Artigo exclusivo: GRH e atividade musical. Que relação? Autores: CARLOS SOARES – Colaborador da CGD (Caixa Geral de Depósitos), Mestre em gestão de recursos humanos (ISEG-Universidade de Lisboa), Músico semiprofissional. & JORGE F. S. GOMES – Professor associado com agregação no ISEG, da Universidade de Lisboa “Uma organização é como uma canção: não é formada por sons individuais, mas pelas relações entre eles.” Peter Drucker A GRH e a música surgem comummente dissociadas no contexto da gestão e das artes, parecendo inexistir qualquer tipo de conexão. Raramente se aliam as idiossincrasias inerentes à GRH com a atividade desenvolvida por um músico, ou por um grupo musical, e vice-versa. Todavia, existem pontes interessantes entre a GRH e a atividade musical, que permitem reflexões com vantagens para ambos os domínios. Como ficará patente neste texto, existem diversos momentos na carreira de um artista/grupo musical em que se torna vantajoso a existência de uma consciencialização sobre as várias temáticas relacionadas com a GRH. Nesse sentido, o objetivo deste artigo é mostrar que os temas principais da GRH são aplicáveis aos grupos musicais e aos músicos. No restante texto, adotamos o exemplo de um grupo musical em constituição e posterior desenvolvimento para estabelecermos pontes e ilustrarmos de que modo a GRH se corporiza nesta forma de manifestação artística. Missão, visão, valores, estratégia e liderança num projeto musical Quando um individuo ou um conjunto de indivíduos cria um projeto musical, o mesmo é criado tendo por base uma “razão de existir” (missão), sendo direcionada a ação do projeto de acordo com determinados valores, bem como por um conjunto de normas culturais e estratégicas. Estes três pilares organizacionais estão presentes em qualquer projeto musical minimamente profissional, ainda que por vezes eles possam não estar articulados e/ou explicitados. Os mesmos são depois importantes para apoiar a segmentação, em termos de mercado-alvo a alcançar, e de qual o estilo musical e âmbito no qual se pretende inserir. Para que seja possível gerir estrategicamente um projeto musical, é fundamental que exista um líder. À semelhança do que acontece em muitas organizações, o líder é o fundador do projeto, ou alguém eleito pelos restantes stakeholders (músicos ou outros), ou até alguém exterior ao grupo, enquanto estrutura musical. Tal como acontece nas organizações, os valores e motivações do líder devem estar alinhadas com as dos restantes intervenientes no projeto, para garantir o compromisso e a coesão. A visão do líder é essencial, para dotar o grupo com uma identidade própria, e estabelecer a linha principal de orientação e de coesão. Tendo por base a ideia anterior, torna-se crucial que, no momento em que o líder/fundador decide quem irão ser os restantes elementos do grupo, já exista um planeamento das necessidades do projeto, bem como quais são as competências que o projeto necessita, para que se prossiga com a estratégia (Ex: músico com boa capacidade de improvisação, para um projeto mais criativo, ou um músico que consiga ler “pautas” para um projeto mais clássico). Este planeamento assemelha-se ao que deve acontecer nas organizações, e começa com uma definição de quais são as competências necessárias e pretendidas. Recrutamento, seleção e gestão de expetativas num projeto musical Após uma definição dos aspetos anteriormente destacados, estão reunidas as condições para o início do processo de escolha de quem vão ser os constituintes do projeto, ou seja, em termos empresariais, do processo de recrutamento e seleção, de acordo com as necessidades organizacionais. Neste processo, pode recorrer-se a diversas fontes de R&S, tais como: 1) anúncios (em jornais, redes sociais, outros), 2) procura especializada (contratar alguém que identifique elementos que satisfaçam as necessidades do projeto), 3) recrutamento informal (basear-se nos contatos pessoais para encontrar as melhores opções), entre outros. Posteriormente à identificação, atração e retenção dos novos elementos do projeto é imprescindível, à semelhança do que acontece nas organizações em geral, que se integrem os novos elementos do projeto, através de diversos mecanismos, tais como: atividades de socialização e a explicitação clara e realista de quais são os objetivos do projeto, para que, desta forma, se evitem os perigosos “choques de expetativas”. Por exemplo: quando se contrata um novo músico, com o objetivo de se realizarem centenas de concertos ao longo de um ano e o resultado final é a realização de menos de uma dezena de concertos, as expetativas inicialmente criadas pelo elemento do projeto saem claramente frustradas, o que pode reduzir significativamente a sua motivação, empenho e desempenho. Desta forma, torna-se crucial que o líder do projeto comunique eficazmente com os diversos stakeholders associados ao grupo (não apenas os restantes elementos do projeto, mas todos os atores externos ao grupo, que sejam relevantes, como: organizadores de eventos, produtores, promotores, entre outros), numa ótica de “feedback 360º”, para que o risco de insucesso diminua. Questões a ter em conta na organização de um projeto musical. A importância da compensação e do plano de carreira. Depois do projeto estar formado e iniciar a sua atividade musical, existem diversas questões que devem ser consideradas por quem gere as suas atividades: a) questões legais/burocráticas (registo do grupo, rider técnico, disposição de palco, necessidades de material para atuações, entre outras), b) compensação e remunerações (qual o orçamento do projeto, quanto corresponde a cada elemento envolvido, entre outros), c) promocionais (onde e como divulgar o projeto) d) organizativas (calendarização de atividades, agendamento de ensaios, concertos, outros). Apesar da importância inerente a cada uma das questões anteriormente referidas, a parte remuneratória é de particular relevância na atividade musical e está relacionada, em termos empresariais, com a gestão da remuneração. Esta área assume uma pertinência ímpar, na medida em que se relaciona com um aspeto fundamental em qualquer organização: a equidade. Tal como acontece em diversas organizações, num projeto musical a perceção de iniquidade na questão remuneratória, por parte dos restantes elementos, pode refletir-se numa atitude menos motivada, menos comprometida que pode até, em alguns casos, culminar com a saída do elemento do grupo. Por outro lado, se o projeto musical assumir uma dimensão mais profissional, pode tornar-se interessante a realização de uma avaliação do desempenho do grupo como um todo, e de cada um dos elementos, em particular. Existem alguns mecanismos para avaliar o desempenho de um grupo musical. Um exemplo pode ser a gravação áudio/ vídeo de ensaios e concertos. Este método de avaliação torna-se, muitas vezes, mais alternativo/original do que nas organizações em geral, mas menos científico e mais empírico do que no mundo empresarial. Ainda assim, este método pode revelar-se eficaz na apreciação da performance dos elementos do projeto e na ponderação de quais são os pontos fortes, os gaps em termos de prestação e quais as necessidades de melhoria/formação futuras. Para além da avaliação, na analogia entre a GRH no mundo empresarial e na atividade musical, é importante destacar-se que a elaboração de um plano de carreira para o projeto em geral, e para os seus elementos, em particular, pode ser um contributo muito relevante na manutenção/aumento da motivação dos mesmos. Por exemplo: um artista/grupo musical de renome internacional que lança um novo disco, não vai promover eternamente o mesmo trabalho em todas as fases da sua carreira. Deve gerir o sucesso que advém do mesmo com as expetativas do seu público-alvo, utilizando o timing como o principal aliado, uma vez que nem todos os momentos são corretos para o desenvolvimento e implementação de determinadas atividades. Nesse sentido, é importante que exista uma ponderação de quais são os objetivos de curto prazo, sem desprezar uma visão de médio-longo prazo. No caso de artistas reconhecidos, acabam por ser, muitas vezes, “ managers” ou empresas especializadas que desenvolvem este trabalho. No entanto, na maioria dos casos, em que não existe um apoio associado desta natureza, torna-se relevante que exista uma reflexão e estruturação, por parte do líder e demais elementos do projeto, sobre quais as metas a atingir e respetivos prazos. Principais diferenças entre a GRH e atividade musical Não obstante as semelhanças anteriormente identificadas entre GRH e atividade de um projeto musical, devem identificar-se algumas diferenças entre estas duas áreas. Por um lado, a menor formalização e a desburocratização associada a um projeto musical, relativamente a uma empresa, em diversas questões, tais como: R&S, ou avaliação de desempenho. Por outro lado, em geral, a estrutura associada a um projeto musical é, na maioria dos casos, menos complexa do que numa organização. Basta ponderarmos a distância hierárquica, no que respeita à comunicação entre os elementos de um projeto musical e o seu líder, que é normalmente muito menor ou quase inexistente, relativamente às organizações. Todavia, à semelhança de qualquer outra situação, existem naturalmente exceções. Um exemplo pode ser Tony Carreira, que possui uma equipa de dezenas de pessoas que trabalham diariamente no desenvolvimento dos seus espetáculos e na carreira do artista e que pode, em termos estruturais, ser mais complexa relativamente a uma pequena empresa. Logicamente que todo o raciocínio apresentado se pauta pela generalidade e que as realidades, quer nas organizações, quer nos projetos musicais, variam caso a caso, e o que é correto para uma realidade não é necessariamente correto para as demais. O que é aplicável em todas as ocasiões é que uma consciencialização e aplicação das temáticas de GRH nos projetos musicais podem contribuir para uma melhoria da qualidade na gestão do grupo, na determinação de objetivos adequados à realidade do projeto musical, nunca minimizando o impacto mais importante que é o aumento da motivação dos elementos integrantes do projeto, o seu envolvimento e a sua satisfação. A gestão de um projeto musical realizada por um líder sem conhecimentos de GRH será, certamente, diferente, quando comparada com um líder que possua esses conhecimentos, uma vez que apesar de o primeiro poder, na prática, desenvolver um trabalho competente e com bons resultados, será certamente, menos estruturado e estratégico, relativamente a um líder que saiba claramente quais são os seus objetivos e como deve gerir eficazmente as pessoas que o constituem. Em suma, pode concluir-se que a atividade de um projeto musical pode assemelhar-se muito mais à gestão de uma empresa, do que muitas vezes é referido. Mas pode ir-se mais além: a área musical não é mais do que uma atividade onde existe um produto específico que é vendido a um determinado mercado-alvo e que deve ser gerido com finalidade estratégica, numa ótica de melhoria continua e tendo por base a premissa de que a gestão é feita por “pessoas-para-as-pessoas” e que a não contemplação de alguns aspetos, por vezes menorizados, relacionados com a GRH, pode por em causa a motivação, a performance e os resultados do ativo mais importante de qualquer organização – as Pessoas!