (MAINGUENEAU, 2005b, p. 77) Segundo Charaudeau (2006, p. 115-117), ethos, no interior do discurso político, está relacionado à constituição das imagens de si e de como se processa essa construção, ou seja, “o ethos é como um espelho no qual se refletem os desejos uns dos outros”, uma identidade discursiva que pode se manifestar com inúmeras “máscaras”, de distintos caracteres do enunciador visto globalmente, já que a sociedade constituirá um dos olhares sobre o ethos do enunciador. Nesse aspecto, a imagem construída pelo enunciador, permite que o co-enunciador delegue sobre ele (enunciador) a legitimidade de seu discurso, permitindo que a segunda instância construa, possivelmente, um mesmo juízo discursivo. Vê-se então que o papel desempenhado pelo ethos no discurso é se fazer de “fiador do que é dito”, e remeter a uma identidade própria, um caráter e corporalidade compatíveis com a cena enunciativa que é imprescindível na legitimação de um enunciado, ou seja, o co-enunciador precisa incorporar todos os aspectos que definem o ethos do enunciador e aderir ou não ao seu discurso. No discurso político, o ethos se constrói e de acordo com sua posição social, tem o poder de persuadir, porém, com facetas frágeis, “adoradas um dia, podem ser queimadas no dia seguinte.” (CHARAUDEAU, 2006, p.89). O conceito sobre 275 discurso político está relacionado com os lugares de fabricação e a situação de comunicação, melhor dizendo, “Não é o conteúdo do discurso que assim o faz, mas é a situação que o politiza.” (CHARAUDEAU, 2006, p.40). Distinguiram-se três lugares de fabricação: a instância política, a instância cidadã e a instância midiática; no entanto, o discurso político não se restringe somente aos fatores expostos, pois também é resultado de uma combinação de elementos externos como os fatos políticos, sociais, jurídicos, morais e psíquicos, logos2, pathos3 e ethos4. 2. DISCURSO, TEXTO E MÍDIA: DISTINTOS DISPOSITIVOS COMUNICACIONAIS Utiliza-se o termo “texto” para definir e abranger qualquer tipo de produção verbal, oral ou escrita, que persiste mesmo quando inserida em outros contextos. Maingueneau (2005a, p.85) define texto como um “rastro deixado por um discurso em que a fala é encenada”, com características heterogêneas e polifônicas, trata-se da inserção de palavras de um locutor no texto de outro locutor, permitindo certa variedade discursiva e muito mais que um aglomerado de signos lingüísticos. As considerações sobre “texto” vêm constantemente se modificando, visto que, músicas, imagens, filmes, gravações de áudio (unidades verbais) são textos, e que estão relacionados com os gêneros do discurso. O dispositivo comunicacional mais utilizado recentemente, que engloba diversos níveis sociais e contextos, é a mídia. Esta permite uma cenografia veiculada à espetacularização, que segundo Carlos Piovezani Filho (GREGOLIN, 2003, p. 13) é um fenômeno pós-moderno capaz de preparar um ethos discursivo que utilizará os seguintes meios espetacularizantes: a política, a língua e a história. A politização da mídia ou midiatização da política impõe determinações que permitem que o discurso transpareça com performances pré-atribuídas, e alterações sutis na eloqüência política. Diferente das chamadas “línguas de madeira”5 que induziram a falta de credibilidade nos discursos políticos, a midiatização política, atualmente, utiliza recursos como técnicas de comunicação, jogo de palavras, memórias discursivas, gestos corporais, para que o ethos discursivo mantenha a “aparência” que o sujeito pré-determinou. Trata-se da “teatralização do político”, assim chamado por Gregolin (2003, p.13) a toda linguagem não-verbal, a toda expressão corporal do sujeito discursivo. O veículo comunicacional midiático permite 276 que o enunciador se pronuncie com uma “fala breve, política cambiável, fluida, imediata, que se prende ao instante antes de se inscrever na memória, privilegiando antes a astúcia verbal do que a estratégia verbal.” (GREGOLIN, 2003, p.22). Para Courtine (apud GREGOLIN, 2003, p. 29): O que é verdadeiro para o corpo talvez o seja mais ainda para o rosto, uma aposta crucial dos políticos de aparência. A proximidade do olhar que o examina bane a teatralidade da máscara que amplificaria a expressão facial, transformando-a numa caricatura, ou numa careta. Mas essa proximidade impede igualmente a imobilidade de uma “cara de madeira”: ela obriga cada um de se exprimir; de exibir à flor da pele índices de uma emoção, fingida ou sentida. Ela promove, na troca verbal, modos de sociabilidade corporal aos quais é preciso se submeter: a televisão é o país do sorriso. O orador político teve que aceitar, quisesse ou não, agregá-lo ao seu rosto.” O que na verdade faz da mídia um lugar de espetáculo é sua infinda variedade interpretativa para enunciados já-ditos. A AD procura, ao interpretar um discurso, recuperar sua originalidade por meio da memória discursiva, embora, mesmo que se busque essa fiel interpretação, ainda eclodam muitas outras possibilidades. Em se tratando de discurso político, a posição adquirida pelo coenunciatário na interpretação dos discursos é a de um analista, dotado de um olhar examinador e de uma percepção sonora, em que o tom e amplitude do som tentam compensar a distância entre o enunciador e o co-enunciatário, visto que a comunicação não se dá pessoalmente: é o que Gregolin (2003, p.30) chama de “proximidade longínqua”, conjuntos com a cenografia instalada na enunciação veiculada à mídia. Sabendo-se que a via televisiva é hoje largamente utilizada como meio de circulação de informações e que se apropria de imagens, Gregolin (2003, p.29) comenta ainda que “a racionalidade dos comportamentos linguageiros e corporais do orador tradicional associam-se ao olhar afastado da massa que assiste à performance. A amplidão do tom e do discurso, a amplitude dos movimentos do corpo os torna audíveis e visíveis.” Pensada desta maneira, a mídia torna-se parte do processo discursivo e exerce poder sobre os sujeitos enunciadores e também no “OUTRO”. Ainda segundo Gregolin (2003, p. 99-100), os mecanismos utilizados pela mídia para ditar certa subordinação da instância cidadã perante a instância política se dão por meio da “microfísica do poder”6 ou da chamada “disciplina”, que pode ser resumida em quatro tópicos: 277 a) Primeiro, ela está no contexto disciplinar dos regulamentos minuciosos, do olhar das inspeções e do controle sobre o corpo que toma forma nas escolas, prisões, quartéis etc. Nessa microfísica do poder, a disposição dos corpos nos permite o olhar, isto é, a vigilância. A introjeção, nos corpos, dessa disciplina dos espaços ganha prolongamento social, expresso nas ações dos corpos em sua vida cotidiana, o que produz as “arrumações” de todos os espaços. (o poder pela visibilidade). Assim, a subordinação à vigilância contínua é reproduzida pela coerção interna do indivíduo, por meio da qual o próprio “eu” coloca-se no espaço possível de vigilância – lugar da submissão e da reprodução “voluntária”; b) Em segundo lugar, a disciplina organiza o tempo, com o conseqüente controle e regulamentação sobre os ciclos da repetição. O ritmo da atividade é mais importante que os horários, pois estes são impostos de fora sobre os corpos. Organiza-se o império da regularidade, do ritmo, pois “é proibido perder tempo” já que “tempo é dinheiro”. Assim como na distribuição dos espaços, o controle sobre o tempo permanece introjetado na realização social da vida cotidiana e em todos os setores, inclusive na vida “pessoal e íntima”. O tempo, que não é controlado pelo indivíduo, mas pelo poder, será sempre algo inexorável, que lhe determina a ação. O tempo, assim, não é próprio, individual, mas coletivizado pelo sistema de controle e a ele subordinam-se os corpos; c) Em terceiro lugar, a vigilância aparece como algo que deve ser contínua, ininterrupta e que, acima de tudo, precisa ser vista pelos indivíduos que a ela estão expostos como perpétua, permanente; do mesmo modo, é preciso que ela não tenha limites, que esteja presente em toda a extensão do espaço. A vigilância é, pois, um olhar invisível, que deve impregnar quem é vigiado de tal modo que este adquira de si mesmo a visão de quem o olha. O poder sobre os corpos, desta forma, atinge o ápice da submissão, pois o corpo não distingue entre si mesmo e o olho do poder; d) Finalmente, a disciplina produz saber. É o registro contínuo do conhecimento que gera poder. Em nossas sociedades a busca do anonimato cresce em função da libertação dos corpos do domínio do saber. O caderno de anotação, a ficha secreta, a prova, a correção etc. são materiais que mostram o acúmulo do saber produzindo poder. 3. POLÍTICA MIDIATIZADA E/OU MIDIATIZAÇÃO DA POLÍTICA [...] a televisão é o lugar e o meio de uma modificação profunda da eloqüência política. (J.-J. Courtine) O casamento da política com as mídias está, hoje, consumado.(Gilles Achache) A eficácia da influência midiática sobre os telespectadores traz em si uma dicotomia de ideologias: a ideologia de que a mídia influencia e domina a opinião pública e a que se opõe a esta. Acredita-se que a mídia modifica a retórica política e apresenta-se como uma instância detentora de um poder e saber público, no qual se pretende proporcionar aos telespectadores uma esfera de “ser/verdade X parecer/mentira-segredo” (PIOVEZANI, 2003, p.58) da política. No entanto, a postura crítica da mídia, através de seus discursos e cenografias, predetermina uma legitimidade ou não, inscrevendo-se como porta-voz da verdade ou mentira, isto é, 278 ser e parecer, respectivamente, e, com efeito, a TV tem maximizado o impacto das mensagens favoráveis e minimizado o das desfavoráveis a ela. Porta-voz, do latim portare (portar, carregar) mais voce (voz), trata-se de um sujeito que fala em nome de um “outro”, não necessariamente constituído como parte ou todo deste, mas apenas um simulacro, não sendo, portanto, uma reprodução de um discurso de um sujeito. A porta-voz mídia passa a ser a detentora de um saber e apresenta-se como reveladora do implícito, da verdade do que inacessível ao povo, que não pela TV. Dessa maneira, a mídia se posiciona como um enunciador de uma verdade coletiva, visto que “há um certo encontro entre a fome midiática de produzir ‘verdades’ e a vontade espectadora de comer ‘verdades’.” (PIOVEZANI, 2003, p.63). A TV, portanto, deixa de ser um poder político auxiliar, ao contrário, constituise uma instância própria de poder, chamada atualmente até de quarto poder, funcionando em sua própria esfera política e uniformizando opiniões. Para exemplificar, podemos recorrer a Louzada (2007) que analisa uma propaganda político partidária em que o deputado federal/SP Paulo Maluf, remete à memória de acontecimentos do passado para propor-se como um ethos empreendedor: “para conquistar os imaginários sociais, faz aparecerem dois sujeitos superpostos: um sujeito do passado recuperado por meio de uma foto de um Maluf mais jovem, o governador de São Paulo dos anos 1980, sobre a qual se sobrepõe uma imagem de um Outro-Mesmo sujeito, o atual deputado federal Paulo Maluf conhecido de todos os brasileiros, que profere um discurso evocativo sobre um acontecimento do passado – a 7 criação da Paulipetro”. (LOUZADA,2007). 4. ANÁLISE DO VÍDEO “HERÓIS” Na perspectiva da Análise do Discurso e tomando como principais referenciais teóricos os textos de Michel Pêcheux e, mais recentemente, os de Dominique Maingueneau e Patrick Charaudeau, reflete-se sobre as relações entre discurso político e mídias contemporâneas em que diferentes posições enunciativas são sustentadas tanto pelo lingüístico como pelas imagens que se colam aos discursos. Compreendendo-se que a noção de ethos está relacionada à cena enunciativa e à construção da identidade, analisa-se a propaganda “Heróis” do Tribunal Superior Eleitoral - TSE veiculada pela rede de TV brasileira no primeiro semestre de 2008 que se destina a persuadir os eleitores a votarem nas próximas eleições. 279 A cenografia instala como protagonistas alguns dos responsáveis pela luta em favor da democracia nos anos 1960 a 1980: sucedem-se as imagens do deputado Ulisses Guimarães, do sociólogo Betinho, de uma passeata de estudantes nos anos 1960, do enterro de um estudante morto durante a ditadura, do jornalista Vladimir Herzog, do poeta Vinícius de Moraes, da passeata e campanha pelas “Diretas Já” (1984), do radialista Osmar Santos, do cartunista Henfil e de uma cena de estudantes pichando em um muro a frase “Abaixo a ditadura”. Ouve-se um solo de violão que entoa o Hino Nacional Brasileiro enquanto uma voz masculina em off diz solenemente o seguinte texto: Heróis existem e eles não são grandes, nem são fortes, nem indestrutíveis. Nem têm superpoderes. Eles não matam, mas morrem. Não são de outro mundo, embora muitas vezes pareçam não ser deste aqui. Heróis existem. E são de carne e osso, geralmente mais carne do que osso, porque são sangue. Heróis existem. E nunca fogem da luta. Existem. E têm sempre uma personalidade só. Porque não costumam ter o que esconder. Heróis existem e aparecem sempre que temos certeza de que a raça humana está perdida. E surgem, justamente nesses momentos, como a nossa salvação. Porque os heróis são, antes de tudo, humanos. Heróis existem. Não desperdice o direito que eles tanto lutaram para conquistar para você. Vote. Ao analisar esse discurso e retomar as imagens da cenografia instalada – personagens e fatos de grande importância para a história do Brasil - percebe-se a presença da heterogeneidade e interdiscursividade. Figuras como a de Betinho que lutou e atuou na resistência à ditadura militar, brigou pela reforma agrária, integrou a liderança do Movimento Pela Ética na Política dentre outras atuações, assim como as “Diretas Já”, retomam a memória de um povo: o brasileiro. Porque remontar um cenário de luta democrática com personagens considerados heróicos na história recente do Brasil? Sob a figura de uma instância política, de poder eleitoral, o TSE se autodenomina, por analogia, também heróico e lutador, mas será que todos os eleitores brasileiros reconheceriam essa imagem patriótica e democrática que o TSE tomou para si? Por que utilizar a TV para conscientizar a população a votar nas eleições e por ela retomar todo o processo histórico democrático? Essas questões intrigantes estão relacionadas ao processo de construção do ethos do TSE que emerge dessa cenografia. Visto que a mídia constrói para si um discurso heterogêneo, mesmo que sob a máscara da uniformidade, pode-se afirmar que o TSE, ao escolher a TV como veículo de sua campanha, pretende também uniformizar a luta pela democracia a fim 280 de dar de si a imagem de detentor da democracia, de um ethos que reconhece e propicia a liberdade democrática. Sabe-se que esse ethos não faz parte especificamente do TSE, no entanto, é exatamente essa “máscara”, esse “parecer” que essa instância enunciativa de maior autoridade sobre o processo eleitoral pretende veicular. No vídeo “Heróis”, o TSE se dá a “ver” (corporalidade) e a “ouvir” (uma voz cujo tom é solene, grave, pausado, exigido pela própria cenografia). A cenografia se instala com a sucessão de imagens que retomam a memória da condição brasileira ao buscar a democracia. Seguem-se imagens de homens importantes, tais como Ulisses Guimarães, Betinho, Vladimir Herzog, Vinícius de Moraes, Osmar Santos e Henfil, fundamentais no processo de transição da ditadura para a democracia. O discurso começa concomitante com a imagem projetada de Ulisses Guimarães e a frase “Heróis existem”; em seguida aparece a imagem de Betinho e a voz em off continua a discursar o seguinte “e eles não são grandes, nem são fortes, nem indestrutíveis”. Observe-se como é retomada a memória da imagem de Betinho ao constatar que ele era hemofílico, frágil, sensível e não “forte” nem “indestrutível”. Mesmo assim ele se mostrou como símbolo de determinação e de luta incansável pelos direitos sociais, cidadãos e éticos, o que o enquadra também como um “herói”. Logo após, a cena chocante de uma passeata de manifestação de estudantes e o enterro de um estudante que havia sido morto, mostrando que realmente eles não possuem “superpoderes”, apenas manifestam seus direitos; não são instituições de poder, mas revidam as que têm “superpoderes” no sentido literal da palavra, como é o caso do governo ditador. Durante a cena projetada do estudante morto, a voz pausada e terna enfatiza duas palavras: “não matam, mas morrem”, o que retoma o grande conflito, a luta e a morte durante a manifestação popular mais importante da resistência contra a ditadura militar, realizada em 19688. Percebe-se que com o decorrer das imagens o telespectador, a partir desse momento, é persuadido emocionalmente por meio dos horrores que outros cidadãos tiveram que passar para adquirirem o direito que todos têm hoje, o de votar. Passa a instância de poder eleitoral, o TSE, a adquirir uma imagem humanitária, social que pretende comover o telespectador. Segue-se a cenografia com a imagem de Vladimir Herzog, que exerceu a direção do departamento de jornalismo da TV Cultura, em 1975, e Vinícius de Moraes, poeta acompanhado do seguinte discurso: “porque não costumam ter o que esconder”, caracterizando, simultaneamente, esses 281 dois personagens. As imagens vão despontando em sucessões de “heróis” conhecidos (personagens históricos) e de “heróis” coletivos (o povo brasileiro), ressurgindo para o telespectador o orgulho brasileiro de garra e determinação. Sucedem-se imagens de pessoas pichando em um muro a frase “Abaixo a Ditadura” e cenas da campanha “Diretas já” com o seguinte trecho do texto falado em off: “Heróis existem e aparecem sempre que temos certeza de que a raça humana está perdida. E surgem justamente nesses momentos, como a nossa salvação. Porque os heróis são, antes de tudo, humanos”, fazendo uma retrospectiva que com certeza comove o cidadão, e o faz acreditar que quem lutou por essa conquista democrática foi um ethos humano, reflexivo, lutador e heróico, o mesmo ethos de maior autoridade eleitoral do Brasil: o TSE, “o locutor retoma um acontecimento do passado para propor um novo discurso, situado no momento presente” (LOUZADA, 2007). Portanto, vê-se que a mídia detinha uma posição social e política, apresentando de forma implícita um descontentamento de um “votar errado”, pois acarreta em um mau governo tanto quanto foi a ditadura, por isso essa instituição enunciativa, sendo parte de um poder, veiculou-se à TV, o que tornou o seu discurso brando e legítimo. O ethos pré-discursivo do TSE configura-o como a instância enunciativa que tem autoridade para regular as eleições no país, conforme seu regulamento específico que pode ser encontrado no site http://www.brasil.gov.br/pais/estrutura. Em outra sessão do mesmo site http://www.tse.gov.br/internet/institucional/index.htm há descrição de sua missão e visão de futuro: MISSÃO E VISÃO DE FUTURO :: Missão do TSE Assegurar os meios efetivos que garantam à sociedade a plena manifestação de sua vontade, pelo exercício do direito de votar e ser votado. :: Visão de Futuro do TSE Ser referência mundial na gestão de processos eleitorais que possibilitem a expressão da vontade popular e contribuam para o fortalecimento da democracia. Note como o TSE pretende aproximar-se discursivamente de seus eleitores. Ao visitar as páginas da internet dos três poderes (http://www.brasil.gov.br/pais/estrutura): o Poder Executivo, constituído geralmente pelo presidente da república e seus ministros, executa as ações, administra a nação, 282 cumpre as leis e age para que a elas sejam cumpridas, o Poder Legislativo constituído pelo Congresso Nacional, que no caso do Brasil, é dividido em duas partes: o Senado e a Câmara dos Deputados que analisam as propostas e elabora as leis que irão reger a nação, e o poder Judiciário, que tem o poder de julgar e aplicar as leis elaboradas pelo Legislativo e exercidas pelo Executivo, no qual está inserido o TSE (http://www.tse.gov.br/), o TST (http://www.tst.gov.br/) e os tribunais Regionais Federais9. Ministros, desembargadores e Juízes formam a classe dos responsáveis por essa função. Observa-se que o TSE procura desempenhar uma função contratual entre o “eu” TSE e o “outro” cidadãos, porém um contrato com estilo empresarial onde a “empresa” TSE quer promover o bem estar do cidadão e continuar lutando pelos seus direitos, no que corresponda ao papel do Poder Executivo. Esse papel visando a um futuro e a uma missão permite pré-construir um ethos amigo, próximo, confiável. Não se pode esquecer que, em 2008, essa instância enunciativa integrava um governo de esquerda (PT) que, no passado, participara dos movimentos sociais e políticos que lutavam pela redemocratização do país, tais como a campanha pelas “Diretas Já”, a Constituinte de 1988, as lutas contra a ditadura, entre outros. No vídeo “Heróis”, as cenas enunciativas juntamente com o discurso verbal contido nele, permite que o co-enunciador faça validar a cena apresentada, ou seja, o sujeito enunciador utilizou de uma memória instalada coletivamente para persuadir a opinião dos telespectadores em relação ao ethos TSE. O TSE tentou promover um número maior de eleitores para 2008, no entanto em pesquisa realizada no site http://veja.abril.com.br/politica/blogs/eleicoes-2008/101171_comentarios.shtml, (Anexo C), apresenta uma oposição ao resultado esperado pela campanha. Em se tratando do ethos discursivo do TSE, nesse vídeo vemos um ethos que retoma cenograficamente imagens e personagens do passado para propor, no presente, que os brasileiros participem das eleições de 2008, assumindo como seu, o traço de lutador, batalhador pelos ideais democráticos. De certa forma, esse ethos discursivo também se aproxima não do ethos pré-discursivo da instituição TSE (reguladora), mas de um ethos pré-discursivo do atual governo (PT), cujos integrantes participaram dessas lutas pró-democracia. Essa aproximação se deve ao fato de que o TSE possui uma identidade e um posicionamento social que o legitima e também ao seu co-enunciador, os telespectadores, sendo este ethos não apenas 283 um meio de persuasão, mas constituinte da própria enunciação, como afirma Maingueneau (2005b, p.75). No vídeo “Heróis”, o TSE, fiador desse discurso, se valida perante os telespectadores por meio da cenografia instalada, tendo, portanto, autoridade, o que o legitimou ao aproximar o ethos pré-discursivo do ethos discursivo. O TSE se permite instalar em uma posição enunciativa admitindo uma “vocalidade”, um “tom”, um vocabulário, que o divide em dois sujeitos enunciadores em que um se sobrepõe ao outro: o ethos de autoridade federal, e um ethos lutador e heróico em que o primeiro estabelece uma relação contratual entre o “eu”, o TSE, no comando, e, o “outro”, telespectador, como cumpridor de ordens. Já no segundo momento, o ethos heróico do TSE aproxima-se do co-enunciador como um amigo, um lutador, e essa persuasão ideológica permite que o co-enunciador legitime o discurso proferido pelo vídeo. 5. CONCLUSÃO De acordo com a teoria de Maingueneau, o ethos está diretamente relacionado com a cena enunciativa, pois por meio dela o enunciador se legitima ou não. O ethos relaciona-se também com a identidade do sujeito discursivo que ocupa certa posição discursiva, visto que ele, em geral, constitui-se de diversos elementos discursivos como corporalidade, cenografia, estereótipos sociais, vocalidade e tom que influenciam na criação da imagem do enunciador. Para Maingueneau, “se o ethos está crucialmente ligado ao ato de enunciação, não se pode ignorar, entretanto, que o público constrói representações do ethos do enunciador antes mesmo que ele fale”, referindo-se ao ethos prévio, e que pode confirmar-se pelo ethos discursivo ou refutar-se. Englobado no ethos discursivo estão o ethos mostrado e o dito. Configura-se o TSE como ethos prédiscursivo quando instância enunciativa que tem autoridade para regular as eleições no país, conforme seu regulamento específico e ethos discursivo quando inserido à luta pela democracia como um sujeito lutador e heróico. Desta maneira o TSE se assimila a um “Outro”, pois para persuadir os eleitores a votarem nas eleições de 2008, essa instância de poder permitiu uma 284 relação de simbiose entre o ethos pré-discursivo e o ethos discursivo por meio de uma construção cenográfica baseada na memória coletiva, legitimando seu discurso. Esta pesquisa teve como finalidade contribuir para os estudos a respeito das relações entre cenografia e a construção do ethos, principalmente, os modos de construção de identidades políticas nas mídias, buscando compreender seus efeitos de sentido. 6. REFERÊNCIAS AMOSSY, Ruth. (Org.). Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2005. BRANDÃO, Helena. H. Nagamine. Introdução à Análise do discurso. 4ª Ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1995. CHARAUDEAU. P. (Trad. Ângela M. S. Corrêa) Discurso político. São Paulo: Contexto, 2006. FERNANDES, Cleudemar Alves. Análise do discurso: reflexões introdutórias. Goiânia: Trilhas Urbanas, 2005. GREGOLIN, M. 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Disponível em http://veja.abril.com.br/politica/blogs/eleicoes- 2008/101171_comentarios.shtml. Acesso em 14/12/2008 às 19h. 1 Destinatário, enunciatário. Logos – O discurso propriamente dito. 3 Pathos – Paixões despertadas no ouvinte. 4 Ethos – O caráter do orador. 5 Para aprofundamento sobre “as línguas de madeira” ver GREGOLIN, Maria do Rosário. (Org.) Discurso e mídia: a cultura do espetáculo. São Carlos: Claraluz, 2003. 6 Controle de corpos (sujeitos) através da “maquinaria do poder”, técnica da disciplina, instituída pela instância política para submeter a instância cidadã ao seu poder. (GREGOLIN, 2003, p.99) 7 Para maiores detalhes da pesquisa ver: LOUZADA, M.S.O. Ethos, Cena midiática e Discurso Político. Universidade de Franca, 2007. 8 http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u397254.shtml 9 TRF da 1ª Região - Norte, Centro-Oeste, DF, MG, BA e PI (http://www.trf1.gov.br/), TRF da 2ª Região - RJ e ES (http://www.trf2.gov.br/), TRF da 3ª Região – SP (http://www.trf3.gov.br/), TRF da 4ª Região – Sul (http://www.trf4.gov.br/), TRF da 5ª Região - AL, CE, PB, PE, RN e SE (http://www.trf5.jus.br/). 2