Arqueologia Egípcia

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publicados online sem nenhuma cobrança e com o único fim de expor a pesquisa para o público amador e
científico.
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUITO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
MARIA THEREZA DAVID JOÃO
DOS TEXTOS DAS PIRÂMIDES AOS TEXTOS DOS SARCÓFAGOS:
A “democratização” da imortalidade como um processo sócio-político
NITERÓI
2008
MARIA THEREZA DAVID JOÃO
DOS TEXTOS DAS PIRÂMIDES AOS TEXTOS DOS SARCÓFAGOS: A
DEMOCRATIZAÇÃO” DA IMORTALIDADE COMO UM PROCESSO SÓCIO-POLÍTICO
Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação em
História da Universidade Federal Fluminense, como requisito
parcial para obtenção do Grau de Mestre. Área de
Concentração: História Social.
Orientador: Prof. Dr. MARCELO A. REDE
Niterói
2008
ii
J62
João, Maria Thereza David.
Dos textos das pirâmides aos textos dos sarcófagos: a
“democratização” da imortalidade como um processo sóciopolítico / Maria Thereza David João. – 2008.
187 f.
Orientador: Marcelo A. Rede.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal Fluminense,
Departamento de História, 2008.
Bibliografia: f. 180-187.
1. Egito Antigo. 2. Religião - Egito. 3. Ritos e cerimônias
fúnebres - Egito. I. Rede, Marcelo A. II. Universidade Federal
Fluminense. Instituto de Ciências Humanas e Filosofia III. Título.
CDD 932
iii
MARIA THEREZA DAVID JOÃO
“DOS TEXTOS DAS PIRÂMIDES AOS TEXTOS DOS SARCÓFAGOS: A
“DEMOCRATIZAÇÃO” DA IMORTALIDADE COMO UM PROCESSO SÓCIO-POLÍTICO
Dissertação apresentada ao curso de Pós-Graduação
em História da Universidade Federal Fluminense,
como requisito parcial para obtenção do título de
mestre. Área de concentração: História social.
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. MARCELO APARECIDO REDE – Orientador
Universidade Federal Fluminense
Prof. Dr. CIRO FLAMARION CARDOSO
Universidade Federal Fluminense
Prof. Dr. EDGARD LEITE
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Niterói
2008
iv
A meus pais, Silvio e Francisca, minha irmãs, Ana Claudia e Silvia
Regina, e minha avó, Maria, com amor.
v
AGRADECIMENTOS
Agradeço, em primeiro lugar, àqueles sem os quais não estaria aqui: meus pais, Silvio e
Francisca. Obrigada por acreditarem em mim, por estarem sempre presentes, mesmo com a
distância, por suportarem a saudade, pelo amor incondicional e pelo apoio dado em todos os
momentos da minha vida. Meu orgulho maior é tê-los como pais – a vocês, meu eterno amor e
meu eterno agradecimento.
Às minhas irmãs, Ana Claudia e Silvia Regina, cujos sorrisos, cuja alegria e cuja ternura
sempre estiveram comigo.
À minha querida avó, Maria, também minha mãe, que sempre com suas orações, sua
dedicação e exemplo de vida, deu-me a certeza do amor.
Aos amigos que, mesmo distantes, sempre deram carinho e apoio: Isabelle, Lidiane,
Daiane, Ana Luiza, Gabriela, Marcela e “Fabinho”.
Às minhas madrinhas “Tóinha” e Eliane, torcedoras sempre fiéis, e suas famílias: Tio Zé,
João Paulo, Zezinho, “Tio” Luís, Ana Cristina e Juliana.
Às novas amizades que conquistei em terras fluminenses, e que sempre estarão em meu
coração: Isabella, Katiuscia, Luciana, Geisa, Raphael, Fernanda, Liliane, Isadora, Ludmila e,
especialmente, Fábio, que de um simples avatar “simpsoniano” com quem conversava na
distância do mundo virtual, tornou-se um grande incentivador, amigo querido e companheiro de
aventuras egiptológicas.
À Maria do Rosário Gomes, por todo o carinho.
A Maurício Schneider e Moacir Santos, cujo apoio, receptividade e incentivo foram
fundamentais para que eu pudesse trilhar os meus primeiros passos nos caminhos e descaminhos
da Egiptologia.
Aos professores membros das bancas de qualificação e defesa Edgard Leite e Ciro
Flamarion Cardoso; a este, sempre solícito, reitero também minha admiração.
Ao meu orientador, professor Marcelo Rede, que me acompanhou durante esta trajetória,
com sua cordialidade e comentários precisos.
Aos professores Marcos Caldas, Sônia Rebel e Adriana Facina, com os quais cursei
disciplinas ao longo do mestrado
vi
Por fim, agradeço ao doce Guilherme, que com sua presença fez desta tarefa uma
provação mais suave e meus dias, certamente, mais felizes. Com ele compartilhei
amadurecimento, dúvidas, angústias, alegrias e descobertas, que deixaram marcas e lembranças
tão ternas quanto inesquecíveis no meu coração. A ele, o meu amor.
Obrigada a todos os que verdadeiramente acreditaram em mim, e não viram nos novos
rumos escolhidos para minha vida simples sonhos utópicos de uma aspirante a Indiana Jones.
Agradeço também a CAPES, pela bolsa concedida à realização desta pesquisa.
vii
“As civilizações desabam
por implosão ...
Depois,
como um filme passando às
avessas
elas se erguem em câmera lenta
do chão.
Não há de ser nada ...
Os
arqueólogos
esperam,
pacientemente,
A sua ocasião!”
Mario Quintana.
viii
RESUMO
O tema central deste trabalho é o pensamento religioso egípcio acerca da morte,
privilegiando a análise da literatura funerária conhecida como Textos das Pirâmides e Textos dos
Sarcófagos. A apropriação por particulares de textos outrora destinados a prover a imortalidade
régia é conhecida pelos estudiosos como “democratização” da imortalidade, e é justamente este
processo que interessa de forma direta aos objetivos desta dissertação. Procurou-se fazer um
estudo da religião mortuária por um viés sócio-político, preocupando-se em analisar as relações
mútuas que se estabelecem entre religião e sociedade, levando em consideração os eventos
sociais, políticos e econômicos que se desencadearam em fins do Reino Antigo (2686 - 2160
A.C.), levando à sua decadência e culminando em um período anárquico conhecido por Primeiro
Período Intermediário (2160 - 2055 A.C)..
Palavras-chave: Egito antigo; literatura funerária; “democratização” da imortalidade.
ix
ABSTRACT
The aim of this work is the Egyptian thought about death, with emphasis laying on the
analysis of mortuary literature – Pyramid Texts and Coffin Texts. The usurpation, by private
individuals, of texts once intended to offer immortality for the kings, is known by the
Egyptologists as “democratization” of immortality. It is this particular process which interests
more precisely to our goals within this dissertation. It has been intended to study the funerary
religion of ancient Egypt in a socio-political perspective, taking into account the mutual
relationships established between religion and society, by analyzing the social, political and
economical events that took place at the end of Old Kingdom (2686 - 2160 A.C.), which
culminated in an anarchic era called the First Intermediate Period (2160 - 2055 A.C ).
Key-words: Ancient Egypt; funerary literature; “democratization” of immortality.
x
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ......................................................................................................................... 13
1 O REINO ANTIGO (2686 - 2160 a.C.) e o PRIMEIRO PERÍODO
INTERMEDIÁRIO (2160 - 2055 a.C.): UM BREVE ARRAZOADO. ..................... 17
1.1 PODER CENTRAL E PODERES LOCAIS NO EGITO ANTIGO: O REINO ANTIGO E
O PRIMEIRO PERÍODO INTERMEDIÁRIO. ........................................................................ 22
1.2 O ESTUDO DA "DEMOCRATIZAÇÃO" DA IMORTALIDADE EM PERSPECTIVA. 35
1.3 SOCIEDADE E INDIVÍDUO NO EGITO ANTIGO: PERSPECTIVAS TEÓRICAS..... 47
1.3.1 AS RELAÇÕES DE PATRONATO E AS AUTOBIOGRAFIAS DE WENI, QAR E ANKHTIFI. ....... 53
2 A RELIGIÃO FUNERÁRIA EGÍPCIA: NOÇOES ESSENCIAIS ......................... 64
2.1 A MORTE PARA OS EGÍPCIOS ....................................................................................... 68
2.1.1 O DEUS DOS MORTOS: OSÍRIS .......................................................................................... 73
2.1.2 AS PIRÂMIDES E SEUS TEXTOS. ....................................................................................... 77
2.1.3 UMA NOVA LITERATURA FUNERÁRIA: OS TEXTOS DOS SARCÓFAGOS. ........................... 82
3 IMPLICAÇÕES DO “ACESSO AO DIVINO” E DO DESENVOLVIMENTO
DE NOÇÕES DE “PARAÍSO” NO MUNDO DOS MORTOS ................................... 91
3.1 O ACESSO AO DIVINO .................................................................................................... 93
3.1.1 A CONQUISTA DO “ACESSO AO DIVINO” ......................................................................... 93
3.1.2 A DIVINIZAÇÃO DE PARTICULARES E O GANHO DO ACESSO AO DIVINO: UM PANORAMA
GERAL. .................................................................................................................................. 102
3.1.3 O ACESSO AO DIVINO E A PIEDADE PESSOAL................................................................. 111
3.1.4 A “DEMOCRATIZAÇÃO” DA IMORTALIDADE E A NATUREZA DIVINA DO REI. ................. 116
3.2 A MORTE COMO HORIZONTE UTÓPICO. ................................................................. 129
3.2.1 O DIÁLOGO DE UM HOMEM COM SEU BA E A QUESTÃO DO JULGAMENTO DOS MORTOS. 129
3.2.2 O DESENVOLVIMENTO DAS CONCEPÇÕES OSIRIANAS SOBRE O PÓS-MORTE: O CAMPO DOS
JUNCOS E O CAMPO DAS OFERENDAS. .................................................................................... 135
4 DOS TEXTOS DAS PIRÂMIDES AOS TEXTOS DOS SARCÓFAGOS:
INOVAÇÕES E DESENVOLVIMENTOS..................................................................... 148
4.1 DA EFICÁCIA MATERIAL AO APROFUNDAMENTO DA EFICÁCIA MÁGICA ... 149
4.2 A REUNIÃO DO MORTO COM SUA FAMÍLIA........................................................... 159
4.3 OS PERIGOS DO OUTRO MUNDO ............................................................................... 165
CONCLUSÃO ......................................................................................................................... 176
BIBLIOGRAFIA..................................................................................................................... 180
xi
LISTA DE ABREVIATURAS, SIGLAS E SÍMBOLOS
JARCE
Journal of the American Research Center in Egypt
JEA
Journal of Egyptian Archaeology
LDC
Livro dos Dois Caminhos
TP
Textos das Pirâmides
TS
Textos dos Sarcófagos
xii
INTRODUÇÃO
“Democratização” da imortalidade: a olhos e ouvidos contemporâneos, essa expressão
pode parecer um tanto quanto esquisita, e até mesmo inadequada para refletir aspectos da
sociedade egípcia antiga. Contudo, é interessante pensarmos no significado dessa expressão. Ela
significa, nada mais, nada menos, que um processo no qual concepções funerárias, uma vez
prerrogativas exclusivamente régias, conheceram maior difusão social.
Pretendeu-se, neste trabalho, dar um enfoque diferenciado ao tratamento de velhos temas,
como é o caso da religião funerária egípcia, alvo recorrente dos estudos egiptológicos. Para tanto,
escolheu-se o tema da “democratização” da imortalidade. Note-se, porém, que a abordagem da
“democratização” da imortalidade não será feita como se a mesma fosse um fenômeno isolado,
mas sim como parte de um processo que abarca um universo maior de transformações,
especialmente de cunho sócio-político. Através deste tratamento do tema, buscou-se encontrar
elementos que auxiliariam em uma melhor compreensão do período ora analisado.
Os objetivos que nortearam a análise foram os seguintes: em primeiro lugar, analisar as
permanências e rupturas no esquema religioso egípcio na passagem do Reino Antigo para o
Reino Médio; verificar, através das fontes, qual a abrangência do processo de “democratização”
e, por fim, analisar de que maneira a emergência do indivíduo é expressa nas fontes do período.
Dos objetivos decorreram as hipóteses de trabalho. A primeira delas diz respeito ao fato
de que a “democratização” da imortalidade está inserida em um processo mais amplo, não restrito
apenas ao âmbito funerário – ela faz, antes, parte de um processo sócio-político estreitamente
relacionado às mudanças percebidas especialmente a partir da VI dinastia, com o ganho de
autonomia por parte dos governadores das províncias, chamados nomarcas. Buscou-se comprovar
também, especialmente a partir de
autobiografias do Reino Antigo e Primeiro Período
Intermediário, a existência de um processo análogo ao de uma “individualização” no Egito
antigo, na medida em que se passa não mais a depender do rei para a obtenção da vida após a
morte e o afrouxamento de laços com o poder central permite que certos indivíduos ajam segundo
iniciativa própria, e não mais segundo ordenanças régias. A questão da “piedade pessoal”, tratada
no terceiro capítulo, reouxe nova luz à análise desta chamada “emergência do indivíduo”. Por
fim, procurou-se entender que a passagem para os Textos dos Sarcófagos não representa uma
ruptura em relação às concepções funerárias anteriores presentes nos Textos das Pirâmides – são,
na verdade, um novo estágio de desenvolvimentos das mesmas, que contam com mais
encantamentos aos quais são aliadas variações regionais.
Com relação ao conteúdo dos capítulos que compõe a dissertação, o primeiro conterá,
antes de tudo, uma breve introdução a respeito do tema abordado. Será mostrado, igualmente, de
que maneira o tema da “democratização” tem sido abordado pelos egiptólogos para, por fim,
apresentar um quadro próprio de análise. Posteriormente, far-se-á a apresentação do quadro
teórico, procurando conectá-lo às hipóteses heurísticas a serem desenvolvidas na dissertação.
Alguns temas irão compor os eixos principais deste capítulo. O primeiro versa sobre a relação
entre indivíduo e sociedade à luz de teorias sociológicas, a exemplo daquela desenvolvida pelo
alemão Norbert Elias. A partir dessas considerações, procurar-se-á demonstrar as nuanças da
relação entre individual e coletivo no Egito antigo, com o objetivo de perceber de que maneira as
mudanças ocorridas entre o fim do Reino Antigo e início do Reino Médio afetaram essa
composição. A constituição de um novo tipo de laço social no período, o do patronato, será o
esteio para a discussão. Na medida que se busca entender o processo da “democratização” da
imortalidade como integrado a um todo mais amplo, bem como clareador de uma
“individualização” mais forte no Egito antigo, justifica-se o espaço dedicado na dissertação a essa
discussão. Tendo em vista não ser possível desconsiderar questões políticas neste contexto, um
outro tema a ser abordado no capítulo é a respeito das relações entre poder central e poderes
locais, já que estes passaram a adquirir grande autonomia em relação àquele. Nomarcas e altos
funcionários, beneficiários dessa situação, foram justamente os depositários do novo ganho da
imortalidade; logo, é importante observar de que maneira o enfraquecimento da monarquia,
poder, prestígio social e “democratização” estão interligados. Com relação às fontes, as que
interessam de forma mais particular a este capítulo são as autobiografias de nomarcas do período,
bem como textos selecionados dentre a Literatura Pessimista.
Como o tema da “democratização” toca diretamente aspectos concernentes à religião
funerária egípcia, concluiu-se que deveria ser confeccionado um capítulo versando sobre suas
características, a fim de fornecer um background teórico sobre o tema. É o que consta, portanto,
do segundo capítulo. Esta apresentação será o ponto de partida para discutir acerca dos câmbios e
permanências na religião egípcia após a chamada “democratização”. As fontes primárias a serem
utilizadas foram os Textos das Pirâmides e os Textos dos Sarcófagos. Como o tema da
14
“democratização” da imortalidade toca justamente no problema da trajetória da religião funerária
(práticas e representações), a apresentação do contexto da religião funerária mencionado
anteriormente será feito não de forma isolada, mas desenvolvida juntamente com o intuito de
tecer as suas relações com o tema específico da “democratização”. Com isso, pretende-se dar um
enfoque renovado ao tema da religião funerária, mostrando de que forma uma abordagem
diferenciada do mesmo altera os conhecimentos que possuímos acerca da “democratização”.
O terceiro e quarto capítulos compreendem a análise de fontes propriamente dita. Serão
analisadas, especialmente, as inovações e os desenvolvimentos concernentes ao imaginário
religioso egípcio, conforme se verifica nos Textos dos Sarcófagos, buscando entender a relação
de tais elementos com as expectativas da época em que foram produzidos. Para tanto, escolheu-se
analisar, em primeiro lugar, a relação existente entre a “democratização” da imortalidade e o
surgimento da chamada “piedade pessoal” no Egito antigo, que consiste nas relações
estabelecidas entre indivíduos e divindades. O tema da “piedade pessoal” ajuda, igualmente, a
perceber de que maneira a “democratização” da imortalidade se liga, também, ao
enfraquecimento da figura régia, e conseqüentemente da posição do rei como único intermediário
entre deuses e homens. Com o auxílio da Literatura Propagandística do Reino Médio foi possível
caracterizar mudanças na percepção da natureza do monarca egípcio, que passa a ser tratado em
termos mais humanos que divinos, já que parte da sua essência divina é partilhada com
particulares no âmbito do pós-morte. Percebeu-se, desta forma, uma certa diminuição no abismo
que separava o governante de seus súditos, o qual sustentava-se em grande parte na essência
divina do soberano, que o tornava diferente do resto da humanidade.
Posteriormente, procurou-se entender de que maneira o desenvolvimento de uma idéia de
“paraíso” no mundo dos mortos se relaciona aos eventos turbulentos de fins do Reino Médio e
Primeiro Período Intermediário. O tratamento deste tema se fez tendo em vista a caracterização
da morte, neste momento, como um horizonte utópico, o que levou à introdução de elementos
como bem-estar, abundância e salvação ao imaginário do pós-morte.
Outros elementos foram também analisados, como a maior importância concedida aos
elementos mágicos no âmbito funerário, levando em conta o momento anterior, dos Textos das
Pirâmides, no qual se tem a primazia da eficácia material. A reunião do morto com a sua família,
um elemento novo trazido pelos Textos dos Sarcófagos, foi também alvo de análise, visando uma
compreensão mais aprofundada da importância da manutenção dos laços sociais adquiridos em
15
vida e da preservação da memória do falecido como indispensáveis à sobrevivência no outro
mundo. Além disto, notou-se que, nos Textos dos Sarcófagos, há uma maior preocupação a
caracterização da vida além túmulo, evidenciada por um maior detalhamento das regiões que a
compõe e dos perigos que deveriam ser enfrentados pelo morto durante a sua travessia. A
caracterização dos perigos que rondavam o outro mundo foi objeto de análise, procurando
relacioná-la ao medo, existente na época, de “morrer uma segunda morte”, tendo em vista a
insegurança da vida terrena.
16
1 O REINO ANTIGO (2686 - 2160 A.C.) E O PRIMEIRO PERÍODO
INTERMEDIÁRIO (2160 - 2055 A.C.): UM BREVE ARRAZOADO.
Antes de compreender as transformações que vão do período dos Textos das Pirâmides ao
dos Textos dos Sarcófagos, é necessário situar o período historicamente. O momento de transição
do Reino Antigo para o Reino Médio será o recorte cronológico privilegiado, uma vez que a
“democratização” está, sem dúvida, plenamente ligada às transformações ocorridas neste
interlúdio. Contudo, isto não implica dizer que não se fará referência a momentos anteriores ou
posteriores, até porque certos fatores diretamente relacionados a esta transição têm origem em
dinastias mais antigas e perduram mesmo após o processo de reunificação e consolidação do
poder a partir da XI dinastia. Não basta, meeramente, pôr em contexto a produção dos Textos das
Pirâmides ou dos Textos dos Sarcófagos – é necessário elucidar os fatores que levaram a esta
transição. Nesta direção, tentarei contextualizar esta produção especialmente sob o viés político
das relações entre a ascensão de poderes locais e o enfraquecimento do poder central; e, ainda, a
exemplo de Ciro Cardoso quando da análise dos papiros de Hekanakht, pretendo inserir esta
contextualização em uma história da escrita e dos textos egípcios1. Este último, contudo, deixarei
para expor de forma mais consistente no segundo capítulo que compõe esta dissertação.
Segundo a cronologia habitual, o Reino Antigo durou de 2686 a.C até 2160 a.C., o que
compreende as dinastias III a VIII. O Primeiro Período Intermediário, que sucede imediatamente
1
CARDOSO, Ciro Flamarion. Hekanakht: pujança passageira do privado no Egito antigo. Niterói, 1993. Tese
(Concurso para Professor Titular) – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia. Universidade Federal Fluminense,
Niterói, 1993.
17
o Reino Antigo, engloba, segundo Manethon, as dinastias IX, X e XI.2 Durante o Reino Antigo,
consolidou-se no Egito o modelo da monarquia faraônica em seu aspecto mais centralizador.
Todo o aparato administrativo do Estado estava voltado para esta composição, a qual, aos poucos,
foi sendo interiorizada pela população3.
Um dos fatores que contribuiu de forma essencial para esta composição foi a inserção do
papel do rei na teologia solar. Desta maneira, todo o culto passou a se concentrar em torno do
deus Rá, do qual o faraó era considerado filho e encarnação, o que legitimou, portanto, sua
autoridade como inquestionável.
O ápice desta ideologia se deu no período em que foram realizadas as grandes construções
monumentais, a exemplo das magníficas pirâmides de Gizé. Ao final da IV dinastia, contudo, já
não se faziam mais obras de tamanha suntuosidade, o que, conforme opinião de Seidlmayer, “[...]
sugere que o sistema social havia se fragmentado, tanto em sua organização política quanto em
seus padrões culturais”4.
Após a queda da VI dinastia, assistiu-se no Egito a um acelerado processo de
desagregação que, se na VIII dinastia não estava consolidado de iure, existia certamente de
facto5. Sob a liderança de importantes famílias provinciais, através de alianças e guerras de
pequeno porte, surgiram no Egito o que Cardoso define como “proto-estados”. Esta configuração
abalou a estrutura do próprio Estado egípcio uma vez que, segundo Eyre, “a ideologia
fundamental do Estado era a da existência de um centro altamente influente, fonte batismal da
autoridade, de modo que uma simples referência à administração provincial era, em si, antiideológica”6.
2
O nome “período intermediário” é utilizado pelos egiptólogos para se referir a períodos de enfraquecimento do
poder centralizado em oposição aos “reinos”, que comportam uma forte unidade política. (Cf. SEIDLMAYER,
Stephen. The First Intermediate Period (c. 2160-2055 BC). In: SHAW, Ian. The Oxford History of Ancient Egypt.
Oxford: Oxford University Press, 2003. )
3
Segundo Pierre Bourdieu, é através da análise da gênese do Estado que se torna possível explicar, por exemplo, a
adexão dóxica a uma determinada ordem estatal, que é vista, aparentemente, como natural. O sociólogo define doxa
como “um ponto de vista particular, o ponto de vista dos dominantes, que se apresenta e se impõe como ponto de
vista universal; o ponto de vista daqueles que dominam dominando o Estado e que constituíram seu ponto de vista
em ponto de vista universal ao criarem o Estado” (BOURDIEU, Pierre. Razões práticas. Sobre a teoria da ação. 7a.
ed. Campinas: Papirus, 2005.p. 120).
4
SEIDLMAYER, op. cit. p.110.
5
CARDOSO, op. cit., 1993, p.113.
6
EYRE, Chistopher. Pouvoir central et pouvoir locaux: problèmes historiographiques et méthodologiques.
Méditerranée, Paris: L´Harmattan. n. 24. 2000. p. 16.
18
Frise-se, apenas, que estes estados não coincidem, necessariamente, com os nomos – ou
spats, unidades básicas locais, cujas origens remontam ao período Tinita, conforme ressalta
Cardoso7.
É neste contexto que Mênfis, a então capital, vê minguar a sua importância. Um desses
proto-estados se formou na cidade de Heracleópolis que,
[...] mesmo sem poder se comparar ao que havia sido a Mênfis do
apogeu do Reino Antigo, [...] tornou-se uma capital cultural; manteve viva,
também, a tradição dos escribas e burocratas necessários ao funcionamento de
um Estado como o egípcio8.
Com a VIII dinastia tem fim o Reino Antigo e se inicia o Primeiro Período Intermediário,
no qual se sucederam no poder governantes provenientes de Heracleópolis, os quais compuseram
a IX e X dinastias descritas por Manethon.
Jan Assmann divide o Primeiro Período Intermediário em três fases distintas9. A primeira
data do fim da VI dinastia ao final da VIII dinastia (2170-2140 a.C.), marcada especialmente pela
conquista de independência dos nomarcas em relação à autoridade central. Após a morte de Pepi
II (VI dinastia), magnatas rivais passam a se digladiar pelo poder. É a este momento ainda um
tanto ou quanto obscuro da história egípcia a que, supostamente, Manethon se refere ao falar em
“setenta reis de Mênfis que governaram por setenta dias”, como forma de expressar um número
desproporcional de reis que aparecem nas listas reais e que se sucederam no trono em um curto
espaço de tempo. Teoricamente, estes acontecimentos fazem parte da VII dinastia. Todavia,
Cardoso é categórico ao afirmar que a “VII dinastia não existiu”. Ou, então, “talvez não passasse
de um artifício literário usado por Manethon para simbolizar o colapso do poder menfita [...]”10,
por não haver reis desta dinastia arqueologicamente atestados.
7
A palavra egípcia spat (traduzida para o grego como nomo), significa "distrito", "circunscrição administrativa". Na
época do Reino Novo, havia cerca de trinta e oito nomos no Egito antigo - vinte e dois no Alto Egito e dezesseis no
Baixo Egito - os quais contavam com uma espécie de capital e possuíam, igualmente, templos dedicados ao deus ou
deuses locais, composição esta que remete às estruturas clânicas de outrora. Cada um destes nomos era governado
por um funcionário - o nomarca.
8
CARDOSO, op. cit., 1993, p. 114.
9
Cf. ASSMANN, Jan. The mind of Egypt. History and meaning in the time of the pharaos. Cambridge: Harvard
University Press, 2003. p. 84-85.
10
CARDOSO, op.cit., 1993, p. 113.
19
A segunda fase delimitada por Assmann é chamada de “Período Heracleopolitano” (21402060 a.C.) e cobre, justamente, as dinastias IX e X. É um momento em que coexistiam vários
“pequenos príncipes”, os quais subjugavam seus vizinhos e arrogavam para si o título de reis,
muito embora não exercessem nenhuma influência fora de sua circunscrição regional. Segundo o
Papiro de Turim, existiram nesta época cerca de dezessete ou dezoito reis provenientes de
Heracleópolis. Assmann define este período pelo surgimento de “estruturas policêntricas”; em
suas próprias palavras, podemos entendê-las da seguinte forma:
Por baixo da superfície monocêntrica do estado territorial dominante nas
fases de “Reino” da história egípcia, uma profunda estrutura policêntrica
repetidamente aparecia quando a superfície desmoronava. Esta alternância entre
a superfície e uma estrutura mais profunda é espelhada na mudança entre os
paradigmas semânticos cooperativo e competitivo. Nas fases em que o poder
central enfraquecia seu controle, valores competitivos ganhavam vantagem
sobre os valores que favoreciam a integração11.
Por fim, a terceira e última fase corresponde à duração da XI dinastia, quando ascendem
ao trono governantes provenientes da cidade de Tebas. Tebanos e heracleopolitanos disputaram o
poder durante um período de cerca de noventa a cento e dez anos. Mesmo após o término do
Período Heracleopolitano, a situação do Egito remetia àquela da época da unificação, marcada
por um dualismo que opunha norte e sul, até que Mentuhotep II (2060-2010 a.C.) arquiteta a
reunificação e instaura novamente um governo centralizado - o qual, contudo, era ainda frágil. A
centralização efetiva do poder só se dará na XII dinastia, com a subida ao trono dos Amenemhat.
S. Moscati vê o cerne da crise política que acometeu o Estado egípcio ao final do Reino
Antigo já na V dinastia, por influência dos sacerdotes12. Segundo o autor, o clero de Heliópolis já
havia decidido quem seriam os três primeiros reis desta dinastia (Userkaf – 2465-2458 a.C.,
Sahure – 2458-2446 a.C. e Kakai – 2446-2426 a.C.), os quais não eram de estirpe régia. Estes
monarcas, em troca, passaram a conceder benefícios generosos ao clero, o que foi aos poucos
dilapidando o patrimônio estatal. A existência destas concessões, creio eu, têm ligação direta com
reivindicações do clero tradicional, insatisfeitos com a incorporação da teologia solar mencionada anteriormente - e suas implicações, como a centralização dos cultos.
11
ASSMANN, op. cit. p.84.
MOSCATI, Sabatino. Eventi storico-politici dell' Antico Regno. Gli uomini e le loro istituzioni, n.19. Firenze:
Casa editrice G. D´Anna. passim.
12
20
Há várias hipóteses acerca dos fatores que teriam levado ao colapso do Reino Antigo.
Cardoso enumera cinco: 1) excesso de independência dos sacerdotes, com isenções e doações que
enfraqueceram o patrimônio estatal; 2) fraqueza pessoal dos reis; 3) avanço do poder e
hereditariedade de funções dos nomarcas; 4) revolta popular e 5) invasão estrangeira13.Alguns
autores adicionam, juntamente a estes fatores, um possível período de cheias insuficientes do
Nilo, que teria provocado uma crise de gêneros no país e um longo período de fome.
Naguib Kanawati, por sua vez, atribui à crescente burocratização do Estado egípcio – e
conseqüente aumento de funcionários – a causa principal da queda do Reino Antigo14. Cardoso
sintetiza a idéia de Kanawati:
Como resultado da multiplicação dos burocratas, os rendimentos de cada
funcionário, no governo central e nos nomos, declinaram drasticamente, levando
a uma queda na qualidade da administração e à insatisfação geral, num regime
trabalhado por desequilíbrios internos graves que, por tal razão, não pôde fazer
frente aos problemas internos e externos que se multiplicaram e passaram a agir
em conjunto a partir do final da VI dinastia15.
Devo, a exemplo de Ann Roth16, discordar de Kanawati quando o mesmo nega a
existência de um processo de regionalização do poder e autonomia de altos funcionários frente ao
poder central, e entender o fim do Reino Antigo da maneira exposta por Cardoso, que atribui a
sua queda a uma superposição de fatores. A partir das autobiografias do Primeiro Período
Intermediário é possível reconhecer a existência desta regionalização, pois as mesmas acentuam a
independência de que gozavam certos funcionários, a aquisição, por eles, de territórios e
povoados e a primazia que os mesmos exerciam sobre as populações subjugadas17.
Com o fim do Reino Antigo e do Primeiro Período Intermediário, inicia-se no Egito o
Reino Médio, cujo primeiro faraó foi Mentuhotep II. Este período foi marcado pela recuperação
13
CARDOSO, Ciro Flamarion. Sete olhares sobre a antiguidade. Brasília: Editora da Universidade de Brasília,
1994. p.81.
14
Cf. KANAWATI, Naguib. The Egyptian administration in the Old Kingdom: evidence on its economic decline.
Warminster: Aris & Phillips, 1977; KANAWATI, Naguib. Governmental reforms in Old Kingdom Egypt.
Warminster: Aris & Phillips, 1980.
15
CARDOSO, op. cit., 1993, p. 121.
16
Cf. ROTH, Ann Macy. Governmental reforms in Old Kingdom Egypt by Naguib Kanawati. Journal of Near
Eastern Studies. XLII, 1982, p. 154-155. Todas estas teorias acerca do fim do Reino Antigo estão expostas em
CARDOSO, op. cit., 1993, p.120-123.
17
Cf. EYRE, op. cit. p.20.
21
do poder centralizado em torno do faraó - embora não na mesma intensidade verificada no Reino
Antigo - e por tentativas de recuperação deste controle através de esforços ideológicos conforme
se verifica, por exemplo, a partir do conteúdo da literatura típica do Reino Médio.
1.1 PODER CENTRAL E PODERES LOCAIS NO EGITO ANTIGO: O REINO ANTIGO E O
PRIMEIRO PERÍODO INTERMEDIÁRIO.
Dentre as causas expostas sobre o fim do Reino Antigo, a que toca mais diretamente o
tema desta dissertação é a que diz respeito ao ganho de poder dos nomarcas. Isto fica claro se
levarmos em consideração que “foi o estabelecimento provincial do Primeiro Período
Intermediário que exerceu um papel relevante na origem dos Textos dos Sarcófagos e contribuiu
para o seu conteúdo conceitual”18. A “democratização”, portanto, pode - e deve - ser entendida
como parte integrante de um processo sócio-político cujas origens remontam ao fim do Reino
Antigo.
Durante este primeiro período da história política do Egito faraônico, tudo estava
concentrado na capital, Mênfis – o aparato administrativo, a elite e as tradições do país. Como
forma de administrar um território tão longo como o do Egito, emissários régios eram enviados a
diversas seções localizadas ao longo do rio Nilo, mas sem fixar bases de poder local – estes
funcionários mantinham, pelo contrário, fortes elos com o governo central e com a capital.
Funcionários como estes eram enterrados ao redor da pirâmide faraônica, o que projeta a
dependência para com o rei em vida para o âmbito do pós-morte. Além de ser uma forma de
exibição de prestígio e status, por indicar proximidade com o poder central, ser enterrado junto ao
monarca significa, igualmente, que a imortalidade individual era dependente da imortalidade do
rei, situação que seria modificada mais tarde, conforme se verá adiante.
As principais funções dos funcionários enviados às províncias consistiam na coleta de
impostos, na justiça, no controle das obras de irrigação e na organização da corvéia – trabalho
compulsório devido ao Estado, especialmente nas épocas de entressafra, pelo qual os
trabalhadores eram remunerados com o ganho de rações diárias. Eyre caracteriza este modelo
como “governo expedicionário”:
18
SEIDLMAYER, op. cit.
22
O Reino Antigo parece caracterizado por uma corte central influente,
com uma penetração administrativa das províncias relativamente fraca, fundada
sob o controle de centros geográficos chaves como Assuã, Coptos, Abidos, no
extremo sul, ou Buto no Delta, e uma forma de governo essencialmente
expedicionária: controle provincial por intermédio de representantes19.
A partir da V e da VI dinastias, os administradores provinciais de outrora passam a ficar,
cada qual, responsável por um só nomo, o que implicou fixar residência nos locais a que eram
destinados. Isto se deve a uma crescente complexidade administrativa no Egito antigo - ou
"elefantíase burocrática", como curiosamente a chama Corrado Barbagallo20 - que obrigou o
faraó a delegar certas funções a terceiros, escolhidos dentre aqueles que lhe eram mais próximos.
Em razão da própria geografia do Egito – território longo e extenso – a comunicação com
estes diversos nomos era difícil, feita pela via da navegação. Isto implica dizer, por conseguinte,
que o controle dos mesmos era também muito difícil, o que facilitava a “divisão e o
particularismo nas fases em que o governo central se debilitava”21. Em pouco tempo, estas
funções se tornaram hereditárias, o que implica afirmar um ganho de poder crescente por parte
dos funcionários provinciais, que passam a organizar a administração no nível local segundo seus
próprios interesses.
Alguns autores mais antigos comparam este quadro de regionalização do poder a um
processo de feudalização do poder monárquico, como é o caso de A. Moret e J. Pirenne22.
Segundo tais autores, a pequena aristocracia sacerdotal, que passou a gozar de inúmeros
privilégios a partir da V dinastia, torna-se uma aristocracia fundiária, beneficiada pela concessão
de cargos administrativos fora do circuito regular, especialmente nas províncias. Desta forma, o
poder do rei passa, efetivamente, para as mãos destas pessoas, auxiliadas pelo advento da
19
EYRE, op. cit., p. 31. Contrariamente a autores como Assmann, que postulam a inexistência de intermediários
entre o rei e a população egípcia em termos administrativos e econômicos, a tendência de Eyre é a de “encarar a
economia rural egípcia como tendo funcionado à base de hierarquias, acordos e relações estabelecidos entre
indivíduos em função de circunstâncias locais e regionais mutáveis no tempo, mais do que pela ação centralizada,
por exemplo, do Estado faraônico e suas grandes organizações (palácio, templos), ou de formulações jurídicas de
sentido fixo a respeito da propriedade da terra ou do status das partes envolvidas” (CARDOSO, Ciro Flamarion.
Obra inédita.)
20
BARBAGALLO, Corrado. Apoteosi e decadenza dell´assolutismo monarchico nell´Antico Regno: la prima
rivoluzione político-sociale. Gli uomini (...), n. 19. Firenze: Casa Editrice G. D´Anna. pp. 63-68.
21
CARDOSO, Ciro Flamarion. O Egito Antigo. São Paulo: Brasiliense, 2004.
22
MORET, Alexander. La << carta di immunità >>, ovvero la ratifica del decadere del potere faraonico. Gli uomini
(...), n. 19. Firenze: Casa editrice G. D´Anna, pp. 68-73 ; PIRENNE, Jacques. La feudalizzazione del potere
teocratico del faraone. Gli uomini (...) . Firenze: Casa editrice G. D´Anna, n.19. pp. 63-77.
23
hereditariedade de suas funções. Como detentoras do culto e do poder, estas novas aristocracias
locais gozavam de imunidade fiscal, e passaram a exercer direitos sobre seus territórios,
constituindo-se em estados dentro do próprio Estado desmembrando, assim, a soberania do rei.
Os territórios doados pelo rei para usufruto destes funcionários passam, também, a ficar sujeitos
às leis de hereditariedade. Pirenne diz que os proprietários fundiários tornam-se, então,
senhores23.
Seidlmayer observa que, no âmbito da economia, estas transformações representaram uma
importante mudança no padrão sócio-econômico tradicional. Anteriormente, a lógica era a de
concentrar os excedentes econômicos na capital – obtidos com a tributação e a corvéia - para
posterior redistribuição, pela administração central (composta pelo palácio e pelos templos) aos
beneficiários. Ciro Cardoso observa que estes excedentes tinham dois destinos: um deles visava
sustentar uma aristocracia burocrática e sacerdotal e, o outro, ia para o pagamento de artesãos
especializados e dos trabalhadores envolvidos nas obras públicas24. Este primeiro quadro se altera
porque, agora, os funcionários fixados nas províncias ganham acesso direto aos produtos, sem
precisar da mediação da burocracia central25.
Outra importante mudança a ser considerada é o fato de os funcionários provinciais não
optarem mais por um enterro junto ao rei, ao pé de sua pirâmide. Há, pelo contrário, um aumento
no número de enterros realizados nas províncias, o que demonstra uma clara ruptura com a
necessidade de intermediação do monarca para a obtenção da imortalidade. Enquanto que, a
partir da V dinastia, verifica-se um declínio nas construções de moradas para a eternidade do rei,
há um aumento significativo na construção de tumbas pertencentes a funcionários provinciais26.
23
Pirenne afirma que esta configuração de terras levou a uma transformação social, na qual as famílias nobres
passam a se agrupar em torno de seu patrimônio sob a autoridade do chefe da família, cedendo espaço para uma nova
solidariedade "senhorial e familiar" (PIRENNE, op. cit., pp. 73-77). Em vez de utilizar termos emprestados dos
estudos medievais, como senhorio e feudalização, estas relações serão tratadas aqui como relações de patronato,
empregando um termo utilizado pelos estudos romanos. Neste sentido, devo concordar com Finley, quando o mesmo
diz que os aristocratas gregos e romanos (e, a meu ver, os egípcios também), não eram chefes tribais nem caudilhos
feudais, pois seu poder estava fundado em algo diverso do que estavam estas categorias. O poder destas pessoas, na
interpretação de Finley, sustentava-se no que para este autor é o óbvio: em sua riqueza e nos métodos como a
desembolsavam (FINLEY, Moses. Autoridade e Patronato. In: ______. Política no mundo antigo. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1983. cap. 2). Em minha opinião, no caso do Egito, este último se dava através da função exercida pelo
aristocrata, como o monopólio de atividades administrativas e religiosas.
24
Cf. CARDOSO, op. cit., 2004, passim
25
SEIDLMAYER, op. cit., passim
26
O declínio do poder monárquico que vem sendo analisado aqui pode ser observado, por exemplo, através da
disposição das pirâmides no complexo piramidal, o qual incluía, além da própria tumba, edifícios como um templo
dedicado ao culto mortuário régio. A pirâmide, já nos complexos da V e da VI dinastia, não é mais colocada no
centro do cemitério familiar, conforme observa Rosalie David, e as tumbas dos cortesãos e funcionários são
24
Esta alteração é fruto do momento político, em que há uma gradativa erosão nos laços de
dependência entre o faraó e os encarregados das províncias, os quais passam a agir com maior
independência.
A importância que, gradativamente, foram adquirindo os altos funcionários responsáveis
pela administração dos nomos não pode ser entendida de forma maniqueísta. A partir do
momento em que se fixaram nas províncias, os nomarcas não pensaram de forma deliberada em
confrontar o poder central – de forma alguma. Este processo faz parte de um conjunto de
transformações iniciadas já a partir da VI dinastia, com a delegação de autoridade a eles por parte
do faraó. Com o declínio da monarquia faraônica, mais evidente especialmente após o reinado de
Pepi II, o Estado egípcio encontrou dificuldades em atender certas demandas, uma vez que os
mecanismos que asseguravam uma certa unidade e controle ao território encontravam-se
debilitados. Marcella Trapani, à luz de Moreno García, observa, então, uma mudança no modelo
ideológico dominante durante o Reino Antigo27. Em vez de um Estado equilibrado centrado sob a
égide do faraó, o qual distribuía honras e recompensas a seus colaboradores, forma-se um novo
modelo baseado no "bem-estar" social, o qual deveria ser garantido através da iniciativa pessoal
do funcionário28.
Este processo levou a uma concentração cada vez maior de poder e riqueza por parte das
elites locais, que agiam como o rei e sua corte nos territórios que escapavam às frágeis teias do
poder central. Com isto, os nomarcas foram angariando alianças e conquistando um prestígio
crescente, em razão da função que desempenhavam.
É possível explicar a aquisição dos textos funerários régios através do mecanismo da
perda de autoridade faraônica, uma vez que as conseqüências deste processo podem ser
observadas em vários aspectos da sociedade egípcia. Há uma lenta difusão de elementos outrora
pertencentes à realeza a alguns outros setores da população. A própria evolução dos monumentos
funerários pode indicar algo neste sentido. As mastabas, que primeiramente foram utilizadas de
forma exclusiva nos enterros dos monarcas, configuraram-se mais tarde como estruturas
funerárias típicas de funcionários importantes do rei. Esta transição, contudo, não pode excluir
dispostas de forma mais frouxa ao longo da área de enterro (cf. DAVID, Rosalie. Religion and magic in Ancient
Egypt. Penguin Books: 2002, p. 115).
27
TRAPANI, Marcella. Anthropologie politique de l´Ancien Empire égyptien. Méditerranées, Paris: L´Harmattan.
n. 24, 2000. p.51.
28
Esta mudança será melhor percebida através da análise das autobiografias de três funcionários do Estado egípcio:
Weni, Qar e Ankhtifi.
25
motivações de cunho ideológico e religioso que teriam levado ao abandono, por parte dos reis,
das mastabas em benefício de um novo modelo de tumba – a pirâmide. Conforme se verá no
capítulo dois, o crescimento em importância da teologia solar exerceu uma forte influência no
próprio conceito desta nova forma de morada para a eternidade. O Ritual de Abertura da Boca,
igualmente, era originalmente executado para o rei, e gradualmente se estendeu para a nobreza e
outros que pudessem pagar por ele.
***
Como a temática aqui desenvolvida toca diretamente o tema da administração no Egito
antigo cabe apenas, antes de prosseguir, desenvolver uma breve discussão envolvendo o conceito
de burocracia, haja vista a corrente acepção do termo vincular-se ao funcionamento dos Estados
modernos. Torna-se necessário, portanto, compreender o fenômeno burocrático em suas formas
mais antigas, como aquela existente no Egito antigo, por ser este um tema caro à dissertação ora
desenvolvida. Posteriormente, verificar-se-á que, segundo hipótese de trabalho, as relações
envolvendo o quadro da administração egípcia e suas transformações têm ligação direta com a
“democratização” da imortalidade.
Em estudo sobre a sociedade romana, Fábio Faversani apresenta a idéia de WallaceHadrill de que, no mundo antigo,
[...] as pessoas que atuavam no campo do Estado não constituíam uma
burocracia à moda dos Estados modernos e que os níveis de institucionalização
dos órgãos estatais eram insuficientes a ponto de mecanismos não institucionais
serem mais influentes nas decisões de Estado do que aqueles altamente
institucionalizados29.
Tanto quanto para um autor quanto para outro, "no passado, as relações de patronato
prevaleceriam sobre a institucionalização e a regulação racional e pública dos Estados
29
FAVERSANI, Fábio. As relações interpessoais sob o império romano: uma discussão da contribuição teórica da
Escola de Cambridge para o estudo da sociedade romana. In: CARVALHO, Alexandre Galvão (org.). Interação
social, reciprocidade e profetismo no mundo antigo. Vitória da Conquista: Edições UESB, 2004. p. 32).
29
FAVERSANI, op. cit., p.33.
26
modernos"30, o que implica dizer que sociedades como a romana não contaram com uma
burocracia.
Parece-me, contudo, mais adequado não rejeitar o uso do termo para a sociedade egípcia
antiga, mas sim ponderar até que ponto a estrutura do Estado faraônico se assemelhava a uma
burocracia e até que ponto distanciava-se dela. Em outras palavras, é preciso compreender o que
é "burocracia" no Egito antigo.
Max Weber se vale da definição de "burocracia patrimonial" para compreender o caso
egípcio. Contudo, antes de entendermos o que isto significa, é necessário vislumbrar alguns
aspectos da sociologia weberiana, especialmente no tocante às suas definições a respeito de
"racionalidade", "burocracia" e "patrimonialismo" - este último implica um conhecimento um
pouco mais apurado acerca dos tipos de dominação formulados pelo sociólogo.
Segundo Weber, o tipo de dominação mais puro dentro do quadro administrativo é o
"funcionalismo", ou seja, a "burocracia". A burocracia moderna age segundo princípios de
racionalidade plena, que são expostos por Weber em Economia e Sociedade. A racionalidade
administrativa a que se reporta Weber pode ser entendida, em linhas gerais, como o exercício de
tarefas objetivas pelo funcionário, cuja extensão e conteúdo estão delimitadas por regras préestabelecidas, de conteúdo abstrato, passíveis de serem apreendidas racionalmente. A isto se opõe
uma administração pautada na obediência à pessoa do senhor, marcada pelo livre arbítrio do
mesmo. É por isto que, para Weber,
O decisivo para nós é que, em princípio, atrás de todo ato de uma
autêntica [grifo nosso] administração burocrática encontra-se um sistema de
'razões' racionalmente discutíveis, isto é, a subsunção a normas ou a ponderação
de fins e meios31.
Dentre os princípios que regem a burocracia moderna é possível destacar a qualidade
profissional, a separação absoluta entre o quadro administrativo e os meios de administração e
produção, e a não apropriação do cargo pelo detentor. O autor destaca especialmente o princípio
31
WEBER, Max. Economia e sociedade. Fundamentos da sociologia compreensiva. v.2. São Paulo: Editora UnB;
Imprensa Oficial, 2004. p. 216.
27
da qualificação profissional, ao afirmar que a dominação em virtude de conhecimento é o caráter
fundamental e especificamente racional da administração burocrática32.
O funcionalismo moderno, na acepção de Weber, manifesta-se também através de outras
características. Há, por exemplo, o princípio das competências fixas, que para o sociólogo difere
das sociedades do antigo oriente porque nestas o soberano escolhia homens de confiança pessoal
para a realização de determinadas medidas concretas - portanto, tratava-se de um encargo
temporário e não fixamente delimitado. Existe, também, o princípio da hierarquia de cargos, que
implica na regulamentação do mando e da subordinação, bem como a fiscalização das hierarquias
inferiores pelas superiores33. Outra característica é a de que a burocracia moderna baseia-se em
documentos, em atas, o que leva à formação de um "escritório", este separado da moradia
privada, pois há uma cisão clara entre a atividade oficial e a esfera privada. Vigem, igualmente,
os princípios que exigem intensa instrução na matéria, bem como o emprego da plena força de
trabalho do funcionário. Finalmente, observa-se que o funcionamento da administração se dá de
acordo com regras gerais, diferentemente das sociedades antigas, nas quais mandava a tradição e
não regras juridicamente instituídas34.
Do ponto de vista social, a dominação burocrática significa, em geral:
1. A tendência ao nivelamento no interesse da possibilidade de
recrutamento universal a partir dos profissionalmente mais qualificados. 2. A
tendênca à plutocratização no interesse de um processo muito extenso de
qualificação profissional [...]. 3. A dominação da impessoalidade formalista:
sine ira et studio, sem ódio e paixão, e, portanto, sem "amor" e "entusiasmo",
sob a pressão de simples conceitos de dever, sem considerações pessoais, de
modo formalmente igual para "cada qual", isto é, cada qual dos interessados que
efetivamente se encontram em situação igual - é assim que o funcionário exerce
seu cargo35.
Continuando seu raciocínio, Weber atesta que o "espírito" normal da burocracia racional é
em termos gerais, o do formalismo, e uma tendência à racionalidade material, ou seja, uma
execução materialmente utilitarista por parte do funcionário quando da realização de suas tarefas
administrativas, que é feita a serviço dos dominados a serem satisfeitos.
32
WEBER, Max. Economia e sociedade. Fundamentos da sociologia compreensiva. v.1. 4 ed. São Paulo: Editora
UnB; Imprensa Oficial, 2004. p. 147.
33
Esta seria uma característica comum a todas as formações burocráticas.
34
Vale a pena lembrar, apenas, que as formulações de Max Weber se referem a uma burocracia de tipo ideal.
35
WEBER, op. cit., v.1, p. 147.
28
Para Weber, as burocracias antigas diferem das modernas por se definirem através de um
caráter tipicamente patrimonial. Por patrimonial entende-se "[...] toda a dominação que,
originariamente orientada pela tradição, se exerce em virtude de pleno direito pessoal [...]"36. O
autor sustenta que, tanto na China quanto no Egito, a clientela do rei era a fonte do funcionalismo
patrimonial.
O patrimonialismo é a forma mais corrente de domínio tradicional, segundo a
classificação weberiana dos tipos de dominação, e aproxima-se da burocracia
[...] pelo fato de recusar também o excepcional e de ser uma instituição
durável e contínua, embora a norma preexistente à qual ela se refere não tenha
nada de racional nem de técnico, mas possua um conteúdo concreto, a saber, a
validade do costume considerado como inviolável, em razão da santidade do que
sempre foi37.
Uma diferença crucial, segundo Weber, entre a burocracia moderna e a patrimonial é a
ausência nesta de competência. As titulaturas que acompanham o nome de funcionários, como no
caso do Egito antigo, são indicativos desta característica, pois apresentam uma mesma pessoa
exercendo uma série de cargos diversos uns dos outros, sem que haja, propriamente, uma
especialização em determinada função. A escolha dos funcionários que hoje é feita através do
critério de capacidade administrativa (sendo necessária a realização de um concurso público para
preencher os cargos da administração pública), no modelo de burocracia patrimonial, a mesma
era prerrogativa da autoridade máxima.
O sociólogo diz, ainda, que a diferença em relação à burocracia moderna - embora os dois
tipos, moderno e antigo, possam ser análogos em alguns aspectos – é a inexistência de separação
entre interesse pessoal do administrador (que exercia seu cargo em nome, no caso, do faraó) e
interesses públicos próprios de seu cargo – o que define a característica da impessoalidade38. A
esse respeito, C. Eyre nota que
A impressão de eficácia impessoal é raramente aquela dada pelos
documentos individuais, ou mesmo pelas obras literárias. Uma imagem mais
36
ibid., p. 152.
FREUND, Julien. Sociologia de Max Weber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. p.174.
38
O exercício burocrático, para Pierre Bourdieu, exige – pro forma – o sacrifício do interesse particular em nome do
universal, muito embora a prática administrativa seja permeada de lacunas neste sentido.
37
29
familiar é aquela de uma classe administrativa corrompida e egoísta, que
manipula procedimentos e funções burocráticas em benefício próprio, no seio de
uma sociedade na qual as relações patrono-cliente eram a realidade em contraste
com uma ideologia que acentua os valores de uma meritocracia desinteressada39.
A afirmação de Eyre talvez seja dotada de certo exagero, na medida que vários textos
egípcios nos apresentam elementos que definem uma espécie de “ideal” do funcionário ligado a
princípios de uma ética social. É o caso dos textos sapienciais, a exemplo dos Ensinamentos de
Ptah-hotep, no qual o bom funcionário deveria ser um homem virtuoso, preocupado com a sua
conduta para não correr o risco de cometer injustiças.
Weber sustenta que o patrimonialismo, no caso egípcio, segue o modelo do oikos do
senhor, emprestando a terminologia grega que significa, grosso modo, comunidade doméstica.
Frise-se, apenas, que este modelo proposto por Weber é válido na ideologia, mas não na realidade
da administração, a qual comporta níveis e regras muito mais complexos e profundos. O
sociólogo define o oikos da seguinte forma:
Um oikos, em sentido técnico, não é simplesmente toda 'grande'
comunidade doméstica ou toda aquela que fabrica, por si mesma, produtos
variados, por exemplo, artesanais e agrícolas, mas a economia doméstica
extensa, autoritariamente dirigida, de um príncipe, senhor de terras ou patrício
cujo motivo não é a aquisição capitalista de dinheiro, mas a provisão
organizada, em espécie, das necessidades do senhor [...]. O decisivo é que seu
principal constituinte é o 'aproveitamento' do patrimônio e não a 'valorização do
capital'. Em sua natureza essencial o oikos significa: provisão organizada de
necessidades, ainda que lhe possam estar agregadas empresas com economia
aquisitiva.40
Weber aponta que, durante o Período Tinita da história egípcia, houve a transição para um
sistema centrado no grande oikos régio. Esta idéia é aproveitada por autores como Schloen, o
qual atribui o funcionamento das sociedades do antigo oriente próximo através do patrimonial
household model (PHM). Segundo este modelo, “toda a ordem social é vista como uma extensão
da unidade doméstica do governante – e, em última instância, da unidade doméstica do deus”41
cuja administração segue o padrão da relação pessoal. O autor, na esteira de Weber, afirma que a
burocracia existente no Egito antigo não é uma burocracia racionalizada. A regra válida nestas
39
EYRE, op. cit., p. 16.
WEBER, op. cit., v.1, p. 262.
41
SCHLOEN, J. David. The house of the father as fact and symbol. Patrimonialism in Ugarit and the Ancient Near
East. Studies in the archaeology and history of the Levant , Winona Lake: Einsenbrauns, v.2, 2001.
40
30
sociedades seria a dos laços pessoais de patronato, e sua dependência dele, e não da existência de
uma burocracia dita impessoal. Acredito que esta afirmação de Schloen deva ser ponderada, na
medida em que, se por um lado os egípcios eram realmente dependentes de relações como a do
patronato, isto não exclui a existência de uma burocracia organizada nesta sociedade.
O que se pode inferir, com base nos ensinamentos de Weber expostos anteriormente, é
que o funcionamento da burocracia no Egito antigo era realizado em função das necessidades do
faraó, sob a impressão de se estar realizando o "bem-estar universal". Segundo a lógica intrínseca
desta sociedade, este bem-estar está dependente do bem-estar, em primeira instância, do faraó, o
qual era o encarregado de manter a ordem do mundo. Desta forma, agir em benefício deste e dos
que lhe são mais próximos não significa, ao menos em teoria, agir em nome de interesses
pessoais, mas sim em função do interesse coletivo.
Um exemplo claro é o da construção das grandes pirâmides. Este empreendimento,
segundo Cardoso, requeria a existência de um sistema administrativo altamente complexo42. Ao
tentar explicar a reação dos trabalhadores egípcios ante a execução destes empreendimentos, que
eram feitos para o faraó e nada mais, Dykmans afirma que, segundo a mentalidade egípcia, quem
participava de uma construção como esta o fazia porque realizava, na realidade, não um serviço à
pessoa do faraó, mas sim um empreendimento que era "assunto de Estado", "uma empresa
periódica e essencial para a vida do reino"43. É importante observar, desta forma, que no Egito
antigo o exercício de uma função pública confundia-se, inúmeras vezes, com a prestação de um
serviço à pessoa do faraó. Para Castañeda Reyes, "a pirâmide não foi outra coisa senão a
manifestação do poder material e da autoridade moral do monarca"44.
Em um estudo de sociologia agrária, Weber analisa de perto o caso do Egito antigo e,
neste trabalho, o sociólogo caracteriza as instituições egípcias nos períodos do Reino Antigo,
Reino Médio e Reino Novo. No Reino Antigo, três eram os fatores que as marcavam: 1) ausência
de ameaça militar; 2) necessidade de desenvolver uma administração burocrática sofisticada para
42
CARDOSO, op. cit. (2004).
Apud CASTAÑEDA REYES, José Carlos. Sociedad antigua y respuesta popular. Movimientos sociales em
Egipto antiguo. Iztapalapa: Universidade Autônoma Metropolitana, 2003. p. 69.
44
Ibid., p. 69. Um fator que contribuiu significativamente para o recrutamento de trabalhadores para a construção das
pirâmides era a ideologia em torno de um rei divino. Contudo, Castañeda Reyes afirma que a religião não foi o motor
principal que levou o egípcio a se dedicar com afinco na construção destas obras, mas sim "a segurança provida por
um governo central paternalista com amplos silos para alimentar os trabalhadores" (ibid., p. 73).
43
31
o trabalho na irrigação; 3) subordinação dos interesses econômicos e individuais aos interesses do
Estado - o indivíduo era para Weber, acima de tudo, um servo do Estado45.
O desenvolvimento da burocracia egípcia, segundo Weber, teve como principal motivação
os trabalhos de irrigação. Ao observar, por exemplo, o fenômeno dos nomarcas sendo
transformados em "reis" locais e a constituição de laços de dependência social, o sociólogo
sustenta que estes laços se davam em virtude da dependência da burocracia encarregada da
irrigação do Nilo. A questão da irrigação é determinante para Weber, como se vê, por exemplo,
na afirmação a seguir:
No país mais antigo com administração estatal burocrática, o Egito, foi a
inevitabilidade técnico-econômica de uma regulamentação pela economia
pública do provimento de água para todo o país, atuando a partir do governo,
que criou o mecanismo de escribas e funcionários, o qual encontrou, então, sua
segunda grande esfera de ação, já muito cedo, nas extraordinárias atividades de
construção, militarmente organizadas46
Contudo, é possível imputar a Weber a mesma crítica imposta por Cardoso aos defensores
da chamada hipótese causal hidráulica. Para este autor, não há como comprovar, até o Reino
Médio, a existência de uma administração centralizada das redes de irrigação, as quais tinham um
caráter local a princípio47. Não é possível, desta forma, atribuir à irrigação o surgimento de uma
burocracia no Egito antigo48.
Em toda esta discussão acerca da burocracia egípcia, cabe salientar que o Reino Médio foi
singular no tocante a este aspecto. Kemp percebe, durante este momento, a existência de uma
"utopia burocrática"49. Toda a composição visava, por exemplo, a regulação de vários aspectos da
economia, um controle centralizado do trabalho e da propriedade, como forma de recuperar o
poder centralizado outrora perdido. A cidade de Kahun, no Fayum, foi construída segundo este
princípio utópico, e nela encontramos o modelo de uma cidade de acordo com esta tendência
45
WEBER, Max. Egypt. In: ______. The agrarian sociology of ancient civilizations. Verso: Londres, 1998. cap. 2. p.
106.
46
Id., 2004. v.2, p. 210.
47
CARDOSO, op. cit., 2004, p. 24.
48
Vale a pena salientar, apenas, que desde muito cedo a escrita, no Egito antigo, foi associada a atividades
administrativas, o que levou à formação de uma elite letrada que detinha o monopólio da escrita e exercia, assim, seu
domínio sobre os demais setores da população.
49
KEMP, Barry. Ancient Egypt: anatomy of a civilization. v 2. ed. London: Routledge, 2006. p. 180.
32
burocrática. Contudo, apesar de haver permanecido por cerca de quinhentos anos, este modelo
não permeia a lógica do período subsequente, o do Reino Novo.
***
No contexto datado especialmente após a VI dinastia, verifica-se que, aos poucos, a elite
provincial passa a desfrutar de um estilo de vida parecido com aquele gozado pela corte,
usurpando padrões e modelos antes restritos a este pequeno círculo. Seidlmayer nota um aumento
no número de enterros durante este período que, além de representar um possível aumento
demográfico em razão do desenvolvimento ocorrido no meio rural com a fixação dos nomarcas, é
indício igualmente de uma mudança nos padrões de consumo por parte desta elite. Tal fenômeno,
ainda segundo o autor, não é restrito à esfera funerária, mas remonta à existência de um padrão de
vida mais luxuoso no qual produtos como maquiagens e adornos feitos de pedras preciosas,
passaram a fazer parte do cotidiano desta parcela da população.
Nesta direção, Eyre afirma que a relação da realidade central com as demais “realidades”
pode ser expressa através do binômio “ordem” e “não-ordem”. A realidade central era
identificada com a “ordem”, a sede da ideologia, enquanto as realidade locais que não
incorporavam tais normas eram a “não-ordem”, excluídas, portanto, do decoro e dos registros50.
É curioso observar que as elites locais, embora rivalizassem com o poder central, não
constituíram para si um modelo político e cultural diverso daquele vivenciado pela Corte,
salvaguardadas as variações regionais dos mesmos51. Há, sempre, uma estrutura subjacente que
remete àquela articulada pelos mecanismos centrais de poder. O sociólogo Pierre Bourdieu
parece ter uma interpretação interessante para o fato, quando diz que todos nós estamos inseridos
no pensamento do Estado – ou seja, pensamos o Estado através dele próprio. Para o autor, “um
dos poderes principais do Estado é o de impor e produzir as categorias de pensamento que
utilizamos espontaneamente a todas as coisas do mundo, e ao próprio Estado”52. E, ainda,
Se o Estado pode exercer uma violência simbólica é porque ele se
encarna tanto na objetividade, sob a forma de estruturas e de mecanismos
50
EYRE, op. cit. p. 15-39.
As elites se apropriavam de padrões iconográficos, textuais e demais modelos régios de forma "regionalizada".
52
BOURDIEU, op.cit. p. 91.
51
33
específicos, quanto na “subjetividade” ou, se quisermos, nas mentes, sob a forma
de estruturas mentais, de esquemas de percepção e de pensamento. Dado que ela
é resultado de um processo que a institui, ao mesmo tempo, nas estruturas
sociais e nas estruturas mentais adaptadas a essas estruturas, a instituição
instituída faz com que se esqueça que resulta de uma longa série de atos de
instituição e apresenta-se com toda a aparência do natural 53
Isto significa dizer que a utilização de padrões tradicionais, moldados a partir dos locais
onde o poder se encontra centralizado, é realizada pelo simples fato de ser percebida como
natural pelas pessoas inseridas nesta estrutura, e não como algo imposto54. O motor que movia a
ascensão destas elites era um processo de imitação e emulação em relação à Corte. Talvez esteja
aí a explicação para o porquê de, no Reino Médio, assistirmos à retomada das velhas estruturas
de poder. Apesar de enfraquecidos, não houve uma mudança substantiva dos mecanismos que
possibilitavam ao Estado centralizado egípcio o exercício do poder. Houve, sim, a regionalização
do mesmo, com a presença forte nos nomarcas nas províncias – contudo, a configuração do
Estado egípcio permaneceu praticamente inalterada em suas bases.
A este respeito, é importante ter em mente algumas considerações de C. Eyre. Este
egiptólogo diz que as realidades locais sempre foram, de certa forma, dissociadas do poder
central. Neste sentido, os nomos, como unidades sociais e políticas relativamente autônomas,
longe de serem constituições naturais – neste aspecto55 - foram construídos como parte de um
esforço para controlar as realidades locais, a fim de incorporá-las às estruturas de poder. Assim, a
grande autonomia adquirida por estas unidades frente ao poder central, sob a chefia dos
nomarcas, não constitui, na visão de Eyre, uma novidade em si, mas demonstra simplesmente as
53
ibid., p. 97-98. A respeito da "adesão natural" de Bourdieu, cabe mencionar a crítica imposta ao sociólogo por
Fábio Faversani. Este último afirma que tal abordagem metodológica assume um caráter elitista do ponto de vista
político. O historiador coloca como fundamental o pressuposto "de que os agentes sociais atuam com base nas
escolhas racionais, e não de forma irrefletida ou conjuntural", em oposição à concepção de interacionismo social do
sociólogo, que o entende como a "adesão de um conjunto de práticas e crenças realizadas de forma irrefletida e sem
qualquer pretensão estratégica" (Cf. FAVERSANI, op. cit., p.24.). Apesar de apostar na validade da interpretação de
Bourdieu, a concepção de Faversani pode auxiliar nos estudos egiptólogicos por confrontar a idéia predominante
neste meio que entende o egípcio como um ser claramente submisso à estrutura e religiosa e de poder, nos quais seu
poder de ação, quando não é desconsiderado, é totalmente diminuído.
54
J. David Schloen coloca esta relação tendo em vista o modelo da “casa do pai” já que, para ele, “a unidade
doméstica familiar patriarcal servia como o paradigma universal para todas as relações sociais, fossem elas
econômicas, políticas ou religiosas” (SCHLOEN, op. cit.). A exemplo de Weber, o autor entende que este modelo
estava arraigado na sociedade egípcia , uma vez que o país inteiro estava organizado como uma extensão gigantesca
da família do faraó. Por dedução, é possível concluir que a presença deste modelo organizacional também se dava no
núcleo dos chefes locais, com seus “súditos” incluídos na lógica da “grande família”. O patronato, que veremos mais
à frente, é expressão destas relações.
55
Digo “neste aspecto” porque a formação dos nomos propriamente remonta a tempos pré-históricos. O que Eyre
questiona é a sua existência natural enquanto unidades políticas e administrativas formadoras do Estado egípcio.
34
antigas funções praticadas pelos governos locais “exprimidas sob um formato novo e
prestigioso”56.
Na falta do caráter hereditário que propiciava o acesso direto de uma pessoa à nobreza, o
“enobrecimento” desta elite fazia-se através do desfrute de um certo modo de vida comparável ao
da corte, propiciado pela função exercida. Isto toca diretamente o problema do status régio de que
trata Sorensen, e que será exposto mais adiante. A questão é: se as elites poderiam gozar de um
padrão de vida comparável ao da corte e exercer as mesmas funções em um nível local, quais os
impedimentos para que gozassem do privilégio da vida após a morte?
1.2 O ESTUDO DA "DEMOCRATIZAÇÃO" DA IMORTALIDADE EM PERSPECTIVA.
Alguns autores já se dedicaram ao estudo da “democratização” da imortalidade referente
ao período ora analisado, do qual faz parte o processo que deu origem aos Textos dos Sarcófagos.
Contudo, o tema vem, na maioria das vezes, tangenciando alguma outra análise, e poucos são os
que se dedicaram a desvendar as características particulares de tal fenômeno, analisando-o em
toda a sua complexidade.
Estudar as causas que levaram a esta chamada “democratização” da imortalidade não é
um processo fácil. O principal obstáculo é o fato de lidar com análises ainda hipotéticas demais,
que suscitam questionamentos, inclusive, sobre a viabilidade de estudar o tema. O termo
“democratização” da imortalidade foi cunhado por estudiosos que tentaram explicar de que
maneira textos outrora monopólio régio foram incorporados a um círculo de elite, não
necessariamente ligada à corte. Não é à toa que a expressão contém uma grande quantidade de
impropriedades, das quais as mais notórias sejam, talvez, a impressão de amplo e irrestrito acesso
aos textos funerários – o que é, na verdade, uma falácia - e aquilo que aponta Quirke:
A adoção de textos e imagens régias por pessoas que não os reis é
denominada “democratização” pela Egiptologia e é usualmente empregada para
relatar a degeneração do reino em desunião no terceiro milênio antes de Cristo.
Contudo, existem dificuldade com o rótulo, que se distingue do uso anacrônico
56
EYRE, op. cit. p. 21.
35
do conceito grego de demos, “os cidadãos (homens)” e “democracia”, “regido
por cidadãos”.57
Se tomarmos em conta a afirmação de Ciro Flamarion Cardoso, na qual observa que a
estrutura política do Egito não dava lugar à existência de cidadãos, mas somente a súditos58, fica
ainda mais claramente perceptível o uso inadequado da expressão “democratização”, da maneira
evidenciada por Quirke.
Apesar do uso consagrado do termo, o qual é plenamente utilizado pelos egiptólogos,
acredito que haja necessidade de cunhar uma nova expressão que dê conta de explicitar de forma
mais precisa ao que o fenômeno se refere. Neste sentido, “alargamento” seria uma opção ao uso
da “democratização”, pois demonstra justamente a idéia de algo que era, de certa maneira,
restrito, e posteriormente se difundiu.
Logo, nota-se que o fenômeno da “democratização” da imortalidade é um objeto de
estudo bastante delicado. É preciso, muitas vezes, reportar-se a fontes datadas de momentos
posteriores ou anteriores ao período em questão, o que gera a necessidade de um cuidado
redobrado na análise para evitar o perigo de recair em afirmações meramente circunstanciais ou
abstratas e hipotéticas demais.
Na realidade, além da própria existência material dos esquifes contendo os
encantamentos que compõem os Textos dos Sarcófagos, não há quase nenhuma outra referência
direta a esta transição, como é o caso da cultural material funerária em geral e, mais
especificamente, estelas. Indiretamente, é possível inferir a existência do fenômeno através de
outros textos, a exemplo das “Admoestações de Ipu-Ur” (Papiro Leyden 334). Todavia, este
documento é controverso no que diz respeito à sua datação e à veracidade dos fatos ali
apresentados. Ao que tudo indica, as “Admoestações” fazem referência a uma revolta popular
que teria ocorrido no Egito durante o Primeiro Período Intermediário59. O texto, permeado por
um grave tom de queixa, contém primeiramente uma descrição da situação – marcada por fome,
invasão estrangeira, pilhagens - seguida da denúncia das mudanças que passaram a ser
percebidas. A queixa principal de Ipu-Ur remete a uma inversão de valores na escala social, na
qual os ricos de outrora padecem enquanto os pobres desfrutam de situação favorável. O texto
57
QUIRKE, Stephen. Ancient Egyptian Religion. Londres: British Museum Press, 1982.
CARDOSO, op. cit., 1994, p.50.
59
O debate que envolve a existência de uma revolta popular durante o Primeiro Período Intermediário será retomado
noutro momento desta dissertação.
58
36
contrasta, a todo momento, a realidade ali apresentada com um “passado glorioso”, tudo isto
adicionado de um clamor pelo aniquilamento dos inimigos e crítica aos responsáveis pela
situação, quais sejam, os deuses e o faraó60.
A respeito da “democratização”, encontram-se no texto alguns elementos que podem
indicar sua presença. Veja-se, por exemplo, as seguintes passagens retiradas das
“Admoestações”:
Em verdade as fórmulas mágicas foram divulgadas, tornaram-se
ineficazes porque são repetidas por todo mundo61.
[...] os segredos dos reis do Alto e Baixo Egito são divulgados62.
Sorensen, um tanto ou quanto exageradamente, compara este processo descrito por Ipu-Ur
a uma “secularização”63. Embora o termo “secularização” não seja de todo apropriado para
exprimir a realidade do Egito faraônico, uma vez que Estado e religião são indissociáveis, não
devemos descartá-lo e, sim, entendê-lo da maneira com a qual orienta Baines: “no Egito,
mudanças análogas a uma secularização tomam uma forma distinta – uma separação entre
religião e monarquia e uma lenta dessacralização desta última, em vez de uma secularização no
sentido moderno do termo”64.
Para Ipu-Ur, este fenômeno é visto em termos negativos, conseqüência da situação de
fragilidade em que se encontravam o Egito e a monarquia. A figura do faraó como sacerdote
supremo é importante para Ipu-Ur, bem como os encargos religiosos a ele destinados, e essa
função se esvazia na medida em que as pessoas “não precisam” mais do rei65, ocorrendo uma
60
Cf. ARAÚJO, Emanuel. Escrito para a eternidade. Brasília: UnB, 2000. p.175-191.
ibid.,p.183.
62
ibid., p. 184.
63
“Privadas de sua base institucional e desenraizadas da exclusividade régia que denotavam, as fórmulas rituais
tornaram-se inúteis. Enquanto os donos de sarcófagos estavam provavelmente entusiasmados com seu novo ganho de
acesso ao divino e a aproximação de um status régio, Ipu-Ur enfrentou um processo de secularização” (SORENSEN,
Jorgen Podemann. Divine Access: the so-called democratization of egyptian funerary literatureas a socio-cultural
process. In: ENGLUND, Gertie (org.). The religion of the ancient egyptians. Cognitive Structures and popular
expressions. Uppsala, 1989, p.114).
64
BAINES, John. Kingship, definition of culture and legitimation. In.: O'CONNOR, David; SILVERMAN, David P.
(orgs.). Ancient Egyptian Kingship. Leiden, New York, Koln: E. J. Brill, 1995. p. 04.
65
Ocorre, agora, que a imortalidade anteriormente dependente da imortalidade do rei passa a ser concedida àqueles
que pudessem ter acesso aos textos funerários. O que Ipu-Ur questiona é a validade dos efeitos desta apropriação
tendo em vista a sua relação inicial à pessoa e função do faraó. Neste sentido, vale a pena considerar a afirmação de
Bourdieu: “Um enunciado performativo está condenado ao fracasso quando pronunciado por alguém que não
61
37
espécie de “banalização” da religião – uma vez que as fórmulas perdem sua eficácia quando
recitadas por todos. Em Ipu-Ur observa-se a importância da rigidez de um decoro religioso66,
uma vez que a não observância de certos princípios – no caso, a exclusividade régia dos
encantamentos – compromete seriamente a própria eficácia religiosa do ritual.
Conforme mencionado anteriormente, não são todos os egiptólogos que creditam os fatos
reportados por Ipu-Ur a eventos reais. Lichtheim, à luz das afirmações de S. Luria, entende que
[...] este tipo de obra não descrevia qualquer acontecimento específico,
sendo antes composição de exercício puramente literário onde apenas se
expunha um tema básico da natureza messiânica por meio de fórmulas,
desenvolvendo-se ficcionalmente a idéia matriz de ordem versus caos, desastre
nacional, subversão social67.
Esta opinião sustenta-se, ainda, pelo fato de faltarem referências concretas sobre a
existência de Ipu-Ur. A única menção que se tem dele encontra-se em uma tumba de Saqqara,
datada da XIX dinastia, na qual o autor aparece descrito sob o título de “chefe dos cantores”.
Outros autores afirmam serem as “Admoestações de Ipu-Ur” referentes a fatos ocorridos
no Segundo Período Intermediário, como é o caso de J. van Seters68. Contudo, devo partilhar da
opinião de Cardoso quando o mesmo diz:
[...] porém, os que negam a historicidade da revolução da qual fala o
Papiro Leiden 334, ou que o consideram datado posteriormente do Primeiro
Período Intermediário devem explicar de outra forma os eventos e os textos dos
disponha do ‘poder’ de pronunciá-lo ou, de maneira mais geral, todas as vezes que ‘pessoas ou circunstâncias
particulares’ não sejam ‘as mais indicadas para que se possa invocar o procedimento em questão’, em suma, sempre
que o locutor não tem autoridade para emitir as palavras que enuncia (...) Conforme se pode constatar, todos os
esforços para encontrar na lógica propriamente lingüística das diferentes formas de argumentação, de retórica e de
estilística, o princípio de sua eficácia simbólica, estão condenados ao fracasso quando não logram estabelecer a
relação entre as propriedades do discurso, as propriedades daquele que o pronuncia e as propriedades da instituição
que o autoriza pronunciá-lo. ” (BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingüísticas: O que falar o que dizer.
Trad. Sérgio Miceli et alii. São Paulo: Edusp, s.d, p. 89)
66
Em Egiptologia, entende-se por ‘regras de decoro’ “as normas acerca do que podia ou não ser escrito ou
representado iconograficamente em diferentes contextos, as quais variaram bastante no tempo” (CARDOSO, Ciro
Flamarion. As práticas religiosas individuais no antigo Egito durante o terceiro milênio a.C. e a primeira metade do
segundo: um programa de pesquisa. In.: LAGE, Lana et all (orgs.).História & Religião. Rio de Janeiro: FAPERJ,
2002. p. 184).
67
Apud ARAÚJO, op. cit. p. 176.
68
Cf. SETERS, Jan van. A date for the Admonitions in the Second Intermediate Period. JEA. n.50, 1964, p. 13-23.
38
quais falamos, especialmente a situação assaz particular, do início do Reino
Médio, no tocante aos fatos sociais69.
A partir das dificuldades expostas e ilustradas através da apresentação do documento de
Ipu-ur, pretendeu-se, como enfoque deste trabalho, compreender a “democratização” da
imortalidade à luz de uma perspectiva mais ampla, integrando-a a um conjunto de transformações
que tiveram lugar entre fins do Reino Antigo e inícios do Reino Médio. Com isto, intui-se
averiguar sua importância num contexto em que o Egito passou por significativas mudanças. Isto
porque, como diz Bourdieu citando Richard Bonney, “infelizmente, a fragmentação da história
em subseções, monopólio de especialistas, e a idéia de que certos aspectos da história estão na
moda, não contribui muito para esta causa”70, e é preciso transitar entre as fronteiras das
especialidades a fim de desvendar as características do processo dentro de um todo coerente.
Por estarem estreitamente relacionadas às práticas cotidianas, as características das
práticas mortuárias não se restringem ao âmbito funerário. Seria simplista demais – para não
dizer equivocado – afirmar que a “democratização” da imortalidade é reflexo de uma maior
religiosidade dentre os egípcios, ou de um fervor religioso, como querem alguns. Além da
“democratização” dos textos funerários, verificam-se outras aberturas na sociedade egípcia –
conforme já apresentado – o que impede que estas transformações sejam corretamente
compreendidas se analisadas de forma isolada. A pergunta que venho tentando responder aqui,
então, é em que sentido as práticas funerárias e a “democratização” da imortalidade estão
inseridas em um processo sócio-político.
Assim, pensou-se em avaliar de que maneira se davam as relações entre sociedade e
indivíduo no Egito deste período – e, mais importante, como elas tiveram a sua configuração
alterada durante o mencionado interlúdio. Verifica-se, de um lado, o enfraquecimento da
monarquia e, de outro, a construção de um nicho de poder por parte de altos funcionários ligados
a quadros administrativos provinciais. A hipótese central deste trabalho é comprovar que esta
situação colaborou para uma alteração nas relações sociais no Egito antigo, analisando de perto o
caso do Primeiro Período Intermediário. Acredita-se que o enfraquecimento da figura do faraó
como categoria social identitária e o reforço de um outro modelo de identificação coletiva,
69
CARDOSO, Ciro Flamarion. La Révolution Sociale de la Prémière Période Intermédiaire, Eut-elle lieu? Aegyptus
Antiqua , Buenos Aires: 1984, p. 13. O Papiro Leiden 334 é o documento no qual se acham escritas as
“Admoestações de Ipu-Ur”
70
Apud BOURDIEU, op. cit. p. 99. « Esta causa » seria a compreensão da história.
39
personificado na figura do patrono, tenha levado ao que se pode chamar de uma
“individualização” mais forte no Egito antigo – decorrente da regionalização do poder. A
“democratização” da imortalidade seria, então, parte importante deste universo de
transformações, na medida que abre a indivíduos particulares a possibilidade de adquirir
privilégios anteriormente obtidos somente pelo faraó e através deste.
Conforme mencionado anteriormente, o estudo da “democratização”, em suas nuanças
mais profundas, não é muito usual entre os egiptólogos – embora a utilização do termo seja
recorrente. Dentre o pequeno círculo daqueles que se dedicaram com maior ênfase ao assunto
estão, por exemplo, Jorgen P. Sorensen. Seu estudo tem por pressuposto central compreender os
usos da literatura ritual funerária – dentro do que se insere a “democratização” - como um
processo sócio-cultural que tende a atingir seu ápice durante a chamada Era da Piedade Pessoal,
ocorrida no Reino Novo. A “democratização”, para o autor, serve como background para a
compreensão do desenvolvimento da religião e do pensamento no Egito antigo71.
Apesar de sua interpretação vincular-se a uma espécie de pensamento evolucionista, uma
vez que entende as crenças funerárias egípcias como se caminhassem para um fim determinado, o
egiptólogo fornece elementos interessantes para pensar a “democratização”.
Segundo o autor, a “democratização” liga-se de forma direta ao problema do “acesso ao
divino” o qual, por sua vez, está estreitamente vinculado a um princípio de decoro72. Isto
significa dizer que há restrições sociais à obtenção deste acesso ao divino e a restrição é, neste
caso, o status régio. No âmbito funerário, este status passou a ser partilhado com aqueles que
possuíam acesso aos encantamentos dos “Textos dos Sarcófagos”. Além do mais, faz-se
necessário salientar que o acesso era a certos aspectos do divino, e não em sua totalidade.
O elemento status é extremamente relevante à condução desta pesquisa, pois entende-se
como uma das causas da “democratização” a necessidade de obtenção de status por parte de altos
funcionários, em um momento em que gradativamente se inseriam nos esquemas de poder locais.
A posse de textos funerários, como o são os Textos das Pirâmides e os Textos dos Sarcófagos,
implicava, dentre outras coisas, em demonstração de prestígio, por permitirem uma certa
equidade de privilégios com a Corte. Isto, utilizando terminologia de Bourdieu, significa dizer
que a aquisição de tais textos implica na constituição de um certo capital simbólico.
71
SORENSEN, op. cit., passim
Na definição de Sorensen o acesso ao divino configura-se como um aspecto do ritual contido nos textos religiosos,
como o são os textos funerários e representações em estelas e tumbas (SORENSEN, op. cit., p.110).
72
40
Nesta direção, é possível aliar a este quadro as implicações da aquisição de um
"conhecimento restrito", conforme exposto por John Baines. Para este egiptólogo, o campo do
conhecimento - dentre os diferentes grupos de uma elite letrada - constituía-se em uma arena em
que certas restrições reforçavam a hierarquia ou contribuíam para um quadro de competição e
busca por prestígio73. O acesso ao conhecimento, portanto, poderia ser de ao menos duas formas:
passivo ou utilitário/ativo. O primeiro se refere ao acesso a certo conhecimento necessário para o
desempenho de uma determinada função. O segundo tipo é aquele que traz, necessariamente,
benefícios essencialmente religiosos ao seu possuidor. Ambos oferecem às pessoas prestígio.
Segundo Baines, "aqui, oportunidades especiais e conhecimento andam juntos, formando uma
parte da demonstração de privilégios religiosos e estatura moral de uma pessoa”74, indicando a
íntima relação existente entre a aquisição de um certo conhecimento e a projeção de uma imagem
prestigiosa . Não é por acaso que certas funções privilegiadas concernentes à administração local
de lugares sagrados eram intituladas "senhor dos segredos", "senhor dos segredos das coisas
seladas do deus" ou "senhor dos segredos das palavras divinas".
O acesso ao divino a que se reporta Sorensen poderia ser garantido por pelo menos três
vias rituais: a) oficiando em um ritual no templo; b) imitando papéis míticos ou por identificação
a um deus; c) por conhecimento religioso. No Reino Antigo o monarca possuía todos os tipos de
acesso ao divino, o que refletia sua posição política e social. Indivíduos particulares não gozavam
deste privilégio, que poderia ser obtido somente através do rei o que, para Sorensen, atesta a
dependência do indivíduo para com o faraó. Conforme afirma Castañeda Reyes, “no Reino
Antigo, a vida eterna era um privilégio, que só era acessível pela união com o senhor”75.
A egiptóloga Finnestad, ao analisar a “democratização” da imortalidade e suas conexões
com a figura do monarca, vai na mesma direção de Sorensen ao afirmar que o faraó era uma
categoria de vida após a morte. Isto significa dizer, grosso modo, que pelo fato de o monarca
servir como espelho ideal para população egípcia, sua imortalidade servia de exemplo para as
demais pessoas. A argumentação de Finnestad, essencial ao trabalho ora desenvolvido, será mais
bem explicitada na parte referente ao quadro teórico sobre as relações entre sociedade e
indivíduo.
73
BAINES, John. Restricted knowledge, hierarchy and decorum: modern perceptions and ancient institutions.
JARCE XXVII. 1990. p. 1-23.
74
Ibid.,p.08. Baines vai dizer, também, que esta retidão moral se encontra, igualmente, nas autobiografias, as quais
projetavam um status que auxiliaria na passagem para o outro mundo. Estes textos serão analisados mais adiante.
75
CASTAÑEDA REYES, op. cit., p. 58.
41
Com o advento do Primeiro Período Intermediário alguns dos limites rituais de outrora
para o acesso ao divino desaparecem, uma vez que pessoas que não o faraó passaram a
compartilhar do status régio e acesso ao divino de tipos “a” e “b”. A popularidade do culto a
Osíris, por exemplo, e a posterior identificação de todo falecido a este deus proporcionou acesso
divino de tipo “b”. Outro exemplo é a cena clássica da caça ao hipopótamo, que remete à
representação de um mito anterior, o do triunfo de Hórus, na qual o rei interpretava ritualmente o
papel do deus. Em uma autobiografia do Primeiro Período Intermediário, observa-se que um
nomarca, Ankhtifi, interpreta este papel: “Eu retesei meus braços como um arpão no focinho de
um hipopótamo que fugia”. Contudo,
Isto não significa que todo funcionário privado possuía um funeral régio
ou um culto mortuário, mas apenas que não havia limites para o uso dos textos
funerários régios. Os rituais realizados para o falecido privado provavelmente
continuaram sujeitos aos limites de algum decoro76.
Esta informação é importante na medida em que atesta certos limites à “democratização”
da imortalidade a qual, ao contrário do que muitos egiptólogos afirmam, digo que não se estendeu
de maneira indiscriminada a todos os setores da população. Rosalie David é, por exemplo, uma
das autoras que enxergam a “democratização” desta maneira:
A vida após a morte não era mais limitada à realeza: uma vida exemplar e
o conhecimento das respostas e ações corretas a serem tomadas ao encontrar os
deuses e semi-deuses no mundo inferior eram qualificações que fizeram a
imortalidade acessível até mesmo ao mais humilde dos adoradores77.
Devo discordar da afirmação de David uma vez que, por exemplo, questões de ordem
prática - como poder aquisitivo para obtenção dos textos funerários e preparo dos demais rituais
mortuários, a exemplo da mumificação – continuavam a restringir o acesso à imortalidade a uma
pequena parcela da população. Somente os donos dos textos que compunham a literatura ritual
funerária teriam acesso à vida divina cósmica após a morte78. Este é, também, o posicionamento
76
SORENSEN, op. cit., p.114.
DAVID, op. cit., p.159.
78
Vale lembrar que coexistiam, no Egito antigo, várias formas de vida após a morte, conforme enumera Cardoso: 1)
a ressurreição da múmia na tumba; 2) um destino celeste ou solar; e 3) uma vida no mundo subterrâneo de Osíris
77
42
de Kemp, pois o mesmo afirma que “nesta época, uma coleção de encantamentos de proteção se
tornou acessível àqueles que pudessem pagar [grifo nosso] para tê-los pintados em seus
esquifes (por isto, o moderno termo Textos dos Sarcófagos)”79.
A idéia que permeia o pensamento de autores como David é a popularização do culto a
Osíris atingida no período em tela:
Como um deus da vegetação, Osíris simbolizava seu triunfo pessoal
anual sobre a morte; ele também havia enfrentado vitoriosamente o julgamento
ante os juízes divinos [...] Por sua capacidade de oferecer imortalidade a seus
sucessores, Osíris ganhou uma popularidade bastante difundida no Reino Médio
[...] 80
A partir deste momento, todo falecido, e não apenas o faraó, passou a ser um Osíris
quando morria, carregando este aposto junto a seu nome. Contudo, isto não significa dizer que
todas as pessoas estivessem livres das regras do decoro religioso que permitiam acesso às várias
formas de vida após a morte.
Além disto, há que se levar em conta a questão do próprio interesse em obter os textos.
Para uma elite particular, eles eram importantes na medida que serviam como reforço à sua
posição social – a qual seria desfrutada também no outro mundo. Mas será que, para o egípcio
comum, o acesso à imortalidade prometida pelos Textos dos Sarcófagos tinha o mesmo peso?
Aymard nos dá uma resposta neste sentido:
Resta precisar a concessão da imortalidade. Pode-se muito bem pensar
que a massa não sentisse grande necessidade. Bastava apenas um pouco de
crença prática mais ou menos ligada de forma íntima a uma doutrina: isto
explica o fascínio constante que a magia exercia sobre a massa. A mesma
doutrina se contentava em fornecer assegurações mais ou menos vagas, sobre as
quais a fantasia poderia adicionar detalhes livremente, sem se preocupar com
eventuais contradições.81
(CARDOSO, Ciro Flamarion. Deuses, múmias e ziggurats. Uma comparação das religiões do Egito e da
Mesopotâmia. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999), dentre as quais a mais almejada era, justamente, o convívio junto
aos deuses proporcionado pelo destino celeste ou solar.
79
KEMP, op. cit. p. 180.
80
DAVID, op. cit., p.162.
81
AYMARD, A. La democratizzazione del culto funerario come riflesso di nuovi fermenti sociali. Gli uomini e le
loro istituzioni, Firenze: Casa editrice G. D´Anna. n.19. p. 56.
43
Creio que a afirmação de Sorensen de que o “acesso ao divino” reflete a posição política e
social do monarca seja crucial para pensar as relações que me interessam aqui. Quando optei pelo
estudo do tema, intrigava-me o fato de não encontrar na Egiptologia uma explicação satisfatória
para o porquê do privilégio da imortalidade ter sido estendido a demais pessoas. Parecia-me que
as análises deixavam sempre um hiato neste sentido, pois se limitavam a dizer que houve um
processo – a “democratização” - no qual certos encantamentos presentes nos Textos das
Pirâmides ajudaram a compor um novo tipo de literatura ritual funerária conhecida por Textos
dos Sarcófagos - na verdade, uma proliferação regionalizada de textos novos - da qual poderiam
gozar indivíduos com condições de arcar a sua reprodução, sem nunca explicar como se deu este
processo. Minhas hipóteses a este respeito, contudo, não serão expostas nem desenvolvidas neste
momento, mas sim no terceiro capítulo desta dissertação.
Outra interpretação possível acerca da “democratização” é a dada por José Carlos
Castañeda Reyes, que a entende como fruto de uma suposta insurreição popular que teria
ocorrido durante o Primeiro Período Intermediário.
Conforme já mencionado, observa-se, a partir da VI dinastia, um fortalecimento das
famílias provinciais no Egito. Nesta dinastia, verifica-se que certos nobres aspiravam dominar
funções civis e religiosas em detrimento do poder centralizado do faraó e seu círculo mais
próximo, lado a lado com um quadro de concentração de riquezas por parte destas pessoas82. O
fortalecimento desta situação deu-se a partir do momento em que, segundo Castañeda Reyes, o
faraó passou a ceder poder – voluntária ou involuntariamente - através de concessões diversas (a
exemplo da concessão de terras), de isenções e do reconhecimento da hereditariedade de certos
cargos públicos, o que resultou em relativa, porém grande, independência destas famílias frente
ao poder central.
A manifestação da importância destes nobres é claramente perceptível no domínio do pósmorte, uma vez que os mesmos começaram a fazer seus enterros em mastabas localizadas ao
redor da tumba faraônica, sinal do grande prestígio de que gozavam.
De maneira sintética, é possível dizer que o baixo desenvolvimento das forças produtivas,
no Egito, era compensado pela ampla utilização de trabalho compulsório, geralmente recrutado
nos momentos de entressafra, quando não havia terra para cultivar. Com o aumento do poder
82
CASTAÑEDA REYES, op. cit., p. 54.
44
aquisitivo dos nomarcas que passaram, então, a construir para si grandes monumentos, houve um
reforço na utilização da mão-de-obra forçada, que passou a ser mais explorada. A crise política
que se desencadeou no final do Reino Antigo atingiu diretamente os setores mais empobrecidos
da população, que tiveram que arcar com uma pesada carga de tributos. Tudo isto resultou, para
Castañeda Reyes, em uma radicalização das tensões sociais. Em conjunto com outros fatores,
como a insuficiência das cheias do Nilo – vitais para a sobrevivência do país -, invasões
estrangeiras e o afrouxamento das formas de controle social decorrente do enfraquecimento da
monarquia, estavam dadas as condições para um levante popular.
Esta avaliação, porém, não é consenso entre os egiptólogos. O principal documento que
serve como base da argumentação que defende a existência da revolta são, conforme já dito, as
“Admoestações de Ipu-Ur”. Os mesmos argumentos já apresentados alhures, acerca da
historicidade dos fatos reportados por Ipu-Ur, são os utilizados para rechaçar a existência da
revolta popular83. Esta revolta teria provocado uma transformação na forma de ver e pensar o
mundo, evidente no surgimento de um novo gênero literário denominado pelos egiptólogos de
Literatura Pessimista.
De qualquer maneira, a “democratização”, para Castañeda Reyes, seria então resultado
dos ganhos populares com essa revolta. Contudo, vejo nesta explicação uma grande contradição,
uma vez que os beneficiários do ganho da imortalidade não foram os populares que participaram
da insurreição. Foram, pelo contrário, pessoas com poder aquisitivo suficiente para adquirir os
textos de passagem e arcar com as despesas referentes aos rituais funerários.
Partidário de uma linha de pensamento análoga à de Castañeda Reyes, Aymard afirma que
a divulgação dos ritos funerários, ou seja, a "democratização" da imortalidade, está estreitamente
relacionada ao surgimento de uma ideologia democrática. A meu ver, ambos – Castañeda Reyes e
Aymard - forçam a predominância de uma participação popular, a qual nem mesmo chegou a
gozar dos benefícios da "democratização".
83
A este respeito, diz Lichtheim: “Em nenhum momento este breve interlúdio de autonomia local produziu uma
reviravolta social, uma revolução destinada a inverter a ordem hierárquica da sociedade. Apelos de que uma tal
revolução teve lugar, que assombram muito da velha literatura egiptológica, não possuem absolutamente nenhuma
base nas inscrições do período. Estas são conclusões equivocadas retiradas de um único trabalho literário do Reino
Médio, as Admoestações de Ipu-Ur. O que as inscrições do Primeiro Período Intermediário mostram é justamente o
contrário de uma reviravolta social. Em cada nomo a hierarquia é mantida intacta e serve para promover o bem-estar
de regiões em períodos turbulentos”. (LICHTHEIM, Miriam. Ancient Egyptian Literature. A book of readings. v.1.
The Old and Middle Kingdoms. Los Angeles: University of California press, 1975. p. 83).
45
Este mesmo, autor, ainda, conecta a democratização à anarquia que se instaurou ao final
do Reino antigo, em virtude do enfraquecimento da monarquia. Diz o autor:
[...] a anarquia celeste era conseqüência e reflexo da anarquia terrestre.
Contemporaneamente, o número de privilegiados, outrora limitado, se estende
consideravelmente em razão do enfraquecimento geral da disciplina
administrativa e social84.
Aymard se reporta nesta passagem a uma maior burocratização do Estado egípcio. Estes
novos "privilegiados", como chama o autor, também obtiveram o benefício de uma eternidade
gloriosa, segundo ele, "pela complacência dos superiores e da própria autoridade". Logo, muitos
indivíduos seguiram este exemplo e, por fim, o rito funerário, praticado somente pelo rei, passou
a ser divulgado e praticado por todos.
Resta, apenas - aproveitando a discussão de Aymard e Castañeda Reyes - reafirmar que a
"democratização" da qual trata este trabalho se refere à participação de outras pessoas além do rei
em uma doutrina celeste, ou seja: a faculdade de obter uma imortalidade junto aos deuses,
garantida pela aquisição de textos funerários, e outrora somente pertencente ao rei. Contudo,
alguns egiptólogos parecem enxergar uma outra "democratização", a qual vincula-se a uma maior
popularidade da doutrina osiriana e cujo caráter era bem mais inclusivo. Já foi mencionado, por
exemplo, que todo morto enterrado segundo os ritos, passou a ser identificado a Osíris. Todavia,
ambas as concepções exigiam de seus seguidores poder aquisitivo. Para adentrar nos mistérios de
Osíris, por exemplo, era preciso arcar com o custoso processo de mumificação. A confecção de
uma tumba, igualmente, requeria gastos85.
Alguns autores, como Rosalie David, já citada, acentuam a importância da prática de uma
vida virtuosa como condição para o acesso a imortalidade, que se liga diretamente à teologia
osiriana. Isto pode ser verídico para o caso do Reino Novo, contudo, para o período que cobre o
Reino Antigo e o Reino Médio isto não pode ser afirmado, uma vez que a própria literatura
84
AYMARD, op. cit., p. 59.
Sobre isto é importante observar, conforme aponta Breasted, que esta diferenciação não é indicativa de uma cisão
entre a religião de Osíris como um culto tipicamente popular e a religião de Rá, solar, como um culto de Estado (Cf.
BREASTED, James Henry. Development of religion and thought in Ancient Egypt. Philadelphia: University of
Pennsylvania Press, 1972). Quirke, por sua vez, diz que “Osíris foi, estritamente falando, não o deus de todos os
mortos, mas sim dos mortos abençoados” e chega mesmo a afirmar que “no registro formal, Osíris permaneceu da
mesma forma como começou a sua existência: como o deus do rei morto e de sua corte, do alto estrato da sociedade”
(Cf. QUIRKE, op. cit., p.52).
85
46
funerária - Textos das Pirâmides e Textos dos Sarcófagos - não comporta este ideal. Assim,
reforço a minha opinião de que não houve uma verdadeira "democratização" da imortalidade, ao
menos no sentido amplo da palavra como querem alguns egiptólogos.
1.3 SOCIEDADE E INDIVÍDUO NO EGITO ANTIGO: PERSPECTIVAS TEÓRICAS.
O aumento do poder dos nomarcas altera de maneira significativa a composição do quadro
de relações sociais existente no Egito antigo. Verifica-se a projeção de um tipo de relação social
denominada patronato a qual, embora já existente, aparece neste momento com alguns de seus
caracteres reformulados. É possível observar, ainda, a existência de uma “individualização” nesta
sociedade – com todas as aspas cabíveis ao termo, conforme se verá mais adiante.
Segundo a egiptóloga Finnestad, havia duas unidades sociais básicas no Egito antigo e
que funcionavam como categorias identitárias para todas as pessoas. É possível dizer que a união
em torno destas duas categorias se dava pelo fato de as mesmas oferecerem segurança física,
social e também psicológica, pois proporcionavam um sentimento de segurança. Havia, em
primeiro lugar, a comunidade egípcia, conceitualizada no faraó e, de outro lado, a comunidade da
família, representada pelo pai. Pertencia-se a ambas as comunidades. O faraó e o pai
funcionavam, dessa forma, como entidades protetoras86. Esta interpretação traz consigo o
pressuposto de que o povo egípcio funcionava antes como uma comunidade, ficando a dimensão
do “eu” encoberta pela do “nós”. Norbert Elias explicita bem essa relação na seguinte passagem
do livro A sociedade dos indivíduos:
[...] a capacidade de ver a si e a seus companheiros de uma certa
distância, como espectadores da janela de um prédio, ao mesmo tempo em que
andam pela rua, é ainda totalmente inatingível. Elas têm, é claro, uma
consciência de si e das outras pessoas. Mas ainda vivem e agem em ligação
direta com os outros. Não têm acesso algum à forma de experiência e à gama de
idéias que permitem às pessoas experimentar-se como algo distinto e
independente do seu grupo, como pessoas, em certo sentido, opostas a seu
grupo. Não são “individualizadas”, no sentido em que se pode usar essa palavra
ao aplicá-la a pessoas de sociedades mais complexas87.
86
FINNESTAD, Ragnhild Bjerre. The pharaoh and the “democratization” of post-mortem life. In: ENGLUND, op.
cit.,passim.
87
ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. p. 87.
47
A respeito da intepretação de Elias, cabe uma breve exposição sobre algus fundamentos
básicos de sua sociologia, a exemplo do aspecto figurativo, para que possamos compreendê-la
mais adequadamente. A idéia central que permeia o pensamento deste sociólogo é o
entendimento da sociedade como um todo relacional. Com isto, Elias intui descaracterizar a
dicotomia existente entre indivíduo e sociedade na medida que, para ele, um não existe sem o
outro. Waizbort sumaria as idéias de Elias a respeito das relações entre individual e coletivo:
Não há “indivíduo”, mas apenas, e precisamente, “indivíduo” na
sociedade; não há “sociedade”, mas apenas, e precisamente, “sociedade” no
indivíduo. Em outros termos: os indivíduos fazem a sociedade e a sociedade faz
os indivíduos. Indivíduo, “em si”, assim como sociedade “em si”, são mitos –
que cabe à sociologia, “caçadora de mitos” que é, derrubar88.
Atenção especial é dada, por Elias, às micro formas de relação social89, a fim de
compreender a sociedade im status nascens, buscando averiguar, sempre, os laços que constituem
estas relações. Isto porque, para ele, “o que realiza na verdade a sociedade são as relações que se
estabelecem entre os singulares, as tais menores formas de relação e de modos de interação entre
os homens, que existem aos milhares, infindáveis e em eterno processo”90.
Por sua forma de interpretar as relações e interações sociais – as quais estariam, também,
em constante processo e modificação (um tecido que se tece continuamente) – Elias é
considerado precursor de um tipo de sociologia denominado de “sociologia figuracional”. Este
modelo interpretativo pode ser mais bem compreendido levando em conta o que diz o sociólogo
sobre o conceito de figuração:
O entrelaçamento das dependências dos homens entre si, suas
interdependências são o que os ligam uns aos outros. Eles são o núcleo do que é
aqui designado como figuração, como figuração dos homens dependentes uns
dos outros e que se orientam uns em relação aos outros. Como os homens são inicialmente por sua natureza, e então mediante o aprendizado social, mediante
sua educação, mediante a socialização, mediante as necessidades despertas
88
WAIZBORT, Leopoldo. Elias e Simmel. In.: ______ (org.). Dossiê Norbert Elias. São Paulo: EDUSP, 2001. p.
92.
89
Vide, como exemplo, seu trabalho em O Processo Civilizador, no qual o sociólogo analisa comportamentos
ligados à etiqueta em pequenas situações do cotidiano de corte.
90
WAIZBORT, op. cit., p. 96.
48
socialmente – mais ou menos mutuamente dependentes entre si, então eles, se é
quês e pode falar assim, só existem enquanto pluralidades, apenas em
figurações. Esta é a razão pela qual, como já foi dito, não é muito proveitoso se
compreender como a imagem dos homens a imagem dos homens singulares. É
mais adequado quando se representa como imagem dos homens uma imagem de
vários homens interdependentes, que forma figurações entre si, portanto grupos
ou sociedades de tipo variado.[...] O conceito de figuração foi introduzido
precisamente por essa razão, porque ele exprime de modo mais claro e
inequívoco que os outros instrumentos conceituais da sociologia que aquilo que
nós denominamos “sociedade” não é nem abstração das peculiaridades dos
indivíduos que existem como que sem sociedade, nem um “sistema” ou uma
“totalidade” que está para além dos indivíduos, mas sim que, justamente, a
sociedade é o próprio entrelaçamento das interdependências formadas pelos
indivíduos91.
Retornando à análise do caso egípcio particular vemos que Cardoso, ao analisar formas de
identificação coletiva no caso do Egito antigo, afirma que a identificação com o deus local
superava as demais formas de identificação locais. O templo, portanto, era a referência identitária
básica neste nível. Seguindo premissas de Goelet, diz o historiador: “[...] o primeiro nível para a
inserção de cada indivíduo numa identidade coletiva passava pela cidade (niut), termo que, em
egípcio, também designa uma região ou distrito; passava, mais exatamente, por um vínculo com o
deus local”92.
Outra forma de construção identitária no Egito, ainda segundo Cardoso, passava por
relações de alteridade, na qual o egípcio se opunha ao estrangeiro. O estrangeiro rebelde era visto
como um agente do caos, o qual deveria ser reprimido pelo faraó egípcio. O contrário acontecia
com aquele que se submetia, o qual poderia até mesmo contar com o beneplácito do faraó e dos
deuses egípcios. Apesar desta inserção do estrangeiro na sociedade egípcia, havia a idéia de que o
Egito era o primeiro centro estruturado, que espalhava a sua influência e era superior aos
demais93. Esta é uma conseqüência da inculcação do mito da realeza divina, a qual implica
submissão a faraó. Isto, por sua vez, não implicou em formas de discriminação para com o
estrangeiro, conforme salienta Cardoso.
Assmann, por sua vez, afirma que a personalidade egípcia não se desenvolve de "dentro
para fora", mas sim de "fora para dentro", tanto que, segundo o autor, “no nascimento, a vida era
91
Apud WAIZBORT, op. cit., p. 102.
CARDOSO, Ciro Flamarion. Um historiador fala de teoria e metodologia (ensaios). Bauru: EDUSC, 2005. p.192.
93
ibid. A respeito desta ancestralidade egípcia, há uma referência na História de Heródoto (Livro II; II), na qual o
grego diz que "os egípcios, antes do reinado de Psamético, julgavam-se o povo mais antigo da terra" (HERÓDOTO.
História. O relato clássico da guerra entre Gregos e Persas. Trad. J. Brito Broca. 2a ed. São Paulo: Ediouro, 2001.
p.185).
92
49
apenas uma possibilidade, que se concretizava apenas quando o ser social era desenvolvido
através de um processo de socialização. ‘Vida’ era mais uma questão cultural que de natureza”94.
Para o egiptólogo, a personalidade era dividida em duas partes: o ser individual, composto
pelo ba e pela sombra (shut); e o ser social, composto pelo ka e pelo nome (ren). Lembre-se,
apenas, que para os egípcios o ser era constituído de uma pluralidade de aspectos, corpóreos e
não corpóreos. Além das partes mencionadas acima, havia também o coração (ib) e o corpo
(khat).
A opinião de Assmann é bastante influenciada por aquela de Luckmann, que sustenta que
um organismo biológico só "se torna um ser embarcando com outros na construção de um
universo de entendimento objetivo e moral"95 e a ausência deste universo implica na não
integração das experiências individuais em uma biografia socialmente e moralmente relevante.
Neste sentido, Assmann tece suas considerações sobre a importância de uma memória cultural
que, para o autor, reproduz uma consciência de unidade e particularidade disseminada e
objetivada ao longo das gerações por meio de atividades culturais, que criam universos
simbólicos e que produzem um senso de pertença entre os indivíduos de um determinado grupo.
Identidade coletiva e individual, sociedade e indivíduo, memória cultural
e individual, a origem social de uma individuação da consciência e a consciência
mutuamente se condicionam e formam dois lados de um mesmo conhecimento
culturalmente objetivo e socialmente mediado. A possibilidade de desenvolver
um eu pessoal e uma biografia relevante é predicada em uma visão de mundo
estável (ou seja, o que os egípcios chamam maat)96.
Lynn Meskell, contudo, apresenta uma visão diversa acerca da noção de indivíduo
presente no Egito antigo. Na esteira de autores como o renomado egiptólogo John Baines,
Meskell sugere que havia sim uma sólida noção de indivíduo entre os egípcios e de seu lugar no
mundo, baseando-se para tanto nas biografias presentes nas tumbas de nobres do período que
corresponde ao Reino Novo. Em sua visão o que existia era uma tensão entre exprimir o desejo
de ser “individualizado” e de se diferenciar dos demais, e a necessidade de conformidade ao
grupo ou sociedade a que se pertencia. Esta concepção traz consigo uma importante questão
presente na mentalidade egípcia, e que de certa maneira corrobora a afirmação anterior de
94
ASSMANN, op. cit. (2006), p. 14.
Apud ASSMANN, op. cit., 2006. p. 38-39.
96
Ibid., p. 38.
95
50
Assmann, que é a inserção do indivíduo na manutenção da ordem humana, régia e divina que,
conforme visto anteriormente, pode ser genericamente denominada de maat.
O “individualismo” ou “individualização”, todavia, pode ser substituído pelo que definiu
Ciro Flamarion Cardoso como a “emergência do indivíduo”97. O historiador foca sua análise na
chamada “Era da Piedade Pessoal”, ocorrida durante o período raméssida – Reino Novo - na qual
ocorreu uma ausência da mediação régia em certos aspectos da religiosidade. Para Sorensen, isso
é o resultado de um processo iniciado no final do Reino Antigo, reflexo de uma “desconstrução
da tradicional fronteira entre a religião e a estrutura central da sociedade egípcia”98. Verifica-se,
pois, uma transgressão, durante o Reino Novo, entre o que era exclusivamente régio e o que era
privado, paralelamente a uma redefinição do que era só régio. Isto posto, acredito que o termo
“emergência do indivíduo”, conforme empregado por Cardoso, seja mais apropriado que
“individualismo”, pois escapa às interpretações contemporâneas do termo que podem não se
ajustar à análise da realidade ora estudada.
Falar em individualismo hoje implica, entre outras coisas, atestar a dissolução de laços
sociais, conforme definição apresentada no Dicionário do pensamento social do século XX 99. Ou,
como apresenta Elias, “consiste em expressar a idéia de que todo ser humano do mundo é ou
deve ser uma entidade autônoma”100.
Ora, se os egípcios viam-se e funcionavam somente enquanto comunidade, com que
intuito é possível, então, a aplicação do termo “individualismo” a essa realidade? Como, em uma
sociedade com fortes princípios de sociabilidade coletiva, a individualidade pode expressar-se?
Devemos entender essa relação da maneira proposta por Elias, ou como a entende Meskell? A
idéia de Meskell pressupõe uma tensão, portanto, parte da dicotomia entre individual e coletivo.
Será ela pertinente? Já Elias, em sua concepção sobre sociedade, propõe o seguinte: será que
“seremos também nós, como seres humanos individuais, não mais que um meio que vive e ama,
luta e morre, em prol de todo o social?”101 Antes de ver na relação sociedade e indivíduo uma
dicotomização, o sociólogo entende que tanto os indivíduos quanto a sociedade conjuntamente
97
CARDOSO, Ciro Flamarion. A unidade básica das representações sociais relativas ao culto divino e ao culto
funerário no Antigo Egito (Período Raméssida: 1307-1070 a.C. segundo a cronologia convencional, 1295-1069 a.C.
segundo a cronologia curta). Obra inédita.
98
SORENSEN, op. cit. p. 122.
99
OUTHWAIT, William et al. Dicionário do pensamento social do século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.
p.381.
100
ELIAS, op.cit., p.130.
101
Ibid.,p.17.
51
formada por eles são igualmente desprovidos de objetivo, uma vez que nenhum dos dois existe
sem o outro. Assim sendo, o que entendemos por sociedade seria, segundo Elias, nada mais nada
menos que a rede de funções que as pessoas desempenham umas em relação às outras.
Creio que nenhuma das alternativas acima comporta uma resposta satisfatória à questão.
Devemos, em primeiro lugar, despir-nos das categorias "sociedade" e "indivíduo" tal qual temos
hoje para não correr o risco de cometer o pecado do anacronismo. A solução, em meu entender,
está em verificar qual o tipo de indivíduo presente no Egito antigo, qual o seu grau de autonomia
e de que maneira este se relaciona com a coletividade, antes de rechaçar a existência de uma
"individualidade". Esta característica existe, e não é pelo fato de a mesma não se expressar
através das formas que conhecemos atualmente que devemos negá-la em sociedades como a
egípcia antiga.
A dicotomização apresentada por Meskell apresenta elementos interessantes os quais,
contudo, devem ser ponderados e repensados sob uma nova forma. Creio que compreender o
"individualismo" nesta sociedade implica vislumbrar como os indivíduos se vinculam à sociedade
e ao Estado. Será que, no Egito antigo, a expressão da individualidade não seria dada através da
inclusão em um determinado grupo? Antes de serem pólos contrários - individualidade e
conformidade a uma certa coletividade - seriam, então, complementares.
Por fim, resta observar que não é possível confundir, igualmente, individualismo com
liberdade e autoconsciência individual. Sinval Gonçalves, ao analisar as relações entre indivíduo
e sociedade no caso da Idade Média, teoriza e afirma que
[...] a consciência individual, diferentemente do que entendemos a partir
da modernidade, poderá conviver ou conter uma dimensão transpessoal, ou ser
repensada a partir de modelos fornecidos pela sociedade. Neste sentido, o termo
[indivíduo] designa mais uma posição – que pode ser variável – do que uma
identidade. Ele designa o lugar de onde se percebe o mundo e a si mesmo, e,
eventualmente, poderá ser substituído pela noção mais ampla de pessoa 102.
Esta contribuição de Gonçalves auxilia a pensar a questão da individualização, para o caso
específico do patronato, sob uma forma nova. Sem abandonar a discussão previamente elaborada,
102
GONÇALVES, Sinval Carlos Mello. Na medida do impossível: O cavaleiro além da cavalaria nos romances de
Chrétien de Troyes (1165-1191). Niterói, 2004. Tese (Doutorado em História) – Instituto de Ciências Humanas e
Filosofia, Universidade Federal Fluminense, 2004.
52
poderíamos pensar, então, que o patronato - conforme se verá mais adiante através das suas
características - mais que exprimir um "individualismo", exprime também características de
"personificação".
1.3.1 AS RELAÇÕES DE PATRONATO E AS AUTOBIOGRAFIAS DE WENI, QAR E ANKHTIFI.
Tendo em vista a análise do caso específico do Egito do Primeiro Período Intermediário,
nota-se um recrudescimento do tipo de relação social denominada patronato. Através desse
modelo de “solidariedade vertical”, conforme definição de Assmann103, as elites locais
reivindicam para si o papel de entidades protetoras - já que o Estado central perde essa função em
razão de um processo de descentralização e pulverização do poder em núcleos regionais. Funções
outrora destinadas ao monarca, como a de prover a imortalidade a todo o povo egípcio através da
sua própria imortalidade, ficam enfraquecidas em razão da sua perda de autoridade e prestígio.
Dessa forma, chefes locais – os nomarcas - passam a funcionar também como entidades
aglutinadoras. Assmann define o patrono como “[...] alguém que exerce poder não por virtude de
nenhum ofício em uma hierarquia estabelecida e superordenada, mas sim nas bases de sua própria
habilidade em prover um certo número de pessoas e assim assegurar sua dependência”104.
Acredito, porém, que a função exercida pelo nomarca seja, no Egito antigo, uma das
fontes de seu poder que, no caso específico do Primeiro Período Intermediário contribui para a
criação de fortes laços de dependência com seus subordinados.
Antes de mais nada, é preciso apenas atentar para o fato de o "patronato" ser uma
terminologia tomada de empréstimo de outra sociedade da Antiguidade, qual seja esta, a romana.
O uso do termo para o caso do Egito se justifica por ser o patronato "[...] muito flexível, não só
dentro de qualquer sociedade e mesmo num relacionamento individual, mas também entre
diferentes sociedades e épocas"105, conforme aponta Moses Finley. Por isso, a insistência em
restringir a terminologia ao tipo romano é injustificada e até mesmo absurda, segundo escreve
103
ASSMANN, op. cit., 2003, passim. O termo "solidariedade vertical" é utilizado para exprimir uma relação entre
indivíduos de posições sociais distintas, e não entre "iguais", que comportaria, então, um modelo de "solidariedade
horizontal".
104
Ibid., p. 91.
105
FINLEY, op. cit., p. 56.
53
este mesmo autor. Finley define a relação entre patrono e cliente como “[...] uma relação
recíproca entre desiguais, envolvendo não só um elemento subjetivo, a avaliação da relação" pelo
cliente, mas também um objetivo de troca genuína de bens e serviços”106.
Assmann, ao citar um trabalho de Seidlmayer sobre arquitetura de tumbas do período,
observa que o patrono passa a ser responsável pela imortalidade de grupos extensos de pessoas.
Os Textos dos Sarcófagos – que serão analisados mais detalhadamente no dois últimos capítulos
– também dão pistas neste sentido, uma vez que comportam nos encantamentos um ideal de
família extensa, a qual engloba uma grande quantidade de servos.
A nova articulação desta forma de laço social é indicativa do desenvolvimento da
individualidade dos patronos - ou de uma "personificação", conforme dito anteriormente – ao
mesmo tempo em que atesta o funcionamento do povo egípcio enquanto comunidade. Conforme
já mencionado, a partir do enfraquecimento da monarquia faraônica iniciado de forma mais
contundente após a VI dinastia, a iniciativa individual dos grandes chefes passa a ganhar
considerável importância para a manutenção do bem-estar do povo egípcio:
A primeira pessoa do singular é em primeiro lugar a fonte para um
modelo de visão do futuro e implementação, uma ênfase completamente
estranha às inscrições do Reino Antigo e muito menos proeminente no Reino
Médio. A ausência da autoridade motivadora do rei inicia toda uma nova
filosofia da ação humana [...]107
As autobiografias do período fornecem elementos para que se possa atestar esta postura.
Segundo Olivier Perdu, autobiografias são inscrições, "esculpidas ou pintadas em uma enorme
variedade de monumentos não-régios, nos quais seus donos evocam suas próprias
personalidades"108. Geralmente, estes textos são inscritos sob a forma de narrativa, na primeira
pessoa do singular, precedidos por uma fórmula na qual são apresentados o nome e os títulos da
pessoa, e que termina com os dizeres, "ele fala", conforme o exemplo abaixo, retirado de uma
autobiografia do Reino Antigo:
106
Ibid., p. 56.
ASSMANN, op. cit., 2003, p. 94.
108
PERDU, Olivier. Ancient Egyptian Autobiographies. In.:Civilizations of the Ancient Near East, New York. v. 4.
1995, p. 2243.
107
54
O nobre e supervisor das terras do sul, ele que está no palácio, o guarda de
Nekhen, companheiro único, venerado por Osíris, Chefe dos Ocidentais, Weni, o
Velho. Ele fala [...]109
Tais textos, inscritos em sua maioria na entrada das tumbas, "proclamavam as virtudes e
conquistas do falecido para provocar uma resposta piedosa nos passantes"110 ou seja, para que
estes passantes recitassem a tradicional "fórmula de apelo aos vivos" presentes ao final dos
textos, que visavam basicamente assegurar a provisão de oferendas para o morto. Tendo isto em
vista, Perdu afirma que o objetivo destas autobiografias é, mais do que informar sobre as
qualidades do falecido, servir a propósitos relacionados à vida após a morte111. Se levarmos em
conta um trecho do encantamento 575 dos Textos dos Sarcófagos, verificaremos que a prática de
certas ações consideradas positivas serve como facilitador à entrada no outro mundo: “Eu desejo
triunfar graças ao que eu fiz”112.
É importante ressaltar que, justamente em virtude do propósito a ser atingido com a
autobiografia, estes textos apresentam um retrato de homem ideal, muito mais que um espelho
fiel da realidade. Como será observado no que segue, a partir da análise de algumas
autobiografias, feitos negativos são simplesmente deixados de fora, e são inscritas apenas aquelas
ações dignas de crédito, freqüentemente de forma exagerada e nada modesta. Segundo
Momigliano, um texto como este é sempre partem pro toto - ou seja, a imagem de perfeição é
adquirida por meio de uma seleção dos fatos e atos vividos pela pessoa113. Portanto, o cuidado
apontado por Perdu deve ser levado em conta no momento de analisar uma autobiografia: “as
declarações devem ser postas em contexto, e deve-se ter constantemente em mente que elas
contêm apenas uma pequena parcela da verdade – aquela que é mais lisonjeira e espetacular”114.
Para esta dissertação, o que interessa mais diretamente não é a função da autobiografia em
seu aspecto relacionado à vida após a morte. Acredito que as informações contidas nas mesmas
109
SIMPSON, William Kelly (ed.). The literature of Ancient Egypt. An anthology of stories, instructions, stelae,
autobiographies, and poetry. Yale: Yale University, 2005. p. 402.
110
PARKINSON, R. B. Voices from ancient Egypt. An anthology of Middle Kingdowm writings. London: British
Museum Press, 1994. p. 132. Um exemplo da fórmula de apelo aos vivos pode ser encontrada na autobiografia de
Qar: "Ó vivos que estais sobre a terra, que ireis passar por esta tumba, aqueles amados do rei, que vós invoqueis mil
pães, mil jarros de cerveja e mil oferendas de gado para o único companheiro Merire-Nefer (Qar)" (Cf. SIMPSON,
op. cit, p. 413).
111
PERDU, op. cit., p. 2243.
112
TS 575.
113
Cf. MOMIGLIANO, Arnaldo. Génesis y desarrollo de la biografía en Grecia. México: Fondo de Cultura
Económica.
114
PERDU, op. cit. p. 2244.
55
sejam cruciais, em primeiro lugar, para averiguar as relações entre poder central e poderes locais
no período que corresponde ao Reino Antigo e ao Primeiro Período Intermediário; e, em segundo
lugar, para compreender qual a repercussão de mudanças nestas relações no quadro das relações
sociais.
A primeira autobiografia a ser analisada é a autobiografia de Weni, um funcionário da
administração que teve uma longa carreira sob o reinado de três reis, Teti, Pepi I e Merenra. No
reinado deste último, Weni foi nomeado para o cargo de governador do Alto Egito. Simpson
utiliza os dizeres de Eyre para se referir à personalidade de Weni:
Toda sua carreira foi em contato pessoal com o rei em um período de
tensão política efetiva. Ao final do reinado de Pepi I, Weni talvez tenha sido o
arquétipo do gerontocrata egípcio, com no mínimo sessenta anos de idade e, na
época de sua morte, no reinado de Merenre, com provavelmente mais de setenta.
Por estes cálculos, ele se encaixava no ideal egípcio do homem caridoso,
completo, um efetivo servo régio [...]115
A respeito de sua relação com o monarca, é interessante observar como, a todo momento,
o texto faz menção à estima que o rei sentia por Weni, exemplificada através da repetição de falas
como "O coração de Sua Majestada estando repleto de mim". Percebe-se, igualmente, que a
motivação das ações deste funcionário era o mando régio, não executando nada por iniciativa
própria. Apesar disto, sua personalidade não deixa de ser exaltada e coloca-se como um indivíduo
singular em sua excelência, acima de qualquer comparação com os outros que vieram antes dele.
Novamente, o texto se encontra repleto de repetições de expressões neste sentido:
Nunca este ofício foi realizado por nenhum outro funcionário
anteriormente.
Nunca algo parecido foi realizado nestas terras do sul anteriormente.
Em razão de minha excelência na estima de Sua Majestade, que me
julgou maior que qualquer outro funcionário seu, maior que qualquer outro
nobre seu, e maior que qualquer servo seu116.
115
Apud SIMPSON, op. cit., p.402. Cf. EYRE, C. J. Weni's career and Old Kingdom historiography. The unbroken
reed: studies in the culture and heritage of Ancient Egypt in honour of A.F. Shore, Londres: 1994, p. 106-124.
116
ASSMANN, op. cit., p. 96. Note-se, apenas, que este modelo de discurso vem dos textos régios.
56
Conforme dito anteriormente, os feitos relacionados nas autobiografias são inscritos de
forma nada modesta, quando Weni diz, por exemplo, que "Eu agi perfeitamente". Perdu diz que
formas como estas expostas até agora, presentes na autobiografia de Weni, são um padrão das
autobiografias egípcias. Trata-se de retratos ideais partilhados pela maioria dos autores de
inscrições deste tipo. Elas são importantes na medida em que atestam uma proximidade bastante
grande com o rei e a "Residência", como era conhecida também a casa real. Há uma consonância
perfeita entre o que é ordenado por Sua Majestade e os feitos realizados por funcionários como
Weni, conforme atesta, por exemplo, esta passagem retirada de sua inscrição autobiográfica: "Foi
de acordo com o que Sua Majestade ordenou com tudo o que Sua Majestade ordenou que Sua
Majestade ordenou o que veio a passar notavelmente".
Esta concepção é fruto do momento político vivido no Egito antigo, no qual os reis ainda
detinham a autoridade máxima, e a administração voltava-se, sobretudo, à preservação das
relações com o palácio. A autobiografia de Weni é, portanto, da expressão de um cânone
tradicional.
É interessante observar como, a partir do final do Reino Antigo, o discurso começa a
mudar radicalmente - pelo menos no tocante às relações com o poder central. Uma autobiografia
deste período, a de Qar, é indicativa desta mudança. Devemos nos perguntar a que ela se deve;
muito possivelmente, é fruto das mudanças produzidas no final do Reino Antigo, como a
pulverização do poder em núcleos regionais e o enfraquecimento dos laços com a administração
central.
Simpson, na esteira de Moreno García, aponta as inovações trazidas no texto de Qar:
[...] a iniciativa pessoal do funcionário para assegurar prosperidade à
casa real, amenizando os efeitos da fome, etc., as demandas excessivas por
tributos dos governantes, o recrutamento de homens para projetos do rei, bem
como o papel do nomarca como o governante benevolente que é capaz de
perdoar o devedor pagando um empréstimo. Como nos textos dos períodos
seguintes, caracteriza-se pelo orgulho dos nomos locais, com uma ausência
correspondente de ênfase na casa real.117
Contudo, apesar destas transformações, persiste ainda um modelo nos padrões
tradicionais, no qual, entre os seus concidadãos, o indivíduo aparece como
117
Apud SIMPSON, op. cit. p. 412. Ver também: MORENO GARCÍA, J. C. De l' Ancien Empire à la Prémière
Periode Intermédiaire: L'autobiographie de Qar d'Edfou, entre tradition et innovation. RdE 49, 1998, p. 151-160.
57
[...] prestativo e útil, sempre alerta aos problemas. Ele é como um
baluarte em uma cidade: defendendo a viúva, ajudando o miserável, ou
protegendo o fraco contra os poderosos. Ele é generoso, sempre pronto para
estender a mão. Ele dá pão ao faminto, água ao sedento, e veste ao desnudo,
indo tão longe que chega até mesmo a assegurar um enterro àqueles que não
podem pagar por ele118.
O que podemos observar através da comparação entre estas duas autobiografias? Na
primeira, de Weni, o enfoque se dirige diretamente aos encargos dados a ele pelo rei. Weni
comenta sobre a construção de canais, recrutamento de trabalho para a corvéia, recolhimento de
impostos, sobre sua atuação frente às tropas do rei em uma suposta incursão egípcia no território
palestino durante o reinado de Pepi I, e demais funções relacionadas diretamente ao trabalho para
o Estado.
Em Qar, há a introdução de um elemento novo: além das funções que um nomarca deveria
desempenhar em nome do Estado egípcio, este funcionário aparece também como uma pessoa
capaz de solucionar problemas individuais, como um homem forte ao qual as pessoas poderiam
se dirigir em momentos de necessidade. É ele quem veste o desnudo, quem alimenta o faminto
com grãos provenientes de sua própria propriedade rural, quem soluciona querelas familiares,
como brigas entre irmãos, enfim. Sem esquecer do fato de que a autobiografia comporta formas
de um discurso literário, ou seja, de padrões mais ou menos invariáveis, devemos nos indagar a
respeito de uma justificativa plausível que explique a inserção deste novo elemento no discurso
autobiográfico.
Acredito que esta produção deva ser contextualizada, antes de ser relacionada, apenas,
como um estilo de composição autobiográfica. A inserção destas novas variantes, até então
inexistentes, devem ser explicadas de forma mais satisfatória. Novamente, os fatores que levaram
ao final do Reino Antigo devem ser tomados em consideração. No texto, são apresentadas
carências individuais de necessidade básica, como alimentação, vestimenta e o preparo de uma
morada para a eternidade. Certamente, o momento era delicado, pois Qar menciona um período
de fome. Tudo isto pode, então, sinalizar a existência de carências em nível local que não eram
supridas pela atividade estatal, mas sim através de elos de devoção pessoal com um senhor, que
118
PERDU, op. cit. p. 2245.
58
se encontra mais próximo que o distante e, no momento, fraco faraó. É o nomarca quem passa a
ser o referencial daquela população.
A partir da apresentação de um quadro como este é possível inferir um ganho de poder
dos chefes locais, que passam a agir com maior autonomia frente ao poder central, uma vez que a
sua iniciativa pessoal é exaltada, demonstrando, assim, um afrouxamento de laços com o rei, não
mais o motivador central de suas ações como ocorre com Weni. Saliente-se, apenas, o fato de Qar
haver sido educado na corte, juntamente com os filhos dos magistrados. A ruptura fica, desta
forma, mais evidente.
Observe-se, igualmente, que o exercício de poder dos nomarcas é colocado em termos
puramente regionais, restrito à circunscrição do nomo. Isto significa dizer que não é possível
afirmar, pelo menos a partir das autobiografias, uma pretensão destes funcionários em ocupar o
trono.
A autobiografia de Qar apresenta menções ao faraó e ao desejo de ser estimado por ele. Se
analisarmos uma autobiografia do Primeiro Período Intermediário, a de Ankhtifi de Mo'alla, a
cisão a que tenho me reportado aqui fica claramente perceptível, pois no texto encontra-se apenas
uma menção ao faraó, ausente de ênfase.
Em meio à crise política em que se encontrava o nomo de Edfu, Ankhtifi - nomarca de
Heracleópolis que posteriormente conquistou Edfu - viu a oportunidade de, através de seus feitos
pessoais, consertar a situação. Pelo menos é o que consta de sua biografia, na qual faz-se uso
intenso da primeira pessoa do singular e na qual se nota a quase inexistência de menções ao faraó
– na realidade, há apenas uma. A ênfase não se dirige necessariamente para o que se faz, mas sim
para quem o faz. Tome-se como exemplo a seguinte passagem retirada do texto autobiográfico
de Ankhtifi a qual é, também, apropriação de uma fórmula monárquica:
[…] Eu fui o início e o fim da humanidade, pois não existiu ninguém
antes de mim e nem irá existir; nunca nasceu alguém como eu nem nascerá. Eu
superei os feitos dos ancestrais, e as próximas gerações não serão capazes de
igualar meus feitos dentro de um milhão de anos […]119
Se compararmos com as autobiografias do Reino Antigo, como aquela de Weni (VI
dinastia), percebe-se de forma clara uma transformação na motivação da ação dos altos
119
SEIDLMAYER, op. cit. p.120.
59
funcionários. Se antes elas eram realizadas pelo faraó e em nome dele, agora o nomarca age
segundo iniciativa própria, realizada em ligação direta com o deus. Observe-se trecho retirado da
autobiografia de Weni, sobre suas tarefas como governador do Alto Egito:
Eu governei o Alto Egito para ele [o faraó], para que ninguém atacasse
seus companheiros. Eu realizei todas as tarefas. Eu contei tudo o que é contável
neste Alto Egito duas vezes, e cada serviço que é contável para esta Residência
no Alto Egito duas vezes. Eu fiz um trabalho perfeito neste Alto Egito. Nada
parecido havia sido feito antes neste Alto Egito. Eu agi completamente para que
Sua majestade se regozijasse de mim120.
Enquanto Weni coloca como causa de todas as suas ações o mando régio (são recorrentes
no texto as expressões “Sua Majestade mandou que eu fizesse”, “Sua Majestade quis”, “Sua
Majestade fez”). Ankhtifi, por sua vez, atribui a Hórus, por exemplo, a sua presença no nomo de
Edfu (“Hórus me trouxe a este nomo de Edfu para vida, prosperidade, saúde, para restabelecê-lo,
e eu o fiz. Hórus desejou que o nomo fosse restabelecido, porque ele me trouxe até ele para
restabelecê-lo”121). Isto significa dizer que este nomarca assegura sua independência não por
delegação régia, mas pela vontade do deus do seu nomo122, clareador da desagregação da teoria
do poder régio.
A respeito da relação entre Hórus e Ankhtifi, resta observar uma quebra em uma das
regras do decoro oficial: no Reino Antigo, um indivíduo só poderia ter contato com um deus
através da mediação régia, o que não se observa no caso de Ankhtifi, que exerce sua relação com
o deus de forma direta.
Como deve ser explicada esta ausência da mediação régia?123 É o que venho buscado
compreender ao longo deste trabalho, indicando como possível causa desta transformação uma
mudança na balança poder central e poderes locais.
Percebe-se que há uma “auto-glorificação” por parte tanto de Ankhtifi quanto de Weni124.
A diferença fundamental entre os dois é que, enquanto este conecta seus feitos à satisfação do
120
LICHTHEIM, op. cit. p. 21.
Ibid., p. 85.
122
Hórus era o deus da localidade de Edfu.
123
Saliente-se que este fenômeno pode ser observado de forma mais completa no período conhecido como Era da
Piedade Pessoal.
121
60
faraó – uma vez que realiza perfeitamente uma tarefa que lhe foi incumbida por ele e para ele – a
marca do texto daquele é a ausência da menção ao monarca como motivador de suas ações. Qar
encontra-se justamente no meio-termo destas mudanças e é interessante observar como os
elementos novos trazidos em sua autobiografia adquirem maior significação no momento
posterior exemplificado pela autobiografia de Ankhtifi.
É possível dizer, em conclusão, que a equação rei enfraquecido - população desamparada
- ascensão de nomarcas em busca de prestígio, resultou em uma nova caracterização das relações
de patronato125. A ascensão social e diferenciação poderiam ser feitas das mais variadas formas.
Assmann conecta a construção desta nova forma de exercício de poder ao problema da
“salvação” – embora o egiptólogo tenha cunhado um termo bastante ruim para expressar a
situação. Isto significa dizer que a união em torno do patrono era legitimada por sua função
protetora, como o “homem forte” capaz de prover a segurança de todos em um momento de
dificuldade126. De certa forma o que acontece é que o fracasso do apoio governamental diminui a
atração exercida pelas instituições tradicionais e o patrono, no exercício de sua função ou não,
fornecia alternativas de garantia em uma crise de subsistência.
A este respeito, vale a pena levar em consideração a afirmação de Finley, quando o
mesmo diz que
Na Antiguidade, de qualquer modo, a benevolência raramente era
desinteressada, seja em relação a iguais ou a inferiores. Um objetivo era o
estabelecimento de uma relação patrono-cliente e de conjuntos de ligações; e,
em decorrência disso, o reforço da aprovação da estrutura de poder e autoridade
predominante na sociedade127.
A situação calamitosa do Primeiro Período Intermediário corroborou a legitimação do
poder destas elites – e também a dependência social - uma vez que as mesmas passaram a
solucionar problemas econômicos, crises políticas e, também, problemas individuais, como se
observa através da constituição do patronato128: “Assim como para cada um para quem eu estendi
124
Isto porque as autobiografias destinavam-se mais a apresentar um retrato de homem ideal que propriamente
espelhar a realidade em todas as suas nuanças.
125
Esta relação era feita através de laços de lealdade e, como adverte Ankhtifi, “(...) se alguém pisar no meu rabo
como num crocodilo, então o norte e o sul desta terra inteira irão tremer” (ASSMANN, op. cit., 2003, p.97).
126
O tema da fome, por exemplo, é recorrente nos escritos de Ankhtifi.
127
FINLEY, op. cit. p. 49.
128
SEIDLMAYER, op. cit. p. 120.
61
a minha mão, sobre nenhum deles nunca veio infortúnio, pelo segredo do meu coração e pela
excelência do meu planejamento”129. Aqui, Ankhtifi exalta laços de lealdade pessoal,
característicos das relações de patronato.
No momento em que a categoria identitária do faraó encontrava-se enfraquecida, abriu-se
espaço para a constituição de uma nova forma de organização coletiva, ao mesmo tempo em que
houve o reforço na identidade e individualidade de determinados homens. Com a volta da
situação à normalidade, observou-se um refreamento na ação destes particulares em nome de uma
coletividade – a coesão social volta a ser garantida sob o cajado do faraó - e eles passam, então, a
ser integrados no quadro de funcionários da administração central, ou a receber benesses que os
impeliam a serem fiéis ao poder central. Esta situação pode ser observada especialmente a partir
do reinado de Senusret III.
Contudo, as perguntas que devem ser feitas são: até que ponto há uma ruptura legítima
entre a realidade central e as realidades locais? Qual a profundidade destas transformações? Se
observarmos, por exemplo, a retomada das estruturas de poder de outrora no Reino Médio, é de
se perguntar até que ponto os mecanismos de poder no Egito foram afetados e se foram,
verdadeiramente, modificados130.
Não me parece o caso de afirmar que o patronato seja uma relação inteiramente nova no
Egito. É mais uma estrutura latente, que existe, por exemplo, no nível das unidades domésticas,
que ganhou força por consistir em uma alternativa ao enfraquecimento da monarquia e que fica
novamente "apagada" no momento em que o poder volta a centralizar-se nas mãos do faraó e a
unidade política é restabelecida. A questão a ser pensada é a de que a desvalorização da
monarquia favoreceu particularismos e, portanto, um distanciamento político entre Estado e as
realidades locais, muito mais que uma ruptura no sentido pleno da palavra.
Estas relações fazem parte da própria estrutura da sociedade egípcia e, como tal, sua
proeminência em períodos de crise não pode significar uma ruptura radical com os modelos
preestabelecidos, os quais ainda continuam interiorizados pela população. Até mesmo os
129
ASSMANN, op. cit., 2003, p.95.
Finley observa que sociedades da antiguidade como a grega e a romana - as quais o autor chama de "Estados
estáveis", foram marcadas pela contínua aceitação de suas instituições políticas e dos homens e classes que as faziam
funcionar. Podemos enquadrar neste caso também a sociedade egípcia antiga, uma vez que "(...) a aceitação das
instituições e do sistema como um todo era existencial; sua legitimidade assentava em sua contínua e bem-sucedida
existência" (FINLEY, op. cit., p. 37). Para Finley, havia nestas sociedades uma necessidade psicológica de
identidade através de um sentimento de continuidade e por esta mesma razão é que observamos nelas o rápido
estabelecimento do sistema após períodos turbulentos, como o foi, por exemplo, o Primeiro Período Intermediário
para o Egito.
130
62
nomarcas, em seu ganho de poder, não se desvinculam de um modelo fornecido pela própria casa
real. Funcionam, antes, como um microcosmos deste, uma vez que agem como pequenos
príncipes a partir de estruturas já estabelecidas. Não podemos esquecer que, antes de mais nada,
estes funcionários são representantes do próprio Estado. Ankhtifi, por exemplo, utiliza-se de uma
fórmula monárquica para se reportar à sua pessoa.
Não devemos, todavia, deixar-nos levar ao outro extremo e afirmar que estas
autobiografias não são indicativas de mudanças substanciais. A percepção da quebra de uma
importante regra de decoro oficial no texto de Ankhtifi é por si só uma grande revelação. A
própria mudança na forma do discurso, de Weni a Ankhtifi, indica uma transformação crucial,
que é o estabelecimento de uma nova roupagem para a própria ideologia do Estado
63
2 A RELIGIÃO FUNERÁRIA EGÍPCIA: NOÇÕES ESSENCIAIS.
O estudo da religião egípcia é particularmente difícil, pois nos defrontamos com
concepções dotadas de extrema complexidade e de um elevado grau de abstração e simbolismo,
que nem sempre são inteligíveis a nossa forma de pensamento ocidental. Por esta mesma razão,
trata-se de um esforço contínuo, na medida que a descoberta de novas fontes e a elaboração de
novas teorias estão sempre a iluminar os muitos aspectos obscuros, para nós, do pensamento
religioso egípcio.
Justamente em virtude deste distanciamento os antigos egípcios suscitam nas pessoas em
geral sentimentos muitas vezes opostos, que vão desde um desdém absoluto para com a história
deste povo até um ardor apaixonado - o que muitas vezes leva a distorções históricas bizarras.
O primeiro passo a ser tomado para compreender de forma mais adequada a religião
egípcia é perceber que o que entendemos pelo conceito de religião hoje não se aplica de forma
completa à realidade do Egito antigo. A religião egípcia comporta uma série de preceitos éticos,
filosóficos, científicos e de diversas outras ordens que acabam por tornar o moderno conceito de
religião insuficiente quando aplicado ao mundo egípcio. É o que explica, por exemplo, A. di
Nola:
Quando se usa o termo, evoca-se um conceito que pertence
essencialmente ao mundo cultural cristão ocidental e que, devido à particular
evolução dos fatos religiosos ocidentais, pressupõe pelo menos duas
64
componentes: a) uma nítida separação dos chamados fatos religiosos e sagrados,
dos fatos denominados não-religiosos, laicos e profanos; b) uma estrutura
ideológica mítica e ritual organizada que é regida por leis autônomas e que,
embora inserida na realidade profana e laica, estabelece com ela um conflito
dialético e tens fins diversos dos dela. A arbitrariedade da extensão do termo
está na pretensão, declarada ou tácita, de individualizar em outras realidades
culturais os mesmos elementos distintivos que pertencem ao mundo ocidental
cristão no qual a noção se formou. Porém, à semelhança da noção de sagrado, a
nossa noção de religião está viciada por um quadro cultural de origem e revelase como inadequada de cada vez que enfrenta o inquérito a áreas não ocidentais
ou não ocidentalizadas131.
Ainda levando em conta os ensinamentos de A. di Nola, note-se que a distinção entre
sagrado e profano em sociedades como a egípcia antiga não se justifica, uma vez que “em tais
sociedades arcaicas não se sente a diferenciação entre actividade laico-profana e actividade
sagrada, quase como se o homem vivesse em uma imersão no sagrado”132. Justamente em virtude
da inexistência desta distinção, pelo menos tal qual ela se apresenta para nós hoje, não é possível
entender o campo religioso no Egito antigo como regido por leis autônomas, já que ele não existe
desta forma, impossibilitando que se faça sua separação da esfera política, social, cultural,
econômica etc.
Segundo Assmann, a religião egípcia se insere em uma categoria diferente do cristianismo
no tocante ao próprio “tipo” de religião ao qual cada uma pertence. Este último faz parte do que
Assmann denomina “religiões secundárias” que são, todas elas, religiões baseadas em livros.
Nestes casos, a religião é encontrada em um cânone de escritos sagrados, como é o caso da Bíblia
cristã133. Esta é uma diferença substancial em relação ao antigo Egito, visto que esta sociedade
não apresenta algo como um código religioso. Segundo o autor, o conceito de religião secundária
[...] inclui todas as religiões cujas origens não remontam às brumas do
tempo, mas afirmam serem produtos de atos históricos de revelação e criação.
Elas incluem os três monoteísmos ocidentais: Judaísmo, Cristianismo e
Islamismo, assim como o Budismo, o Jainismo e a religião Sikh134 .
131
ENCICLOPÉDIA EINAUDI. Imprensa Nacional, v.12. p. 107.
ibid., p.109.
133
ASSMANN, Jan. Religion and cultural memory. Stanford: Stanford University Press, 2006.
134
ibid., p. 123.
132
65
As religiões primárias são equivalentes a religiões de culto, e são assim denominadas por
se tratar, em qualquer lugar, do primeiro fenômeno religioso que aparece. Estas religiões
[...] surgem supostamente de religiões tribais, espalhadas nos complexos e
complicados politeísmos das antigas altas culturas, e podem ser encontradas
ainda no mundo asiático atual, freqüentemente em um estado de coexistência
pacifica com religiões que estão em patamares diferentes.135
Esta transformação implica uma mudança estrutural também na própria natureza da
religião. Enquanto que nas chamadas religiões primárias - que é o caso da egípcia antiga encontram-se como princípios básicos o ritual e a imanência, nas religiões secundárias valem os
princípios da escrita e da transcendência.
Assmann entende a modificação de uma religião de culto para outra forma de religião
baseada em textos escritos através de uma transformação na memória cultural. Diz o autor que,
nas religiões de culto, as “estruturas conectivas” que permitem a reprodução da cultura através
das gerações eram feitas através da repetição ritual. No caso das religiões baseadas em livros, o
ritual fica subordinado ao texto, na medida em que vige o princípio da interpretação dos textos
canônicos como forma de preservar a memória cultural ao longo das gerações.
A religião egípcia vem sendo exaustivamente trabalhada por vários egiptólogos ao longo
do tempo. Ao lado da história política tradicional, este foi o campo por excelência de reflexão
egiptológica. Isto não quer dizer, contudo, que seu conteúdo se tenha esgotado - muito pelo
contrário. Há ainda muitas lacunas a serem preenchidas e enfoques inéditos colaboram para
novos esclarecimentos e para a superação de teorias já caducas e insuficientes. Portanto, em vez
de meramente catalogar as concepções egípcias sobre o pós-morte, esta dissertação visa dar um
enfoque diversificado a este tema, mostrando como uma abordagem diferenciada da
"democratização" da imortalidade - feita aqui através de sua conexão com um contexto mais
amplo - pode ajudar a entender melhor alguns aspectos da religião funerária egípcia. É com este
objetivo, então, que versarão as linhas que compõem o segundo capítulo desta dissertação. De
outro lado, uma das hipóteses de trabalho visa demonstrar que os Textos dos Sarcófagos, na
realidade, não representam uma ruptura com o esquema teológico presente no seu antecessor
135
ibid., p. 123.
66
Textos das Pirâmides, mas são, antes, um desenvolvimento das noções de outrora, agora aliadas a
variações regionais.
Em vez de haver uma diferenciação em relação às concepções partilhadas pelo faraó e seu
círculo mais restrito, houve uma apropriação dos modelos régios que colaborou para sua
perpetuação e disseminação, e não para um maior enfraquecimento. Nas palavras de Quirke, o
uso de insígnias e equipamentos régios em funerais de outros que não o rei, na verdade confirma
o papel deste muito mais do que o subverte136.
Esta hipótese tem por base a situação exposta no primeiro capítulo, que concluiu não ter
havido uma mudança substancial nas estruturas e concepções estatais egípcias do Reino Antigo
com o ganho de autonomia dos altos funcionários beneficiários do ganho da "democratização" –
pelo contrário, houve muito mais uma apropriação destes componentes no nível local, que se
deve a um processo de emulação por parte das elites em relação aos preceitos e estilo de vida da
Corte. Tudo isto leva a crer que seria uma contradição dizer que os Textos dos Sarcófagos
representam algo inteiramente novo no tocante às concepções funerárias. Parece mais produtivo,
portanto, entendê-los à luz das transformações ocorridas no período em que foram produzidos e
disseminados. A “democratização” é parte de um processo político desencadeado a partir,
especialmente, da VI dinastia, e compreender esta transição implica na percepção de elementos
que vão além do seu significado religioso propriamente dito, uma vez que este é também
influenciado pelas transformações ocorridas na sociedade.
Ao analisar a literatura funerária, é importante, também, ter em mente o cuidado apontado
por Regina Hein, em seu trabalho com os Textos dos Sarcófagos:
[...] essa literatura funerária não reflete exatamente a totalidade das
crenças e práticas funerárias egípcias; antes, revela o olhar das tradições
religiosas sobre as idéias e práticas do conjunto da população, reorganizando
esse arcabouço e gerando um imaginário religioso que reincide sobre a realidade
social, reorientando e modificando suas práticas e crenças funerárias. A análise
dos encantamentos funerários egípcios deve sempre levar em conta essa
“função” da literatura funerária, enquanto produto cultural de gerar o imaginário
religioso e de utilizá-lo para modificar as práticas e crenças sociais que lhe
deram origem137.
136
QUIRKE, Stephen. Ancient Egyptian religion. Londres: British Museum Press, 1992. p. 158.
HEIN, Regina Lucia Martins de S. O imaginário religioso egípcio acerca da imortalidade nos “Textos dos
Sarcófagos”. Niterói, 2001. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia,
Universidade Federal Fluminense, 2001. p.14.
137
67
Antes de partir para a análise propriamente dita dos textos funerários, é preciso, porém,
esclarecer aspectos concernentes à visão dos egípcios sobre a morte, bem como apresentar uma
tipologia das fontes, conforme se verá no que segue.
2.1 A MORTE PARA OS EGÍPCIOS
É corrente a afirmação de que os egípcios eram um povo “obcecado” com a morte, dada a
grande quantidade de monumentos funerários que sobreviveram até os dias de hoje e o grande
empenho, por parte dos egípcios, na sina do pós-morte. Tentando romper com esta visão, há
aqueles que dizem que, na verdade, a obsessão dos egípcios não era com a morte, mas sim com a
vida, posto que aquela era uma extensão desta. Creio, contudo, que ambas as concepções sejam
exageradas e um tanto quanto equivocadas, pois colocam no centro de toda ação egípcia a
preocupação com o outro mundo, desconsiderando os demais elementos que faziam parte do
pensamento desta civilização e a impulsionavam. Parece-me mais válido avaliar qual a
importância da morte para os egípcios e o que ela representava para, assim, entender o seu peso –
notável – na mentalidade do egípcio antigo.
Em primeiro lugar, é preciso compreender que a morte, para a os egípcios antigos,
representava algo necessário para que se pudesse atingir um novo nível de existência. Contudo,
ela também representava uma ruptura, a qual traria conseqüências também ao mundo dos vivos,
como a questão da herança e gestão do patrimônio, por exemplo. A morte era uma passagem que,
como para nós, não era feita sem dor para os que ficavam e gerava, também, sentimentos de
medo e recusa. Por esta razão, os egípcios utilizavam-se de eufemismos para se referirem a ela.
Não havia uma separação entre mundo dos vivos e mundo dos mortos – tanto estes quanto
aqueles faziam parte de uma mesma comunidade. Os mortos não eram excluídos da sociedade e
poderiam, até mesmo, intervir em questões dos vivos, a pedido deles próprios, conforme se
observa através das cartas que os egípcios escreviam a seus falecidos. Tome-se como exemplo a
seguinte carta, datada do Primeiro Período Intermediário, na qual um viúvo se dirige a sua
falecida mulher:
68
Uma comunicação de Merirtyfy para Nebetiotef: Como vai você? O
oeste está cuidando bem de você (de acordo com) o seu desejo? Agora, visto que
eu sou o vosso amado na terra, luta em meu favor e interceda em favor do meu
nome. Eu nunca mutilei (um encantamento) em vossa presença quando perpetuei
vosso nome sobre a terra. Remova a enfermidade de meu corpo! Por favor,
torne-se um espírito (perante) meus olhos para que possa vos ver num sonho
lutando em meu favor. Depois “depositarei” oferendas para você (assim que) o
sol tenha-se levantado e colocado vossa laje de oferendas.138
O empenho despendido na construção de uma morada pra a eternidade por ser entendido
como um esforço destinado a continuar a fazer parte de uma comunidade. Para Assmann, os
investimentos destinados ao pós-morte que incluíam, por exemplo, o preparo de uma tumba,
eram formas de manter, de maneira indissolúvel, os laços de um indivíduo na constelação social.
A tumba seria, neste sentido, “um lugar no espaço social, geográfico e cultural do grupo”139, já
que
A construção de uma tumba no momento correto era um objetivo de
vida, que assegurava a certeza de não sair, na morte, do contexto da vida e da
terra como um espaço social, geográfico e cultural, de possuir um lugar no qual
uma pessoa pudesse se fazer presente após a morte, integrada na comunidade
dos vivos140.
O medo que os egípcios tinham de “morrer uma segunda morte”, era porque esta
implicava na total aniquilação do ser da memória social, o que levou à inserção de encantamentos
na literatura funerária visando justamente afastar este mal.
Diferentemente da concepção judaico-cristã, os egípcios não viam o ser através de uma
dualidade entre corpo e alma. Havia, antes, uma pluralidade de aspectos corpóreos e nãocorpóreos que, em conjunto, formavam um indivíduo. O entendimento de alguns destes aspectos
é crucial para que se possa compreender a orientação das ações egípcias a respeito da morte.
Dentre os elementos que compunham o ser, estavam o ka, o ba, o corpo, a sombra, o nome e o
138
BAKOS, Margaret Marchiori; BARRIOS, Adriana Masciadri. O povo da esfinge. Porto Alegre: Editora da
UFRGS, 1999. p. 26.
139
ASSMANN, Jan. Death and salvation in Ancient Egypt. Itaca: Cornell University Press, 2001, p. 12.
140
ibid., p. 13.
69
coração. Os três primeiros são os que interessam mais diretamente aos propósitos desta
dissertação.
O ba e o ka são os elementos não-corpóreos. Tanto um quanto outro conceito são difíceis
de serem definidos, pois não há paralelos no mundo moderno e contemporâneo. Esta dificuldade
gera até mesmo a existência de interpretações incorretas acerca do significado destas partes, que
muitas vezes são traduzidas erroneamente por conceitos como alma.
O ba é o elemento principal da personalidade de um egípcio, e pode ser compreendido
como a junção de todos aqueles elementos que fazem de uma pessoa “única”. Allen entende o ba
como “(...) a impressão que uma pessoa deixa nas outras (...) Ele é o meio pelo qual uma pessoa
se faz conhecer: o vento, por exemplo, é o ba de Shu (deus da atmosfera)”141, uma vez que tanto
deuses, quanto homens e seres inanimados são dotados de um ba. O ba pode, ainda, ser traduzido
como “princípio de mobilidade”, pois é ele que permite ao morto transitar em sua viagem pelos
céus. O ba poderia sair da tumba durante o dia, visitar os vivos, mas deveria retornar ao corpo,
seu receptáculo, durante a noite. A representação hieroglífica do ba é a de um pássaro com
cabeça de homem.
O ka, simbolizado segundo as convenções representacionais egípcias como dois braços
estendidos, é a “força vital” de um indivíduo, ou “princípio de sustento”. Ao ka do morto
deveriam ser apresentadas oferendas constantemente para que esta força vital não se esvaísse. O
ka acompanha uma pessoa desde o seu nascimento, como é possível observar, por exemplo,
através da representação de um mito de criação que mostra o deus Khnum, com cabeça de
carneiro, como um oleiro modelando os seres humanos e os seus kas, aos quais era apresentado o
ankh, o símbolo da vida. Durante a vida, o ka fazia parte do corpo de um indivíduo, e se separava
dele no momento da morte.
O nome (ren), era um aspecto essencial da individualidade de uma pessoa, e um meio de
manifestar a sua existência. O nome estava diretamente associado ao bem-estar do morto, razão
pela qual houve, ao longo da história egípcia, tentativas de se fazer mal a uma pessoa afetando
diretamente o seu nome, tentando apagá-lo de uma inscrição, por exemplo. O nome era também
uma forma de sobrevivência caso a múmia perecesse por algum motivo, e era importante que,
durante os rituais fúnebres, ele fosse recitado em voz alta para ativar sua potencialidade mágica.
141
ALLEN, James P. Funerary texts and their meaning. In: AURIA, S., LACOVARA, P., ROEHRIG, C. Mummies
& Magic. The funerary arts of Ancient Egypt. Boston: Museum of Fine Arts, 1998. p.43.
70
A morte de uma pessoa cessa as suas faculdades físicas e mentais, as quais, segundo os
egípcios, poderiam ser recuperadas através do desempenho de certos atos. Rituais como a
abertura da boca visavam restaurar magicamente as faculdades físicas e mentais do morto.
Herman te Velde observa que
Uma vida no outro mundo era pré-fabricada por palavras, atos e dons.
Estas preparações extensivas mostram um apelo impressionante para retirar vida
da morte. No Egito, o protesto humano contra a morte foi transformado em
apelos persuasivos ou, como alguns poderiam obter, para preservar e renovar a
vida142.
Após a morte, o indivíduo fazia sua jornada para o seu ka. Como o corpo permanecia na
tumba, era o ba quem fazia esta viagem, a qual era repleta de perigos que deveriam ser vencidos,
primeiramente, com a ajuda dos vivos e, posteriormente, pelo falecido sozinho. A preservação do
corpo era importante na medida que este servia como um receptáculo para o ba, que ia visitá-lo
na tumba. É na mumificação que começam os preparativos para uma boa morte. O Ritual de
Abertura da Boca, além de restaurar as faculdades físicas e mentais do morto, permitia que o ba
se desprendesse do corpo e pudesse realizar sua jornada pelo outro mundo até o seu ka.
Apesar das crenças funerárias egípcias terem variado ao longo do tempo, o elemento
comum e mais importante de todas as concepções era que o morto pudesse chegar ao seu estado
transfigurado, que é chamado akh. Esta condição só poderia ser atingida após a morte e, para o
sucesso nesta empreitada, os textos funerários forneciam ajuda essencial. É da união do ka e do
ba, após o sucesso da viagem pelos céus, que surge a nova forma transfigurada. A travessia do ba
pelo cosmos ao encontro de seu ka é associada ao ciclo solar, e o horizonte (akhet) é o local onde
se dava a transfiguração.
A vida após a morte representava a integração do falecido aos padrões cíclicos da
natureza. Rá e Osíris, as principais divindades funerárias, o são justamente por estarem
associadas aos ciclos regenerativos naturais – o primeiro era associado ao nascer e ao morrer do
sol, possuindo também outras formas como Khepri, o sol da manhã, e Atum, o sol vespertino,
enquanto o segundo simbolizava a revitalização da natureza através das cheias do Nilo e do
142
TE VELDE, Herman. Funerary Mythology. In: ibid., p.36.
71
crescimento da vegetação. Ambos os deuses estavam associados a duas concepções de tempo dos
egípcios, a eternidade cíclica (neheh), do deus Rá, e a eternidade linear (djet), do deus Osíris.
A confecção de uma tumba era importante na medida que o local no qual repousava o
corpo era uma alusão ao duat, no qual, assim como o sol, o falecido passaria a noite aguardando
seu renascimento, que se daria no amanhecer. Segundo Taylor, preparar e equipar uma tumba era
um marco de piedade filial, e um local feito para que o nome de alguém, literalmente, vivesse.
Isto porque, como já vimos, a tumba tem uma função social, e a realização do culto mortuário e
dos rituais de oferenda representava uma continuidade com o passado e reafirmava, também, a
união a família ali reunida para prestar homenagem ao seu antepassado.
A vida após a morte era vista como uma continuidade da vida terrena, por isto
observamos a colocação de pertences na tumba, os quais – acreditava-se - seriam utilizados pelo
morto em sua nova existência. Da mesma forma que os vivos, os mortos tinham necessidade de
se alimentar, daí a necessidade de construir uma capela de oferendas, na qual seriam realizados
rituais e depositados alimentos para o ka do morto, para que sua força vital não se esvaísse e ele
continuasse a viver no outro plano. Para poder receber as oferendas, o ka deveria desprender-se
do corpo. Com o intuito de proporcionar um equivalente físico no qual o ka desprendido pudesse
residir, era colocada uma estátua do falecido em frente à mesa de oferendas.
Contudo, para poder comer, beber, andar, trabalhar e continuar a exercer todas as
atividades em sua nova morada no mundo dos mortos, seria preciso restaurar individualmente
todas as partes do corpo, o que era feito através do já mencionado Ritual de Abertura da Boca,
geralmente presidido pelo filho do falecido, seguindo o exemplo de Hórus para com seu pai
Osíris. Para que os membros pudessem ser restaurados, era importante que o corpo estivesse
preservado e, aí, entra a importância do ritual de mumificação, que visava, sobretudo, transformar
o corpo em algo eterno. A imortalidade dependia quase que exclusivamente de sua preservação e
da habilidade dos membros funcionarem individualmente. Uma tentativa de eternizar os aspectos
físicos de uma pessoa era associar cada parte do corpo a um deus, conforme é possível perceber
de vários encantamentos funerários:
Minha face é Rá.
Meu cabelo é Hórus.
Meus olhos são o Deus da Mágica.
Minhas orelhas são o Grande Ouvinte.
Minhas sobrancelhas são os Dois Poderes.
72
[...]
Meus dentes são Sopd.
Minhas presas são Shesmetet.
Minha garganta é Rá.
[...]
Meus pulmões são Isis.
[...]
Meu coração é Nekebkhau.
Minha espinha são as Almas Gêmeas.
[...]
Minhas mãos são o Touro da Governança.
Meus dedos são a cobra-n‘w.
Minhas narinas são Geb.
[...]
Minhas costelas são Neith.
[...]143
Como o outro mundo era um local desconhecido e repleto de perigos, dificilmente o
morto conseguiria chegar ao fim de sua jornada sozinho. Por isto, ele deveria contar com o
auxílio de poderes e conhecimentos especiais, os quais eram fornecidos pela literatura funerária,
da qual falaremos mais detalhadamente adiante.
O destino do morto, conforme já dito, variou muito ao longo da história egípcia.
Primeiramente, somente o rei era passível de imortalidade, e seu destino era juntar-se aos deuses
nos céus e viver acompanhando Rá em sua barca. A ascensão do rei aos céus poderia ser feita das
mais variadas formas possíveis, como consta dos Textos das Pirâmides. Poderia-se esperar subir
aos céus nos ombros de Shu, transfigurar-se em um pássaro para poder voar ao firmamento, subir
por uma escada e assim por diante. Posteriormente, desenvolveu-se a noção de um mundo dos
mortos no Reino de Osíris, que começa a ser caracterizada de forma mais clara nos Textos dos
Sarcófagos. Era pré-requisito conhecer os nomes das localidades e dos demônios existentes no
outro mundo, seus caminhos e portões e ter conhecimento das palavras mágicas adequadas, pois
tudo isso era o que permitiria uma pessoa passar por todos os percalços de forma segura.
2.1.1 O DEUS DOS MORTOS: OSÍRIS
Não é possível compreender a religião funerária egípcia sem um conhecimento mais
aprofundado acerca do papel desempenhado por sua principal divindade: Osíris. Por esta razão,
143
TS 945.
73
as próximas linhas desta dissertação irão descrever, de forma breve, alguns elementos referentes
ao mito osiriano, uma vez que a importância adquirida por este deus na obtenção da imortalidade
tornou os ritos funerários uma encenação de sua “paixão”.
Osíris é uma divindade inicialmente associada à cidade de Djedu (Busíris, em grego), no
delta, e logo ganha o epíteto de “Senhor de Busíris”, suplantando Andjeti como deus local e
como símbolo de fertilidade. Alguns egiptólogos crêem que Osíris, na verdade, trata-se de um
personagem histórico real, que teria sido governante do Egito em uma época remota. Tal suspeita
levou arqueólogos a saírem em busca de seu local de enterramento, tendo-o confundido, por
exemplo, com a sepultura de Djer, faraó da primeira dinastia.
Por ter se tornado uma divindade bastante popular, Osíris teve seu culto expandido a
outras partes do Egito, a exemplo da cidade de Abidos, localizada no Alto Egito, na qual ocorreu
sua associação com o deus local Khentamentiu. Segundo o mito osiriano, Abidos foi o lugar no
qual Isis teria encontrado a cabeça de seu marido, razão pela qual este local tornou-se um
importante centro de peregrinação e um lugar privilegiado para realizar enterramentos. Era
bastante comum que pessoas construíssem cenotáfios nesta cidade, além dos seus locais de
sepultamento efetivo. Na impossibilidade de se construir uma tumba em Abidos, efeito
semelhante poderia ser obtido erigindo-se lá uma estela funerária ao longo da via processional do
deus. Todos os anos era encenada a paixão de Osíris neste local, no qual havia uma procissão em
que o deus aparecia fora do templo em seu tabernáculo, para celebrar o Festival Koiakh. Além
das estelas funerárias, muitas pessoas pintavam cenas de peregrinação a Abidos em suas tumbas
de forma a poderem participar dos mistérios deste deus.
No mito que relata a sua morte, Osíris e a sua esposa Isis teriam sido o primeiro casal a
governar o Egito, enchendo-o de prosperidade. Com o intuito de usurpar o trono, Seth, irmão de
Osíris, prepara uma armadilha que culmina em seu assassinato. Encerrado em uma urna, o corpo
de Osíris chega pelo rio até Biblos onde, ao se chocar a uma árvore, fê-la crescer frondosamente,
do que derivou sua associação como deus da fertilidade. Isis sai em busca do corpo de seu marido
e, conseguindo resgatá-lo após uma estadia no palácio de Biblos, enterra-o no pântano a fim de
protegê-lo de Seth. Este, contudo, encontra o local onde estava escondida a urna contendo o
corpo de Osíris e esquarteja-o, espalhando cada uma das partes por diversos cantos do Egito.
Com a ajuda de Anúbis, Thot e Néftis, Isis consegue juntar todos os membros de Osíris
novamente e empreende esforços rituais para tentar ressuscitá-lo. Antes disso, Isis transforma-se
74
em um falcão e sobrevoa o corpo de seu marido, sendo magicamente fecundada por ele, e desta
união surge o deus Hórus. Osíris é considerado a primeira múmia do Egito e, tendo ressuscitado,
não mais voltou a habitar o mundo dos vivos, mas sim, tornou-se regente do submundo
transformando-o em um local de plena abundância.
A segunda parte da lenda diz respeito à contenda entre Hórus e Seth pelo trono do Egito.
Os dois deuses entram em disputas físicas, tendo Hórus o olho direito arrancado por seu tio. Seth
apresenta ao tribunal dos deuses acusações contra Hórus, sobre as quais os deuses deliberaram,
uns em favor de Seth e outros em favor de Hórus. Ao final, pela intercessão da deusa Neith, o
trono é dado a Hórus como legítimo sucessor de Osíris, o que, para Veronica Íons, representa
uma querela na qual se deveria avaliar se os direitos de “antiguidade” prevaleceriam sobre os de
hereditariedade no momento da sucessão144.
Esta última parte do mito é especialmente importante no que diz respeito às concepções
funerárias, uma vez que a ressurreição de Osíris dependia da entronização de seu filho Hórus. A
conquista do poder pelo novo faraó na terra anunciava a passagem de seu antecessor à vida
eterna. Osíris não poderia renascer sem que Hórus o vingasse. Neste momento, Hórus apresenta a
Osíris o olho que havia sido arrancado por Seth, o qual tornou-se símbolo de regeneração. A
oferenda do olho de Hórus exerce um papel bastante relevante na literatura mortuária por sua
associação ao mito.
O ritual funerário, como um todo, era uma encenação dos mistérios de Osíris. A passagem
pelo julgamento dos mortos é análoga àquela enfrentada por Hórus, no qual o mesmo é
proclamado justo contra as acusações de Seth, o qual vira a personificação do inimigo. Na
literatura funerária, o morto, ao passar pelo julgamento com sucesso passa a ser chamado também
de o “justo de voz”.
Na literatura funerária mais antiga, Osíris era referido como uma entidade secundária,
como uma divindade subterrânea que ia ao auxílio de Rá para defendê-lo dos perigos do mundo
inferior. Pouco a pouco, contudo, Osíris foi incorporado às forças cósmicas que governavam o
mundo, dada a importância da agricultura e da fertilidade em uma sociedade como a egípcia.
Veronica Íons mostra esta evolução em termos bastante interessantes. A autora frisa que, no
princípio, os faraós identificavam o ritmo cíclico de seu reinado com a morte e a renovação do
144
IONS,Veronica. La vie après la mort: le culte d´Osiris. In.:Les grands mythes de l´homme. Sous le signe d´Isis et
d`Osíris. Paris: Robert Laffont, 1982 pp. 138-139.
75
mundo natural. Desta forma, acreditava-se que, enquanto prosperasse a casa real, prosperariam
também a terra e agricultura. Como divindade ctônica tutelar, natural foi que se aumentasse a
influência de Osíris em relação às ações do faraó, este o principal responsável por manter a
estabilidade do mundo natural a mando dos próprios deuses145.
Desde então, seu culto torna-se especialmente popular, e acaba, inclusive, usurpando
funções do deus criador, Rá, que perde espaço e importância na literatura funerária, como
podemos observar se compararmos os Textos das Pirâmides aos Textos dos Sarcófagos. Perde-se
espaço a associação da imortalidade ao nascimento cotidiano do sol, em nome de uma associação
à ressurreição de Osíris.
Enquanto o culto ao deus Rá era restrito a um pequeno círculo de pessoas, do qual faziam
parte o faráo e alguns sacerdotes de Heliópolis, Osíris parecia às pessoas em geral muito mais
acessível que o deus solar, do qual não se podia nem mesmo chegar ao santuário. Isto se deve,
primeiramente, por Osíris estar representado na forma humana e, em segundo lugar, por seu
sofrimento, muito mais próximo às mazelas humanas. Como diz Veronica Ions:
[...] o culto do deus-sol, ligado às leis do exercício e da herança do poder,
justificava o estado presente da ordem política do mundo. O mito de Osíris, ao
contrário, tocava nas emoções humanas as mais profundas. Sua força repousava na
simpatia que inspirava, necessariamente, um homem assassinado por seu irmão e que
terminava por obter a vida eterna graças aos esforços incessantes de uma esposa
amorosa. Osíris era um homem que havia sofrido a injustiça. Ele era passivo por
natureza. Um homem comum poderia reconhecer nele seu próprio destino enquanto
seria incapaz de se identificar ao deus criador146.
É interessante observar como que, a partir dos Textos dos Sarcófagos, os elementos
osirianos passam a adquirir maior preponderância, a exemplo da cena do julgamento e da
importância de vencer os inimigos, que é vista em sua forma mais completa no Livro do Mortos.
Neste mesmo momento, há um maior desenvolvimento das técnicas de mumificação e, no Reino
Médio, um sarcófago de forma antropóide, representando o deus é incorporado ao sarcófago de
madeira. Estas considerações, contudo, serão melhor apresentadas noutro momento desta
dissertação.
145
146
IONS,op. cit. passim.
Ibid., p.129.
76
2.1.2 AS PIRÂMIDES E SEUS TEXTOS.
Em 1881, foram descobertos textos funerários inscritos nas paredes de cinco pirâmides,
pertencentes aos faraós Unas (2356-2323 a.C.), Teti (2323-2291 a.C.), Pepi I (2289-2255 a.C.),
Mernere (2255-2246 a.C.) e Pepi II (2246-2152 a.C.). O conjunto mais antigo de textos a que se
deu o nome de Textos das Pirâmides foi encontrado na pirâmide de Unas, último faraó da Vª
dinastia (2465-2323 a.C.). Acredita-se que, tanto os Textos das Pirâmides quanto os Textos dos
Sarcófagos tenham sua origem em contextos rituais e sejam derivados de fontes orais. Por isto,
Baines atesta que as composições mais antigas conhecidas como Textos das Pirâmides são
aquelas encontradas no templo mortuário de Sahure (2458-2446 a.C.), também faraó da Vª
dinastia, e não de Unas.
Os hieróglifos esculpidos nas paredes da câmara e a da antecâmara funerária de Unas que totalizam 228 encantamentos - estão na vertical, sem o acompanhamento de imagens, e
pintados na cor verde, que é associada à regeneração.
Posteriormente, foram descobertos textos também junto a três rainhas de Pepi II e na
pirâmide do rei Ibi, da VIII dinastia. Os encantamentos existentes nos Textos das Pirâmides são
bastante individualizados, na medida que são separados uns dos outros por um termo introdutório
e por linhas divisórias.
A manutenção destes textos bem como o seu armazenamento para posteriores cópias nas
pirâmides reais era realizado pelo palácio, pela corte, pela administração régia ou nos próprios
templos destinados ao culto mortuário do faraó divino. O acesso a tais textos, contudo, estava
sujeito a uma série de regras e, ao que tudo indica, exigia que sacerdotes especializados
realizassem rituais de iniciação para tanto147. Os Textos das Pirâmides estavam, provavelmente,
colecionados em um corpus pelos sacerdotes de Rá em Heliópolis. Nesta direção, Baines afirma
que
Composições para rituais divinos e mortuários foram provavelmente
sustentadas em instituições prestigiosas que comportassem pelo menos algum
tipo de segredo, nas quais o pessoal deveria também ser treinado; treinamento
147
Esta é uma conclusão a que chega Assmann do estudo com textos antigos referentes ao culto solar, e exposta por
Baines em seu artigo mencionado anteriormente. Para o trabalho de Assmann, cf. ASSMANN, Jan. Egyptian Solar
Religion in the New Kingdom: Re, Amun and the crisis of polytheism. London, New York, 1995, p. 26-30.
77
em outros altos domínios culturais também podem ter ocorrido em demais
locais. É incerto se a posterior Casa da Vida (per-ankh), operou no Reino Antigo
na mesma maneira que operou posteriormente.148
A primeira edição dos Textos das Pirâmides foi feita por Gaston Maspero, publicada ao
longo de diversos volumes do jornal Recueil. Em 1910, Sethe faz uma nova organização sob o
título Die altaegyptischen Pyramidentexte, que contava, ao todo, com 714 encantamentos,
complementados mais tarde com outros descobertos após o fechamento da sua edição. No total,
os Textos das Pirâmides são uma coletânea de 759 encantamentos. Escolheu-se, para fins desta
dissertação, utilizar a tradução feita para o inglês de Raymond Faulkner, por sua tradução ser
considerada pelos especialistas como a mais confiável e também a mais fiel possível aos
originais149.
Estes textos são uma compilação de fontes anteriores, e carregam consigo representações
de várias tradições existentes até então. Um exemplo da presença de tradições arcaicas pode ser
retirado do seguinte encantamento:
“Levanta-te! Remove tua terra!
Joga fora tua poeira!”
Esta passagem se refere, provavelmente, a um tipo de enterro realizado no chão. Taylor
define os Textos das Pirâmides como representantes do estágio formativo da tradição dos textos
funerários egípcios, dos quais os mais importantes são, além dos próprios Textos das Pirâmides,
os Textos dos Sarcófagos e o Livro dos Mortos, este desenvolvido durante o Reino Novo.
Destinados, em primeiro lugar, ao uso exclusivo do faraó, a principal preocupação
presente nestes textos era com a ressurreição do rei e sua ascensão ao céu, onde poderia conviver
junto aos deuses. Este tipo de imortalidade era reservada ao monarca, e o máximo que as pessoas
comuns poderiam esperar era continuar a existir após a morte da mesma forma em que viveram
neste mundo. A imortalidade de todos os súditos estava, nesta época, estreitamente vinculada à
do faraó.
148
149
BAINES, John. Modelling Sources, Processes and Early Mortuary Texts. Cópia cedida pelo autor. p. 14.
FAULKNER, Raymond O. The ancient Egyptian Pyramid Texts. Oxford: Aris & Phillips, 1969.
78
A principal função dos Textos das Pirâmides era permitir que o morto fizesse de forma
bem sucedida a transição para o seu estado transfigurado, o akh. Forneciam, desta forma, o
conhecimento necessário à passagem para a outra vida, bem como ofereciam proteção contra os
inimigos que ameaçavam esta jornada. Contudo, é importante ter em mente o cuidado apontado
por Baines, de que estas coleções de textos não apresentavam tudo o que seria necessário ao
morto no outro mundo150.
Sem que haja uma ordem fixa dos encantamentos, os principais temas presentes nos
Textos das Pirâmides são o posicionamento do rei entre as divindades do dia e da noite, sua
ascensão às estrelas – que eram um símbolo de permanência151 - e a sua associação a Osíris e a
Rá. A relação do rei com este último se dá através da incorporação da morte do monarca ao ciclo
solar do renascimento. Breasted divide os Textos das Pirâmides em seis temas principais, no
tocante à forma com a qual se apresentam os encantamentos: ritual mortuário e ritual de
oferendas funerárias na tumba; encantamentos mágicos; rituais antigos de veneração; hinos
religiosos antigos; fragmentos de mitos antigos e, por fim, orações e petições em benefício do rei
morto152.
Lichtheim enumera os estágios da conquista da vida eterna conforme consta nos Textos
das Pirâmides. Há, primeiramente, o despertar na tumba do sono da morte; posteriormente, temse a ascensão do faraó aos céus e o último estágio é aquele no qual o rei é admitido na companhia
dos deuses imortais. A autora observa, ainda, a importância de alguns temas ancilares, como
encantamentos de oferenda e de purificação, que eram originalmente recitados pelos sacerdotes
no ato do funeral e repetidos posteriormente no culto funerário, fórmulas contra cobras e demais
inimigos e passagens que apresentam visões sobre como seria o outro mundo153.
Os encantamentos dos Textos das Pirâmides eram inscritos nas câmaras, antecâmaras
funerárias e corredores deste tipo de tumba, tinham funções específicas e estavam diretamente
relacionados à arquitetura das pirâmides em que foram inscritos. David considera a possibilidade
de o padrão de organização dos encantamentos refletir a ordem de parte do serviço funerário
150
BAINES, op. cit, s/d.
A orientação das entradas das pirâmides construídas durante o Reino Antigo tem ligação com o alinhamento das
estrelas.
152
BREASTED, James Henry. Development of religion and thought in Ancient Egypt. Philadelphia: University of
Pennsylvania Press, 1972.
153
LICHTHEIM, Miriam. Ancient Egyptian Literature. A book of readings. The Old and Middle Kingdoms. v.1.
Berkeley, 1975. p. 131.
151
79
seguindo, possivelmente, a rota física tomada pelos sacerdotes ao levarem o rei morto até a
câmara funerária que continha o sarcófago154.
Seguindo a classificação de Allen presente em Mummies and Magic, é possível dividir os
encantamentos em três tipos. O primeiro comporta encantamentos de tipo mágico, cujo tema
principal visa afastar cobras e demais criaturas perigosas. Estes encantamentos complementam a
função protetiva da pirâmide, e eram inscritos na parede que dá para a entrada do cômodo que
contém os bens funerários do faraó. Na pirâmide de Unas, eles estão inscritos acima de seu
sarcófago. Veja-se, por exemplo, o encantamento 233:
Cai, ó serpente que saiu da terra! Cai, ó chama, que veio do Abismo!
Cai, rasteje para fora!155
Um outro tipo é o dos textos rituais, inscritos na sala que continha o sarcófago, e
serviam como uma espécie de “roteiro” dos rituais a serem realizados em benefício do morto,
associando-o diretamente a Osíris. Os textos rituais, por sua vez, possuem dois temas principais:
oferendas e a ressurreição (passagem para o outro mundo). Encantamentos concernentes ao
primeiro eram inscritos na face norte da pirâmide enquanto que os relativos ao segundo eram
esculpidos na face sul. Toda oferenda é chamada de “olho de Hórus”, e ao fim de cada
encantamento há diretrizes como “recite quatro vezes, para o rei fulano de tal”. O encantamento
72 é um exemplo deste tipo:
Recita quatro vezes: Ó Osíris o Rei, eu enchi teu olho para ti com o
ungüento - perfume.156.
O último tipo comporta os encantamentos pessoais, que eram, como o próprio nome diz,
para uso pessoal do morto. Originariamente, estes encantamentos eram inscritos na primeira
pessoa do singular, mais tarde “personalizados” com a inserção do nome do rei ou da rainha
falecida. Este é o maior e mais variado conjunto de textos dentro dos Textos das Pirâmides, e
pode ser encontrado nas paredes da antecâmara funerária e do corredor que dá acesso à saída da
154
DAVID, Rosalie. Religion and Magic in Ancient Egypt. Penguin Books, 2002, p.93.
TP 233 in: FAULKNER, 1969, op. cit.
156
ibid., TP 72.
155
80
pirâmide. O encantamento 217 da pirâmide de Unas, que se refere à união do rei ao deus-sol, é do
tipo pessoal, conforme se vê, por exemplo, a partir de uma fórmula que se repete ao longo do
mesmo:
[...] Seth, Néftis, proclamam aos deuses do Alto Egito e seus espíritos:
“Este Unas vem, um espírito indestrutível, se ele desejar que tu morras, tu
morrerás, se ele desejar que tu vivas, tu viverás!” [...]157
Observa-se, contudo, que mesmo antes do fim do Reino Antigo alguns destes
encantamentos foram utilizados em funerais não-régios. Autores como Quirke entendem que
estes textos possam ter sido assim inscritos por concessão deliberada do rei, como forma de
demonstrar sua capacidade de recompensar seus súditos, explicação esta que julgo insuficiente e
um pouco simplista. Esta interpretação desconsidera que tenha havido uma diminuição na
diferenciação entre o rei e seus súditos em virtude da apropriação por parte destes de textos
outrora exclusivamente régios. Taylor salienta que este é um fenômeno restrito à esfera funerária,
já que o rei continuou a se diferenciar dos demais em vida e nas provisões destinadas e
preparadas a ele após a morte - vide, por exemplo, o uso da pirâmide, destinada apenas à realeza.
Creio, todavia, que outros fatores estejam presentes, uma vez que a aquisição de status régio por
parte de súditos do faraó no âmbito funerário certamente tem conexões diretas com
transformações ocorridas fora deste universo - conforme demonstrado no primeiro capítulo - e
que não se relacionam só a atitudes de um faraó magnânimo. Contudo, a carência de fontes que
permitam uma comparação entre funerais régios e de pessoas "comuns" em um mesmo período
prejudica a compreensão de transformações nesta distinção.
Devo concordar, contudo, quando Quirke afirma que não foram as pessoas que invadiram
o poder régio, mas o contrário. É o papel do rei que adentra os costumes funerários de seus
súditos; estes, por sua vez, não eram quaisquer súditos, mas sim pessoas com condições
suficientes para equipar suas tumbas e capelas funerárias com textos e imagens importantes para
os objetivos do pós-morte158.
Rosalie David afirma que os Textos das Pirâmides surgiram, provavelmente, como parte
de um esforço para garantir o enterro do rei e sua ascensão aos céus em um momento que, por
157
158
LICHTHEIM, op. cit., p. 30-31.
QUIRKE, op. cit., p. 158.
81
motivos políticos, econômicos, e também por pressões religiosas, as pirâmides tiveram o seu
tamanho e qualidade reduzidos159.
Como os egípcios antigos não faziam suas representações ao acaso ou por puro deleite
artístico, é de se questionar o próprio significado das pirâmides, o meio escolhido para portar os
textos que aqui nos interessam. A respeito do seu simbolismo, é possível dizer que a pirâmide é
uma alusão à colina primordial, que teria emergido de Nun, as águas primordiais, no momento da
criação, já que toda tumba possui um significado cosmogônico. A mesma, ainda, denota a
importância do culto solar, pela qual o rei poderia fazer sua ascensão ao céu através de seus
lados, que funcionariam como rampas e imitavam os raios do sol. A pirâmide é chamada de akhet
(horizonte), indicando seu lugar como um local de passagem entre a dimensão visível e a
invisível. Os egiptólogos não desconsideram, também, que a pirâmide seja uma réplica do
benben, uma pedra cônica venerada no templo de Rá em Heliópolis.
2.1.3 UMA OUTRA LITERATURA FUNERÁRIA: OS TEXTOS DOS SARCÓFAGOS.
A primeira tentativa de publicar os Textos dos Sarcófagos como um todo - cujos
primeiros encantamentos foram encontrados na tumba de Medunefer, em Balat, "governador do
Oásis" no reinado do faraó Pepi II (2246-2152 a.C.) - foi realizada por Pierre Lacau, nos volumes
26 a 31 do Receuil de Travaux relatifs à la Philologie et à l'archaéologie égyptiennes et
assyriennes, e posteriormente republicados em Textes Religieux Égyptiens, em Paris, no ano de
1910. Esta compilação, ainda incompleta, contou com oitenta e quatro encantamentos. A
publicação acabada dos textos segundo os originais é a de Adriaan de Buck, que contou com o
apoio do Instituto Oriental da Universidade de Chicago. Seu trabalho consta de sete volumes,
publicados entre 1935 e 1961. Assim como ocorre com os Textos das Pirâmides, a opção, aqui, é
utilizar a tradução de Raymond Faulkner, presente nos três volumes de seu The ancient Egyptian
Coffin Texts160, aliada ao trabalho de Paul Barguet161.
159
DAVID, op. cit., p.92.
FAULKNER, Raymond O. The ancient Egyptian Coffin Texts. 3 vols. Oxford: Aris & Phillips, 1973, 1977, 1978.
161
BARGUET, Paul. Textes des Sarcophages Egyptiens du Moyen Empire. Paris: Les Éditions du Cerf, 1986.
160
82
Os Textos dos Sarcófagos são o resultado de uma apropriação feita por particulares de
encantamentos presentes nos Textos das Pirâmides – embora sejam muito mais numerosos e
comportem um maior número de variações regionais - numa tentativa de, assim como o rei,
gozarem também eles do privilégio do convívio juntos aos deuses na outra vida. Lichtheim
afirma que a usurpação de prerrogativas régias, neste contexto, é uma tentativa de superar o medo
da morte162. O primeiro capítulo já tratou de demonstrar possíveis causas para este
acontecimento, que é parte de um universo não restrito apenas ao âmbito funerário, mas está
inserido em um processo sócio-político mais abrangente. Os Textos dos Sarcófagos, contudo, não
são mera cópia de seu antecessor, mas uma continuidade que representa um novo estágio de
desenvolvimento das concepções egípcias sobre o pós-morte, certamente influenciado por
transformações sociais, políticas e econômicas.
A preocupação central deste corpus literário continua a ser a transfiguração e a ascensão
do morto aos céus junto aos deuses, a fim de que fosse propiciada uma imortalidade a exemplo
daquela do rei divino. Há também preocupações ordinárias, como vir a sofrer de fome e sede ou o
desejo de se juntar à família, conforme se observa, por exemplo, no encantamento 141:
Ó Rá, Ó Atum, Ó Geb, vede, N está se dirigindo para o céu, para a terra,
para as águas, N está procurando sua família, pois N está incompleto.163
Outra preocupação é com o esquecimento total, exemplificado através de encantamentos
como aquele intitulado “Para não morrer uma segunda morte”, o que ocasionaria a perda de
qualquer vestígio e memória da pessoa da face da terra. Como um acontecimento social, o
sucesso contra a morte era visto também como a perpetuação dos laços adquiridos em vida.
Taylor nota o desenvolvimento de duas importantes noções nos Textos dos Sarcófagos,
quais sejam, a viagem celeste do ba e a existência após a morte em um mundo inferior164, que
alude claramente a elementos osirianos, que passam a ganhar grande destaque nesta nova
compilação funerária. O morto poderia gozar de um destino celeste ou solar, habitar o submundo
de Osíris, ou se satisfazer com a ressurreição da múmia na tumba. Estas opções, longe de serem
contraditórias, coexistiam, e a lógica era a de que, quanto mais meios possíveis de obter a
162
LICHTHEIM, op. cit. p. 131.
TS 141 in: FAULKNER, op. cit., 1973. No lugar de N, uma convenção adotada por Faulkner, vinha o nome do
falecido.
164
TAYLOR, John H. Death and the afterlife in Ancient Egypt. London: The British Museum Press, 2001.
163
83
imortalidade, tanto melhor. Nota-se, igualmente, a maior importância dada à preservação do
corpo (que pode ser comprovada, também, por um maior desenvolvimento das técnicas de
mumificação) e da provisão de oferendas para o ka do morto.
No interior dos Textos dos Sarcófagos, há um importante conjunto de textos intitulados
"guias para o outro mundo"165, dos quais o mais importante era o chamado Livro dos Dois
Caminhos. Trata-se de encantamentos acompanhados de um mapa que indicava a topografia do
outro mundo, bem como o nome de suas localidades, as quais deveriam ser conhecidas pelo
morto para que fizesse a jornada de forma bem-sucedida166. Este livro é assim chamado
justamente por conter a representação de dois caminhos que o morto poderia escolher para seguir
em sua viagem pelo outro mundo, e os objetivos a serem alcançados variavam de acordo com
esta escolha. Havia o caminho azul, chamado de “caminho de águas”, que representava
provavelmente o céu, e havia também o caminho preto, que era um caminho de terra. Este livro é
um claro exemplo de conhecimento esotérico, só acessível àqueles que pudessem ter acesso a esta
literatura. Leonard Lesko verifica a existência de quatro versões deste livro, provenientes de duas
fontes distintas – em uma a ênfase maior é dada ao destino osiriano enquanto, na outra, é o
destino solar o privilegiado167. De maneira geral, os encantamentos do Livro dos Dois Caminhos
versam sobre os seguintes temas: navegar na barca de Rá, passar por portas e demônios
guardiões, seguir em frente por um ou outro caminho e alcançar um destino no Campo das
Oferendas junto a Osíris.
É possível observar, ainda, a presença de uma terceira tradição, que seria a lunar,
relacionada ao deus Thot. Isto porque os sarcófagos nos quais se encontrou os Livros dos Dois
Caminhos são pertencentes à necrópole de el-Bersha, da cidade de Hermópolis, da qual Thot era
o deus principal. É interessante a observação de Lesko sobre a conclusão deste livro, presente na
seção IX do mesmo. O egiptólogo observa que há uma tentativa deliberada de relacionar as três
tradições presentes: lunar, solar e osiriana. Em um primeiro momento, aparece o resumo da
tradição lunar e o morto que conseguisse chegar até este ponto determinado e soubesse os
encantamentos corretos estaria apto a juntar-se a Thot como uma estrela no céu. Sabendo os
próximos encantamentos, que versavam sobre os domínios de Osíris, o falecido poderia esperar
165
Muitos encantamentos dos Textos dos Sarcófagos possuem um caput que indica o propósito a que se destinam.
Para os egípcios o conhecimento do nome era crucial.
167
LESKO, Leonard. Some observations on the composition of the Book of Two Ways. Journal of the American
Oriental Society. v. 91, n. 1 (jan/mar 1971), pp. 30-43.
166
84
ser mais glorioso que o próprio deus. Por fim, conhecendo todos os encantamentos, o morto
poderia juntar-se a Rá, que seria o destino principal. Sobre a proeminência da religião solar nesta
parte do Livro dos Dois Caminhos, Lesko a entende como uma tentativa do sacerdote que a
compôs de converter pessoas. Esta seria uma forma de mostrar que a sua religião tinha mais a
oferecer que as outras168.
Parkinson observa que é no Livro dos Dois Caminhos que começa a se desenvolver a
idéia da imposição de uma ordem ética e ideal ao caos169, que se apresenta de forma bastante
clara no Livro dos Mortos, através do julgamento do falecido no Tribunal de Osíris, a pesagem
do coração opondo-o à pluma de Maat e a confissão negativa presente no encantamento 125.
Neste encantamento o morto lista algumas ações consideradas condenáveis para um egípcio,
dizendo não tê-las praticado, como não roubar, não pecar, não ser ganancioso, não matar, não
praticar atos de violência e assim por diante.
Compreender os Textos dos Sarcófagos implica também um conhecimento acerca dos
suportes utilizados para sua reprodução, quais sejam, os esquifes de indivíduos particulares170.
Não é possível desconsiderar todo o aparato simbólico que permeava o pensamento egípcio, que
vai, por exemplo, desde a cor utilizada para escrever determinado texto ao posicionamento do
morto dentro de sua tumba. Verificaremos, pois, que os sarcófagos são um exemplo rico de
representação mágica e simbólica no Egito antigo171.
Vale lembrar, em primeiro lugar, que a difusão de textos como os Textos dos Sarcófagos
passa ao largo de um importante processo da história egípcia: a difusão da escrita. Neste sentido,
são valiosas as contribuições do egiptólogo John Baines. Este estudioso observa que o
desenvolvimento da escrita no Egito antigo se deu em primeiro lugar com propósitos
168
LESKO, Leonard. The Ancient Egyptian Book of Two Ways. Berkeley, Los Angeles, London: University of
California Press, 1977. pp. 136-137.
169
PARKINSON, Richard. Voices from Ancient Egypt. London: The British Museum Press, 1991. p. 131.
170
Uso, aqui,o termo "particular" em oposição à "régio".
171
A importância do elemento cor e do material utilizado para cravar inscrições ou confeccionar objetos se dava em
virtude da crença que as propriedades físicas destes materiais também continham propriedades mágicas,
potencializadas em função de sua associação à mitologia. Sarcófagos construídos em pedra, por exemplo, eram
importantes por se tratar de um material extremamente durável, o que levaria a crer que, da mesma forma, o morto
ficaria incorruptível à ação do tempo. Cada pedra utilizada também possuía seu significado. O basalto, por exemplo,
que é uma pedra dura e negra, era associado ao mundo inferior e à revivificação; o granito, por sua vez, tem seu
significado na sua cor, que aparece de forma variada desde o rosa até o preto; o quartzito, especialmente em sua
tonalidade amarela, dava conotações solares, e assim por diante (Cf. WILKINSON, Richard H. Symbol & Magic in
Egyptian Art. London: Thames and Hudson, 1994).
85
administrativos, e estava a serviço da formação de um Estado centralizado, o que logo deu vazão
à existência de uma elite letrada e burocrática concentrada na capital. Baines afirma que
A combinação da escrita com a administração e o controle central é
culturalmente mais poderosa [...] Ela [a escrita] pode ser integrada a outros
sistemas de apresentação visual para propor e imortalizar a ideologia
dominante"172.
É por isto que, a partir da terceira dinastia, o uso da escrita se expandiu
consideravelmente. Dada a importância central exercida por materiais de cunho religioso, Baines
crê que, a partir deste momento, os textos religiosos passaram a ser inscritos173, embora seja
impossível estabelecer uma data precisa para tanto. A inscrição dos textos dificultou, de certa
forma, o controle do que estava sendo escrito bem como a sua produção centralizada.
Havia, no Egito antigo, restrições ao uso da escrita, que ficava confinada ao controle
político central. A ornamentação de monumentos seguia a mesma regra, que fazia parte de um
decoro já interiorizado pela população como parte da ordem natural das coisas:
Tumbas no lado ocidental pertencentes a pessoas de status
marginalmente inferior estavam em uma posição menos favorável e proeminente
e não possuíam decoração visível (suas estruturas eram quase sempre maciças)
[...] a explicação óbvia para a falta de decoração pública é que esta forma de
exibição era exclusiva do rei e seu círculo mais restrito [...]174
Isto implica dizer, segundo observa Baines, que qualquer difusão da escrita fora deste
circuito exigia uma sanção ou decisão específica. Esta situação começa a mudar com o aumento
de poder e riqueza nas províncias.
A elite não-régia deste período, por isto, definiu e exibiu seu status
como detentora dos ofícios e burocrata; ela parecia dever aliança a instituições
bem como à pessoa dominante, o rei. Contudo, este desenvolvimento veio com a
172
BAINES, John. Literacy, social organization, and the archaeological record: the case of early Egypt. In.:
GLEDHILL, John; BENDER, Barbara (orgs.). State and Society. The emergence and development of social
hierarchy and political centralization. London: Unwin hyman, 1988. cap. 12.p. 193.
173
Assmann nota este fenômeno como uma passagem do formativo para o mágico, no qual a performance ritual
passa a ceder espaço para a palavra escrita.
174
BAINES, op. cit., 1988, p. 202.
86
nova dinastia depois do enfraquecimento das regras de decoro ao final da 4ª
dinastia e, implicitamente, uma maior independência pessoal. Esta parece ser
uma lógica concomitante ao aumento do uso da escrita, mas foi provavelmente
iniciada por um ato político175.
Este quadro permitiu uma maior difusão da escrita, antes restrita ao rei e aos cortesãos, e
um afrouxamento das regras de decoro de outrora, o que pode explicar em parte a existência de
textos como os encantamentos dos Textos dos Sarcófagos em um contexto não-régio. Baines
salienta que o sistema de decoro exclui a humanidade do contexto das relações com a divindade,
o que não deve ter sido visto com bons olhos pela elite provincial que aos poucos ia conquistando
seu poder e um lugar de importância na sociedade, sem poder projetar seu status e prestígio de
forma compatível no contexto funerário.
Juntamente com a regionalização de diversas atividades, como o artesanato, a produção
dos encantamentos passou também a ser regionalizada, daí encontrarmos uma variação enorme
de concepções pertencentes a tradições distintas neste corpus documental. Alguns encantamentos
que são, por exemplo, enfatizados em uma determinada região, exercem um papel menos
importante em outra. Um exemplo desta variação são as várias formas em que o morto poderia
ascender aos céus, o que provavelmente reflete a existência de diversas crenças simultâneas a este
respeito. Vale salientar, por sua vez, que a compilação destes encantamentos sob a forma e título
Textos dos Sarcófagos é obra dos estudiosos do Egito antigo, e os egípcios não reconheciam as
fórmulas inscritas em seus féretros como integrantes de algum conjunto maior.
A primeira questão a ser levantada, tendo em mente o significado simbólico incorporado a
todas as manifestações religiosas egípcias, é a razão pela qual tais textos foram inscritos nos
sarcófagos. Obviamente, como um guia para o outro mundo, eles deveriam estar próximos ao
morto, mas o sarcófago tem um sentido maior.
Em primeiro lugar, o esquife é uma "casa", uma morada para a eternidade, na qual o
morto habitaria em sua nova vida, juntamente com os pertences colocados ao seu redor. Esta casa
era construída à imagem e semelhança do mundo visível, ou seja, o sarcófago representa também
um modelo do cosmo. Há, por exemplo, um céu no teto, que representa a deusa Nut; um chão no
175
BAINES, op. cit., 1988, p. 203.
87
fundo - associado a Geb; e os quatro horizontes alinhados a partes do corpo (cabeça, pés, frente e
costas)176.
Nota-se a importância da cosmologia, das referências cardeais, como norte e sul, leste e
oeste. Wilkinson observa, nos sarcófagos, um desenvolvimento de elementos osirianos, através
da introdução da representação de divindades estreitamente relacionadas a este deus177. Isis e
Néftis, irmãs de Osíris, começaram a ser representadas nos pés e na cabeça, o que logo levou a
uma associação destas duas deusas aos pontos cardeais sul e norte, uma vez que o ocidente era
para onde estava posicionado o morto. Encontram-se, igualmente, representações dos quatro
filhos de Hórus (este, por sua vez, filho de Osíris) ao longo dos esquifes - novamente as
divindades aparecem claramente posicionadas de acordo com as diretrizes cardeais. Os quatro
lados do sarcófago eram personificados na forma de Isis, Néftis, Hórus e Thot, todas divindades
diretamente relacionadas ao mito de Osíris, o qual ganhou grande popularidade durante o Reino
Médio.
Algumas vezes, o sarcófago era associado em sua totalidade a Nut, conforme crença
datada já da época das pirâmides:
Néftis coletou todos os teus membros para ti em seu nome de ´Seshat,
Senhora dos Construtores´. [Ela] te acolheu em seu nome de ´Sarcófago´, e tu
fostes trazido em seu nome de ´Tumba´.178
Nut é a mãe de Osíris e a mãe dos deuses, e o sarcófago pode, então, servir como metáfora
de um ventre materno que acolhe uma nova vida em potencial, através do renascimento e da
vitória sobre a morte.
A cor da tinta utilizada para inscrever os textos nos sarcófagos era a preta - uma cor
relacionada a divindades funerárias como Osíris, ao mundo inferior, à morte e ao conceito de
ressurreição dos mortos179. Na parte exterior do sarcófago, este geralmente retangular e feito de
madeira, encontram-se inscritas horizontalmente fórmulas de oferenda, seguidas do nome e dos
títulos do dono do esquife. Há, também, um par de olhos uedjat, que além de oferecerem
proteção permitiam que o morto pudesse “olhar” as oferendas que – esperava-se – seriam
176
Cf. BARGUET, op. cit..
WILKINSON, op. cit. p. 70.
178
Encantamento dos Textos das Pirâmides. In.: SPENCER, A. J. Death in Ancient Egypt. New York, 1982. p.165.
179
Cf. WILKINSON, op. cit. p.109.
177
88
destinadas a ele. Encontra-se, ainda, uma decoração na forma da fachada de um palácio,
identificando o sarcófago com a morada do morto. Uma porta-falsa era igualmente representada
na parte exterior do esquife para que o ka do falecido pudesse transitar.
Além da própria inscrição dos Textos dos Sarcófagos, na parte interna dos mesmos, é
possível encontrar pinturas de objetos pertencentes ao assim chamado equipamento funerário,
bem como de itens que serviam de amuletos. Conforme bem observa Spencer, estas pinturas não
representam, necessariamente, possessões do morto – como objetos do equipamento funerário e
outros itens de função apotropaica - mas são também uma apropriação do ritual funerário régio,
assim como o são os Textos dos Sarcófagos180.
No Reino Médio, desenvolveu-se uma forma de sarcófago antropóide, que era colocado
dentro do sarcófago retangular, e nota-se também a utilização de um revestimento – a cartonagem
– que representava aspectos do morto. Estes elementos remetiam diretamente à múmia e
possibilitavam uma maior identificação do falecido a Osíris.
A organização dos Textos dos Sarcófagos é diretamente relacionada a dos Textos das
Pirâmides. Conforme observa Taylor, havia uma equivalência entre as paredes de pedra das
pirâmides e as paredes dos sarcófagos, em razão de seu significado cosmogônico181. A
importância adquirida pelo sarcófago em detrimento da construção de tumbas grandiosas pode
estar relacionada a fatores econômicos. É notório que os monumentos funerários do final do
Reino Antigo e Primeiro Período Intermediário são de qualidade imensamente inferior àqueles
produzidos no auge do Reino Antigo:
O primeiro grande colapso da sociedade egípcia, o Primeiro Período
Intermediário, assistiu a um rápido declínio em todos os aspectos da sociedade,
arte funerária e sua arquitetura. Inclusive as tumbas das mais importantes
personagens são notavelmente grosseiras e provincianas. Desapareceram as
capelas funerárias elaboradas e as superestruturas em pedra. Os monumentos
funerários típicos do período, como o sítio de Naga ed-dêr, consistem em
estruturas simples de tijolo, com pequenas capelas contendo estelas funerárias
esculpidas em pedra, que é tudo o que sobrou da decoração elaborada das
mastabas do Reino Antigo182.
180
SPENCER, op. cit. p. 172.
TAYLOR, op. cit. passim.
182
AURIA, op. cit. p.22.
181
89
Na impossibilidade de construir uma tumba ricamente ornada que exercesse sua função
simbólica no imaginário funerário, a sua reprodução em um elemento constante do funeral
egípcio, o sarcófago, funcionou como alternativa, uma vez que o mesmo funcionava como uma
tumba em miniatura (um microcosmos desta) e produziria, assim, o mesmo efeito mágico e
simbólico esperado.
90
3 IMPLICAÇÕES DO “ACESSO AO DIVINO” E DO DESENVOLVIMENTO
DE NOÇÕES DE “PARAÍSO” NO MUNDO DOS MORTOS
Mencionou-se, anteriormente, a dificuldade de se trabalhar com a literatura funerária
egípcia, em virtude do alto grau de abstração existente na composição dos encantamentos, que
tornam muitas de suas passagens obscuras e de difícil entendimento. Uma medida para tornar o
trabalho mais fácil é conhecer bem a religião egípcia em seus vários aspectos, especialmente
mitológicos, mas até mesmo para os grandes estudiosos as dificuldades aparecem e limitam o
alcance de interpretação de tais textos. Dieter Mueller, por exemplo, busca respostas no contexto
da época de produção dos encantamentos como forma de esclarecer o seu conteúdo e é partindo
deste mesmo viés que se trabalhou com a literatura funerária nesta dissertação183. A análise de
encantamento por encantamento mostrou-se extremamente difícil e morosa – optou-se, por isto,
por uma abordagem mais qualitativa dos referidos encantamentos, em vez de uma análise
qualitativa, tentando, a partir da literatura funerária, encontrar elementos que ajudem a iluminar
alguns aspectos da sociedade egípcia de fins do Reino Antigo e Primeiro Período Intermediário.
Para tanto, foram utilizados alguns critérios de seleção, escolhendo aqueles
encantamentos cujos temas representam inovações ou desenvolvimentos em relação ao momento
183
Sobre os textos funerários, diz Dieter Mueller: “Como resultado, os lampejos que eles possibilitam sobre a
natureza e a geografia do outro mundo são poucos e na majoritariamente incidentais, e informações sobre a sua
estrutura devem freqüentemente ser buscadas fora dos encantamentos propriamente ditos” (MUELLER, Dieter. An
early Egyptian guide to the hereafter. JEA. v.57. 1971, p.99.
91
anterior, dos Textos das Pirâmides, isto porque, acredita-se, que os mesmos facilitem a percepção
de transformações sociais, por abarcarem expectativas diferenciadas e relacionadas em grande
parte a novas visões de mundo. Nota-se, portanto, que a ênfase será dada, especialmente, aos
Textos dos Sarcófagos, por privilegiarmos, na análise, as inovações ocorridas com a
“democratização” da imortalidade.
O primeiro tema que se buscou avaliar é a questão do acesso ao divino, que parte de um
desenvolvimento das idéias do egiptólogo J. P. Sorensen, já expostas no primeiro capítulo.
Avaliar-se-ão os seguintes aspectos: 1) de que maneira este “acesso ao divino” permite entrever
uma nova relação dos egípcios com seus deuses, suscitando possíveis causas desta mudança; 2)
como estas novas relações se conectam ao que se conhece por “piedade pessoal” e, por fim, 3)
qual a relação entre a divinização de particulares, “acesso ao divino” e mudanças na construção
da magem régia. Tudo isto, não custa enfatizar novamente, tendo em vista o contexto sóciopolítico de fins do Reino Antigo e Primeiro Período Intermediário, com breve incursão no
período inicial do Reino Médio.
Um segundo tema a ser trabalhado diz respeito ao desenvolvimento de noções de
“paraísos” no outro mundo - relacionadas em boa medida ao avanço das concepções osirianas
sobre a morte - cuja abordagem será feita tendo em vista os elementos elencados a seguir: 1)
avaliar possíveis causas da popularidade do culto a Osíris em detrimento da religião solar; 2) a
construção da morte como um horizonte utópico a partir do desenvolvimento da idéia de
“paraísos”, que tanto poderiam ser no Reino de Osíris, quanto celestes184.
Ocupamo-nos, no primeiro capítulo desta dissertação, de expor quais as categorias
identitárias presentes no Egito antigo, das quais uma delas era o faraó. Analisamos, igualmente,
de que forma o abalo na crença no soberano como entidade protetora levou ao que podemos
identificar a uma maior “individualização” no Egito antigo. Estas são noções importantes para
que percebamos, justamente, elementos como a gênese da piedade pessoal, que será estudada
neste capítulo. Elias diz que “a coesão dos grupos rompe-se à medida que perdem suas funções
protetoras e de controle”185, e queremos entender, aqui, como o enfraquecimento da figura do
monarca enquanto mantenedor da maat (a ordem) e assegurador da imortalidade levou a
transformações nesta sociedade, a exemplo das relações estabelecidas entre os egípcios e seus
184
A análise irá enfatizar o “paraíso” agrário do deus Osíris, muito embora, como veremos, o destino osiriano e o
celeste não possuam fronteiras rigidamente definidas e muitas vezes se confundem entre si.
185
ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. p.102.
92
deuses. O sociólogo alemão aponta que, quando há a erosão dos laços sociais grupais, o indivíduo
passa a ter que batalhar muito mais por si. É o que pretendemos pepretendemos peceber com a
análise da piedade pessoal e, também, do desenvolvimento de elementos osirianos.
Outras fontes além das funerárias auxiliaram na argumentação referente ao
desenvolvimento das questões apresentadas, dentre as quais está a chamada Literatura Pessimista,
produzida no Primeiro Período Intermediário e a Literatura Propagandística, do Reino Médio.
3.1 O ACESSO AO DIVINO
3.1.1 A CONQUISTA DO “ACESSO AO DIVINO”
A ideologia subjacente aos Textos das Pirâmides é estreitamente relacionada a um período
de forte centralização monárquica e do auge da crença em um soberano divinizado. Esta
centralização se faz sentir, igualmente, no âmbito do pós-morte, com a exclusividade da
imortalidade restrita ao rei, pois era somente a partir dele que outras pessoas seriam capazes de
obtê-la. A própria disposição dos cemitérios régios e sua mudança espacial ao longo do tempo é
indicativa desta relação, conforme bem observa Ann Roth, em artigo sobre as pirâmides da IV
dinastia186.
Esta egiptóloga observa que os enterros, tanto dos reis quanto de seus súditos, eram
realizados nos cemitérios de seus antepassados, até mais ou menos o final da III dinastia. Com o
advento da IV dinastia, surge um novo padrão, e cada rei passa a construir sua tumba em um
local diferente, geralmente distante daquele onde estavam enterrados seus predecessores.
Mudança semelhante ocorre com os altos funcionários e membros da família real, que
abandonam os tradicionais cemitérios familiares para construírem suas tumbas perto da tumba do
monarca. A concessão de espaços para a construção de sepulturas nos cemitérios régios era,
segundo Roth, provavelmente proporcional à posição no rank social e à importância política dos
beneficiários. Diz a autora, então, que
186
ROTH, Ann Macy. Social change in the fourth dynasty: the spatial organization of pyramids, tombs and
cemeteries. JARCE. Vol. XXX, 1993. pp. 33-55.
93
A autoridade dos ancestrais, dos laços familiares históricos e, talvez, das
lealdades tribais, foram enfraquecidas tanto na esfera régia quanto na privada e,
na esfera privada, elas parecem ter sido substituídas por uma maior dependência
da autoridade do rei187.
Já a autoridade régia, que provinha dos ancestrais, passa agora a depender das relações
individuais entre o rei e o deus-sol, Rá, e isto é atestado, inclusive, arquitetonicamente, por esta
relação estar referida explicitamente no edifício da pirâmide do rei, associado a elementos
tipicamente solares.
Ann Roth observa que estas transformações implicaram mudanças, por exemplo, nas
concepções de vida após a morte. A importância concedida ao culto do deus Rá e sua
predominância no meio funerário trouxeram mudanças na caracterização do próprio tipo de
existência que se esperava após a morte – os preparativos, agora, eram feitos não tendo em vista a
continuidade da existência terrena, mas sim uma existência semelhante a dos deuses188. Em
decorrência, observa-se uma maior atenção concedida à questão das oferendas e dos serviços de
culto, atitudes que eram requeridas pelas divindades e deveriam ser, por esta razão, o novo
padrão funerário. Nota-se, neste sentido, que a imortalidade passou a ficar dependente não mais
das relações perpetuadas com o passado, mas da “caridade” dos vivos e das gerações vindouras,
que deveriam cuidar do andamento dos serviços mortuários189.
Ao mesmo tempo, a diferenciação do rei em relação a seus súditos passou a repousar, de
maneira mais incisiva, em seu caráter divino, consolidado após a sua morte, quando ele se
tornaria efetivamente um imortal junto aos seus companheiros, os deuses. Como a imortalidade
era apanágio destes, às pessoas comuns não restavam muitas alternativas, especialmente no
tocante a um convívio junto às divindades no pós-morte, reservado ao monarca.
Vimos que Sorensen, ao tratar da “democratização” da imortalidade, utiliza como fio
condutor de sua análise o problema do “acesso ao divino” e a maneira pela qual pessoas além do
rei, puderam partilhar de uma parcela deste acesso. Suas teorizações serão de grande valia no que
diz respeito à compreensão dos efeitos da obtenção de um status divino por parte destas pessoas,
por este motivo, retomaremos as suas considerações.
187
ROTH, op. cit., p. 50.
As casas para a eternidade eram, nesta época, uma réplica da morada terrena.
189
ROTH, op. cit., p. 52.
188
94
Conforme dito no primeiro capítulo, Sorensen entende a “democratização” da
imortalidade como um processo sócio-cultural, centrando-se no problema do “acesso ao divino” e
da abertura de parte deste acesso, inicialmente limitado ao rei, a particulares. Para o autor, os
requisitos de obtenção deste acesso são três, quais sejam, o ofício em rituais no templo, imitação
de papéis míticos e identificação a um deus ou por conhecimento religioso. Este acesso era
limitado por algumas regras de decoro, e a separação entre os que poderiam ou não poderiam
desfrutar deste privilégio era marcada pela distinção entre um status régio e um não-régio.
No Reino Antigo, o rei possuía todos os tipos de acesso ao divino, o que refletia sua
posição política e social. Com o Primeiro Período Intermediário e o advento do Reino Médio
houve a absorção, por particulares, de certos temas do “acesso ao divino” outrora utilizados para
marcar o status régio. É por isto que Finnestad afirma que a “democratização” da imortalidade é,
na realidade, a confirmação do faraó (prefiro, contudo, dizer da monarquia), como uma categoria
do pós-morte. A identificação com o faraó permitiria que a imortalidade de um indivíduo
deixasse de ser um assunto privado para ser integrada à comunidade, de modo que uma pessoa
trazida em foco pela categoria do faraó ganharia acesso à vida cósmica cíclica da qual os egípcios
eram encarregados de manter enquanto comunidade. Diz a autora:
Originalmente, só o faraó tinha acesso à vida cósmica após a morte;
gradualmente, contudo, o acesso foi alargado para incluir também egípcios
comuns. Eles adquiriram status régio. E esta é a implicação da transferência da
literatura régia a indivíduos “privados”190.
A participação na constituição cíclica do universo poderia ser feita, por exemplo,
associando o falecido aos mitos de criação. Inúmeros encantamentos, tanto dos Textos das
Pirâmides quanto dos Textos dos Sarcófagos, se destinam a esta associação, o que reforça a
argumentação de Finnestad. Veja-se, como exemplo, o seguinte encantamento, no qual o falecido
é identificado ao ba de Shu:
Ó vós, oito deuses do caos, que estais no comando das câmaras do céu,
os quais Shu fez do efluxo de seus membros, que unides a escada de shu, ide e
encontrai vosso pai em mim, dai-me vossos braços, colocai a escada para mim,
190
FINNESTAD, Ragnhild Bjerre. The pharaoh and the “democratization” of post-mortem life. In: ENGLUND,
Gertie (org.). The religion of the ancient egyptians. Cognitive Structures and popular expressions. Uppsala, 1989 p.
20.
95
porque eu sou ele que vos criou e vos fez, assim como eu fui criado por vosso
pai Atum. Eu estou farto dos Suportes-de-Shu desde que eu elevei minha filha
Tefnut de mim mesmo, para que eu pudesse dar a meu pai Atum neste mundo,
eu fixei Gen sob meus pés. Este deus uniu as Duas Terras para meu pai Atum,
ele une para si o corpo celestial, eu me coloquei entre eles, mas os nove deuses
não podem me ver. Eu realmente sou Shu a quem Atum criou, pelo qual Rá veio
à existência; eu não fui criado no útero, eu não cresci no ovo, eu não fui
concebido, mas Atum me expeliu do escarro de sua boca junto à minha irmã
Tefnut. Ela veio depois de mim e eu fui coberto com o ar da garganta. A fênix
de Rá era aquela pela qual Atum veio a existir no caos, no Abismo, na escuridão
e na penumbra. Eu sou Shu, pai dos deuses, e Atum outrora mandou seu Único
Olho em busca de mim e de minha irmã Tefnut. Eu fiz luz da escuridão para ela,
e eu me encontrei como imortal. Fui eu quem gerou os Deuses do Caos no caos,
no Abismo, na escuridão e na penumbra. Eu sou Shu que gerou os deuses [....]191
Como Shu, o falecido é associado a um dos mitos de criação do universo, no qual Atum
teria expectorado Shu – o ar – e Tefnut, a umidade. Da união de Shu e Tefnut nasceram Geb e
Nut, os quais Shu desuniu simbolizando, portanto, a separação entre terra e céu. É importante
notar que a associação expressa no encantamento implica, também, na percepção de um novo
status adquirido pelo falecido, que o difere dos homens mortais. Ele é, agora, um deus, e por esta
razão é que se enfatiza que o seu nascimento não foi pelo útero – como alguém comum – mas sim
proveniente do escarro divino.
Sorensen diz que algumas marcas distintivas do status régio, como o acesso ao divino,
passam a ser utilizadas para afirmar o status de alguns altos funcionários (vide, como exemplo, o
encantamento acima). A apropriação de insígnias régias era, além de tudo, um facilitador à
entrada no outro mundo, especialmente no que diz respeito ao acesso e posterior convívio junto
às divindades. Os Textos dos Sarcófagos trazem inúmeras passagens que aludem, claramente, à
usurpação de prerrogativas régias e seu uso por particulares, com o intuito de facilitar a conquista
de seus objetivos na outra vida. Veja-se parte do encantamento 75:
Eu mostrei respeito aos leões. Aqueles que estão no santuário têm medo
de mim, aqueles que envolvem a tumba se levantam por minha causa, eu entro e
saio da capela do auto-gerado, eu pus minha Coroa-Nt e minha cabeça, e a Coroa
Vermelha regozija quando vê a Coroa-Nt. Minha Coroa-Nt está em minha
cabeça, e a Coroa Vermelha está na cabeça do auto-gerado; a Coroa-Nt regozija
quando vê a Coroa Vermelha: assim dizem os deuses que escutam suas
vozes.192.
191
192
TS 76.
TS 75.
96
O encantamento refere-se ao uso das coroas do Alto e do Baixo Egito, portadas pelo faraó.
Neste caso, elas funcionam provavelmente como elementos demonstrativos de um certo status e
geradores de respeito, contando de forma positiva à aquisição de obséquios feitos aos deuses.
Além da apropriação, por particulares, dos textos funerários régios, outros elementos
foram também usurpados. Já se mencionou, anteriormente, que na decoração dos sarcófagos, por
exemplo, apareciam pintadas algumas possessões que não representavam, necessariamente,
possessões do morto, mas sim elementos apropriados dos rituais fúnebres do monarca. Os
amuletos protetivos colocados junto ao corpo do rei morto foram, igualmente, adquiridos por
particulares, muito embora fossem utilizados em sua confecção materiais de qualidade inferior
em relação àqueles confeccionados para o rei. Um outro exemplo é a utilização do formato
piramidal na construção das tumbas de alguns nobres, outrora marcas distintivas dos locais de
sepultamento dos governantes egípcios.
Concordo, contudo, com Finnestad quando afirma que é preciso entender o que significa
esta aplicação de status régio a particulares, pois da mesma maneira que Sorensen, que crê não
ser o “acesso ao divino” meramente uma pretensão esnobe por parte de altos funcionários, a
egiptóloga salienta que
O status régio obviamente concede mais que glamour social – na medida
que está conectado à participação na vida divina, a vida que é expressa como o
mundo inteiro. Falta definir de forma mais precisa o conceito de identidade
social envolvido nesta categoria quando associado à aquisição da vida divina
após a morte193.
É a respeito desta associação que versarão as próximas linhas desta dissertação, a fim de
verificar de que maneira a construção de nichos de poder nas províncias em detrimento de uma
monarquia centralizada está estreitamente relacionada ao ganho de acesso ao divino por parte de
particulares. Posteriormente, observar-se-á como este acesso está na gênese da chamada “piedade
pessoal” no Egito antigo e de que maneira este processo conecta-se, também, ao surgimento de
novas percepções da imagem do monarca.
Sorensen, ao definir as formas de acesso ao divino possíveis a indivíduos privados, afirma
que estes só conseguiram as duas últimas formas – imitação de papéis míticos, que implicava na
193
FINNESTAD, p. 20.
97
associação a um deus, e o conhecimento divino, que decorria do primeiro194. A associação a
Osíris e a conseqüente participação em seus mistérios faz, portanto, parte deste ganho. Note-se,
apenas, que a associação a este deus é a mais explicita, uma vez que todo morto enterrado
segundo os ritos passou a ser um Osíris; contudo, não podemos deixar de perceber que havia
identificação a outros deuses e, por isto mesmo, a associação do morto a diversas mitologias. Esta
é, inclusive, uma característica dos Textos dos Sarcófagos, que constituem uma compilação
bastante heterogênea, em virtude da grande variação de versões que abarca, associando o morto a
diversas divindades, tendo em vista a relevância de uma ou de outra no contexto local em que foi
produzido o encantamento.
Percebemos, também, ao longo dos Textos dos Sarcófagos, a invocação de conhecimento
restrito na passagem para o outro mundo, outra forma que Sorensen define como de “acesso ao
divino”. Há algumas passagens bastante interessantes, como aquelas que relatam um diálogo
entre o falecido e o barqueiro do outro mundo, com o intuito de convencer este último a fornecer
uma barca para que se pudesse chegar ao Campo dos Juncos:
[...] O QUE DEVE SER DITO AO BARQUEIRO DO CAMPO DOS
JUNCOS para que a sua estima possa estar naqueles deuses que estão do outro
lado do rio. Ele deverá dizer quando for chamado: Ó Corta Junco, Língua de Rá
..., líder das Duas Terras, não te vira a eles; Ó Poder no Céu que revela o disco
solar, ó Rá, senhor da Aurora Vermelha, traga-me, não me deixe sem barco.
‘Diga meu nome’ diz a proa. ‘Ó vestido trançado de Isis, o qual Anúbis
consertou por meio do ofício de embalsamador’.
‘Diga meu nome’ diz o ancoradouro. ‘Seu nome é “Senhora das Duas
Terras na Capela”’.
O nome do martelo é ‘Nádegas do Touro do Vento’.
O nome do timão é ‘Juncos do Campo do Deus’.
O nome do casco é ‘Deus da Terra’.
O nome do mastro é ‘Ele que buscou a Grande Senhora após ela ter ido
para longe’ [...]195
Pelo encantamento, o morto teria acesso a uma lista dos nomes das partes do barco, as
quais deveriam ser conhecidos para que o barqueiro atestasse a sua legitimidade e o permitisse
cruzar os caminhos de água existentes no céu.
194
Para Sorensen, o conhecimento divino era, antes de tudo, uma competência ritual, um conhecimento mágico
adquirido por um indivíduo em razão de sua associação a papéis mitológicos.
195
TS 404.
98
Para Sorensen, o primeiro tipo de acesso, que se daria por ofício em rituais nos templos,
continua restrito ao rei, que permanece como único intermediário entre deuses e homens. É
necessário, porém, repensar esta afirmação. Em primeiro lugar, é interessante se dar conta do
óbvio: o faraó não poderia presidir pessoalmente todos os rituais realizados no Egito. Por isto
mesmo, delegava a sacerdotes esta função, que a exerceriam em seu nome. Um outro exemplo é a
formula hetep di nesw (“o rei dá oferendas”), que tornava a mediação régia presente mesmo
quando o faraó, em carne e osso, não estava.
Uma segunda consideração a ser feita diz respeito ao aumento de funções religiosas
desempenhadas pelos funcionários das províncias a partir do final do Reino Antigo. Valérie
Selve, a partir da análise de titulaturas presentes nas autobiografias do Reino Antigo e Primeiro
Período Intermediário, traça algumas idéias sobre as relações entre poder central e poderes locais
nestes períodos. A autora nota que, a partir da sexta dinastia, o papel dos nomarcas atinge
considerável importância, o que pode ser observado através de uma nova titulatura, até então
inexistente, de “grande chefe do nomo”. Um status como este permitia ao nomarca gozar de
certas prerrogativas, exclusivas desta função. Uma delas é um trabalho cada vez maior não só na
administração dos templos, mas também na realização de certos rituais196. Este aumento de
funções religiosas dos nomarcas, relacionadas aos cultos realizados nos templos, é perceptível
pelas titulaturas, uma vez que “[...] a cada ato ritual corresponde um título preciso: todos os
gestos efetuados pelos nomarcas nos quadros de culto são detalhados por estes títulos e por
algumas inscrições que explicitam seu conteúdo”197. As atribuições religiosas dos nomarcas,
segundo Selve, foram até mesmo incentivadas por faraós como Pepi II.
Há, contudo, um cuidado a ser tomado em relação à análise das titulaturas. Muito embora
elas sejam indício de uma maior participação religiosa dos nomarcas dentro dos templos, muitas
delas, incluídas ao lado dos nomes dos indivíduos, não correspondem a funções realmente
desempenhadas por eles, indicando antes uma espécie de cursus honorum. Isto não implica dizer,
pelo contrário, que elas não sirvam para avaliar certos tipos de conquistas realizadas por estes
funcionários no âmbito do sagrado.
196
Realizar rituais no templo era uma forma de ter acesso ao "conhecimento secreto", ou restrito, ao qual se reporta
Baines.
197
SELVE, Valérie. Les titulatures religieuses des nomarques comme indices de l´evolution des relations entre
pouvoir central et pouvoirs locaux avant et au-delà de la Première Période Intermédiaire. Mediterranée, Paris :
L´Harmattan, n. 24, 2000. p. 72.
99
A. Moret observa que os cargos sacerdotais mais altos eram preenchidos por pessoas
igualmente envolvidas em importantes funções administrativas. Juntamente com as concessões
obtidas pelo estamento sacerdotal - a exemplo das doações de terras e isenções, as quais, segundo
Moret, eram acompanhadas de "cartas de imunidade" - e os direitos religiosos, houve a aquisição
- ou usurpação - de direitos políticos, a partir do qual nasceu um "feudalismo eclesiástico",
segundo definição do próprio autor198. Este mesmo autor sustenta que a pertença a um corpo
sacerdotal e o exercício, nele, de funções régias, comporta para os altos funcionários e para o
clero como um todo, vantagens de tipo social, político e religioso, as quais foram se constituindo,
aos poucos, em direitos quase hereditários nas funções administrativas e uma posição privilegiada
na sociedade, tanto durante a vida quanto após a morte199.
O que se pode concluir a partir destas informações? Em primeiro lugar, é possível dizer
que, a partir do momento em que o faraó delega funções outrora destinadas somente à sua pessoa,
abre-se um espaço para que outros conquistem certos privilégios antes restritos somente a ele200.
Isto porque estes ganhos se davam em razão da posição política e social de que ele gozava.
Quando outras pessoas adquirem este mesmo status, propiciado pelo desenvolvimento de certas
funções, mesmo que no nível local, preenchem-se os pré-requisitos necessários à obtenção de
certas prerrogativas. E de que maneira isto se relaciona ao que conhecemos por “democratização”
da imortalidade? Eram as funções exercidas exclusivamente pelo faraó que criavam as condições
necessárias para que ele gozasse da imortalidade tal qual descrita nos “Textos das Pirâmides”.
Com a fragmentação do poder, e a delegação de funções – no caso, especialmente as religiosas –
desmonopolizam-se, também, as condições previstas de acesso à imortalidade, abrindo-se, desta
forma, uma brecha no decoro religioso. A “democratização”, portanto, não se configura como
uma usurpação de textos outrora régios; entendo-a, antes, como uma concessão – embora não
198
A discussão acerca do uso de termos como “feudalismo” para se referir à situação do Primeiro Período
Intermediário já foi apresentada no primeiro capítulo desta dissertação, não sendo necessário, portanto, retomar o
tema aqui.
199
MORET, Alexander. La "carta de immunità", ovvero la ratifica del decadere del potere faraonico. In.: Gli uomini
e le loro istituzioni. Firenze: Casa editrice G. D´Anna. n. 19. p. 68-73.
200
Segundo Jean Vercoutter, o nomarca reunia em sua pessoa todos os poderes dos quais dispunha o rei - funções
administrativas, judiciárias, militares e religiosas. A diferença é que o nomarca os dispunha regionalmente, em sua
província, enquanto o rei os dispunha na totalidade. Mas, ao menos em princípio, a autoridade do nomarca ficava
condicionada ao controle da administração central, uma vez que "na realidade, toda autoridade provém do rei, que
está no topo da estrutura administrativa do país" (VERCOUTTER, Jean. Organizzacione amministrativa e sociale
dell'Antico Regno. Gli uomini e le loro istituzioni,, Firenze: Casa editrice G. D´Anna. n. 19. p. 40-45), o que implica
afirmar que todo o poder emana do rei, sendo este o único capaz de delegá-lo a outrem.
100
deliberada – feita a partir do momento em que o faraó delega suas funções e permite que outros
ajam como ele e em seu nome. Neste sentido, é relevante a contribuição de Baines:
Desenvolvimentos na ideologia régia foram, portanto, em resposta a
uma elite e, deste modo, “democratizadas” em um senso limitado. A pressão foi,
provavelmente, uma reação, ou então preemptiva, buscando, neste último
sentido, influenciar mudanças antes que elas se enraizassem.201
Pelo exercício de funções dentro do templo, como oficiar em rituais, uma das condições
para o “acesso ao divino” já está dada aos nomarcas, contrariamente ao que afirmou Sorensen ao
dizer que não houve o ganho do divino por esta via. A possibilidade de ter inscritos em seus
esquifes os encantamentos outrora exclusivos do rei é, a meu ver, apenas uma confirmação
material de um privilégio já adquirido: o do “acesso ao divino”. A difusão da escrita certamente
contribuiu para este quadro, mas o cerne da questão me parece ser a maneira pela qual a
descentralização do poder afetou este aspecto da religião funerária.
Baines compreende a "democratização" de forma semelhante, ao afirmar que a mesma
tem relação com o maior envolvimento de pessoas além do rei nas atividades de culto, e a
conseqüente exploração destes privilégios por parte destas pessoas. Para o autor, a diferença
fundamental entre um "potencial régio" e um "potencial não régio" reside, em primeiro lugar, na
forma e dimensão dos complexos mortuários e no direito do rei oficiar certos cultos. A
"democratização", desta forma, pode ser analisada à luz do acesso a conhecimento restrito do
qual trata este mesmo autor, já brevemente apresentado nesta dissertação.
A mudança entre o que era exclusivamente régio e o que era "privado" pode, ainda
segundo Baines, ser mais bem percebida nos cultos solares. Os Textos das Pirâmides, por
exemplo, já comportavam encantamentos que não eram mais escritos exclusivamente para o rei,
como é o caso do encantamento 456202 - que são exemplo de um conhecimento anteriormente
restrito e que conheceu maior disseminação. Para Baines, a aquisição de "conhecimento solar"
201
BAINES, op. cit, 1990.
Trata-se de um encantamento em louvor ao deus-sol. A parte que leva a crer que o rei não era o único
beneficiário das vantagens obtidas com o encantamento é aquela em que o oficiante do culto diz “[...] quem quer
que seja que o souber de verdade, este encantamento de Rá, e os recite, estes encantamentos de Harakhti, ele será o
familiar de Rá, ele será a companhia de Harakhti [...]” para posteriormente afirmar que o rei é um dos que detêm este
conhecimento e por isto mesmo poderá gozar da companhia dos deuses no céu .(Cf. Encantamento em:
FAULKNER, Raymond. The Ancient Egyptian Pyramid Texts. Warminster: Arris & Phillips, 1969. p. 152. Grifo
nosso.)
202
101
por parte de pessoas além do rei pode indicar que a posição do mesmo no culto solar talvez não
fosse bem aceita.
Contudo, se o rei cede algo, ele também deve criar algo para si. Com a retomada do
poder centralizado e as funções – antigas e novas – desempenhadas pelo monarca, necessário se
fez que fosse construído um novo modelo de literatura funerária que comportasse a sua distinção
em relação aos demais. É o caso do Livro dos Dois Caminhos, que começa a se desenvolver no
Reino Médio, mas do qual, infelizmente, tem-se poucos registros, o que impossibilita um estudo
mais detalhado.
3.1.2 A DIVINIZAÇÃO DE PARTICULARES E O GANHO DO ACESSO AO DIVINO: UM PANORAMA GERAL.
É necessário iniciarmos a análise das implicações de um “acesso ao divino” por
particulares buscando nos textos funerários como são dadas as relações entre estes indivíduos e as
divindades. Busca-se, com isto, obter respostas às perguntas: O acesso ao divino nos Textos dos
Sarcófagos se assemelha às relações entre faraó e divindades existentes nos Textos das
Pirâmides? Se diferente, qual o porquê?; Quais os ganhos permitidos com a divinização e o
acesso ao divino? A partir disto, intui-se vislumbrar mais detalhadamente as caratcerísticas destes
novos ganhos. Alguns fatores, porém, já serão tomados como pressupostos, em virtude dos
resultados obtidos com os estudos realizados até aqui: o faraó não é mais tão indispensável à
mediação dos egípcios com seus deuses (no contexto funerário, frise-se) e a possibilidade de
outras pessoas adquirirem essência divina no outro mundo, outrora marca distintiva do status
régio, caminha junto a mudanças na percepção da figura do soberano e de suas relações com os
seus súditos.
Tendo em vista as carcterísticas exclusivamente funerárias dos encantamentos dos Textos
dos Sarcófagos, foi possível perceber alguns benefícios que partilhar de uma condição divina
trazem ao falecido.
Havia várias formas pelo qual o morto poderia pleitear seu acesso à outra vida, isto
porque, segundo os egípcios, quanto mais meios existentes de se conseguir a imortalidade, tanto
melhor, pois, se uma das vias se mostrasse ineficaz, o morto teria outras alternativas a que
recorrer para garantir a sua sobrevivência no além. Em uma sociedade que estava se tornando
cada vez mais estratificada, percebemos também a existência de formas mais e outras menos
102
privilegiadas de se viver no outro mundo, provavelmente condicionadas à posição social do
individuo falecido.
As formas de se obter acesso à imortalidade junto aos deuses são, portanto, múltiplas e
variadas, dentre as quais as mais freqüentes são: o uso da magia, ou seja, por meio de
encantamentos que, ao serem recitados, magicamente concederiam aquilo que o falecido deseja;
apelos persuasivos aos deuses, mostrando o falecido como um ser fiel, clemente e indispensável
junto à divindade; associação às próprias divindades, de forma a assimilar seus papéis
cosmológicos; evocar condição divina; utilização de ameaças e constrangimentos, arrolando os
males que poderiam ocorrer caso os desígnios do falecido não fossem atendidos e pela
demonstração de uma conduta ilibada.
Com relação aos ganhos proporcionados pelo “acesso ao divino”, verifica-se, em primeiro
lugar, que o mesmo concede a possibilidade de integração na vida divina cósmica, conforme já
mencionado anteriormente. Isto tornaria o falecido um ser imprescindível ao bem-estar do povo
egípcio, trabalhando ativamente junto aos deuses e o faraó na perpetuação do mundo ordenado,
adquirindo, portanto, uma função social no outro mundo.
Em segundo lugar, nota-se que, ao partilhar do mesmo destino dos deuses e, outrora,
reservado ao faraó, adquire-se status. Este é um elemento importante pois, conforme já
mencionado, os egípcios acreditavam na co-existência dos dois mundos – dos vivos e dos mortos
– e havia o medo de que, com a morte, o lugar social a que se pertencia deixasse de existir. Esta
era uma chance, portanto, de sustentar na morte uma posição proeminente existente na vida
terrena. Mesmo que ele não consiga o posto mais alto, como “chefe” dos deuses, as funções a ele
destinadas, a exemplo de “escriba de Hathor” ou “condutor da barca de Rá” não eram certamente
cargos que não oferecessem prestígio.
O aceite junto aos deuses implicaria, da mesma forma, ser aceito em uma nova
comunidade, livrando o falecido do temido isolamento proporcionado pela morte, já que o morto
deixa de ocupar seu lugar na vida social do mundo terreno. Esta é mais uma vantagem obtida
com a possibilidade de esfrutar da imortalidade no círculo das divindades. Veja-se, contudo, que
a integração estabelecida no outro mundo não era em qualquer comunidade, mas sim, a dos
deuses. Veremos, no decorrer desta dissertação, como as concepções funerárias acabam por
conter também uma pesada carga de simbolismo ligado a relações de poder e ao estabelecimento
de hierarquias sociais.
103
Outra vantagem percebida é o fato de que o indivíduo fica “equipado como um deus”, o
que significa que ele se torna possuidor de magia e de certos conhecimentos restritos que
permitem ao morto enfrentar perigos no outro mundo. No Livro dos Dois Caminhos, por
exemplo, é freqüente o falecido invocar este tipo de conhecimento dizendo aos guardiões dos
portões de Rosetau que conhece seus nomes e sabe quem eles são – o que se torna mais relevante
se levarmos em consideração que conhecer o nome de alguém, para os egípcios, é ter poder sobre
ele.
O indivíduo que conta com a ajuda dos encantamentos da literatura funerária, tem também
a possibilidade de fazer pessoalmente apelos persuasivos aos deuses, para que eles facilitem a sua
jornada no outro mundo. Freqüentemente os encantamentos se valem da condição divina
alcançada para comprovar a legitimidade do falecido agora, um igual entre os deuses, e assim
convencer as divindades a agirem em seu favor.
Associar-se a divindades como Osíris e Rá era também um meio de conseguir uma série
de vantagens concernentes a uma boa morte. A associação a Osíris, por exemplo, permitia ao
morto participar de seus mistérios e da possibilidade de regeneração.
A possibilidade de associações aos deuses dava margem também a associações ao próprio
faraó – afinal de contas, ele era também uma divindade. A este respeito, é interessante o
posicionamento de Regina Hein:
Por este artifício, o espírito acumulava pra si não somente funções
instauradoras e mantenedoras da ordem natural (atribuições da natureza divina),
como também ampliava o alcance de suas funções até a organização e
reprodução da “boa ordem” social (atributos próprios dos reis-deuses). Esse é
outro motivo que torna o faraó um atraente e eficiente exemplo para garantir a
imortalidade de seus súditos. Além de seus magníficos funerais fornecerem o
modelo do processo e dos instrumentos de regeneração, ele também podia ser
alcançado e assimilado magicamente em benefício dos espíritos akh (ou seja,
somente após a morte de pessoas comuns), que, dessa forma, assumiriam suas
atribuições de um governante instalador e organizador da natureza e da vida
social203.
A fim de melhor ilustrar o que foi dito até agora, vejamos exemplos retirados dos próprios
Textos dos Sarcófagos. Há que se ter em mente que o acesso ao divino só era realizado mediante
o aval dos deuses; sem ele, o morto não poderia participar da vida divina cósmica, pois era
203
HEIN, op. cit. p. 120.
104
necessária a ajuda dos deuses para vencer todas as etapas da jornada pelo outro mundo. Note-se o
encantamento 789:
Graças a vós, deuses que estão no Belo Ocidente! N veio para que ele
possa vos saudar, porque N vos conhece e conhece vossas formas; que vós
possais garantir que N descanse em seu local justo dentre os possessores de kas;
vede, N está sentado e descansando com provisões. N fez o que é certo, pois ele
detesta feitos errados e nunca os vê; N rema a barca de Rá, N adquiriu seu trono,
N é um daqueles que está no séquito de Hórus, que vai para o santuário-tnnt. Ó
vós que estais no comando da Via Láctea, que guardais os portões do outro
mundo, preparai um caminho justo para N, para que N possa entrar e venerar
Osíris, e se tornar um deus para sempre204.
Este encantamento exemplifica um apelo em favor de N, para que lhe fossem abertas as
portas do Mundo Inferior e que para lhe fosse provido um local entre os “possessores de kas”, ou
seja, os deuses. A pessoa que estava presidindo o ritual, neste caso, evoca o fato de o falecido
possuir conhecimento restrito, que é uma característica atinente aos deuses. Num segundo
momento, diz-se que o morto fez o que é certo, exemplificando mais uma característica dos
Textos dos Sarcófagos que é colocar, em alguns momentos, a ênfase na realização de atitudes
moralmente corretas como condição para a obtenção da imortalidade. Por fim, o falecido declara
seus objetivos: quer que os portões lhe sejam abertos para que possa venerar Osíris e continuar a
ser um deus eternamente. Note-se que, quando se diz que “N rema a barca de Rá”, isto implica
associá-lo à jornada diária do sol, pelo exercício de uma função indispensável à sua continuidade.
N, aqui, é assimilado a um dos movimentos cíclicos da natureza, o nascer e o morrer do sol, já
que conduz Rá, a divindade solar, neste trajeto.
Uma outra forma, talvez até mesmo mais poderosa que as anteriores de se conseguir
acesso aos deuses e favores deles é evocando diretamente a condição divina:
ENCANTAMENTO PARA ENTRAR NO CAMPO DOS JUNCOS. N
diz: Eu sou um deus e eu continuarei a existir; eu vim à existência ontem com os
grandes, eu vim à existência para que eu pudesse existir, eu estava no alto junto
aos servidores do Senhor da terra dos vivos, e tu estavas comigo, mas eu não
estava com [...]. Eu sou ele que fez oferendas do banquete funerário em Khem
naquela noite das lâmpadas (?), eu sei o que Geb sabe, eu sou único entre vós, eu
procurei o horizonte, eu vi a abertura, eu sou Osíris na R3-3yf em paz [...] o que
é bom como um espírito no Campo dos Juncos. Os deuses que agem em meu
favor [...] como Senhor da Eternidade. Eu desejo que tu me dês um corpo como
204
FAULKNER, TS 789.
105
de um deus [ ...] Eu sou Horus, o amado, cujo nome é Senhor de Tudo [...] Eu
sou conhecido por ele na presença do Tribunal do Sete (?). O que foi dito: seja
curado [...]205
Transformar-se em um deus no céu permitiria ao falecido gozar de vida plena no outro
mundo. Veja-se o encantamento 712:
PARA SE TORNAR UM DEUS COMPLETO NO CÉU. O pão-p3t é
aquele que voa para as Duas Mansões, elas são os locais de destruição que
pertencem à Coroa Vermelha. Para aquele que conhecer este encantamento no
Campo das Oferendas, ele fará tudo o que desejar da mesma maneira como
quando estava na terra, tendo ido ao seu duplo206.
Feito um deus completo, ao individuo era possível fazer tudo o que desejasse, vivendo
uma vida como aquela desfrutada no mundo terreno, de cujos benefícios pretendia continuar a
gozar. Ser identificado a Rá. Por exemplo, também implicava ser bem recebido pelos deuses,
como consta no encantamento 765. O falecido é aclamado por ser filho do “Grande” e por ter
vindo à existência em de forma esplendorosa, na companhia de Atum. O morto também desfruta
da companhia de Rá no Campo dos Juncos e é associado a ele - por isto mesmo, quando
encontrar os deuses, eles estarão jubilosos.
Uma posição proeminente alcançado pela aquisição de uma condição divina é outro fator
importante, como no encantamento TS 419, que exorta os homens a verem e as plebes e os
nobres a servirem o falecido-Osíris.
É importante perceber, contudo, que, nos Textos dos Sarcófagos, um homem não poderia
sempre esperar desfrutar de uma posição confortável no outro mundo. Adquirir um lugar junto
aos deuses ainda tinha suas restrições, e uma pessoa poderia ficar a serviço dos deuses por toda a
eternidade, trabalhando em suas propriedades por exemplo ou, então, estando destinada a adorálos para sempre. Isto demonstra que certas formas de convívio junto aos deuses continuam sendo
um privilégio, sujeito a restrições mesmo dentre aqueles com acesso aos encantamentos.
Nos Textos dos Sarcófagos, algumas vezes o falecido é colocado em posição de igualdade
com os deuses, como ocorre no encantamento 296:
205
206
FAULKNER TS 827.
FAULKNER TS 712.
106
N é alguém que entrou estimado, que saiu distinguido, pelo portão do
Senhor do Universo (...) Guardiões das portas, fazei os caminhos para N que é
vosso igual, para que N possa sair à luz do dia (...) N conhece os caminhos
misteriosos e os portões dos Campos dos Juncos207.
Percebe-se que o falecido é colocado em uma posição distinta, estimado e distinguido, e é
tratado como igual aos deuses, possuindo, inclusive, conhecimento secreto, próprio das
divindades, para adentrar no Campo dos Juncos.
A intenção de se tornar um ente como os deuses é clara: “Eu escuto o discurso dos deuses
e faço o que eles fazem. Aclamação ao meu ka; que eu possa viver como aqueles que devem
viver lá”208, por isto mesmo N deve ser reverenciado como tal: “[...] curvai a mim em vossos
ventres e beijai a terra para mim a meus pés, fazei aclamações a mim, criai reverência para mim.
Assim é Osíris, ele é vosso rei a quem adoração é dada, a quem os homens regozijam ao ver
[...]”209, e conquistar um lugar junto aos deuses: “N sentou entre os grandes deuses, N passou pela
Casa da Barca Noturna; é o pássaro b3t que te traz, ó N”210. Vencer a morte representa agora,
para N, sua distinção dos mortais: “ Ó Osiris, Osiris, vê, minha alma veio a ti para recobrar teus
movimentos. Faça um caminho para mim neste dia de cobrir os lábios, porque eu sou um que
ultrapassa os mortais211.
Em outros casos, contudo, o destino do morto é servir à divindade, muito embora possa
ser associado e ela. É o que diz Leonard Lesko:
Os Textos dos Sarcófagos incluem uma grande numero de mitos e
descrições da vida após a morte e, embora o falecido possa ser identificado tanto
a Rá quanto a Osíris, ele não é sempre tão sortudo. Alguns textos obviamente
destinavam ao falecido comum ser um servo de outros deuses na vida após a
morte, ou ao menos partilhar, em menor capacidade, da imortalidade do rei
como um ou outro deus maior, provavelmente dependendo em alguma extensão
de qual desses deuses possuía maior apelo pessoal ou de onde a pessoa vinha212.
207
BARGUET, TS 296.
TS 474.
209
TS 609.
210
TS 639.
211
TS 489.
212
LESKO, Leonard. The Ancient Egyptian Book of the Two Ways. Berkeley, Los Angeles, London: University of
California Press, 1977. p.06.
208
107
O encantamento 1099 é um bom exemplo. Ao mesmo tempo em que o falecido é
identificado ao deus Rá, apresenta uma lista de serviços prestados a ele213. O encantamento 540
coloca como objetivo final do morto ser escriba de Hathor:
[...] Seus tronos me foram dados, e isto significa que eu fui criado para
ser seu escriba, possuidor de um lugar junto aos grandes e de um lugar junto aos
poderosos e suas mulheres [...] Eu não perecerei nem serei destruído nesta terra
para sempre. Eu sou o escriba de Hathor, os materiais de escrita de Thot, e eu
sou seu ajudante214.
Observou-se, da análise dos Textos dos Sarcófagos, que os encantamentos nos quais se
evocam insígnias régias e que se referem aos objetivos a serem atingidos no outro mundo – como
a mansão de Osíris ou a companhia de Rá – ajudam na conquista de destinos mais proeminentes,
por se tratarem de correlações diretas com os Textos das Pirâmides, que visavam, justamente,
assegurar um destino glorioso ao faraó. No encantamento 1091, a usurpação de prerrogativas
régias ajuda o falecido a enfrentar perigos como as “paredes de fogo”, conforme se vê: “O fogo
está em volta e queima. Eu não queimarei enquanto estiver vestindo o nemes ou a Coroa
Branca”215. O ureaus é, igualmente, sempre identificado nos textos como um elemento de
proteção216. No encantamento 684 temos outro exemplo de como a usurpação de uma
prerrogativa régia – no caso, a Coroa Vermelha – é positiva: “A Coroa Vermelha apareceu em
minha cabeça, e ela me faz viver, ela me cura, ela une para mim, ela se apresenta a meu nariz
todas as manhãs”.
Há formulas mágicas que têm como destino justamente, a eternidade a serviço do deus
Osíris, como consta no texto 1085. Neste encantamento o objetivo é venerar Osíris (“Eu vim a ti,
Osíris, para que eu possa venerar-te”) e tornar-se apenas um dignitário do deus, protegendo-o. O
mesmo ocorre no encantamento 1089, no qual resta ao morto permanecer como barqueiro de Rá,
abrindo para ele os caminhos do céu.
Vários encantamentos mostram N em papel de adorar a divindade, como o 496:
213
“Eu exaltarei Rá com aquilo que fiz a ele, eu vou dispersar as nuvens para que eu possa ver sua beleza e mostrar
temor a ele, eu fixarei o seu curso, para que esta barca atravesse o céu no amanhecer, porque eu sou o Grande no
meio de seu Olho” (TS 1099).
214
TS 540.
215
LESKO, LDC 1091.
216
Ver, por exemplo, o encantamento 1101 do Livro dos Dois Caminhos.
108
A visão do deus é clareada, a adoração a ele está no alto, grande é a alma
e poderosa é a majestade dele que coloca o medo de si em todos os deuses, que
está no seu pedestal. Que ele prepare um caminho para o espírito equipado em
mim, eu preparei, justamente, um caminho para o lugar onde Rá está, para o
lugar onde Hathor está.217
Vimos que o falecido pode, então, ser tanto colocado em pé de igualdade com os deuses,
como ser um deus subordinado a outras divindades. Há, contudo, a possibilidade de ser mais
glorioso que eles. O encantamento 1117 mostra esta possibilidade ao dizer que, “toda pessoa que
souber ´o que está selado´ será mais glorioso, dessa forma, que Osíris”.
A maioria dos encantamentos, contudo, apresenta relações de veneração para com as
divindades, muito embora em algumas partes a tônica seja de superioridade, conforme
apresentado. Esta relação de adoração, contudo, não era gratuita: o que aparenta é que ela era
necessária para que se obtivesse, no final, os benefícios pretendidos.
Ó Rá, grande em seu teu santuário, exaltado em teu pedestal, que tu
passes ao sul para o Grande Lugar, que tu atraques em toda grande planície do
sul do horizonte do céu, que tu tomes teu lugar, adoração te seja dada por todos
os deuses que estão no céu, os senhores do horizonte do céu, que estão no
firmamento, que eles te agradem com isto todos os dias. Tu tomastes minha
alma e meu espírito, minha magia e minha sombra com Rá e Hathor no local
onde Rá se encontra diariamente, no local onde Hathor se encontra diariamente,
por toda eternidade. Aqueles que estão encarregados dos membros de Osíris não
me compelirão, aqueles que estão encarregados dos membros de Osíris não terão
poder para reprimir minha alma ou minha mágica ou para vigiar meu espírito ou
minha sombra por toda eternidade218.
É uma relação diferente da que se conseguiu perceber pela análise dos Textos das
Pirâmides pois, nesta compilação, a maioria dos encantamentos que se reportam à relação do
faraó com os outros deuses o faz colocando-o em posição de supremacia sobre todo o panteão.
Como governante na terra, o rei assume seu posto como governante também no outro mundo.
Poucos encantamentos, como o 515, descrevem o rei como servo de alguma divindade. A maioria
das fórmulas submete todos os seres do outro mundo à autoridade régia: “O rei envolve todas as
terras em sua autoridade. Ó Rei, tu abarcastes todos os deuses em teus braços, suas terras e suas
possessões. Ó Rei, tu és grande e redondo, como o círculo que circunda o H3w-nbwt”219; “Ó Rei
217
TS 496.
TS 498.
219
TP 454.
218
109
Osíris, apareça como rei do Alto e do Baixo Egito, porque tu tens poder sobre os deuses e seus
espíritos”220. O rei é aclamado no outro mundo como a divindade suprema, o que se relaciona,
muito provavelmente à projeção da realidade terrena – a de uma monarquia centralizada, focada
no faraó – para o mundo dos mortos:
Levantai vossas faces, ó deuses que estão no outro mundo, porque o rei
veio para vós possais vê-lo, ele se tornou o grande deus. O Rei é anunciado] com
tremor, o rei é vestido. Guardai-vos, todos, porque o rei governa os homens, o
Rei julga os vivos no domínio de Rá, o Rei fala a sua região pura à qual fez sua
morada com aquele que julgou entre os dois deuses. O rei tem poder em sua
cabeça, o rei porta o seu cetro e Thot mostra respeito pelo rei. O Rei senta com
aqueles que remam a barca de Rá, o rei ordena o que é bom e Rá o faz, porque o
Rei é o grande deus221.
Era esperado que, na outra vida, o monarca continuasse a governar, como apontado por
uma série de encantamentos (vide, por exemplo, TP 246, TP 650, e TP 224, este último destinado
a fazer do rei governante universal). Tanto isto é verdade que, contrariamente ao que vimos nos
Textos dos Sarcófagos, o falecido – no caso, o rei - não serve às divindades, mas elas é que o
servem.Há um encantamento, por exemplo, intitulado “os deuses vestem o rei”.
Nos Textos das Pirâmides, vale a pena ver o que diz o encantamento 570, que é uma
espécie de “síntese” do destino a ser desfrutado pelo rei na outra vida. Começa-se com o nascer
do sol, depois do que o faraó anuncia a si mesmo aos deuses e ao deus-sol. Recitando-se as
palavras a seguir, o rei estaria protegido e servido e é, posteriormente, aclamado como imortal.
Ao rei era permitido transfigurar-se em várias formas e, aqui, a forma privilegiada é a de uma
estrela, marca de um dos destinos celestes. Feito isso, o rei estaria pronto para vestir as coroas do
Alto e do Baixo Egito, e governar o mundo invisível junto ao deus Rá.
Na medida que as expectativas dos beneficiários dos Textos das Pirâmides e dos Textos
dos Sarcofágos são diferentes umas das outras, percebe-se, igualmente, que a ênfase nas relações
estabelecidas com as divindades e nas necessidades projetadas para o outro mundo diferenciamse, em boa parte, de uma compilação a outra. Na primeira, há uma clara predominância do
destino celeste e das relações estabelecidas com as divindades deste circuito, adequadas à
realidade de um soberano cuja autoridade provinha do culto solar. No outro mundo, não se abriria
mão desta autoridade implicando, até mesmo, na subordinação do deus sol ao domínio faraônico.
220
221
TP 426.
TP 252.
110
É essencial que o monarca continue como regente, mesmo após a sua morte. Já nos Textos dos
Sarcófagos, a relação com os deuses é mais flexível, sendo mais que suficiente continuar na outra
vida como servo de alguma divindade. Importaria, mais que ser um governante universal, a
exemplo do faraó, perpetuar as relações de poder em níveis mais pontuais – como governar
cidades, ter subordinados, possuir terras e assim por diante, conforme veremos de forma mais
detalhada no decorrer desta dissertação.
3.1.3
O ACESSO AO DIVINO E A PIEDADE PESSOAL
Creio que a questão do acesso ao divino ajude a perceber, igualmente, uma mudança na
relação dos egípcios com os seus deuses. Por muito tempo, a mediação régia era condição
necessária para se chegar até os deuses. Isto é especialmente verídico para o caso o Reino Antigo
quando, por exemplo, a imortalidade só poderia ser conseguida por meio do faraó e pessoas
comuns não podiam ser representadas face a face com as divindades. Esta situação altera-se, aos
poucos, com o fim do Reino Antigo, conforme mostrado através da autobiografia de Ankhtifi, na
qual este nomarca exerce relação direta com o deus Hórus. Na literatura funerária, acontece algo
semelhante: os deuses não estão mais tão distantes dos homens que podem, por eles mesmos,
ascender às divindades.
Assim como em Ankhtifi, o texto de um outro nomarca ajuda a confirmar a caraterização
de uma nova situação. É o caso de Pepiankh, que afirma ter efetivamente visto a deusa Hathor no
culto, contrariando as regras de decoro de outrora na qual somente o faraó poderia ter acesso
direto à divindade – o que era geralmente feito nos limites restritos dos templos, inacessíveis á
população como um todo.
Isto se deve, justamente, a uma maior participação de indivíduos proeminentes no culto
de divindades provinciais, reforçados após o enfraquecimento da monarquia no final do Reino
Antigo e o desenvolvimento de poderes locais. As regras de decoro não permitiam que houvesse
a representação de cenas de acesso direto à divindade o que não significa, contudo, que estas
relações não existissem. Os casos de Ankhtifi e Pepiankh são indícios indiretos de que outras
pessoas, e não somente o rei, estavam envolvidas em relações mais estreitas com o divino.
Os festivais de renovação anual ocorridos em Abidos também demonstram uma relação
diferenciada com a divindade pois, através das estelas funerárias postas na via processional do
111
deus Osíris – o qual, nesta ocasião, saía do templo em seu tabernáculo – as quais continham a
representação do morto sentado em frente a uma mesa de oferendas, poderia-se efetivamente
olhar o culto e ter um contato com a divindade muito mais próximo do que um dia se poderia
imaginar222. Esta é, também, a opinião de Janet Richards:
Uma extensa zona votiva foi iniciada perto do pátio do templo de Osíris,
representando um amplo acesso ao divino. Aqui [Abidos], particulares de todos
os níveis sociais podiam dedicar estelas e estátuas, compartilhando oferendas a
Osíris no momento do seu festival223.
Outra questão importante envolvendo o acesso ao divino é aquela que já foi exposta no
primeiro capítulo, referindo-se à “emergência do indivíduo”.
Isto levou a um conseqüente
aumento da chamada “piedade pessoal” entre os egípcios, definida, grosso modo, como as
relações estabelecidas entre indivíduos e divindades.
Dominique Valbelle também é da opinião de que o período marcado especialmente a
partir do final da VI dinastia provocou uma nova concepção de valores na sociedade egípcia, a
exemplo da relação direta que se instaura entre os particulares e os deuses – notadamente o deus
da cidade e Osíris. A egiptóloga afirma que é isto, pelo menos, que diversas práticas privadas
demonstram, citando como exemplo as fórmulas de apelo aos vivos e as cartas aos mortos, que
começam a se desenvolver no Primeiro Período Intermediário224.
Geralmente, os estudos sobre a questão da piedade pessoal concentram-se no período do
Reino Novo. Isto se dá, primeiramente, por ser este um período bem documentado da história
egípcia, o que abre a possibilidade de observarmos com mais clareza e abundância manifestações
de relação direta dos indivíduos com a divindade e, em segundo lugar, por ser neste momento que
a piedade pessoal se apresenta de forma mais completa. Isto não implica, contudo, dizer que a
mesma não existia antes do Reino Novo, o que já foi demonstrado, por exemplo, por John
222
Oportunamente irá se discutir a respeito da maior popularidade do culto a Osíris em detrimento do culto solar,
tendo como esteio o fato de que Osíris aparece como uma divindade mais concreta e próxima dos egípcios que as
divindades solares, como Rá, cuja teologia era marcada por graus complexos de abstração e por uma distanciamento
em relação à humanidade como um todo.
223
RICHARDS, Janet. Time and memory in Ancient Egypt. Expedition. v. 44. n. 03.
www.museum.uppen.edu/publications
224
VALBELLE, Dominique. Histoire de l´État pharaonique. Presses Universitaires de Paris.
112
Baines, ao estudar manifestações de piedade pessoal em períodos anteriores225. Zivie-Coche
afirma que
A eclosão deste fenômeno [a piedade pessoal] dever-se-ia a uma
insatisfação dos simples indivíduos frente ao culto oficial do qual eles eram
excluídos e a uma necessidade de se comunicar diretamente com a divindade,
particularmente para amenizar as aflições da vida, a uma busca de salvação
pessoal, da qual o culto oficial não dava conta226.
Para tanto, a magia exercia papel fundamental, pois era através da mesma que a
humanidade entrava em contato direto com a divindade nos rituais. O encantamento 790, por
exemplo, enfatiza este aspecto: “Eu entrei no horizonte, porque eu conheço o caminho. Eu sou
alguém que está equipado de fórmulas mágicas”. A magia é o que possibilita “N”, neste caso,
conhecer o caminho correto em direção ao horizonte e, assim, entrar no mundo dos mortos.
Zivie-Coche diz, ainda, que a relação estabelecida diretamente com o divino através da
magia poderia ser ativa ou passiva: “[...] passiva por aquele que se beneficia da conjuração que
deve aliviar seus males ou simplesmente preveni-los. Ativa por aquele que a pronuncia, se
utilizando no nome e das qualidades da divindade”227. No segundo caso, haveria a quebra da
barreira entre mundo real e mundo imaginário.
Cuidaremos, nas próximas linhas, de avaliar de que maneira a magia presente nos Textos
dos Sarcófagos, que permitia a uma pessoa unir-se aos deuses, bem como se tornar um deles,
pode ser encarada como uma marca de piedade pessoal. Iremos encarar a literatura funerária de
acordo com o que ela é, uma literatura ritual, avaliando a relação que existe entre individuo e
divindade na execução dos ritos mortuários. Atenção especial será dada às relações estabelecidas
com uma divindade em particular, Osíris, buscando, mais adiante, entender as causas de sua
popularidade e do apelo mais direto exercido frente à população – evidenciado, por exemplo, nas
estelas de Abidos.
Partindo da distinção proposta por Zivie-Coche, que vê as relações estabelecidas
diretamente com o divino pela divisão em passiva e ativa, podemos observar que há, em primeiro
lugar, encantamentos nos quais o oficiante do culto apela aos deuses em favor do falecido,
225
Cf. BAINES, John. Pratical religion and Piety. JEA, n. 73. London: 1987.
ZIVIE-COCHE, Christiane; DUNAND, Françoise. Dieux et hommes en Égypte. 3000 av J.-C 395 apr. J.-C. Paris:
Armand Colin Éditeur, 1991. p. 116.
227
Ibid., p. 134.
226
113
indicando, portanto, uma relação passiva. Há inúmeros exemplos deste tipo, por esta razão, foram
selecionadas apenas algumas fórmulas para servirem de exemplo ao que se pretende mostrar
aqui.
Comecemos pelo encantamento de número quarenta e oito. Aqui, aparece a fórmula – que
não é exclusiva deste encantamento, frise-se – “uma vantagem que Geb concede”. Interessante
observar como sua composição se assemelha àquela da fórmula hetep di nesw ou, “uma oferenda
que o rei faz”. Este é, em meu ver, outro indício do abandono da mediação régia sendo
substituída por um apelo feito diretamente ao deus e concedido diretamente por ele. É Geb, por
si, que concede a vantagem – seja ela qual for – e não mais o rei, que já não é mais indispensável
como intermediário entre deuses e homens (esta afirmação, contudo, é válida somente para o
contexto funerário que aqui é trabalhado).
A substituição do faraó como dispensador de oferendas se dá, também, pela primazia dada
ao primogênito nesta função. Esta é uma inovação permitida pelo desenvolvimento das
concepções osirianas, nas quais a imitação do papel de Hórus como responsável por garantir a
imortalidade de seu pai torna-se crucial228. Em várias passagens dos Textos dos Sarcófagos, é o
filho do falecido, provavelmente o mais velho, que age como oficiante do culto. O encantamento
TS 47 é um exemplo deste tipo:
Como é bom que meu pai deva receber pão e cerveja [oferendas
funerárias por excelência] das minhas mãos, pois ele não possui adversários
entre os deuses. Eu te dei estas oferendas que Hathor, Senhora de Punt, deu-te;
ela te dá mirra na Grande Mansão entre aqueles que saem na Barca do Corpo
(?)229.
Alguns encantamentos atestam a presença da tradição mais antiga na qual o rei age como
intercessor perante os deuses. São, porém, a minoria, aparecendo de forma não mais que
esporádica, conforme se observa nos exemplos abaixo:
228
No capítulo dois foi apresentada a relação existente entre o papel de Hórus e a imortalidade de Osíris, razão pela
qual ela não será retomada aqui.
229
FAULKNER, TS 47. Moreno García analisa o papel do primogênito como gestor dos bens de seus irmãos, e diz
que isto era feito como “uma forma de manter indivisos os bens herdados para evitar a desgragregação do patrimônio
familiar” (MORENO GARCIA, Juan Carlos. La família extensa em la organizacion social Del Egipto. In.:
CAMPAGNO, Marcelo (org.). Estudios sobre parentesco y Estado en el Antiguo Egipto. Buenos Aires: Ediciones
del signo, 2006, p. 131). O papel do filho mais velho como administrador dos bens familiares implica, também, que
fosse celebrante dos rituais mortuários realizados em honra de seu pai morto, já que também “afetavam a transmissão
do patrimônio desfrutado por um particular e a regulação dos bens destinados a celebração de rituais” (ibid., p. 133).
114
TS 399 – Uma oferenda que o rei faz a Anúbis, que está em sua
montanha, que é o local do embalsamamento, Senhor da Terra Secreta, em todos
os seus lugares puros e justos, invocações de oferendas para aquele que é
honrado junto ao grande deus, Senhor do Céu, para N, notável e justo; mil pães e
cervejas, mil bois, aves, órix, alabastro, tecidos, repasto funerário e um milhar de
todas as coisas boas e puras que um espírito deseja comer, para N [...]. Que ele
cruze o firmamento, que ele atravesse o céu, que ele possa viajar seguramente
pelos caminhos pelos quais os abençoados atravessam, minhas mãos sendo
dadas a ele na barca-nsmt dentre os abençoados230.
TS 531 – [...] Que tu faças dele um espírito, que tu subjugues seus
inimigos para ele, que tu o guies pelos caminhos do mundo dos mortos, que tu
derrotes a Conferação de Seth para ele. O rei ordenou que N triunfe sobre seus
inimigos diante de Hórus, Senhor dos Patrícios.
Que eu continue a existir, é o que foi ordenado, que eu continue a existir
como Rá para sempre 231.
No próximo encantamento, é através do apelo do oficiante do culto e do poder mágico
investido em suas palavras que “N” terá acesso aos deuses, pois eles virão ao seu encontro e,
mais, ouvirão o que ele tem a dizer: “Graças a ti, Thot, e teu Tribunal que está contigo! Ordena
que eles se aproximem de N, que eles escutem tudo o que ele tem a dizer (...)”232. Mais
significativo, ainda, é o encantamento 30, que expressa claramente as características de uma
“relação direta passiva” com a divindade:
O completo está contente pelo que foi feito e dito a ele; então, eu farei N
ver falcões em seus ninhos, eu farei N ver o nascimento do boi Apis nos
estábulos, eu farei N ver Osiris em Djedu em sua dignidade de Touro do
Ocidente 233.
O sacerdote leitor, em nome de “N”, agradece ao que fizeram a ele, referindo-se de
maneira muito provável aos embalsamadores e outros oficiantes do culto que agiram em seu
favor visando a obtenção de concessões dos deuses. Ao mesmo tempo, este mesmo sacerdote
assegura outras vantagens concernentes à imortalidade como parte da continuidade do ritual
mortuário, que incluem ver Osíris e o nascimento do boi Ápis.
230
TS 399[grifo meu].
TS 531.
232
FAULKNER, TS 09.
233
FAULKNER, TS 31.
231
115
Pela eficácia mágica e ritual contida em suas palavras, o morto obteria as vantagens
esperadas como, por exemplo, a companhia dos deuses imortais, beneficiando-se. De outro lado,
há encantamentos que – segundo a crença dos egípcios – seriam proferidos pelo próprio
indivíduo falecido, nos quais ele se vê cara a cara com a divindade, fazendo-lhe apelos e
legitimando seus pedidos evocando sua condição de igualdade para com os deuses. É que consta
do encantamento 827, por exemplo:
ENCANTAMENTO PARA ENTRAR NO CAMPO DOS JUNCOS. N
diz: Eu sou um deus e eu continuarei a existir; eu vim à existência ontem com os
grandes, eu vim à existência para que eu pudesse existir, eu estava no alto junto
aos servidores do Senhor da terra dos vivos, e tu estavas comigo, mas eu não
estou com [...], eu sou aquele que fez oferendas funerárias em Khem naquela
noite das lâmpadas (?), eu sei o que Geb sabe, eu sou único entre vós, eu
procurei o horizonte, eu vi a abertura, eu sou Osíris em paz em R3-3yf [...] que é
bom como um espírito no Campo dos Juncos. Os deuses que agem em meu
favor [...] como Senhor da Eternidade. Eu desejo que tu me dês um corpo como
o dos deuses [...]. Eu sou Hórus, o bem-amado, cujo nome é Senhor de Tudo [...]
Eu sou conhecido por ele na presença do Tribunal ds Sete. O que foi dito:
cuidado [...]234
3.1.4 A “DEMOCRATIZAÇÃO” DA IMORTALIDADE E A NATUREZA DIVINA DO REI.
A “democratização” da imortalidade ajuda a compreender uma transformação na
percepção da natureza do monarca egípcio, o qual passa, no Reino Médio, a ser visto em termos
mais humanos que divinos, ao contrário do que ocorria no Reino Antigo, período em que se deu o
ápice da ideologia faraônica.
Os textos funerários fornecem elementos que permitem, em um primeiro momento,
vislumbrar os aspectos que faziam do monarca não um igual entre os homens, mas sim como
detentor de essência diversa da dos mesmos e, em um segundo momento, como parte desta
essência é partilhada por pessoas comuns no âmbito do pós-morte. A percepção de tal fato não
pode prescindir de questionamentos acerca de suas implicações, uma vez que há, claramente,
uma diminuição no tradicional abismo que separava o faraó de seus súditos, no que concerne,
especialmente, sua natureza divina, já que, no âmbito da imortalidade, outras pessoas são também
234
TS 828.
116
capazes de atingir esta condição. Veja-se, por exemplo, encantamentos dos Textos das Pirâmides,
que enfatizam a distinção do faraó em relação aos homens:
TP 361 – Nu ordenou o rei a Atum, o Braços-Abertos ordenou o rei a
Shu, para que ele faça com que as portas do outro lado do céu sejam abertas ao
rei, barrando pessoas comuns que não possuem nome. Segura o rei pela sua mão
e leva-o aos céus, para que ele não morra entre os homens.
TP 373 – Ó, Ó! Levanta-te, ó rei, receba a tua cabeça, reúne teus
membros, retira a terra de teu corpo, recebe teu pão que não cresce mofado e tua
cerveja que não cresce azeda, e fica nas portas que repelem as plebes [...].
TP 438 – Ó! Ó! Eu o farei para ti, este grito de aclamação, Ó meu pai,
porque tu não tens pais humanos e tu não tens mães humanas; teu pai é o Grande
Touro Selvagem, tua mãe é a Jovem [...]
TP 565 – Eu sou puro, eu sou transportado para o céu, eu permaneço
mais que humano, eu apareço em glória para os deuses [...]235
Nos encantamentos 361 e 565 tem-se, explicitamente, o fato de que o faraó, em sua
imortalidade, não é igual aos homens não podendo, portanto, morrer entre eles, pois ele é “mais
que humano”. O encantamento 438 nega, claramente, as origens humanas do rei, dizendo que o
mesmo não possui pais humanos, e que é filho dos deuses. No encantamento 373 e no final do
361, percebe-se que o local a que é destinado o rei não é acessível a qualquer um. Há uma porta
que barra as “pessoas comuns”, a “plebe”, para que as mesmas não participem do mesmo destino
reservado ao deus-faraó.
Os Textos das Pirâmides são, basicamente, uma literatura a serviço e benefício do faraó.
Nota-se, portanto, que o monarca assume papéis proeminentes no outro mundo, tornando-se
“divindade suprema”, “chefe da Enéade” e “governador universal”, suplantando inclusive outros
deuses como Rá e Osíris. É somente de maneira pontual que aparecem encantamentos nos quais o
monarca está a serviço da divindade, como o TP 309, no qual o rei é referido como secretário do
deus sol. No geral, contudo, a posição do faraó é de supremacia, exercendo até mesmo ameaças
caso não lhe seja provido um lugar no horizonte (vide TP 254).
No Reino Médio, com a retomada do poder centralizado, os monarcas tiveram que se
valer de alguns artifícios visando o restabelecimento ideológico de sua posição suprema, uma vez
que as bases ideológicas de outrora estavam enfraquecidas e os eventos turbulentos do fim do
Reino Antigo e Primeiro período Intermediário modificaram a percepção dos súditos em relação
ao seu governante. Esta percepção, enfatize-se, não foi estática ao longo da história egípcia, e
235
FAULKNER, TP 361, 373 e 565.
117
sofreu variações ao longo do tempo. Interessa aqui, porém, perceber que o mero discurso da
divindade do faraó não seria mais suficiente para garantir aceitação e coesão social sob o seu
cajado, até mesmo porque esta retomada do poder centralizado não se deu naturalmente, exigindo
esforços para que continuasse a ser mantida, como bem observa Araújo a respeito dos faraós da
12ª dinastia:
O fato é que Amen-em-hat, vizir de Montu-hotep IV, último rei da 11ª
dinastia heracleopolitana, usurpou o Trono e fundou a 12ª dinastia. Para
assegurar a unidade do país, instável após longo período de disputas provinciais,
o novo soberano empenhou-se em implantar uma nova organização políticoadministrativa e em consolidar militarmente as fronteiras. Ao que parece,
todavia, sua legitimidade como faraó não era facilmente reconhecida, e por isso
encomendou a confecção de livros de ‘propaganda’, como As profecias de
Neférti e a Sátira das Profissões [...]”236
Da mesma forma entende Baines ao afirmar que períodos de transição turbulenta, como é
o caso do Primeiro Período Intermediário, exigiam uma maior necessidade de legitimação, uma
vez que a transição feita por meios violentos não era a norma nesta sociedade.
Por esta razão, a maioria dos textos deste tipo produzidos no Reino Médio é construída
tendo em vista, primeiramente, a apresentação de uma situação calamitosa anterior, que teria sido
revertida em função da atuação de um monarca forte. Tudo isto serve como uma espécie de apelo
à necessidade de uma monarquia centralizada. Esta mensagem aparece também no texto de IpuUr, pois o mesmo, após o relato da situação turbulenta e de acusar diretamente o faraó como
culpado pelo quadro, diz que ele também tem o poder de consertar a situação: “[...] podes,
contudo, ordenar o contrário, que volte o amor [...]”.
Os textos do Reino Médio ajudam, também, a confirmar o ideal de “utopia burocrática”
de que fala Kemp – exposto no primeiro capítulo - que remete à tentativa de uma reestruturação
do Estado egípcio sob a égide burocrática. É o caso da “Sátira das Profissões”, que exalta a
função de escriba e deprecia as demais. A julgar pela parte final do texto, Araújo afirma que esta
composição se trata de um “trabalho gnômico destinado a convencer, com recursos literários
hiperbólicos, o jovem que devia afastar-se da família para submeter-se à severa e demorada
236
ARAÚJO, Emanuel. Escrito para a eternidade. A literatura no Egito faraônico. Brasília: UnB, 2000. p. 293.
118
educação como escriba”237, profissão da qual advinham os membros que compunham a elite
burocrática no Egito antigo, encarregada da administração formal do mesmo.
***
A fim de proporcionar maiores subsídios à análise empreendida, é essencial que
tenhamos em mente algumas considerações acerca do conceito de monarquia presente no Egito
antigo. Baines define a instituição monárquica da seguinte forma:
Na ideologia, a monarquia formava o apex unificador de uma grande
quantidade de dualidades que constituíam a sociedade, bem como formava o
ponto de conexão entre a sociedade dos homens, dos deuses e do cosmos mais
amplo238.
Conforme dito por Baines, os egípcios viam o mundo através de dualidades, que podiam
ser expressas por binômios como “ordem” e “caos”, “deserto” e “terra fértil”, “dia” e “noite”,
“Alto Egito” e “Baixo Egito” e assim por diante, os quais acabaram por compor a lógica da visão
de mundo presente nesta sociedade. Sem a percepção desses elementos, não é possível entender o
pensamento egípcio de maneira correta. Para auxiliar no esclarecimento desta questão, as
considerações feitas por Gertie Englund são de grande valia. A egiptóloga propôs um modelo de
interpretação do pensamento do Egito Antigo tomando os deuses como referência. Em seu
trabalho, a autora parte da análise dos mitos de criação por crer que os mesmos fornecem um
padrão a ser aplicado nas demais instâncias do pensamento religioso, por justamente tratarem dos
elementos constituidores do mundo tal qual concebido por esta sociedade.
A questão primordial proposta por Englund é verificar que a unidade inicial conteria, em
si, uma heterogeneidade latente, a partir da qual se dava lugar à pluralidade. A autora explica este
esquema da seguinte forma:
Os sábios egípcios apresentam seus modelos para a potencialidade da
origem no ensinamento de Hermópolis. Neles, eles descrevem a unidade da
origem como uma dualidade potencial. Os símbolos que eles escolheram para
descrever aquilo que é absolutamente diferente do que conhecemos, a origem
237
ARAÚJO, op. cit., p.218.
BAINES, John. Origins of Egyptian Kingship. In.: O´CONNOR, David; SILVERMANN, David. Ancient
Egyptian Kingship. Leiden, New York, Köln: E.J. Brill, 1995, p.95.
238
119
inconcebível do intelecto humano, aparecem em duas formas variantes. Se nós,
hoje, no ocidente, queremos descrever duas variantes de uma mesma coisa, nós
temos o hábito de chamar estas variantes de ‘alfa’ e ‘beta’, ‘um’ e ‘dois’, ou
‘zero’ e ‘um’. Estes sábios, contudo, escolhem uma designação muito mais
próxima da experiência humana pra expressar seu pensamento e, como o ser
humano aparece em duas variantes, eles as chamaram, então, de ‘masculino’ e
‘feminino’. É preciso, contudo, ter em mente que a origem é descrita em outros
lugares como ‘antes que duas coisas existissem’, portanto, esta dualidade entre
feminino e masculino é apenas latente. Existe apenas como predisposição, como
o germe de uma realização que está por vir239.
A polarização da criação, conforme a tradição de Heliópolis, se dá nas instâncias dt e nhh,
que se tratam de duas noções categorizadas. A primeira seria a energia estática, passiva,
representando Osíris e a linearidade, enquanto a segunda representa a energia móvel, dinâmica,
do deus Rá e da renovação cíclica diária.
A isto Englund chama pensamento monista que, segundo sua própria definição, consiste
em perceber que,
De acordo com os egípcios, existe uma unidade e uma coerência em
toda a criação. A existência, por si, forma uma unidade, um todo, com o estado
primordial. A existência é um ser manifesto, a divindade manifesta. Apesar desta
unidade há, contudo, uma diferença entre a unidade absoluta da existência
potencial e da pluralidade criada manifesta. Esta compreensão é trazida no fato
de que todas as unidades da criação são apresentadas como dualidades, como as
Duas Terras, a coroa dupla, as Duas Senhoras, etc.240
A dualidade, portanto, permeia toda a criação. Havia, igualmente, uma dualidade inerente
à própria monarquia, evidenciada na existência de dois aspectos intrínsecos ao faraó, o humano e
o divino. Seria ingênuo afirmar que os súditos em geral não percebessem a natureza humana de
seu governante, sujeito a fracassos, a necessidades próprias dos seres humanos e, ele mesmo,
como um mortal. Os estudos sobre a realeza no Egito antigo freqüentemente enfocavam o papel
divino do rei esquecendo-se de sua dimensão humana. Atualmente, a tendência é a de
problematizar as relações envolvendo a natureza dual do soberano egípcio. Nesta direção, julgo
interessante o posicionamento de Silvermann e O´Connor:
239
ENGLUND, Gertie. Gods as a frame of reference. In. ______. The religion of the ancient egyptians. Cognitive
Structures and popular expressions. Uppsala, 1989, pp. 10-11.
240
ENGLUND, op. cit., pp. 25-26.
120
A monarquia é uma instituição divina, de certo modo, ela mesma um
deus, ou pelo menos a imagem do divino e capaz de se transformar em sua
manifestação; cada incumbido, cada faraó é fundamentalmente um ser humano,
sujeito às limitações humanas. Quando o rei tomava parte dos papéis de seu
ofício, especialmente em rituais e cerimônias, o seu ser enchia-se da mesma
divindade manifesta em seu ofício e nos próprios deuses241.
Esta situação tornava premente a necessidade de legitimar o ofício divino e seu ocupante,
o que era feito, principalmente, através dos rituais, pelos quais o monarca imbuía-se do divino. A
coesão em torno da figura régia era feita através da evocação de maat, que garantia o papel do
faraó como intermediário entre deuses e homens e através do qual as divindades poderiam
assegurar a sustentação ordenada deste mundo via constituição de uma comunidade moral.
Conforme dito anteriormente, a percepção da monarquia no Egito faraônico não foi
estática ao longo do tempo, e nem mesmo unívoca em um mesmo período. Silvermann,
enfatizando estas variações, nota que o faraó poderia ser: nomeado um deus em algum relato
histórico de feitos monumentais; chamado de filho de alguma divindade em um epíteto ou em
uma estátua do templo; adorado como a imagem viva de um deus em inscrições seculares;
descrito como um mortal falível em um texto histórico ou literário ou simplesmente referido pelo
seu nome pessoal em uma carta242. Estas variações demonstram que a dimensão divina do
monarca dificilmente obscurecia a sua dimensão humana, ao contrário do que se vinha pensando.
Levando em consideração a literatura funerária, é possível a percepção desta diversidade
em torno da constituição da natureza monárquica, especialmente no que se refere às relações
entre o faraó e as divindades, que ora são de igualdade, ora de subordinação, ora de primazia
deste em relação àqueles. Observe-se, contudo, que a relação proeminente é a de supremacia do
faraó em relação às divindades, muito embora tenha que se valer de apelos persuasivos a elas
para garantir a entrada no outro mundo. Após tornar-se um “espírito”, o faraó assume a cadeira
de chefe do outro mundo. Interessante observar como, nos Textos dos Sarcófagos, estas formas
de relação com a divindade permanecem, muito embora não se trate mais do faraó mas, sim, de
indivíduos privados. O indivíduo poderia esperar vários destinos diferentes após a morte, desde
passar a eternidade a serviço do deus Osíris nos Campos Elísios ou assumir um posto de
supremacia junto às outras divindades.
241
O´CONNOR, David; SILVERMANN, David. op. cit. p. XXV.
SILVERMANN, David. The nature of Egyptian Kingship. In.: O´CONNOR, David; SILVERMANN, David. op.
cit. p. 50.
242
121
O objetivo deste capítulo como um todo é demonstrar que os elementos novos que surgem
com os Textos dos Sarcófagos e com a “democratização” da imortalidade não se encontram ali
por acaso – muito pelo contrário. Estes novos elementos possuem significado tendo em vista o
contexto em que foram produzidos, cujas características foram expostas no primeiro capítulo
desta dissertação. É por isto que, com relação ao Primeiro Período Intermediário, é possível
suscitar algumas questões envolvendo o processo de “democratização” e a figura régia que
ajudarão a melhor compreender tanto a divinização de particulares quanto um novo ganho
explícito nos Textos dos Sarcófagos: o do acesso ao divino.
Neste período, verifica-se que, ao mesmo tempo em que se dá o enfraquecimento da
monarquia e do papel do faraó, não são estabelecidos modelos que visem substituir aqueles
fornecidos pela própria instituição monárquica, conforme se observou, por exemplo, no primeiro
capítulo, ao nos referirmos à atuação dos nomarcas. Os próprios Textos dos Sarcófagos
continuam a pautar-se na imortalidade régia para assegurar a imortalidade de particulares,
levando-nos a dúvidas paradoxais sobre este processo. De um lado, tem-se, claramente, o
enfraquecimento da monarquia, evidenciado pelas crises do fim do Reino Antigo e Primeiro
Período Intermediário ao mesmo tempo em que, de outro lado, é a instituição monárquica que
continua a ser o modelo de referência para aquela sociedade243. Como conciliar estes dois pólos
aparentemente inconciliáveis?
Acredito encontrar a resposta justamente na dualidade anteriormente mencionada. Embora
parecessem indissociáveis, faráo e monarquia não o eram de todo, justamente em virtude da
dualidade que o ofício (divino) comportava ao ser exercido por um homem (mortal). Novamente
recorremos às considerações de Silvermann, bastante elucidadoras:
Enquanto a monarquia como instituição manteve-se relativamente
constante durante os mais de três mil anos de história do Egito antigo, o que o
ofício significava, como os detentores desta posição compreendiam o seu papel e
243
Ian Shaw suscita este mesmo questionamento: “O uso do termo ‘democratização’ inevitavelmente sugere algum
tipo de erosão na crença na monarquia como resultado direto da usurpação de fórmulas e rituais régios, mas tem
sido apontado, ao contrário, que o ato de imitação possa, na verdade, ser pego para inferir um fortalecimento na
crença da efetividade da instituição monárquica” (SHAW, Ian. Ancient Egypt. A very short introduction. New York:
Oxford University Press, 2004, p.119). Creio que há uma impropriedade na afirmação de Shaw, pois o mesmo afirma
que a diminuição na crença da efetividade da monarquia é conseqüência da “democratização”, do que discordo. Em
meu entendimento, a “democratização” não é a gênese deste processo, o qual se inicia antes da mesma, embora tenha
sido reforçado por ela. Adiante, veremos que a própria afirmação de uma “monarquia enfraquecida” esconde, na
realidade, uma gama maior de significados impedindo que se compreenda de forma mais adequada a divergência
apontada por Shaw.
122
como a população percebia este indivíduo não se constituíram em conceitos
uniformes pelos séculos, sem mudança244.
Desta maneira é possível compreender como, apesar da crise instaurada no Egito no fim
do terceiro milênio a.C., a realeza continuou a ser referência (no caso que particularmente aqui
mais interessa, em relação à imortalidade), conforme verificado, por exemplo, através da
perpetuação da importância de insígnias e do status régio na passagem para o outro mundo.
Enquanto a validade da instituição monárquica continua assegurada, o rei enquanto humano é
diminuído em seu prestígio, ocasionando conseqüências políticas e religiosas diretamente
relacionadas a esta mudança. A instituição monárquica foi o que sobreviveu às crises periódicas
ocorridas ao longo da história do Egito faraônico, mesmo quando o monarca, enquanto indivíduo,
falhava. Discordo, portanto, de Baines, quando o mesmo afirma que a sociedade egípcia foi, aos
poucos, tornando-se mais plural e menos centrada no rei, representando um primeiro estágio na
erosão da monarquia como um símbolo central desta sociedade245.
Partindo destas considerações, julgo essencial estudar hipóteses que expliquem,
justamente, a conquista do divino por parte de indivíduos privados. Neste sentido, faz-se mister
analisar outras fontes que não funerárias, aliando ao estudo, por exemplo, textos do Reino Médio,
como a chamada Literatura Propagandística (também conhecida como Ensinamentos), que visa
apresentar um novo modelo de monarca246. Baines nos auxilia a justificar o uso destas fontes,
conforme sumaria Parkinson:
Baines [...] sugeriu que a ambivalência ética dos ensinamentos régios
deve, em parte, legitimar o comportamento do rei que era mais pragmático que
ideológico [...]. O aspecto pessimista dos discursos pode ser interpretado como
uma justificativa para a necessidade de governantes absolutos conterem o
aspecto negativo potencial da humanidade247.
244
Ibid., p. 49.
BAINES, op. cit. (1995), pp. 42-43.
246
Sobre a relação entre Literatura e História, vale considerar a opinião de Posener: “A Literatura pode ser explorada
pela História de maneira sistemática. Através de seus temas e de sua maneira de tratá-los, permite compreender
melhor os problemas políticos da época, assim como os conflitos de opinião e seguir o movimento das idéias. A
descoberta de uma propaganda régia mediante o escrito constitui, em si, um aporte precioso para a História ...
Literatura e História se prestam, assim, serviços recíprocos e se enriquecem mutuamente” (POSENER, Georges.
Littérature et politique dan L´Egypte de la XIIe dynastie. Paris: H. Champion, 1956. p.171)
247
PARKINSON, Richard B. Individual and society in Middle Kingdom literature. In.: LOPRIENO, Antonio.
Ancient Egyptian Literature. History and forms. Leiden; New York; London: E. J. Brill, 1996. p. 153.
245
123
Frise-se mais uma vez, que é importante, para o objetivo proposto, analisar a existência de
transformações em relação à percepção da natureza do monarca egípcio, como parte da
argumentação a favor do fato de que o ganho do divino por particulares, evidenciada na literatura
funerária dos Textos dos Sarcófagos, é indício de uma nova caracterização do soberano que
implica conseqüências, inclusive, nas relações estabelecidas entre os egípcios e as divindades.
Voltando às considerações de Baines, podemos dizer que a idéia de que o monarca, por
possuir uma natureza humana, também abarcaria em si os aspectos negativos inerentes à
humanidade é nova se tomarmos em conta a construção da figura régia no Reino Antigo. Ao se
observar as Grandes Pirâmides, construídas neste período, a impressão que se tem é de
infalibilidade, a afirmação de “uma avassaladora conquista humana, ou melhor, real [régia]”248.
Nesta época, é o rei quem domina a sociedade dos homens, e assume o papel como único
intermediário entre a humanidade e os deuses, sendo o sumo-sacerdote supremo e o único
protagonista dos cultos. O foco da sociedade egípcia estava no monarca, criando uma visão de
mundo centrípeta que excluía os demais como protagonistas e agentes ativos na construção da
realidade que os cercava.
O novo enfoque na natureza do rei propiciado pela divulgação da chamada Literatura
Propagandística serve como esteio para justificar a pífia atuação do monarca nas sucessivas crises
que marcaram o Primeiro Período Intermediário, como ousadamente denunciou Ipu-Ur, por
exemplo, em suas “Admoestações”:
[...] deixaste que a desordem se instalasse em todo país com o clamor
dos contendores. Em verdade todos se excedem e infringem suas ordens [...]
[...] mentiste e o país é uma erva daninha que mata as pessoas [...]249.
Os trechos acima mostram um rei frágil, provavelmente Pepi II, culpado pela situação
calamitosa em que se encontrava o Egito. Posteriormente, textos como “As Profecias de Neférti”
tentam justificar a atuação do novo monarca – no caso, Amenenhat I - opondo seus feitos a um
passado tumultuado, colocando-o como responsável pela volta à ordem após um período de crise:
248
BAINES, John. Sociedade, moralidade e práticas religiosas. In.: SHAFER, Byron. As religiões no Egito antigo.
Deuses, mitos e rituais domésticos. São Paulo: Nova Alexandria, 2002. p.152.
249
ARAÚJO, op. cit., “As Admoestações de Ipu-Ur”.
124
Eis então que um rei virá do Sul,
Ameny, o justo de voz, é seu nome,
filho de uma mulher da Núbia, nascido do Alto Egito.
Receberá a Coroa Branca,
usará a coroa vermelha.
Unirá as Duas Poderosas,
contentará os Dois Senhores com o que desejam.
O instrumento para circular no campo estará em seu punho,
o remo em sua mão.
Regozijai-vos, ó gente de sua época,
o filho de um homem importante fará renome pela
eternidade- djet e pela eternidade-neheh!
Os que caíram no mal e tramaram a rebelião
refrearão a boca com medo dele.
Os asiáticos cairão por seu terror,
os líbios por seu fulgor,
os rebeldes por sua ira,
os traidores por sua força,
o uraeus em sua fronte subjuga os rebeldes para ele.
Serão levantadas as Muralhas do Soberano
para impedir a entrada dos asiáticos no Egito.
Eles pedirão água, como sempre,
para que seus animais possam beber.
Maat voltará a seu lugar,
enquanto o mal será expulso.
Regozije-se quem verá isso e quem servirá ao rei!250
Uma inovação trazida em um destes textos propagadísticos é que o próprio monarca
assume o seu fracasso, o que seria impensável no contexto da ideologia monárquica do Reino
Antigo. É o caso dos “Ensinamentos pra o Rei Merikara”, em que o rei Khety (Mery-ib-Ra), fala
de sua atuação mal-sucedida no sul e alerta seu filho a não cometer o mesmo erro:
Não te conduzas com hostilidade para com o Sul, pois conheces a
profecia da Residência sobre isso, e o que aconteceu pode voltar a acontecer.
Eles não passaram a fronteira, como disseram. Ataquei Tis de frente até seu
limite meridonal em Taut e atingi-a como o rebentar de uma tempestade. O rei
Mery-ib-Ra, o justo de voz, não foi capaz de fazer isso. Sê clemente sobre isso
[...]
Eis que uma ação vil aconteceu em meu reinado: o nomo de Tis foi
devastado. Isso aconteceu, mas não em virtude do que fiz, e soube do fato só
depois que sucedera. Eis que as conseqüências ultrapassaram o que eu fiz, pois é
desastroso destruir, inútil restaurar o estragado, reconstruir o demolido. Guardate disso! Um golpe é retribuído por outro, para cada ação há uma resposta.251
250
251
ARAÚJO, op. cit. pp. 199-200.
ARAÚJO, op. cit., pp. 287, 290.
125
Aponta-se, neste caso, o fato de que o faráo também é um ser falível, sujeito a cometer
erros, como aqueles que levaram à destruição do nomo de Tis – a ele também pertence a
fragilidade inerente aos seres humanos, a qual os torna impotentes diante de muitas situações.
Os textos mostram, também, um faraó descido de seu pedestal, mais próximo aos homens,
exaltando virtudes de amor e bondade. Ptah-Hotep, em uma de suas máximas sobre o bemgovernar, aconselha os homens que estão no poder de fazer “a tua lembrança durar por amor a
ti”, incentivando condutas bondosas para com o povo, para que eles elogiem esta bondade e
rezem por sua saúde. O governante, mais que ser temido pelos seus governados, deve ser amado
por eles – é o amor que deve ser a fonte do respeito que irá adquirir.
O que se pretende ao mostrar trechos de textos pertencentes ao Reino Médio é apontar
para o fato de, após um período de desprestígio da monarquia frente aos seus súditos, ter-se
lançado mão de outros artifícios para restaurar a credibilidade no soberano, e uma via foi a da
literatura. Alhures, verificar-se-á que a própria “democratização” da imortalidade e o maior
desenvolvimento das concepções osirianas sobre o outro mundo também estão estreitamente
relacionadas ao descrédito no faraó focando, especialmente, na obtenção da imortalidade. Já que
o soberano não dava conta nem mesmo de manter a ordem no mundo visível, acredita-se que esta
desordem terrestre espelharia, igualmente, a desordem celeste. A destruição de tumbas e demais
monumentos funerários certamente influenciaram mudanças na crença sobre o pós-morte gerando
o medo de que a imortalidade talvez não pudesse mais ser assegurada. Para tanto,
desenvolvimentos de alguns aspectos da ideologia mortuária deveriam ser feitos, a fim de que a
morte pudesse ser garantida, já que uma imortalidade dependente da do faraó não mais oferecia
segurança. Um exemplo é a proliferação de estelas funerárias, as quais continham a representação
do morto frente a uma mesa de oferendas, junto a fórmulas funerárias, que fazem parte de uma
tentativa de garantir o sustento do falecido na outra vida uma vez que, dado o poder mágico que
se acreditava possuírem as representações egípcias, substituiriam o banquete funerário in natura,
o qual poderia ser interrompido a qualquer momento por saques a tumbas ou mesmo pelo
desinteresse das gerações vindouras em manter o culto mortuário de seus antepassados.
A respeito da relação entre o enfraquecimento da monarquia e a aquisição de status divino
por particulares, vale a pena verificar o que diz o encantamento 694:
Minha plantação é a que o rei deseja, e tua plantação não está comigo, ó
Obstinado que está encarregado nas liteiras; o lugar da plantação está [...] do
126
ocidente. Eu sou a criança de Há em seu deserto, e aqueles que estão na presença
de Osíris. Meu assento está no deserto, o deserto ocidental é meu horizonte, e eu
estou junto aos deuses que nele estão, os reis do Egito; nenhum me dará ordens,
e não haverá conflito dos deuses contra mim252.
Vemos, neste encantamento, que o destino reservado ao morto é o mesmo reservado aos
reis do Egito (“E eu estou entre aqueles que estão nele, os reis do Egito) mas, ao mesmo tempo, o
reis não têm poder sobre ele (“nenhum dará uma ordem contra mim”). Isto porque, agora, o
morto atinge uma condição diferente, não sendo mais um mero mortal mas, sim, um deus ele
mesmo, ao qual as pessoas temem e veneram:
Graças a vós, deuses e espíritos cujas falas são potentes, ó vós, senhores
dos grandes cetros que mantêm as portas para N!<Ó N!> Eu pus medo de ti
naqueles que estão na terra como Hórus entre os deuses, eu pus o respeito a ti
entre os espíritos como Seth entre os deuses.
Ó N! Eu pus o medo de ti entre aqueles que estão na terra e tua força
sobre aqueles que estão no outro mundo
Ó N! Eu coloquei seu poder admirável nos desafetos e aqueles que estão
na terra vêm a ti reverenciando como a [...] e os seguidores do sol que te
adoram como alguém proclamado justo, eles te vêem quando tu desces aos
espíritos, porque tu estás equipado como um próprio deus253.
Percebemos, através do encantamento, que a relação do falecido com os demais muda: a
ele são devidos respeito, veneração e admiração, e ele adquire poder e força. Isto tudo porque ele,
agora, está equipado como os deuses e tornou-se um deles. Natural é, portanto, que as relações
estabelecidas com ele mudem e sejam feitas à semelhança daquelas estabelecidas com os deuses.
Conforme Erik Hornung, as características mencionadas (respeito, veneração e admiração) fazem
parte da relação dos egípcios com seus deuses:
Os seres humanos evoluem em um mundo onde os deuses exercem uma
atividade invisível mas poderosa. [...] O oficiante diz, durante o ritual cotidiano
de Amon-Rá, o rei dos deuses: << Teu temor é meu corpo e tua majestade
impregna meus membros >> <<Temor>> e << Majestade>> representam em
fato tentativas de tradução dos termos egípcios sndt e sfsft em linguagem
moderna, sndt pode significar “medo” de alguém, e sfsft a “autoridade”
imponente que “acompanha” um dignitário. [...] A primeira emoção que invade
252
253
FAULKNER, TS 694.
Ibid., [grifos meus].
127
um egípcio que encontra uma divindade ou a imagem de um deus é o medo,
misturado de maravilhamento e exultação [...]254
Hornung diz, também, que tal atitude de temor perante uma divindade é própria de tempos
mais antigos (tomando como base o Reino Médio e o Reino Novo), nos quais a atitude mais
apropriada era a de terror, maravilhamento respeituoso e aclamação jocosa diante da revelação de
um ser superior255. Ora, vemos aqui, a apropriação das características de relação com a divindade
do Reino Antigo, especialmente a que diz respeito a do rei-deus com seus súditos. O monarca,
nesta época, era um ser distante, intocável a seus súditos, suscitando as reações a que se referiu
Hornung. No Reino Médio a situação muda, o rei passa a ser retratado como uma espécie de
“bom pastor” de seu povo sendo, portanto, muito mais próximo a ele. Os “Ensinamentos do rei
Amenemhat I”, por exemplo, enfocam como um de seus temas principais as atuações desse faraó
como um governante benevolente:
Eu dei ao mendigo, criei o órfão, dei prosperidade ao pobre e ao rico [...]
[...] Fui eu quem fez a cevada, o amado de Népri, e Hapy honrou-me em
cada campo. Ninguém passou fome em meus anos de reinado, ninguém teve
sede, os homens sentavam-se em sossego e conversavam sobre mim, pois
determinei a cada um o seu lugar. Dominei leões, capturei crocodilos, dominei
os habitantes do Uauat, trouxe presos os medjai, fiz os asiáticos andarem
submissos como cães256.
Conseqüentemente, o envolvimento com seus súditos se dava através de emoções
diferentes como, no caso, o amor da divindade pelos homens. Como os Textos dos Sarcófagos
são originários dos Textos das Pirâmides, transportou-se a primeira relação, a de medo e respeito
para com o deus (no caso, o faraó) que é, agora, o individuo particular enterrado segundo os ritos
corretos.
254
HORNUNG, Erik. Les dieux de l ´Égypte. L´un et le multiple. Paris: Flammarion, 1992. p.180.
Ibid., p.185.
256
ARAÚJO, op. cit., pp. 295-296. Sobre a construção da imagem do rei como “bom pastor”, Claire Lalouette
comenta: “A obra benfazeja dos reis do Egito aparece com evidência nos textos em que os homens proclamam a ação
generosa do soberano, por outro lado em certos documentos oficiais, ao assegurar reformas úteis no interior do país,
e ainda, quando destinados a salvaguardar a paz com os estrangeiros poderosos. O reconhecimento do povo do Egito
pode se exprimir por meio de um ensinamento legado por um pai ao seu filho (conforme a tradição) – ou nos hinos
cantados pelo monarca, poemas de ‘propaganda’, destinados, quiçá, às fórmulas por vezes consagradas, mas cujas
passagens testemunham uma devoção sincera; este gênero de hinos régios aparece no Reino Médio, após a desordem
e a anarquia do Primeiro Período Intermediário, e a retomada do poder central pelos príncipes tebanos”
(LALOUETTE, Claire. Textes sacrés et textes profanes de l´ancienne Égypte. Des pharaons et des hommes. Paris:
Gallimard, 1984. p.74).
255
128
Além dos indícios mencionados até o momento, que nos auxiliam a compreender
mudanças na forma com que os faraós agora, queriam se fazer perceber, não podemos esquecer
que estas transformações não foram realizadas preventivamente mas, sim, como uma forma de se
adequar a mudanças já existentes na sociedade. O caso da piedade pessoal e do afastamento
gradual do monarca como um ente essencial à obtenção da imortalidade dos seus súditos – ou
seja, a “democratização” – sinalizam para o enfraquecimento do papel do faraó, agora
reformulado. Foi dada, portanto, uma nova roupagem à ideologia monárquica, a fim de adequá-la
às novas necessidades da sociedade e, assim, garantir a sua permanência.
3.2 A MORTE COMO HORIZONTE UTÓPICO.
3.2.1 O DIÁLOGO DE UM HOMEM COM SEU BA E A QUESTÃO DO JULGAMENTO DOS MORTOS.
O texto egípcio conhecido como “O diálogo de um homem com seu ba” (ou, em outras
variações, “Reflexões de um desesperado” e “Diálogo de um homem farto de viver com sua
alma”) é um documento datado provavelmente de finais da 12ª dinastia, preservado no Papiro
Berlim 3024, que narra uma conversa entre um homem à beira de cometer suicídio e seu ba257.
As reflexões versam basicamente sobre as benesses da morte em oposição aos infortúnios da
vida, e uma tentativa desesperada do ba em impedir tal ato contra vida mostrando as
desvantagens de se apressar a morte. O texto, quanto à sua forma, inicia-se em estilo narrativo no
qual se passam as discussões de foro íntimo. Posteriormente, são apresentados quatro poemas que
versam, respectivamente, sobre o quão repugnante é o nome do homem em vias de atentar contra
a própria vida, a descrição de uma situação calamitosa presente (que em muito se assemelha ao
texto das “Admoestações de Ipu-Ur”), a euforização da morte e, finalmente, a morte como um
meio possível de reverter a situação anteriormente descrita. O epílogo do texto retoma o caráter
narrativo no qual o ba tenta mais uma vez dissuadir o homem da idéia de apressar a morte mas,
caso tal fato venha a ocorrer, o ba tranqüiliza o homem dizendo que irá juntar-se a ele no
momento da passagem para o outro mundo (o medo de que isto não acontecesse é expresso no
início do texto).
257
A tradução utilizada é a de Emanuel Araújo em: ARAÚJO, Emanuel. Escrito para a eternidade. A literatura no
Egito faraônico. Brasília: UnB, 2002. pp. 207-214.
129
Interessa-nos, especialmente, avaliar a construção, presente no texto, da morte como um
horizonte utópico e como uma forma de proporcionar a “salvação”, construção esta que, veremos,
pode ser também inferida pelo estudo do desenvolvimento das crenças post mortem osirianas,
bem observado na análise da literatura funerária (Textos dos Sarcófagos).
No Diálogo de um Homem com seu ba, a euforização da morte se dá, pela personagem do
texto, em relação às agruras de uma vida terrena, expressas no segundo poema, como dito
anteriormente. Tem-se a morte, ou o além, como “um lugar atrativo para o coração, o porto do
coração”, e ela aparece como análoga à “cura de um doente”, a “um caminho bem trilhado”, à
“fragrância do lótus”, a “sentar-se sob uma vela (de barco) em dia de brisa”, à “volta ao lar
depois da guerra”, ao “o céu que se abre” e a “voltar para a casa depois do cativeiro”. Enquanto
isso, a vida é vista em termos de aflição, tormento e sofrimento, conforme palavras utilizadas
pelo próprio autor do texto.
Frente ao dilema enfrentado, o ba apresenta argumentos que intentam fazer com que o
homem decline da idéia de se matar, pois a morte traz “lágrimas”, tristeza” e “abandono” e, “se
pensas em enterro, é triste para o coração”. Contudo, é interessante observar que esta disforização
da morte por parte do ba é válida somente enquanto esta for provocada por um ato consciente e
voluntário, ou seja, o suicídio, pois não se deve apressar o dia do fim. A morte também é vista
como um horizonte alegre pelo ba, mas deve-se esperar que ela chegue naturalmente. Diz o ba:
“Sê alegre um dia, não te preocupes!”, e posteriormente conta duas parábolas cujo intento é, em
primeiro lugar, mostrar a morte como uma triste ruptura e, em segundo lugar, como apressá-la
tornaria o homem uma pessoa “irascível e até alienada”258. Diferentemente do homem, que
euforiza a morte e disforiza a vida, o ba apresenta os aspectos negativos de uma morte precoce
sem, contudo, fazer uma apologia à vida. O suicídio – podemos concluir, portanto – não era bem
visto entre os egípcios, e teria implicações, inclusive, no próprio desfrute da outra vida pois,
assim, jamais “subirás ao céu para contemplar o Sol”. É possível encontrar suporte para esta
interpretação no encantamento 39 dos Textos dos Sarcófagos, que apresenta em seu início uma
possível declaração de insatisfação em relação à morte prematura, conforme apontado por
Faulkner259. Diz o encantamento:
258
ARAÚJO, op. cit. p. 207.
FAULKNER, Raymond. Spells 38-40 of the Coffin Texts. The Journal of Egyptian Archaeology, vol. 48, dez/
1968, pp. 36-44.
259
130
Ouviu-se das bocas daqueles que fazem ritos que o meu pai, que está no
ocidente, me levantou no fim de meus dias nesta terra dos vivos, quando eu
ainda não havia criado minhas asas, quando eu ainda não não havia chocado
meus ovos, antes de eu ter atingido meu tempo de vida, antes que eu comesse o
pão do meu fomento, antes que eu bebesse minha merecida medida de leite antes
que eu mobiliasse minha casa dos vivos na Ilha do Fogo260.
Um tema bastante caro à pesquisa ora desenvolvida e presente no “Diálogo de um homem
com seu ba” é a apresentação da situação presente como um momento calamitoso, repleto de
violência, maldade, saques, atos desonestos, criminosos e demais elementos negativos. Da
mesma maneira que Ipu-Ur, o homem à beira do suicídio se vale de inversões para descrever a
realidade, ao dizer, por exemplo, que “aquele que deveria enfurecer os outros por suas más ações,
faz rir todo mundo com seus atos desonestos”, ou que “o criminoso torna-se um amigo íntimo,
mas o irmão com quem se convive torna-se um inimigo”. Diz, sobre o Egito, que o país foi
“abandonado àqueles que só fazem o mal”, no qual “ninguém tem o coração pacato” e um local
no qual vaga, sem fim, o erro.
Como solução a esta vida repleta de sofrimentos, o homem escolhe a morte, e é aí que
podemos observá-la enquanto uma forma de obter a “redenção”, a “salvação”. É na morte que se
poderia interferir positivamente na situação calamitosa descrita, uma vez que “[...] aquele que
está além será um deus vivo e punirá quem cometer um crime”. Da mesma forma, “aquele que
está além”, ou seja, o morto, será também “um homem sábio, não repelido ao suplicar a Rá
quando falar”. A morte se reveste de uma forma pela qual o homem poderia não somente se ver
livre dos infortúnios, como também reverter a situação, através da condição divina alcançada e da
aquisição de certas faculdades dela decorrentes. Após passar pelo Tribunal dos Deuses, o morto
“justificado”261 passa a adquirir poder sobre seus inimigos, como é possível perceber da leitura
dos Textos dos Sarcófagos. Veja-se, por exemplo, o encantamento 577:
Eu saio ao dia contra o meu inimigo e eu tenho poder sobre ele; Ele me
foi dado e não será retirado de mim; Ele me é totalmente submetido no Tribunal.
A primeira grande colina, o cetro-sekhem dos deuses, ele mo deu; Ele é para
minhas garras como (para) um leão, ele é para minha palma como (para) um
crocodilo. Foi-me feito um caminho para que eu arrebatasse meu inimigo [...]
260
FAULKNER, TS 39.
A partir da XI dinastia o morto passa a usufruir do título maa-kheru, que significa “o justo de voz”, “justificado”,
o que para alguns autores indica seu ajuste a um padrão ético que atinge sua forma completa no Livro dos Mortos.
261
131
Foi-me dada a grande coroa vermelha, foi feito com que eu saisse neste dia
contra meu inimigo, eu o arrebatei, eu tenho poder sobre ele262.
Da análise das passagens referentes ao Tribunal dos Deuses nos Textos dos Sarcófagos,
foi possível concluir que seu principal objetivo era tornar o falecido “justo” contra seus inimigos
e permitir, após, que os deuses abrissem os caminhos do céu e da terra para que o morto pudesse
“sair à luz do dia”, momento no qual há a liberação do ba. Após ter sido tornado justo, o falecido
adquire o direito de gozar de certos benefícios, enquanto são imputados castigos àqueles que se
voltaram contra ele. É importante ressaltar que os inimigos a que se reporta o texto não são
somente aqueles presentes na outra vida, mas qualquer um que venha atentar contra o morto –
vivos, deuses, mortos e até animais. O julgamento permite que sua alma não pereça, ao contrário
da de seu inimigo, como se observa, por exemplo, no encantamento 339. Permite, igualmente,
que o falecido goze de suas oferendas e que, por isto mesmo, não precise comer seus
excrementos, que é uma das maiores abominações contidas nos textos funerários. O julgamento,
também, torna o falecido um Osíris (ver, por exemplo, o encantamento 04) e possibilita que o
mesmo possa dispor de água, ar etc. Quanto aos inimigos, a eles é reservado o seguinte destino,
conforme consta do encantamento 741:
[...] Volte, Perturbador, e diga o que viu! Faz-se obstáculo ao seu
súdito...Há um pai em face de ti no tribunal; meu protetor triunfa contigo; é
vitorioso...meu pai contra ti. Ignore o Osíris N...o Osíris N. na ausência de seu
(pai) que está entre os deuses, mas Rá colocou um obstáculo..., ele fala aos
deuses que circundam a capela, e eles bateram...(palavras) misteriosas na boca
de Anúbis. Teu massacre (foi feito) na presença de sua efígie; (Eu) vejo (?) o
que te foi feito devido a tua fala perversa. O grande o saúda (?) no...; o grande
fica em pé, mantendo seu cetro, estendendo seus braços na tua direção, por causa
daquele que vem contra ti. Tu não terás pão,...,tu não terás bolos-hbnnt no reino
dos mortos. Vê, tu pertences a ele, ao rei, Osíris (?)... Osíris contra (?) ti, tua
condição não poderá jamais lhe escapar.
O julgamento associa-se ao mito que relata a contenda entre Hórus e Seth, no qual há a
construção subjacente da “ordem” versus o “caos”. Após Seth ter matado Osíris e usurpado o
trono, Hórus reclama ao Tribunal dos Deuses seu direito de assumir o lugar do pai, em função da
sua primogenitura. Os deuses deliberam e decidem pela vitória de Hórus – não sem antes haver
262
BARGUET, TS 577.
132
disputas físicas entre tio e sobrinho - pondo termo, portanto, ao caos instaurado após a morte de
Osíris. Na literatura funerária, Seth é a personificação dos inimigos, e o primogênito possui papel
relevante como mantenedor do culto funerário, como oficiante do culto, como intercessor junto
aos deuses e como representante de seu pai na terra, identificado a Hórus, uma vez que o falecido
torna-se um Osíris.
Trata-se, portanto, da presença e importância da restauração da maat, a qual, creio eu,
torna-se um elemento importante na literatura funerária deste momento justamente em virtude do
caos instaurado na terra devido aos eventos turbulentos do final do Reino Antigo e Primeiro
Período Intermediário. Nos Textos das Pirâmides esta relação é bem menos preponderante que
nos Textos dos Sarcófagos, uma vez que é o destino solar o proeminente, em detrimento do
osiriano. Não se encontram, inclusive, relatos formais acerca do mito de Osíris, o qual aparece
diluído nesta compilação263. Apesar de dissonante dos demais encantamentos presentes nos
Textos das Pirâmides, no tocante ao discurso apresentado, o encantamento 534 é relevante pois
destina-se a prover proteção contra Osíris, ao mesmo tempo em que se mostra hostil às demais
divindades ligadas ao ciclo osiriano, conforme se vê da fala professada pelo oficiante do culto ao
rei morto:
[...] Que Osíris não venha com suas más intenções; não abra teus braços
a ele [...] Que Hórus não venha com suas más intenções [...] Que Seth não venha
com suas más intenções [...] Se Thot vier com suas más intençoes, não abra teus
braços a ele [...] Se Isis vier com suas más intenções, não abra teus braços a ela
[...] Se Néftis vier com suas más intenções, diga a ela o seu nome de ‘Imitação
de mulher que não tem vagina’264.
Retomando as considerações sobre os inimigos, nos Textos nos Sarcófagos, há uma série
de encantamentos que se reportam ao oponente subjugado e ao fim dos combates, como é o caso
do encantamento 575:
263
Conforme observa Brandon (BRANDON, S.G. F. A problem of the Osirian Judgment of the dead. Numen. Vol. 5,
fascículo 2, abril de 1958, pp. 110-127) nos Textos das Pirâmides, é Geb quem fala aos deuses contra Seth, as “Duas
Verdades” são identificadas como juízes e Anúbis é possuidor do título de príncipe de d3d3.t, que significa “Corte da
Justiça”. Isto implica dizer que a Osíris é legado somente o papel de “salvador” da morte por sua identificação ao rei
morto. Veremos que nos Textos dos Sarcófagos, apesar da maior importância adquirida pelo destino osiriano, Osíris
também só adquire significação por sua associação ao falecido, e não está investido do caráter de juiz. Os deuses
Thot e Geb é que assumem papéis essenciais, seguidos por Atum e outras divindades de papel secundário no
julgamento como Uepuauet (“o abridor de caminhos”) e Anúbis.
264
FAULKNER, TP 534.
133
[...] Eis N. (que eu sou) saído neste dia na sua verdadeira forma de
espírito-akh vivo; Eu rompo o combate, eu ponho fim ao tumulto e procuro (a
ordem-maât) que está nos Mensageiros Luminosos [...]265
Desta maneira, é importante a observância, no “Diálogo de um homem com seu ba”, de
que a “salvação”, ou melhor, a restauração da situação é projetada para ações individuais no pósmorte, complementadas com a ajuda dos deuses, e não, como haveria de ser, na atuação do
monarca, o qual era, afinal, o responsável supremo por manter maat (a ordem) na terra. A
instituição da monarquia faraônica, crê-se, ainda estava enfraquecida, em razão de sua frágil
atuação durante um longo momento da história egípcia. Ao lado deste quadro tem-se, conforme
visto, o desenvolvimento da idéia de um julgamento no outro mundo que fazia a condenação dos
inimigos.
A construção de um imaginário da morte como horizonte utópico, neste sentido, pode ser
interpretada a partir dos acontecimentos sócio-políticos já trabalhados nesta dissertação. O
desenvolvimento da idéia de um “paraíso” no além, bem observado através do estudo das
concepções osirianas que vão melhor se desenvolvendo a partir de fins do Reino Antigo, e do
além como um local passível de se fazer a redenção contra os inimigos, projeta a idéia de bemaventurança para o outro mundo, uma vez que neste a situação é de desordem e calamidade. A
própria idéia de uma imortalidade individual, não mais dependente da morte do rei é fruto destas
transformações. Ora, se o monarca não dava conta de manter a ordem nem mesmo neste mundo,
e nem de assegurar a sua própria imortalidade266, o que garantiria que a morte dos súditos
estivesse assegurada? Era preciso buscar novas alternativas, muito embora estas alternativas não
fossem acessíveis a todos.
É por isto que, mais uma vez, não podemos deixar de lado os eventos históricos que
coincidem com o período no qual foi escrito o texto em questão, a fim de tentar estabelecer
paralelos entre a sociedade da época e as projeções de seus anseios inferidos a partir da literatura
produzida. O ceticismo em relação à vida é evidente, e as respostas para o porquê da existência
de uma postura como esta podem ser encontradas através da análise dos processos sociais
265
BARGUET, TS 575.
No “Diálogo de um homem com seu ba”, o ba atenta para o fato de que “os que erigiram seus momentos em
granito, que fizeram salas em pirâmides perfeitas de excelente qualidade, tornaram-se deuses, (mas hoje) sua mesa de
oferendas está abandonada, como se houvessem morrido à margem do rio sem descendentes”. A importância da
manutenção de um culto funerário é crucial para os egípcios e, nesta passagem, tem-se uma alusão aos reis dos
tempos áureos do Reino Antigo e suas monumentais moradas para a eternidade, as pirâmides, que agora se
encontram abandonadas.
266
134
ocorridos no início do Reino Médio, de quando data “O diálogo de um homem com seu ba”. É
um período marcado, ainda, pela tentativa de restabelecer um controle centralizado, após o
turbulento Primeiro Período Intermediário. Além dos reflexos sentidos pela suposta revolta
popular deste período, não é possível deixar de lado as conseqüências da disputa pelo poder entre
tebanos e heracleopolitanos. Certamente são lembranças cruéis presentes na cabeça das pessoas
que vivenciaram estes momentos, traumas provavelmente prolongados nas gerações posteriores.
Ipu-Ur chega mesmo a notar que “[...] o povo ainda tapa o rosto com medo do amanhã”, o que
nos faz concluir acerca da instabilidade e da fragilidade da ordem estabelecida.
3.2.2 O DESENVOLVIMENTO DAS CONCEPÇÕES OSIRIANAS SOBRE O PÓS-MORTE: O CAMPO DOS
JUNCOS E O CAMPO DAS OFERENDAS.
Doravante, estudaremos mais detalhadamente a evolução das concepções osirianas sobre a
morte, dos Textos das Pirâmides aos Textos dos Sarcófagos, a fim de melhor compreender as
possíveis transformações em relação às expectativas para um outro mundo, à luz das influências
dos processos sócio-históricos minuciosamente trabalhados alhures.
Entender as noções que permeiam o imaginário egípcio sobre a morte não é tarefa fácil.
Conforme já dito anteriormente, os egípcios acreditavam em pelo menos quatro formas de vida
após a morte: um destino na própria tumba, um destino celeste (este dividido em solar e estelar) e
um destino no mundo subterrâneo de Osíris. Contudo, dificilmente estas formas de imortalidade
aparecem isoladamente, e um mesmo encantamento freqüentemente faz relação a um ou mais
destinos possíveis ao morto. Dentro de cada um destes possíveis destinos, encontramos também
variações. Por exemplo: um destino celeste poderia ser junto ao deus Rá, ao deus Thot, à deusa
Hathor. Apesar de algumas serem consideradas formas mais prestigiosas que outras, no fim,
todas cumpriam o mesmo objetivo e teriam para os egípcios a mesma eficácia: conceder ao
falecido a imortalidade, e uma imortalidade junto aos deuses.
Um dos temas que se desenvolve de maneira mais acentuada nos Textos dos Sarcófagos é
a noção de “paraísos” no outro mundo. Comumente se atribui a uma vida no mundo de Osíris a
noção de paraíso entre os egípcios, contudo, da leitura dos Textos dos Sarcófagos foi possível
perceber a existência também de paraísos celestes e solares. É especificamente o
desenvolvimento desta idéia de “bem-aventurança” no outro mundo de que iremos nos ocupar
135
agora. O intento desta parte do trabalho é compreender as expectativas que os egípcios
projetavam para a outra vida, tendo em vista principalmente suas idéias sobre um “paraíso” no
outro mundo, com ênfase especial aos paraísos agrários, conhecidos por “Campo das Oferendas”
e “Campo dos Juncos”.
Da leitura dos Textos das Pirâmides, Breasted observa que estes textos projetavam ações
próprias do cotidiano do rei, as quais – esperava-se - subsistissem no outro mundo, como ser
vestido, ornamentado etc. Nos Textos dos Sarcófagos, não poderia ser diferente. Contudo, em vez
de expectativas pertencentes ao rei e sua corte, projetam-se nesses textos outros desdobramentos
do contexto natural e social do Nilo, mais adequados à realidade dos novos beneficiários da
literatura funerária.
Para que possamos entender melhor as expectativas dos egípcios em relação à morte,
devemos compreender, em primeiro lugar, quais os destinos que eles imaginavam serem
possíveis a uma pessoa atingir – o que, já se sabe, não eram poucos. Não se pretende aqui esgotar
a apresentação de todas as formas de imortalidade, e ficaremos restritos à apresentação daquelas
cujas representações são mais freqüentes nos Textos dos Sarcófagos. Já podemos adiantar,
contudo, através do encantamento 571, uma espécie de pano de fundo comum a todas as formas
de existência no outro mundo, que se liga à aquisição de abundância plena por toda a eternidade:
PARA CONSTRUIR UMA MANSÃO ENTRE AS ÁGUAS. O Nilo
está descoberto, aqueles que estão nas margens estão alegremente unidos, os
deuses-crocodilos estão felizes, Neith está contente, o deus do vinhedo e Sokar,
chefe em pdw-s, estão na distribuição de oferendas, e eles estão felizes e
contentes quando vêem a minha mansão construída entre as águas e entre as suas
mansões, que os seus rios estão drenados e suas árvores plantadas, enquanto
Sokar pertence a Rosetau. Milhares são as suas casas, dezenas de milhares são as
suas árvores, centenas de milhares são seus campos. É o deus do Nilo quem traz
a cevada, é a deusa do pântano quem traz sua ave, são os deuses crocodilos que
pegam peixe para mim, é Sekhmet que está em seu ano que traz seu rebanho
para esta minha mansão, é o cara de macaco que está sobre o céu polar que traz
navios a esta minha mansão. O deus do vinhedo está em seu jardim, Sokar, chefe
em pdw-s é seu tesoureiro, Sokar de Rosetau é meu administrador, e ele
reconheceu a propriedade; ele trouxe coisas boas, e ele as acumulou no altar das
capelas desta minha mansão267.
Dentre as formas celestes de imortalidade, as mais proeminentes são aquelas associadas à
Rá e ao deus Thot (este especialmente enfatizado no Livro dos Dois Caminhos). No
267
TS 571.
136
encantamento 1099 tem-se uma longa descrição de um destino associado ao deus Rá, que
consiste na apresentação de uma série de benefícios conseguidos através da sua relação com a
divindade solar, que seriam desfrutados por toda a eternidade. Apenas para exemplificar, veja-se
a passagem final do encantamento:
Eu irei em sua barca, eu ocuparei meu trono, eu receberei a minha
dignidade, eu mostrarei os caminhos de Rá e das estrelas. Eu sou aquele que
opôs o destruidor que veio para colocar fogo em sua barca, no grande quarto
polar. Eu sou aquele que os conhece pelos nomes, e eles não atacarão a sua
barca enquanto eu estiver nela, porque sou eu quem faz as oferendas.268
O objetivo final do morto seria, portanto, estar a serviço de Rá, acompanhando-o em sua
barca e afastando os eventuais inimigos que quisessem prejudicar o andamento da viagem.
O destino que mais interessa aos propósitos desta dissertação é o dos paraísos agrários,
chamados de Campos dos Juncos e Campos das Oferendas. Para que fosse possível descer a eles,
havia uma preocupação em obter um barco, uma vez que as fronteiras destas localidades estavam
circundadas por um caminho de águas. Para conseguir esta façanha, no momento em que o morto
chegasse às docas ele deveria convencer o barqueiro que lá estava a lhe dar um barco, e os meios
pelos quais ele conseguiria fazer isto estão arrolados nos encantamentos 397 e 398, que narram
um diálogo entre o falecido e o barqueiro.
Eis a situação inicial: “N” chega até o barqueiro, faz-se ver e pede a ele que acorde Aquet.
A isto, segue-se um interrogatório por parte do barqueiro, querendo saber quem é a pessoa que
acaba de chegar, o que pretende e porque ele deveria atender ao pedido feito. “N” responde às
questões propriamente e a fala a respeito do barco que deveria ser trazido para ele. Como um
artifício de convencimento, o morto relata alguns benefícios que poderiam ser concedidos ao
barqueiro caso fizesse o que está sendo pedido. Fala-se em um decreto que seria feito em seu
favor, garantindo que ele nunca mais pereceria nem se tornaria vazio.
Visando confundir o falecido, o barqueiro insiste em perguntar o porquê de se conseguir
o barco, uma vez que a embarcação não estava em bom estado, com uma série de partes de
faltantes. A intenção seria a de fazer “N” desistir da idéia de prosseguir. Contudo, o
encantamento mune o falecido das respostas corretas a serem dadas, o qual recita as palavras
mágicas.
268
TS 1099.
137
Depois disso, o barqueiro quer saber se “N” está completo e equipado, aludindo à
importância do morto estar regenerado – e, portanto, de ter passado pelo Ritual de Abertura da
Boca – e da magia que deveria carregar consigo durante a jornada pelo outro mundo. Provando
possuir estas faculdades, ao morto é questionado o que fará caso consiga alcançar o lado oriental
do céu, ao que responde: “Eu governarei cidades, eu governarei vilas, eu conhecerei os ricos e os
pobres, eu farei pães para você quando for rio abaixo e pães redondos quando for rio acima”.
Para saber se “N” possui o conhecimento necessário para provar a sua legitimidade como
merecedor de habitar os domínios de Osíris, exige-se que prove conhecer os caminhos pelos
quais passará e quais os seus nomes. Neste momento, o barqueiro acorda Aquen.
Novamente são feitos questionamentos a “N”, para saber quem ele é, se está completo,
equipado, e o que pretende. “N” pede o barco, diz-se a ele que estão faltando partes do mesmo e
“N” replica mostrando as formas de contornar o problema, tal como feito no diálogo com o
barqueiro. A última questão proposta por Aquet é aquela na qual o morto deve dizer quais os
nomes das duas cidades que estão no horizonte: Campo dos Juncos e Campo das Oferendas.
Este é o percurso que consta do encantamento 397. O encantamento 398 parece ser, senão
uma outra versão, uma continuidade do encantamento anterior. Nele é relatado o diálogo entre o
homem e o barqueiro, mas aqui o falecido precisa provar que sabe o nome das partes que
compõem o barco que deseja, associando-o a divindades, partes de divindades e localidades
geográficas. Conclui-se esta parte da jornada da seguinte forma: “ ‘Tragam-lhe um barco’;
porque ele é um espírito equipado, a tarifa foi trazida para ele. Que tu possas ir a bordo da
balsa, porque tu sabes o número de teus dedos”. Esta última frase se refere ao derradeiro
questionamento feito por Aquet no encantamento 397. Tendo dado um barco para “N”, Aquet
quer saber o que deverá dizer ao deus quando ele perguntar: “Tu me trouxestes um homem que
não sabe quantos dedos tem?”. “N” deve, então, contar seus dedos para que possa seguir em
frente.
O trecho a seguir mostra como “N” exulta por ter conseguido o seu passe para seguir a
‘Iw3wt:
Quão bom é descer à ‘Iw3wt; de fato, eu irei a ela quando o fogo se
extinguir. Saudações a ti, Olho de Hórus, que une os deuses em ti! O céu e a
terra tremem perante mim, os deuses os removem de seus lugares, e eles dizem:
‘É um espírito equipado que veio a esta terra, e ele é o espírito a quem os deuses
setentrionais, meridionais, orientais e ocidentais equiparam para seu benefício’.
138
Venha, para que tu me vejas adornado com um filete e vestido com o
toucado régio. Alegria me é dada, e o Lago dos Juncos esta cheio. Sua vegetação
e seus lagos estão em minha possessão, e eu navego por eles. Ó Hathor, que tua
mão me seja dada, e que eu seja levado para o céu; que eu sente entre os dois
grandes deuses para dar julgamento, e eu direi o que é verdadeiro, eu controlarei
os nobres e as plebes, que virão a mim curvando-se. Isto é bom.269
Podemos observar como “N” espera gozar de uma posição confortável no outro mundo,
exercendo seu poder no céu ao lado dos “dois grandes deuses”. A usurpação de uma insígnia
régia, o toucado, sugere que este era antes um local destinado a pessoas de importância, como o
rei, ao qual “N” agora tem acesso.
Após ter sido levado ao Campo das Oferendas, um outro obstáculo se impõe ao falecido:
ele deveria, agora, passar pelos guardiões de seus portões, nem sempre dispostos a ajudar e que
queriam, muitas vezes, enganá-lo. As respostas corretas e a maneira certa de dissuadir os
guardiões são fornecidas pelos encantamentos 404 e 405. Estes encantamentos dão a entender
que, passando pelos portões, o morto chega a um certo distrito de Khemennum, no qual encontra
novamente um barqueiro. Para embarcar, o morto deve repetir os nomes das partes que compõe o
barco, como na passagem citada anteriormente. Assim, “N” chega a seu destino:
Isto significa sair na presença da Grande Enéade que está em Heliópolis,
que vem alegremente encontrar este espírito. Este espírito deve se prostrar em
seu ventre, e ele deverá dizer: ‘Eu vim aqui para vos saudar, senhores de
possessões que estão na eternidade, que estão nos limites do infinito. Eu
atraquei, meu bolo está assado, meu pão está em Pe, minha cerveja está em Dep,
eu possuo oferendas, e minhas oferendas são pão e cerveja, vida, bem-estar,
saúde e um caráter limpo, bem como sair em qualquer forma que eu desejar no
Campo dos Juncos.
A Grande Enéade que está no Campo dos Juncos deverá dizer: ‘ Dê a ele
um bolo-sns, um jarro de cerveja, e uma porção de carne, e ele deverá comer
disto, e ele não sairá para sempre e sempre’.
O Grande Tribunal que está no Campo dos Juncos deverá dizer: ‘ Dê a
ele uma pedaço de terra, com cevada de três cúbitos de altura. Os Seguidores de
Hórus deverão cortá-la para ele no primeiro ano, e ele deverá mascá-la e esfregála em seu corpo, e seu corpo será curado como os de todos eles’.
O Grande Tribunal que está no Campo dos Juncos deverá dizer: ‘Deixeo cantar e dançar e receber ornamentos, deixe-o jogar damas com aqueles que
estão na terra, que sua voz seja ouvida mesmo que ele não possa ser visto; deixeo ir até a sua casa e inspecionar seus filhos para sempre e sempre’.
Este espírito deverá dizer: ‘Eu vim aqui para que eu possa inspecionar
meus filhos e para receber o vestuário, porque eu sou o Mordedor em seu
tumulto, eu sou o babuíno com o nome forte; eu sou o ... que luta teimosamente
269
TS 398.
139
e derruba a confederação de Seth. Eu vim aqui falando e recitando o Livro das
Palavras Divinas’270.
A tônica do encantamento é dada, primeiramente, à questão das oferendas, mostrando a
sua importância para a sobrevivência do morto na outra vida. Outro elemento relevante é que, no
Campo dos Juncos, o morto que possuísse este encantamento teria a possibilidade de adquirir
algumas posses, cujos frutos ajudariam também, a purificá-lo. Por fim, tem-se a necessidade de
inspecionar os filhos na terra como um dos elementos principais da parte final deste
encantamento, provavelmente para saber como estavam cuidando do andamento dos negócios
deixados na terra e da manutenção de seu culto funerário.
Percebe-se que, no encantamento 398 o morto objetiva uma posição proeminente no
Campo dos Juncos, ao lado dos deuses. Aqui, o caso é diferente. Não só não se alude à aquisição
de um lugar distinto nesta localidade, como é deixado claro que o morto deveria venerar os
deuses da Grande Enéade que se encontravam lá. Isto se dá provavelmente em virtude da
justaposição de diversas variações concernentes às formas de se viver no outro mundo. Isto prova
a existência de uma forte hierarquia social no que toca à existência além morte: havia aqueles que
poderiam esperar gozar de posição proeminente, outros de uma posição um pouco menos
favorável e, finalmente, aqueles que passariam a eternidade trabalhando a serviço de alguma
divindade, como veremos mais adiante.
Os encantamentos 464 a 468 dos Textos dos Sarcófagos descrevem a vida no mundo de
Osíris, chamado Campo das Oferendas (Hetep), e que é o que mais se assemelha a uma idéia de
Campos Elísios ou de “paraíso”, destinada a abrigar os mortos em sua nova vida. Segundo o
encantamento 464, era isto que se poderia esperar, em síntese, de uma vida no Campo das
Oferendas:
Eu remo nos seus canais, eu ganho suas cidades; minha palavra tem
relevância, porque eu sou mais prudente que os (outros) bem-aventurados, eles
não têm poder sobre mim. Eu equipo estes teus campos, Hotep, tua bem amada,
neles eu bebo, neles eu laboro e neles eu ceifo, eu não sucumbo nesse lugar, lá
eu copulo; lá, meus encantamentos mágicos são potentes. Eu não tenho críticas,
nem inquietude e meu coração é feliz271.
270
271
TS 405.
BARGUET, TS 464.
140
Este seria o local no qual o morto poderia, finalmente, “descansar em paz”. Note-se,
apenas, que o destino aqui reservado pressupõe também que o morto trabalhe nos campos de
Hotep, em clara subordinação do indivíduo à divindade. Ao mesmo tempo em que o
encantamento espelha a continuidade da vida no mundo dos mortos, no qual se poderia trabalhar,
beber, ter relações sexuais etc, estava-se a serviço do deus. O falecido poderia, contudo, livrar-se
desta sorte utilizando-se dos shabits, que fariam o serviço para ele no outro mundo:
ENCANTAMENTO PARA FAZER QUE OS SHABITS REALIZEM
TRABALHO POR SEUS DONOS NO MUNDO DOS MORTOS. [...] Ó vós,
shabits, que foram feitos para N, se N for recrutado para esta tarefa, ou se uma
obrigação desagradável for imposta a N, ‘Aqui estamos’, vós deveis dizer. Se N
for recrutado para vigiar aqueles que trabalham revolvendo novos campos, para
plantar as terras ribeirinhas ou transportar areia para o ocidente que foi posto no
oriente – e vice versa – ‘Aqui estamos’ vós deveis dizer sobre isto272.
PARA NÃO APODRECER E NÃO TRABALHAR NO MUNDO DOS
MORTOS. Eu como e eu engulo e eu sento como Hórus; a corda- hms é tecida
para mim273.
O encantamento 467 também se refere ao trabalho nestes campos e à importância de certo
conhecimento como pré-condição para deles desfrutar. Neste encantamento são também trazidas
as etapas pelas quais se deveria passar no Campo das Oferendas até se obter a efetiva
imortalidade neles:
Campo, eu vim em ti, minha atrás de mim, minha autoridade defronte a
mim. Senhora das Duas Terras, estabeleça meu poder mágico, para que eu me
lembre disto que havia esquecido. Eu estou vivo, sem sofrer detrimento nem
injúria, alegria me foi dada. Fui propício, fizei minha semente, recebi a brisa!
Eu vim em ti depois de haver descoberto minha cabeça e desperatdo
meu corpo. Eu fecho os olhos, pois brilho no dia da Vaca-Hesat.; eu dormi
durante a noite, eu restaurei o leite segundo seu nível, eu estou agora, em minha
cidade para fazer a vegetação florir. Porque eu sou este touro único. Elevado, em
lápis-lazúli, senhor dos campos do touro dos deuses, Sothis me fala a seu tempo.
Eu vim em ti depois de pegar o grisalho no terraço, porque eu sou a lua,
eu engoli as trevas.
Eu vim em ti para comer as minhas provisões e ter a minha disposição
aves e bovinos, e para quem me seja dada a caça d´água de Shu e daqueles que
seguem meu ka.
Eu vim em ti, eu costurei a veste e prendi o tecido, como Rá que está no
céu, a quem os deuses que estão no céu servem, porque eu sou Rá a quem
aqueles que estão no céu servem.
272
273
FAULKNER, TS 472.
TS 432.
141
Eu vim em ti depois de encher os canais, como Osíris, touro do abutre.
Porque eu sou o flamingo que comeu seu semelhante.
Eu vim em ti depois de ver meu pai e reconhecer minha mãe. Eu copulo
e pesco; eu conheço os buracos das serpentes, de maneira que eu estou
protegido. Aquele que conhece o nome deste deus, aquele que recompõe a boca,
senhor da saúde, com cabelo bem arrumado e chifres pontudos, ele pode ceifar, e
eu trabalho e ceifo.
Eu vim em ti, as oposições e impedimentos dos quais eu sou alvo, que
me seguem, são as oposições e os impedimentos de Hórus. Dá-me as cabeças,
para que eu coloque a cabeça de Hórus nos olhos de lápis-lazúli, agitando-a
segundo o seu desejo.
Eu vim em ti, meu coração e minha cabeça estão despertos e intactos,
portando a coroa branca, para que eu conduza os Seres Superiores e faça crer os
Seres Inferiores, e dê alegrias aos touros e chefes da Enéade. Porque eu ou o
touro, senhor dos deuses, que anda pela turquesa.
Eu vim em ti, após ter prendido o Grisalho no terraço.
Eu vim em ti, eu subo o rio, eu naveguei pelos canais dos chifres da
Senhora da Pureza, eu fixei a estaca de amarração nos canais superiores, eu
levantei o furacão, eu tirei o causador de problemas, e os destrutorem me
outorgaram louvores.274.
Em suma, o Campo das Oferendas é descrito como um local de abundância, repleto de
vegetação e de bens que não se esgotam. Tem-se ênfase como sendo este um local seguro para o
morto, no qual não há quem lhe possa fazer mal, prejudicar-lhe, por ser um lugar livre de
tumultos, lamúrias, apreensão e outros males, segundo caracterizado nos próprios encantamentos.
No Campo das Oferendas, que é situado em algum ponto do caminho de águas percorrido pelo
deus Rá em sua jornada pelos céus, o morto pode esperar desfrutar de uma vida semelhante à
existente na terra, dispondo livremente de certos recursos. Pode-se plantar, colher, pescar, cuidar
do gado e copular. Estes serviços são todos realizados na propriedade do deus, o que significa,
em última instância, que o morto é um servo da divindade. Contudo, ele não precisa realizar as
obrigações pessoalmente, pois “os deuses que estão no céu o servem”. Para adentrar no Campo
das Oferendas, enfatiza-se a importância da magia e de conhecer os nomes das localidades que o
compõem. O morto assemelha-se a uma divindade, embora esta associação não seja explícita –
fala-se que o falecido, um espírito poderoso, adentra no Campo das Oferendas em seu corpo feito
de lápis-lazúli e turquesa, materiais dos quais, acreditava-se, seriam feitos os deuses. Segundo o
próprio encantamento 467, o objetivo a ser atingido era:
274
BARGUET, TS 467 [grifos meus].
142
Ver os campos, cidades e canais, arar, ceifar, ver Rá, Osíris e Thot
diariamente, ter poder sobre a água e o ar, fazer tudo o que desejar como
alguém que está na Ilha do Fogo, com vida em seu nariz, e que nunca irá
morrer, como alguém que está nos Campos das Oferendas, onde estão seus
campos e suas provisões para todo o sempre275
Falou-se, anteriormente, na morte como um horizonte utópico, no qual se poderia esperar
“salvação”. Em complemento a estas idéias, irei me valer das considerações de Baines a respeito
das reações dos egípcios em relação à “aflição”. Creio que seu estudo será elucidador, na medida
que a tônica do paraíso após a morte, para os egípcios, é que o mesmo seja um local seguro e
livre de agruras. A magia é, por exemplo, um dos instrumentos de que disporia uma pessoa para
se valer contra forças cruéis. Isto é bem atestado na literatura funerária, que dava condições ao
morto de recitar certo conhecimento mágico nela contido para afastar os perigos existentes no
outro mundo. A aflição a que me refiro não poderia ser outra senão a morte, potencializada pelos
reflexos causados por um período turbulento como o Primeiro Período Intermediário, que em
muito influenciaram o conteúdo dos Textos dos Sarcófagos.
Baines observa que, na vida de um indivíduo, os pontos vitais de transição são
nascimento, puberdade, entrada na vida adulta, casamento e geração de filhos e, finalmente, a
morte. Há, porém, elementos que afetam a boa ordem destas transições, muitas vezes impedindoas. É o caso de doenças, morte prematura, desastres e assim por diante, todos estes fatores que
atuam de forma a não permitir que as pessoas acometidas por estes males assumam seu papel na
sociedade. Estes distúrbios são definidos pelo autor como “aflição”, em oposição às transições
regulares na vida, geralmente acompanhadas de ritos de passagem. Assim define Baines as
conseqüências negativas trazidas pela “aflição”:
Fontes ideológicas oficiais implicitamente apresentam os efeitos sociais
destrutivos – e causas – da aflição afirmando que a reciprocidade e a
solidariedade de gerações sucessivas são vitais à correta ordem das coisas276.
O autor continua dizendo que, quando as práticas religiosas se relacionam à aflição, é
profilática a observância de certos atos com o intuito manter as influências negativas bem
dispostas. O uso da mágica, neste caso, é fundamental, usando-se de amuletos, por exemplo.
275
276
Ibid.
BAINES, John. Pratical religion and Piety. JEA, n. 73. London: 1987. p.84.
143
No contexto que aqui nos interessa, tem-se o medo de que a imortalidade não pudesse ser
assegurada, pelos motivos já brevemente expostos alhures, comprometendo, portanto, a ordem
natural das coisas. Era preciso encontrar meios para solucionar a questão e, como religião e
magia andam juntas na sociedade egípcia, foi se valendo desta última que foram conseguidos os
meios de vencer a morte. O culto osiriano, desta forma, aparece como um “solucionador de
problemas”, pois, da mesma maneira que Osíris venceu a morte contra todas as expectativas,
poder-se-ia esperar que, associando-se a ele e a seus mistérios, a continuidade da existência
estivesse assegurada. Em situações de insegurança, perigo e vulnerabilidade, Norbert Elias define
a função social das idéias míticas e dos atos mágicos em uma dada sociedade:
[...] eles ajudam a tornar mais suportável a incerteza das situações que as
pessoas são incapazes de controlar. Protegem-nas de uma consciência plena de
perigos diante dos quais elas são impotentes. Servem como armas de defesa e
ataque em seus conflitos umas com as outras. Tornam as sociedades mais coesas
e dão a seus membros uma sensação de poder sobre acontecimentos sobre os
quais, na realidade, freqüentemente eles exercem pouco controle277.
Interpretação semelhante é a de Gertie Englund, a qual afirma que, nos momentos de
abalo da ordem, os mitos seriam uma forma de receber consolo e diretrizes para crises pessoais.
Esta noção é essencial para o contexto da “democratização”, pois o mito de Osíris foi utilizado
como um “porto-seguro” no momento em que o estado egípcio passava por um processo de
desagregação e de perturbação do status quo.
Conforme analisa Rosalie David, nem mesmo a morte era capaz de oferecer o consolo
necessário, uma vez que, neste momento, a certeza de uma passagem segura ao outro mundo
estava abalada278. Não havia mais recursos para construir e equipar as tumbas, que eram,
justamente, os seus garantidores. Mesmo quando se conseguia realizar tais atos, o caos em que se
encontrava o Egito provocava o medo de que houvesse a profanação de tumbas e corpos, com a
conseqüente privação da passagem para o outro mundo. A incerteza com relação à morte é
exposta, por exemplo, no texto egípcio conhecido como “Canção do Harpista”:
Ninguém volta do lugar (onde se acham)
para contar como estão,
para dizer o que precisam,
277
278
ELIAS, op. cit., p. 73.
DAVID, Rosalie. Religion and Magic in Ancient Egypt. Penguin Books: 2002, p.140.
144
para serenar nosso coração
até irmos para onde eles foram.
[...]
Faze do dia uma festa
e não te canses!
Eis que ninguém pode levar suas coisas consigo,
279
eis que ninguém que parte volta de novo!
A morte para os egípcios era vista também como o medo da extinção dos laços sociais. A
doutrina osiriana favoreceria, igualmente, estes laços, através da imitação dos papéis de Osíris e
Hórus, fazendo o elo entre duas gerações através da atuação do filho amoroso, representado por
Hórus, que presidiria a maioria dos rituais em favor de seu pai. Assim o faria o primogênito do
falecido. Verificar-se-á, mais adiante, que um elemento inovador dos Textos dos Sarcófagos são
justamente encantamentos visando o encontro do morto com sua família, e este desenvolvimento
pode ser explicado como uma tentativa de solução ao problema do medo da extinção do ser
social.
Não podemos, contudo, atribuir o desenvolvimento das crenças osirianas apenas a fatores
psicológicos, sob pena de se tornar uma justificativa insuficiente ao que ele representa. Devemos
entender a caracterização da nova vida no além também como uma projeção de expectativas
sociais próprias de seus beneficários, a exemplo da aquisição de uma posição privilegiada no
outro mundo e a manutenção de certas hierarquias.
Foi dito, anteriormente, que havia formas mais e menos privilegiadas de se viver no outro
mundo. Contudo, todas elas, de uma maneira ou de outra, fazem do morto alguém de importância
em sua nova vida. Veja-se o encantamento 702, como exemplo:
Para se tornar um deus do amanhecer e viver por meio dos mágicos. Os
que estão tremendo são jogados no chão, eu abri a porta dupla para Ele, que
brilha. Os governantes ... que cuidam dos dois campos de gafanhotos tremem;
um troveja e a pluma treme. O que O Grande possui é dado, mas o Pequeno
nunca ficará contente; ele que se levanta deu a mim (?), a mim, na Ilha do Fogo,
quando seu adormecer ainda não era conhecido, e mais ainda quando o Pequeno
não havia visto o que ele possui. Eu sei que sua água está completa, e vê, eles
sabem que eu sou o proprietário de terras, porque Rá está contra eles. Eu não
estou satisfeito com o meu séquito, porque eu não posso ver o que eles fizeram
para mim. Eu dou o que O Grande possui, eu pacifico O Pequeno, mas vê, eles
sabem que eu sou o deus do amanhecer, e é permitido que eu veja minha
comitiva e meu séquito. Vê, eu estou contente, porque eles me conhecem; eu sou
279
ARAÚJO, op. cit., pp. 373-374.
145
um deus da aurora. As plumas tremem quando Nut ascende, aqueles que estão
na tempestade tremem. Gemidos estão no céu desde a noite, porque eu mato de
fome Os Grandes e mato Os Pequenos pelo comando de Rá. Eu agirei como
alguém que é enviado a eles, os deuses, e minha voz é a de Wnwt; Rá ordenou
que meu pai (?) seja [...]. Ele é um deus da aurora; vê, seus mantos são
garantidos a ele, ele recebeu sua coroa atef, seu séquito se move para ele. Eu me
tenho como um deus da aurora, como um deus em sua própria forma, equipado e
florescendo na proa da barca de Rá. Eu trouxe meus documentos que confirmam
as oferendas para mim, minahs possessões são postas no abatedouro do deus do
vinhedo e eu estou contente em minha hora, porque eu sou alguém que dá
ordens a Rá e despacho para Hathor; Eu fiz o carregador das minhas oferendas
contente em meu corpo, porque Rá sabe que eu sou um deus da aurora280.
As informações contidas neste encantamento se tornam bastante interessantes
especialmente se retomarmos os textos autobiográficos analisados no primeiro capítulo, como o
de Ankhtifi. Neste, enfatizava-se a pessoa do nomarca como alguém benevolente, que alimentava
a população do seu nomo com os frutos provenientes de sua própria propriedade rural. Aqui, temse situação semelhante, na medida que “O Grande” auxilia “O Pequeno”, muito embora este,
freqüentemente, não dê valor a seus atos magnânimos. O falecido, neste texto, é um deus – e
inclusive dá ordens a Rá! - que possui propriedades rurais, e vemos como persistem as
hierarquias sociais do mundo terreno - “pequenos” e “grandes”, estando aqueles a serviço destes.
Ciro Cardoso, ao analisar o discurso do falecido neste encantamento, imediatamente o associa ao
de um proprietário de terras do Reino Médio, Hekanakhte, e questiona se o comportamento
presente em ambos os textos (o proprietário benevolente que dá o que possui aos “pequenos”, que
reclama por estes nunca se mostrarem satisfeitos e por não ver o que é feito, em troca, e ele), “[...]
não se trataria de um estilo que era socialmente esperado de um homem importante ao dirigir-se
a seus subordinados, mesmo quando fossem parentes seus, ou ao falar deles281.
De forma resumida, a vida esperada nestes paraísos agrários consistia em governar
cidades e aldeias, delegar autoridade aos mais capazes ou aos mais próximos, conhecer os ricos,
favorecer os pobres, proteger a todos, ser enobrecido pelos deuses no mundo subterrâneo e ser
adorado por pessoas comuns282. Adoração deveria ser dada a “N” diariamente, como consta do
encantamento abaixo:
Ó, N! Vem, para que tu vejas Osíris; a terra está cortada para ti, a
oferenda te é apresentada, reverência te é dada; isto significa que o rei virá. O N,
280
TS 720.
CARDOSO, Ciro Flamarion. A literatura funerária como fonte para a história agrária do Egito Antigo. Separata
da Revista de História. n.117. São Paulo, 1984, p. 111.
282
Ibid., p. 107.
281
146
vive e sê um espírito para sempre nestes teus seis festivais da eternidade, que são
o festival do quarto dia e o festival do oitavo dia, o msyt e o w3g, o festival de
aclamação e o festival de Sokar.
Ó N! Vem, que o seu ritual diurno seja celebrado para ti diariamente.
Ó N! Os deuses que estão no Mundo Inferior e os espíritos augustos
irão te enobrecer.
Ó N! Os nobres te venerarão e as plebes te servirão.
Em certos trechos do encantamento 334, por exemplo, o comportamento do falecido em
muito se assemelha àquele de um patrono, o qual caracterizamos anteriormente nesta dissertação.
É a função de entidade protetora arrogada pelo falecido que permite que o caracterizemos desta
maneira :
[...] Eu vivo, eu existo em cada feito, eu protejo os nobres dos deuses
– e vice-versa. Eu sou o protetor [...], eu sou exaltado em meu nome de Sistrumplayer, aclamação me é dada em meu nome de Khons. [...] Eu vigio os
perigosos, o obstinado [...] que guarda a barca “Sandália-de-Rá”. Prostai-vos!
Temai e tremai perante mim!283
Foi dito, anteriormente, que os novos elementos presentes na caracterização dos
paraísos agrários se assemelham à realidade física e social do Egito. Vejamos, portanto, o
encantamento 25: “Ò N! Foi-te dada uma porção de terra no Vale e a comida do Ocidente; é
poder, é discurso, é a abertura do Ocidente que está agradando o coração de Rá e satisfatória aos
corações de seu tribunal que vigia os homens. “Dê a ele”, diz Rá, “e conduza-o”. Que ele seja
bom para contigo na escadaria de qualquer tribunal ou qualquer corte e em qualquer lugar no qual
teu deus é bondoso para contigo”284.
A menção a cortes e tribunais como os expostos no encantamento acima é comum nos
Textos dos Sarcófagos, e se refere, provavelmente, a instituições existentes no mundo visível. É
Ciro Cardoso quem conclui por esta afirmação:
O acesso à terra, certas atividades agrícolas, a irrigação e questões
relativas à sucessão ou herança, aparecem organizadas por conselhos de anciãos
(em um caso identificados com à Grande Enéada Divina) como os que existiam
nas cidades e povoados egípcios. Esta informação é de grande importância, já
que – como o outro mundo era calcado estreitamente no próprio Egito – lança
alguma luz sobre o tema das comunidades agrárias egípcias, muito mal
documentado no que tange o Reino Médio285.
283
TS 334.
TS 25.
285
CARDOSO, op. cit. (1984), p. 108.
284
147
4 DOS TEXTOS DAS PIRÂMIDES AOS TEXTOS DOS SARCÓFAGOS:
INOVAÇÕES E DESENVOLVIMENTOS
No capítulo anterior cuidamos de apresentar alguns temas que se julgou serem relevantes
para a análise da “democratização” da imortalidade, a fim de compreender, através das fontes, as
influências mútuas estabelecidas entre religião e sociedade. Tais temas, conforme visto,
representam inovações no conteúdo da literatura funerária, e são parte de mudanças nas
expectativas da sociedade egípcia tanto em relação à vida quanto em relação à morte.
Neste capítulo procuraremos dar conta de algumas outras inovações trazidas pelos Textos
dos Sarcófagos no que diz respeito ao imaginário egípcio sobre a morte. Tendo em vista que o
período que analisamos é um período muito mal iluminado pelas fontes, bem como dificuldades
em se estabelecer a data precisa de elaboração de cada encantamento particular, tentaremos
associar o estudo destas inovações ao contexto de sua produção somente quando assim for
permitido. No mais, acreditamos que, através da percepção de mudanças no imaginário do pósmorte egípcio, possamos compreender também um pouco mais da sua dinâmica a respeito da
vida.
Os elementos novos ou que conhecem maior desenvolvimento nos Textos dos Sarcófagos
são muitos; escolhemos, portanto, os que julgamos terem ganhado maior destaque. A talvez mais
importante inovação da nova literatura funerária é o desenvolvimento de uma idéia de paraíso no
outro mundo. Este tema, contudo, já foi trabalhado no capítulo anterior, razão pela qual não o
148
exploraremos novamente nesta parte do trabalho. Isto não impede, todavia, que ele seja
recuperado, vez ou outra, na análise de outros encantamentos, pois veremos como os assuntos
acabam se interligando.
Outro ponto, também já trabalhado, é a possibilidade de um indivíduo obter imortalidade
por si próprio, sem que o rei tenha de ser o seu garantidor. Vimos que isto levou à divinização de
particulares no âmbito do pós-morte e uma maior aproximação entre os indivíduos egípcios e os
seus deuses.
Para fins deste capítulo, decidiu-se explorar de forma mais sistemática os seguintes temas,
que aparecem de forma particularizada nos Textos dos Sarcófagos: a importância da eficácia
ritual, em detrimento da eficácia material protagonizada na Era das Pirâmides; a importância da
junção do morto com a sua família no outro mundo e, por fim, a maior preocupação que passou a
existir em relação aos perigos que ameaçavam a obtenção da imortalidade.
Alguns elementos necessários à análise dos temas expostos já foram trabalhados em
outros momentos desta dissertação, como a importância da magia e a insegurança que passou a
existir em relação à vida após a morte. Lançaremos, contudo, nova luz sobre estes mesmos
elementos ao enfocá-los sob uma nova abordagem.
4.1 DA EFICÁCIA MATERIAL AO APROFUNDAMENTO DA EFICÁCIA MÁGICA
Breasted, em trabalho precursor acerca do desenvolvimento do pensamento religioso
egípcio, afirma que a Era das Pirâmides representa a “culminação da crença no equipamento
material como sendo completamente eficaz para assegurar a imortalidade para os mortos”286.
Partindo das idéias lançadas por este autor, avaliaremos de que maneira os Textos dos Sarcófagos
representam um desenvolvimento que aprofunda a importância do elemento mágico como meio
de obter a imortalidade, com uma concomitante diminuição na crença da utilização de meios
materiais para tanto. Diz Bresated:
A crença na eficácia da palavra mágica em benefício do morto
desenvolveu-se muito desde o Reino Antigo. Este é um desenvolvimento que
acompanha a popularização dos costumes mortuários das classes mais altas. Na
286
BREASTED, James Henry. Development of religion and thought in Ancient Egypt. Philadelphia: University of
Pennsylvania Press, 1972. p. 84.
149
Era das Pirâmides, como vimos, estes encantamentos estavam confinados nas
últimas pirâmides. Isto era concernente exclusivamente ao destino do faraó no
outro mundo. Eles foram agora largamente apropriados pela classe média e de
funcionários. Ao mesmo tempo emergem encantamentos similares, idênticos na
função mas mais adequados às necessidades de mortais comuns287”
Isto não quer dizer, contudo, que o elemento mágico não exercesse papel relevante na
compilação anterior, dos Textos das Pirâmides288, ou que se deixou de lado a preocupação com o
preparo de uma tumba e do equipamento funerário na “Era dos Sarcófagos”. O que se pretende
explorar aqui é a maior importância adquirida na crença de uma eficácia mágica como essencial à
obtenção da imortalidade, enquanto observamos uma queda substancial no empenho de
construção das “moradas para eternidade”, cuja expressão máxima são as grandes pirâmides de
Gizé.
Algumas hipóteses podem explicar este desenvolvimento, tais como as condições
enfrentadas pelos egípcios ao final do Reino Antigo e Primeiro Período Intermediário. Textos
como “As Admoestações de Ipu-Ur”, a “Canção do Harpista” e “O diálogo de um homem com
seu ba”, acusam o descaso e o abandono para com as residências dos mortos, vítimas de saques,
profanação de corpos e do esquecimento, pelos vivos, da memória dos que se foram, como
podemos perceber das seguintes passagens:
“Em verdade muitos mortos são atirados no rio:
A correnteza virou sepultura e o Lugar Puro virou torrente”
“Em verdade os que estavam no Lugar Puro são abandonados na terra
alta do deserto, os segredos dos embalsamadores são jogados fora”
“Eis que aquele que foi sepultado como Falcão jaz agora sem esquife:
levaram o que a pirâmides ocultava”
“Hoje não se navega mais para Biblo. Como obteremos cedro para
nossas múmias? Os sacerdotes são sepultados com seus produtos e os ricos
embalsamados com sua resina, (trazidos) de tão longe como Creta, (mas) já não
chegam (ao Egito)”289
Estes trechos, retirados das “Admoestações de Ipu-Ur”, além da situação exposta
anteriormente, permitem que vislumbremos também a existência de uma crise de ordem
econômica. A situação de invasão estrangeira, desordem e tumulto se reverteu também na
287
ibid, p. 272.
Afinal, a literatura funerária caracteriza-se por ser uma literatura mágico-funerária.
289
ARAÚJO, Emanuel. Escrito para a eternidade. Brasília: UnB, 2000. O Lugar Puro, que menciona o texto, é o
local de embalsamamento.
288
150
diminuição das atividades econômicas, a exemplo da exploração da madeira do Líbano. Ipu-ur,
fala, ainda, na diminuição da arrecadação de tributos “por causa do tumulto”, e menciona falta de
grãos (“o grão do Egito é, agora, de quem diz : ‘Chego e pego’”), carvão, madeira e produtos dos
artesãos.
A partir destes elementos, podemos concluir que deve ter havido uma conseqüente
diminuição de acesso a bens materiais também para a construção de tumbas e para a confecção de
outros preparativos relativos ao culto funerário. A imortalidade, portanto, estava seriamente
comprometida, uma vez que dependia em grande parte de meios materiais que a garantissem. A
insegurança com relação à morte é tema recorrente na Literatura Pessimista:
“Os que erigiram em granito, que fizeram salas em pirâmides perfeitas
de excelente construção, tornaram-se deuses, mas hoje sua mesa de oferendas
está abandonada, como se houvesse morrido à margem do rio sem
descendentes”290
“Os deuses que viveram outrora repousam em suas pirâmides, assim
como os bem-aventurados enterrados em suas pirâmides. Construíram casas,
mas seu local desapareceu. O que foi feito delas? [...] Suas paredes esfacelaramse, seu local desapareceu como se nunca tivesse existido!”291
Tendo em vista a situação das suntuosas tumbas de outrora, para cuja construção os reis e
nobres despenderam esforços colossais, começou-se a questionar a validade dos meios materiais
como asseguradores da imortalidade: só isto não seria mais suficiente. Esta é, portanto, uma das
explicações que podemos encontrar para a valoração cada vez maior do elemento mágico como
indispensável na obtenção da imortalidade, na medida que se configura como alternativa capaz de
assegurar a sobrevida, mesmo quando os elementos necessários a tanto não estivessem
fisicamente presentes, como podemos observar a partir dos encantamentos:
Para montar um sarcófago. Venha para ti a casa que Isis te fez, que Ptah
erigiu para ti em seu canto; a caverna da janela do céu da casa de Atum será
aberta; e o sarcófago que os patrícios levaram para o Leão Duplo será levado de
On, mas é uma mulher que irá tecer teu tecido. A mim pertence a inundação de
Osíris como Leão Duplo; a mim pertence a Casa do Pano nas águas da
inundação. Que eu seja exaltado entre o Guardião, pois eu sou Senhor do
Ocidente292.
290
“O diálogo de um homem com seu ba”, em ARAÚJO, op. cit.
“Canção do Harpista” em ARAÚJO, op. cit.
292
TS 626.
291
151
O encantamento acima se destina a prover um sarcófago para o falecido. Os egípcios
acreditavam em um poder que seria inerente às palavras – pelo simples fato de algo estar escrito,
significa que iria tornar-se realidade. Há uma série de outros encantamentos cujo objetivo é
equipar o morto com os bens necessários à vida no outro mundo. Há aqueles, por exemplo, que
garantiriam o banquete funerário:
Encantamento para o banquete funerário. Eu sou Osíris, filho de Geb,
nascido de Nut; o banquete funerário está diante de mim, e ele não ficará longe
de mim293.
Encantamento para uma mesa de oferendas. Meu pai Osíris está contente
com sua boca repleta de natrão; ele se tornou um deus em Nekheb294.
Muitas passagens dos Textos dos Sarcófagos preocupam-se com a construção de uma
tumba na necrópole, a qual seria importante também para que o morto pudesse desfrutar
corretamente de um dos destinos possíveis a uma pessoa após a morte, que era ressurgir na
própria tumba:
Cavando um tanque, plantando árvores Zizyphus, construindo uma
tumba na necrópole. Vem, é tu que conheces os deuses com caveiras, que
propiciastes teu sangue àqueles que existiram no passado. Vem, dá-me as
instruções, e refeição em direção à nascente para mim nesta grande mansão. Eu
sou o guardião deles, eu faço a frieza para aqueles que estão separando grãos.
Vem, ó Aquele da Faca Afiada defronte ao chacal que está em paz, dá paz a eles,
pois aqueles que estão radiantes o ajudam na grande tempestade. Vem, coloque
para mim esta corda-hp, dá-me as instruções, conserta esta linha de chumbo, que
eu possa estabelecer as diretrizes para estes deuses ... nisto, nos lugares sagrados
secretos, Os Indestrutíveis estão entre eles. Eu disse a eles e para seus
grandiosos pais: “Este é o dia no qual eles saíram do ninho nos braços de Heneg,
o Grande”295.
Construindo uma tumba para um homem na necrópole. Ó vós que estais
em vosso seio, que estais na confederação dos grandes, vinde, colocai esta
corda-hp para mim, colocai as aduelas para mim, fazei as diretrizes para mim,
trazei-me oferendas em alimento, propiciai o Grande em sua coroa-wrrt pra
mim, pois a mim pertence este altar. Todos os que guardam o altar de cada deus
ajudam a si mesmos296.
293
TS 599.
TS 591.
295
TS 115
296
TS 116
294
152
Estar em posse da magia tornou-se algo tão importante na nova compilação funerária que
dezenas de encantamentos têm a preocupação de garantir que nada pudesse retirá-la, que deveria
acompanhar o falecido por toda a trajetória:
Encantamento para trazer a mágica de homem até ele no mundo dos
mortos. Ó vós porteiros de Hórus, que trazeis a mágica de Hórus até ele como
sua grande proteção, e trazei esta minha magia a mim onde quer que eu esteja;
dizei o que eu devo saber e o que eu devo esquecer; examinai e curai, para que
vós possais trazer o Olho de Hórus a mim, cujos inimigos estão bem fixados no
fogo, cujos inimigos estão firmemente fixados por suas cordas. ‘Ó, minha
mágica, vem a mim!’ Minha boca está ciente e meus lábios disseram: ‘Vem
conforme meu desejo’ Vede, a minha boca está de acordo como meu desejo, e
minha mão está pura quando o recebe, (nomeadamente) o que deve estar nele;
meu coração não é ignorante de seu lugar, e está firme em sua base. Eu sei meu
nome, eu não sou ignorante a este respeito, eu estarei dentre aqueles que seguem
Osíris, junto com aqueles que estão na Suíte, aqueles que estão presos às
câmaras de Osíris, e aqueles que estão nos passos do trono da câmara secreta.297
O encantamento acima mostra algumas das vantagens concedidas pelo conhecimento
mágico no mundo dos mortos; por ele, uma pessoa teria ciência do que deveria ou não ser dito, o
que deveria lembrar ou esquecer, toda estas atitudes que iriam favorecer o morto no momento de
enfrentar os perigos existentes no outro mundo. A magia era o que permitia o conhecimento das
ações corretas as quais, por conseguinte, permitiam que uma pessoa pudesse viver eternamente,
conforme exposto no encantamento a seguir:
Encantamento para um homem ter poder através de sua mágica a fim de
que ele possa se estabelecer no mundo dos mortos. Sobek na água, Dedwen na
Terra-Zety, Ha no ocidente, Soped no oriente, eles trouxeram meu ka a meu
corpo, e ele estará na água com Sobek. Traze-o a mim, para que eu possa estar
no céu escoltando o grande deus. Traze-o a mim, para que eu possa lembrar-me
de mim e agir de maneira tal que eu possa viver298.
A referência ao crocodilo (Sobek), que neste caso iria engolir o ka do morto, aparece
também em outros encantamentos, e este animal deveria ser afastado em razão de suas intenções
297
298
TS 572.
TS 636.
153
maléficas que consistiam em engolir a mágica pertencente a um indivíduo, como consta do
exemplo abaixo:
Afastando um crocodilo que se aproxima para tirar a magia de um
homem. Afasta-te! Vá embora! Afasta-te, perigoso! Não venhas a mim, não
vivas de minha mágica! Que eu não tenha que dizer o teu nome ao grande deus
que te deixou vir: “Mensageiro” é o nome de um, e Bdt o nome de um.
O crocodilo fala: Tua face está virada para tua retidão. O céu cerca as
estrelas, mágica cerca teus estabelecimentos, e esta minha boca cerca a magia
que nela está. Meus dentes são afiados, minhas presas são as Montanhas
Cerastes.
O falecido replica: Ó tu com uma espinha, que trabalharia tua boca
contra a minha magia, não a leves embora, Ó crocodilo que vive de mágica299.
A idéia de que a mágica poderia ser “engolida” por determinados seres, pessoas ou entes é
muito antiga. O exemplo clássico é o do famoso “Hino Canibal”, uma tradição arcaica
incorporada já aos Textos das Pirâmides, que encontra também uma versão nos Textos dos
Sarcófagos300. Através deste hino, o rei comia os deuses, a fim de que, por meio deste ato canibal
adquirisse todas as faculdades divinas.
Os encantamentos que vimos até agora não tratam propriamente de uma inovação, na
medida que os Textos das Pirâmides também possuíam fórmulas mágicas destinadas a garantir o
bem-estar material do rei após a morte. O que temos, aqui, é um desenvolvimento maior desta
concepção, bem como novos encantamentos que começam a se desenvolver com o fim de
suplantar a importância de necessidades materiais em nome de outros elementos. A idéia, agora, é
a de que os encantamentos deveriam comportar tudo o que fosse necessário ao morto na outra
vida. Isto porque, caso, por exemplo, a tumba fosse destruída, as oferendas funerárias deixassem
de ser colocadas ou houvesse impedimentos de qualquer ordem à continuidade da manutenção do
culto funerário, os encantamentos inscritos nos sarcófagos dariam conta de todas as necessidades
do morto na outra vida e assegurariam a sua imortalidade.
Como dissemos, não deixou de haver uma preocupação significativa com a construção de
tumbas nem cuidado com o enxoval mortuário. A questão central que se impunha era a de que,
quanto mais meios que possibilitassem a entrada no outro mundo, tanto melhor. Se fosse possível
299
300
TS 342.
A versão do “Hino Canibal” existente nos Textos dos Sarcófagos encontra-se no encantamento 573.
154
contar com a ajuda dos encantamentos e mesmo assim conseguir equipar ricamente uma tumba, o
morto estaria duplamente assegurado.
Regina Hein mostra como a própria composição dos encantamentos visava aglutinar
inúmeras maneiras de garantir a vida no outro mundo. Muitos deles utilizavam-se da técnica de
sobreposição mítica, que consistia em, num mesmo encantamento, relacionar destinos
pertencentes a tradições diferentes. É o que ocorre, por exemplo, no encantamento 173 e, a este
respeito, diz a autora:
É sempre importante enfatizar que essa sobreposição de vários destinos
possíveis para os mortos não ocorre porque os egípcios tentassem garantir que,
ao menos, alguma daquelas representações fosse a “verdadeira”, e que essa
superioridade, em última análise, fosse o que garantiria a imortalidade. No caso
do último trecho acima [encantamento 173], vimos que a técnica de
sobreposição de imagens míticas visava tão somente a contextualizar, no
discurso, as necessidades de N na “outra vida”: N teria sua família no Oeste, e
suas refeições na barca solar. O fato de o encantamento nomear tanto o Oeste
quanto a barca solar fazia com que seu poder mágico incidisse sobre as forças de
regeneração envolvidas em ambas as descrições de paraíso. É esse “alcance” dos
encantamentos enquanto forças mágicas que explica a deliberada sobreposição
de imagens míticas para representar os vários aspectos da vida do akh no
“além”. Dessa perspectiva, simplesmente não é “prático” concentrar o poder de
um encantamento numa única versão possível do mundo imaginário
exclusivamente para manter a “coerência” interna do texto, ou mesmo as suas
filiações religiosas de origem301.
Com o intuito de esgotar tudo o que fosse necessário à passagem para o outro mundo e à
imortalidade, muitos aspectos se desenvolvem desde os Textos das Pirâmides. Passagens que se
referem a necessidades próprias dos seres humanos, por exemplo, ganham espaço significativo.
Vimos no capítulo anterior que vários encantamentos concediam uma vida semelhante à da terra,
com todas as suas necessidades asseguradas – desde comer e beber até manter relações sexuais
com uma mulher que efetivamente tivesse prazer ao estar com ele.
Muito embora ainda apareça de forma incipiente e muito longe da importância adquirida
no Livro dos Mortos, em alguns trechos dos Textos dos Sarcófagos começa-se a colocar a ênfase
no elemento moral como requisito para a obtenção de certas vantagens no outro mundo. Alguns
estudiosos vêem como causa deste desenvolvimento um certo “declínio moral” verificado ao fim
301
HEIN, op. cit., pp. 139-140.
155
do Reino Antigo e Primeiro Período Intermediário302. Esta interpretação sustenta-se, por
exemplo, na afirmação de Breasted sumariada por Brandon:
Breasted sustenta que, quando no período primitivo Rá era reconhecido como
juiz divino, a ênfase repousava na importância da justiça social nesta vida, porque Rá
era essencialmente um deus que governava no mundo presente; mas, quando Osiris
tomou o lugar de Rá no julgamento, uma vez que ele era governante dos mortos, a
moralidade tendeu a adquirir uma significância predominantemente no outro mundo303.
Penso que esta afirmação necessite ser repensada para o caso do Reino Médio e,
especificamente, para os Textos dos Sarcófagos. Em primeiro lugar, Osíris não aparece como juiz
dos mortos nestes textos, uma vez que o papel de juiz é compartilhado pelas divindades da
Enéade. Se formos avaliar a relevância maior ou menor dos deuses uns em relação aos outros,
veremos que é Thoth quem exerce papel preponderante, pois é ele quem proclama o morto justo
contra seus inimigos. O elemento ético apontado por Breasted aparece de forma não mais que
pontual nos Textos dos Sarcófagos não exercendo, portanto, importância predominante em tais
textos, como ocorrerá no Livro dos Mortos.
O destaque dado a atitudes assim denominadas éticas presentes por exemplo, em
autobiografias como a de Ankhtifi – vestir o desnudo, saciar os que têm sede e fome etc certamente funcionava como um facilitador à entrada no outro mundo, mas atribuo isto não ao
“declínio moral” apontado por Breasted e, sim, ao desenvolvimento de uma alternativa de
obtenção de imortalidade centrada no indivíduo, e não às expensas do rei. Talvez, realmente
houvesse um apelo ao “bom-mocismo”, conforme observamos das autobiografias e também a
partir do gênero dos Ensinamentos propagado durante o Reino Médio. Uma resposta possível
para a ausência de menção significativa a este elemento nos Textos dos Sarcófagos pode estar no
momento da própria gênese dos mesmos (final do Reino Antigo), que antecede o
desenvolvimento completo de tais concepções e traz em seu bojo muitas características ainda
pertencentes a períodos anteriores.
Dentre as menções à importância de valores morais nos Textos dos Sarcófagos podemos
citar o encantamento 789, que diz que “N praticou a equidade, sua abominação era a iniqüidade,
302
Cf. BRANDON, S.G. F. A problem of the Osirian Judgment of the dead. Numen. Vol. 5, fascículo 2, abril de
1958, pp. 110-127.
303
Ibid. p.113.
156
ele não podia vê-la”304 ou o trecho no qual o falecido se identifica à deusa Maat : “Eu sou Maat, o
desvirtuamento é minha abominação”305. No encantamento 28, são as virtudes morais que
justificam o privilégio do falecido:
Ò Isdes, fala a N. <Ó N>, é a tua retidão que faz o teu poder, é o teu
caráter que te faz nobre, e tu vives da comida dos falcões. Tu és a semente do
Grande que protege teu pai à frente dos Dois Conclaves, a absolvição é tua neste
dia como aquele que tomou posse do grande santuário-tnnt para tranferir [...] Rá
levantou teus membros, então, levanta-te, Ó, porque tu não morreste. Ó N, a ti
pertence o medo que veio de Isis a Hórus, quando ele foi tornado justo perante
seus inimigos que foram julgados contra ele naquele dia.306
Outra alusão pode ser encontrada na seguinte passagem, na qual o falecido explica o
porquê de uma pessoa como ele não poder comer fezes e outras coisas impuras: “[...] porque eu
sou puro entre os puros na presença dos Senhores da Eternidade, alguém que mastiga mirra e vive
idoneamente. Eu sou forte e eu atinjo o estado de benção”307;
Uma outra hipótese possível ao desenvolvimento do elemento eficácia mágica liga-se,
possivelmente, à introdução cada vez maior de elementos osirianos nos destinos de uma pessoa
após a sua morte. Como se sabe, o mito de Osíris adquire significação central nas crenças
funerárias, e sua encenação torna-se parte dos rituais mortuários. Portanto, assim como a
“feiticeira” Isis conseguiu ressuscitar seu marido por meio de sua magia, auxiliada também pelos
dotes mágicos de deuses como Anúbis, transportou-se este elemento para a literatura funerária. O
“Grande Hino a Osíris” destaca a importância da magia de Isis:
[...] Sua irmã protege-o,
ela desvia seus inimigos,
impede as ocasiões de distúrbio
proferindo os conjuros com a sua boca,
a hábil em sua língua
cujas fórmulas (mágicas) não falham,
perfeita na palavra de comando [...]308.
304
BARGUET, TS 789.
TS 229.
306
TS 28.
307
TS 194.
308
ARAÚJO, op. cit.
305
157
A literatura funerária, como vimos anteriormente, tem também o seu aspecto ritual, e os
encantamentos seguiam, provavelmente, uma ordem que acompanhava a execução de um rito
mortuário presidido por um sacerdote. A participação cada vez maior dos elementos osirianos,
que incluíam a encenação de seu mito e a realização de rituais como o de embalsamamento,
reforçaram o caráter ritual – e, conseqüentemente, mágico - desta literatura. Por isto, vale a pena
atentar para o que diz Shafer a respeito do significado dos ritos na sociedade egípcia:
Através do poder ritual, mudanças na força relativa de reis, nomarcas,
nobreza, sacerdotes, artesãos e camponeses eram trabalhadas. Pelo poder ritual,
alterações na balança da divindade e humanidade do rei eram acomodadas. Pelo
poder ritual, acesso ao outro mundo e sua integração a ele foram articuladas para
o rei e progressivamente também para uma maior parcela da população. Em
suma, através do poder ritual, o Egito era capaz de mudar enquanto permanecia
o mesmo309.
Devemos perceber, ao contrário do que muitos pensam, que a importância cada vez maior
concedida ao elemento mágico não significa que isto tenha sido uma alternativa para tornar a via
após a morte acessível àqueles que possuíssem sérias dificuldades em construir e equipar uma
tumba. Um elemento não exclui o outro, mas sim fornece maior segurança caso alguma
fatalidade venha a impedir que a imortalidade seja perpetuada. A eficácia mágica – e, portanto,
também ritual – contida nos Textos dos Sarcófagos dependia também de elementos ligados à
riqueza e poder, já que o simbolismo ritual espelhava o cosmos. Nele estava indexada também a
hierarquia social e graus de privilégio relacionados a elementos como local, duração, riqueza de
materiais e número de oficiantes310. Por isto, alguns poderiam esperar alcançar o destino maior,
como o de governantes universais junto a deuses como Rá e Osíris, enquanto outros deveriam
contentar-se com funções prestigiosas, mas menos proeminentes, e outros ainda viveriam a
eternidade trabalhando nos domínios rurais das divindades.
A proliferação dos encantamentos certamente transpassa uma outra questão já apontada
nesta dissertação: a da difusão da escrita. No Reino Antigo, a escrita era monopólio do rei e da
sua corte, e seu uso era feito com claros propósitos ideológicos a administrativos. Enquanto um
Estado altamente centralizado se manteve, as regras com relação à escrita permaneceram também
309
SHAFER, Byron E. . Temples, priests, and rituals: an overview. In.: ______ (org.). Temples of Ancient Egypt.
Ithaca, New York: Cornell University Press., pp. 19-20.
310
Ibid, p. 20.
158
por meio de um controle efetivo. Com a participação cada vez maior das elites provinciais no
quadro administrativo, fazendo uso da escrita e questionando as regras de decoro impostas,
conhece-se um processo de difusão da mesma e a proliferação de seu uso para outros fins que não
régios ou estatais. Como diz Baines,
Assumir que as preocupações de Estado impostas foram universalmente
aceitas é ignorar o fato que este sistema não durou e, portanto, que muitos o
tivessem questionado [...] Este grau de centralização e foco em uma única
pessoa não podia mais continuar311 .
As restrições impostas ao que podia e não podia ser representado pelas elites em seus
monumentos certamente não agradava esta parcela da população a qual, estando agora exercendo
poder crescente nos quadros administrativos provinciais teria também poder para questioná-las e
alterá-las, auxiliadas pelo fato de que o controle do que estava sendo escrito tornou-se cada vez
mais difícil. Difundida, a escrita deixou também de ser questão restrita ao circuito administrativo,
e podemos perceber a sua disseminação a outras esferas, como é o caso do desenvolvimento
literário do Reino Médio.
O fato de a elite ter deixado de ser privada da escrita para representar elementos próprios
de sua visão de mundo é vista no aumento dos elementos decorativos nos esquifes e na
composição dos Textos dos Sarcófagos, que passam a agrupar todos os elementos necessários a
uma vida após a morte e que não poderiam ser representados em épocas posteriores em razão das
regras de decoro. Frise-se, apenas, que ainda permaneciam regras referentes a um decoro, e o que
se nota neste momento é o alargamento de uma brecha relativa a estas concepções.
4.2 A REUNIÃO DO MORTO COM SUA FAMÍLIA
Para os egípcios, um dos piores males relacionados à morte era o medo de dissolução dos
laços sociais que ela poderia acarretar. A morte não era só a morte física mas, também, social,
com a privação do convívio com os demais. A literatura funerária, desde os Textos das
Pirâmides, preocupa-se em integrar o morto em uma nova comunidade, a dos deuses. É por isto
que a regeneração de suas faculdades físicas e mentais era tão importante – dessa forma, o morto
311
BAINES, op. cit. (1988), p. 207.
159
voltaria a existir como pessoa, estando apto a retomar suas relações na constelação social.
Dissolução, para os egípcios, implicava também em destruição312, e para tornar-se novamente
completo, não bastaria sua regeneração física e mental: sem a sua família, N estaria incompleto,
como consta do seguinte encantamento: “Ó Rá, Ó Atum, Ó Geb, vede, N está se dirigindo ao céu,
à terra, ás águas, N está procurando sua família no céu, na terra e nas águas, pois N está
incompleto”313. Isto porque, segundo Assmann:
Uma pessoa solitária não é capaz de vida, ou melhor, viva no sentido
pleno da palavra. Há de existir outra pessoa para levá-la pela mão e guiá-la. Por
isto mesmo, ela não está morta, enquanto existam outros para mencionar seu
nome, enquanto os laços de conectividade não forem quebrados. Portanto, como
os egípcios concebiam, uma pessoa viva em duas esferas, que nós podemos
distinguir como a “esfera física” e a “esfera social”. em ambas as esferas, o
princípio da conectividade servia para conferir e manter vida, e
correspondentemente, o princípio da disconectividade ameaçava e causava a
morte314.
Esta questão também envolve o problema da memória. Os egípcios acreditavam que uma
outra forma de continuar a viver, mesmo após a morte, seria existir nas crianças que estavam por
vir. A importância de ser recordado era extremamente importante, uma vez que, enquanto uma
pessoa fosse lembrada, ela existiria, o mesmo não ocorrendo com o seu esquecimento. O
encantamento 503 diz:
Eu subi em Shu, eu escalei nos raios luminosos do sol, isto significa que
meus pés e minhas mãos atingiram ... (?). A ser recitado por aquele que sabe este
texto, quando ele sair [à luz do dia] para que seu coração dure em qualquer
forma que uma pessoa deseje sair, e que ele ejacule sua semente seguramente na
terra, para que seus herdeiros existam para sempre. Sua alma não será usurpada
nem traída. Uma questão um milhão de vezes verdadeira315.
O texto do encantamento atesta a importância de se ter herdeiros, para que eles existam
para sempre. Dessa forma, a memória do falecido – acreditava-se, também seria perpetuada para
todo o sempre.
312
ASSMANN, op. cit. (2005), p. 57.
TS 141.
314
ASSMANN, op. cit. (2005), p. 39.
315
TS 503.
313
160
O restabelecimento dos laços sociais é também importante na medida que é necessário à
recuperação de seu status, prejudicado em função de sua morte. Para tanto, seria preciso também
ser aceito no círculo dos deuses para que se pudesse gozar de uma posição tão privilegiada
quanto aquela exercida na terra, para não ser diminuído em prestígio. Podemos afirmar, na esteira
de Assmann, que todas estas relações mencionadas, desde a reunião do morto com sua família até
o estabelecimento de um lugar social –propiciado pelo exercício de uma determinada função –
“[...] conjuram imagens de conectividade social, com o objetivo de reintegrar o falecido em uma
comunidade que acolherá aquele que foi separado da terra dos vivos”316.
Vemos a preocupação com a preservação dos laços sociais acentuar-se do Reino Antigo
em diante. Um dos elementos que ganha destaque nos Textos dos Sarcófagos são os
encantamentos que visam reunir o morto novamente com a sua família, estivesse ela no plano
terreno ou no outro mundo. Os laços sociais familiares têm uma função importante: é através da
família que se perpetua a memória social de um individuo.
A família que deveria ser “devolvida” ao morto, como pré-requisito para que ele pudesse
gozar plenamente de sua imortalidade, se encaixa no ideal de família extensa. Os encantamentos
131 a 146, que tratam especificamente a respeito da junção com os familiares, arrolam
exatamente quem era considerado “da família”:
Geb, chefe dos deuses, decretou que me seja dada a minha família, meus
filhos, meus irmãos, meu pai, minha mãe e todos os meus servos e dependentes,
estando eles salvos dos atos de Seth e do Numeroso por Isis, a Grande ao lado de
Osíris, Chefe dos Ocidentais. Geb, chefe dos deuses, falou que me seja entregue
imediatamente a minha família, meus filhos, meus irmãos, meu pai, minha mãe,
todos os meus servos e todos os meus dependentes, estando eles salvos de
qualquer deus ou deusa, de qualquer espírito macho ou fêmea, ou de qualquer
morto, homem ou mulher317.
A forma com que a família do morto seria novamente unida era através de um decreto do
deus Geb, chefe dos deuses, que se assemelha à outorga de um decreto régio. Além de filhos,
pais, servos, irmãos e demais dependentes, alguns encantamentos vão mais além nesta descrição:
Reunindo a família de um homem para ele no mundo dos mortos. Ó Rá!
Ó Atum! Ó Geb! Ó Nut! Vede, N desce ao céu, ele desce à terra, ele desce às
316
317
ASSMANN, op. cit.,(2005), p. 63.
TS 131.
161
águas procurando sua família, procurando sua mãe e seu pai, procurando seus
filhos e irmãos, procurando os amados, procurando seus amigos, procurando
seus associados e seus servos que trabalharam para N na terra e procurando suas
concubinas que ele conheceu, porque N é vós quem o Grande criou. [...]
Reunindo a família, pai, mãe, amigos, associados, crianças, mulheres,
concubinas, servos, trabalhadores e tudo pertencente a ele no mundo dos mortos.
Um encantamento um milhão de vezes correto.318
A idéia era reunir o maior número de pessoas possível pertencentes ao círculo social no
qual o falecido estava envolvido quando em vida. Além dos membros da família e criados, todos
os amigos e pessoas amadas de N deveriam ser reunidos a ele no outro mundo.
Por ser um elemento vital à continuidade de uma pessoa no outro mundo, reunir-se à sua
família, entes queridos e criados exigia que o falecido usasse de todos os meios de que dispunha
para convencer os deuses a lhe darem o decreto. Alguns encantamentos fazem uso da ameaça
caso N não consiga se juntar à sua família:
Se houver atraso, prevenções ou impedimentos em dar o pai de N a ele e
em liberar-lhe a sua mãe e juntar sua família, seu pai e sua mãe, seus homens e
mulheres; se houver atraso, prevenções ou impedimento em juntar com N seus
filhos e juntar pra N seus irmãos, seus entes queridos, seus amigos, seus
associados, e seus servos, que trabalharam para N na terra, a equipe será retirada
de Rá, serão retiradas as dobradiças selecionadas dos altares dos deuses, bolosp3t não serão amassados, pães brancos não serão misturados, pernas de bife não
serão trazidas para os matadouros do deus, não serão amarradas cordas, não
serão preparadas as balsas; mas, se o pai de N for dado a ele se a mãe de N for
solta para ele, e se for reunida para a sua família, seus pais, suas mães, seus
homens e suas mulheres, suas crianças, seus entes queridos, seus amigos e
associados, suas crianças e suas concubinas a quem o coração de N aceitou, e os
seus servos que trabalharam para N na terra, se for reunida para N a sua família,
que está na terra e no céu, que está na necrópole, que está no Abismo, que está
no local dos lamentos, que está no Nilo e na cheia, que está na Mansão do Maior
dos Touros, que está em Djedu, que está em Djedet, que está em On e Khem,
que está em Pe do Grande, que está em Kheraaha e que está em Abidos: então
bolos-p3t serão amassados, pães brancos serão misturados, pernas de bifes serão
trazidas aos matadouros do deus, as cordas serão amarradas, as balsas serão
preparadas, esta barca de Rá será navegada por esta tripulação de Rá que não
conhece nenhum desgaste319.
318
319
TS 146.
TS 146.
162
O destino da família, portanto, será o mesmo reservado ao falecido, que é neste caso o de
servir ao deus Rá em sua barca. Note-se que a ameaça feita em nome de N é gravíssima: além de
não serem mais apresentadas oferendas aos deuses, a barca de Rá será impedida de navegar, na
medida que esta tarefa só poderá ser realizada em equipe, por N e pelos seus. Não havendo barca,
Rá será impedido de realizar a sua jornada pelos céus, o que implicaria conseqüências para a
manutenção do equilíbrio cósmico. Ficando “preso” em algum lugar do trajeto, Rá – o sol – não
nasceria novamente no dia seguinte.
A função da família como responsável pelos preparativos fúnebres e mantenedora do
culto funerário não foi esquecida pelos sacerdotes que produziram estes encantamentos, e
parecem ser um dos motivos pelos quais ela é invocada:
[...] N juntou seus dependentes, para que a família de N pudesse vir a
ele. As massas serviram N, N fez um escrito para estes espíritos que estão
escondidos nos lugares do Ocidente, para que eles dêem um espírito a N, para
que eles possam criar a dignidade de N, para que eles possam acordar N quando
N dormir.320
Dar um espírito a N seria transformá-lo em um akh, que implica no correto preparo de
todas as etapas do ritual funerário, de modo a permitir o encontro de ba e do ka do que resultaria,
então, o akh. O morto também deveria reconquistar dignidade, que seria realizada pelos atos de
seus filho, Hórus321, e deveria de ressurgir da morte, acordando de seu sono com a ajuda de
dependentes e familiares.
Podemos distinguir, nos Textos dos Sarcófagos, alguns níveis de interação social,
destinados a definir o lugar de N no outro mundo. Em vida, “a posição que ocupa um egípcio é
definida antes de tudo por seu lugar no seio de sua família e pelas relações que realizava com
seus próximos em linha direta e em linha colateral”322. Vimos, acima, que esta forma de interação
social permanece, na medida que se devota importância à reunião com a família para manutenção
da posição gozada em vida. No Egito, a família nuclear é a célula principal de uma “casa” mais
320
TS 143.
A este respeito, diz Assmann: A dignidade de Osíris, o pai, repousa na posição de seu filho Hórus. O respeito que
os últimos (os deuses) adquirem por ele na terra e no céu também beneficia Osiris no outro mundo. Este é um fato
que Osíris deve aprender. Ele deve entender que é de seu próprio interesse permitir que seu filho permaneça neste
mundo, para manter sua posição e ‘falar por ele’. Havia, inclusive, um ritual cujo objetivo único era dissuadir o pai
falecido de seu incompreensível desejo de trazer seu filho com ele para o outro mundo (ASSMANN, op. cit. (1995),
p. 46.)
322
KASPARIAN, Burt. Famille et cosmopolitisme dans l´Égypte ancienne. Mediteraneé. P. 113.
321
163
vasta, de dimensões sociais e econômicas, a saber, a unidade doméstica, que pode ser dividida em
alguns tipos básicos, segundo Ciro Flamarion Cardoso:
1) a unidade doméstica simples é aquela em que o núcleo mencionado
estiver constituído por uma só família conjugal (um casal e os filhos que ainda
residam com os pais); 2) a unidade doméstica múltipla se caracteriza pelo fato
de, em seu núcleo, mais de uma família conjugal estar presente; 3) se famílias
conjugais que representem duas gerações sucessivas (um casal mais velho tendo
à volta seus filhos já casados e/ou suas filhas com os respectivos maridos)
constituírem o núcleo, tem-se a unidade doméstica expandida (que, afinal de
contas, é um subtipo das unidades domésticas múltiplas, porém, com uma
peculiaridade estrutural que vale a pena explorar); 4) por fim, pode acontecer
que o núcleo da unidade doméstica não se caracterize por uma ou mais famílias
conjugais, mas sim, por uma família extensa no sentido específico do termo, isto
é, casais ou indivíduos aparentados entre si em graus variados, que podem
chegar a ser numerosos, e mantêm sua subordinação à autoridade de um único
chefe (mesmo quando não residam com ele), que habitualmente centraliza o
controle dos bens disponíveis. Dependendo da longevidade do chefe, neste caso
diversas gerações podem coexistir na unidade doméstica323.
É em razão desta formação social que podemos encontrar, nos encantamentos, referências
não só a membros da família nuclear, mas a uma série de outros dependentes que provavelmente
estavam subordinados, no caso, a N, o chefe da sua unidade doméstica.
Outra forma de interação social é aquela apontada por Assmann, que visa o aceite do
morto entre os deuses, a fim de conquistar um papel e um lugar nesta nova comunidade que
substituam aquele desempenhado em vida.
O espaço cedido nos Textos dos Sarcófagos ao tema da união com a família, notadamente
um modelo de família extensa, pode ser conectado à importância cada vez maior conquistada por
este tipo de organização familiar, especialmente nas províncias. É, pelo menos, o que mostra
Moreno García ao verificar a participação da família extensa na administração e controle dos
templos a partir da VI dinastia324.
O autor observa que, durante a VI dinastia, a realeza impulsionou um processo de criação
de instalações agrícolas, chamadas hut, por todo o país. Cada um desses hut contava com um
governador e, segundo um estudo acerca de sua distribuição geográfica, afirma-se que estavam
323
CARDOSO, Ciro Flamarion. As unidades domésticas no Antigo Egito. Revista Cantareira. V. 3, n. 3 ano 4
(jul/2007). www.historia.uff.br/cantareira
324
MORENO GARCÍA, Juan Carlos. La família extensa em la organización social de Egipto. In.: CAMPAGNO,
Marcelo (ed.). Estudios sobre parentesco y Estado en el Antiguo Egipto. Buenos Aires: Ediciones Del Signo, 2006.
164
presentes em quase todas as províncias do Egito ao final do Reino Antigo. Curioso, contudo, é a
ausência de menções aos hut em localidades importantes como Elkab, El-Hawawish e Coptos.
Estas regiões eram conhecidas em função da importância de seus templos, de cujas
atividades participavam importantes famílias provinciais. Estas mesmas famílias, segundo
Moreno García, impediram de certo modo o estabelecimento de instalações agrícolas régias nas
mediações dos templos, porque as mesmas monopolizavam as atividades templárias, dentre as
quais incluía-se a administração das terras pertencentes ao templo.
Um exemplo da importância destas famílias nas regiões citadas é o do templo da deusa
Nejbet, em Elkab, o qual uma mesma família controlou por mais de oito gerações. Além do
diretor dos templos, que às vezes acumulava também a função de governador provincial – como é
o caso de uma linhagem de diretores do templo de Min, em El-Hawawish – os ramos menores
destas famílias ocupavam posições menores na organização do templo.
Através destes exemplos estudados por Moreno García podemos atestar a importância
adquirida pelas famílias extensas nas províncias, e podemos encontrar aí, talvez uma explicação
coerente para o fato de a organização familiar extensa ter sido objeto de maior atenção por parte
dos sacerdotes encarregados da produção de encantamentos.
4.3 OS PERIGOS DO OUTRO MUNDO
A importância mais acentuada do elemento mágico nos Textos dos Sarcófagos liga-se
também ao desenvolvimento de concepções ligadas ao imaginário funerário, que passaram a
conceber o outro mundo como repleto de perigos os mais variados possíveis. A magia, portanto,
era uma das únicas armas de que dispunha o morto para enfrentar as adversidades. Como afirma
Breasted, “encantamentos e avisos mágicos que se provaram eficazes contra eles [perigos como
mortos maliciosos] talvez se provassem igualmente válidos no outro mundo”325.
Segundo Hornung, as diferenças básicas existentes entre os Textos das Pirâmides e os
Textos dos Sarcófagos é que, no geral, a vida após a morte é conceitualizada mais concretamente
325
BREASTED, op. cit., p. 292.
165
neste último, e seus perigos são representados mais dramaticamente326. Podemos, especialmente,
citar o Livro dos Dois Caminhos como exemplo concernente a estes dois desenvolvimentos.
O Livro dos Dois Caminhos tinha por objetivo guiar o falecido de maneira tal que ele não
fracassasse em sua jornada pelas localidades do outro mundo. Além de munir o morto com o
conhecimento necessário para enfrentar as adversidades, este guia continha, ainda, um mapa
representando a topografia do outro mundo, a fim de facilitar a sua orientação. Interessante
observar que, estando desenhado no fundo do sarcófago, este mapa estaria estrategicamente
localizado aos pés do morto quando o mesmo iniciasse a sua caminhada pelo outro mundo. O
objetivo era fazer com que o morto navegasse na barca de Rá, passasse pelos guardiões e
demônios do outro mundo, escolhesse um ou outro caminho para prosseguir e terminasse
atingindo Osíris no Campo das Oferendas327.
Uma outra novidade é o surgimento da serpente Apófis como principal inimigo no outro
mundo. O principal temor concernente a ela era o fato de que a mesma poderia engolir a barca de
Rá e, assim, comprometer a continuidade da existência do mundo328.
Os perigos que uma pessoa poderia enfrentar no outro mundo são infindáveis. Uma das
maiores preocupações que acompanha os egípcios desde a época das pirâmides era ser privado de
alimentos. Vimos que vários encantamentos destinavam-se a prover um banquete funerário para o
morto, visando justamente afastar o perigo da fome. Privado de alimentação, o morto seria
obrigado a comer seus próprios excrementos e a beber a sua própria urina, considerada uma das
maiores abominações para os egípcios. Ao entrar em contato com a sujeira, o morto deixaria de
estar purificado, condição que era pré-requisito para a entrada no outro mundo. Logo, a falta de
alimentos e o contato com as fezes e a urina poderiam levar o falecido “à morte dentro da morte”.
Dentre os inúmeros encantamentos que visavam proteger o morto de comer seus excrementos,
vejamos, agora, um exemplo retirado de um encantamento dos Textos dos Sarcófagos, intitulado
“Não comer fezes e não beber urina no mundo dos mortos”:
O que eu detesto duplamente, eu não comerei. Fezes são a minha
abominação, e eu não as comerei. Impurezas não entrarão nesta minha boca, e eu
não as comerei com a minha boca, eu não as tocarei com os meus dedos, eu não
as pisarei com os meus dedos dos pés, porque eu não comerei fezes para vós, eu
326
HORNUNG, Erik. The Ancient Egyptian Books of the Afterlife. Ithaca, London: Cornell University Press, 1999. p.
11.
327
LESKO, op. cit. (1971), p. 30.
328
Voltaremos, mais adiante, a falar a respeito da serpente Apófis.
166
não beberei urina para vós, e não ficarei de cabeça para baixo, eu não aceitarei
este pano de Shesmetet para vós, porque eu não comerei estas impurezas para
vós, que vêm das partes escondidas de Osíris.
‘Come!’ dizem-me eles.
‘Eu não os comerei por vós’
‘Por quê?’ dizem-me eles.
‘Porque eu estou calçado com as sandálias de Sokar’
‘Come!’ dizem-me eles.
‘Eu não os comerei por vós’
‘Por quê?’ dizem-me eles.
‘Porque a equipe que separou o céu e a terra está em minha mão’
‘Come!’ dizem-me eles.
‘Eu não os comerei por vós’
‘Por quê?’ dizem-me eles.
‘Porque eu trouxe neste galho o que está na acácia’
‘Come estes excrementos que vieram das partes escondidas de Osíris; de
que mais tu poderás viver?’ dizem estes deuses a mim. ‘O que tu vieste comer?’
‘Eu como pão de trigo (emmer) branco, eu bebo cerveja de trigo
(emmer) vermelho’329.
Vimos, neste encantamento, que os deuses do outro mundo tentaram forçar o falecido a
comer excrementos provenientes das “partes escondidas” de Osíris mas, munido das respostas
corretas, o morto afasta tal idéia. Ao dizer que “não ficarei de cabeça para baixo”, o falecido
também faz alusão ao contato com as fezes pois, estando de ponta-cabeça, acreditava-se que os
órgãos internos mudariam de lugar e os excrementos cairiam sobre a sua boca.
Contudo, o mais interessante deste encantamento está na resposta dada pelo falecido aos
deuses quando eles o perguntam “O que tu vieste comer?”. Ao responder que comerá pão de trigo
branco e cerveja de trigo vermelho, o falecido não faz referência a qualquer comida, mas sim, à
de que desfrutava a parcela mais privilegiada da população. Vejamos, agora, as informações
contidas em encantamento similar, também visando livrar o morto de comer impurezas:
[...] Então, diz aquele que não sabe contar: ‘Do que viverás tu nesta
terra, à qual tu deves vir para que possas se tornar um espírito?’
‘Eu viverei do pão de trigo (emmer) preto e da cerveja de trigo (emmer)
branco no Campo das Oferendas, porque esta distinção é minha mais do que de
qualquer outro deus; haverá afluências em Kher-aaka e afluência em On. O que
eu detesto, eu não comerei. Fezes são a minha abominação, e eu não as comerei;
impurezas não entrarão em meu corpo. Eu não irei a elas com minhas mãos, eu
não pisarei nelas com minhas sandálias’ [...]330
329
330
TS 173.
TS 203.
167
O pão preto e a cerveja branca eram tipos inferiores destes alimentos, contrariamente ao
pão branco e à cerveja vermelha. A explicação para o aparecimento de duas qualidades destes
mesmos alimentos é provavelmente devida à posição social dos donos dos sarcófagos nos quais
estavam escritos os encantamentos. Através deles podemos, portanto, perceber nuanças de
hierarquias sociais presentes nos Textos dos Sarcófagos.
Como vimos, é comum nos encantamentos que se relacionam ao ato de comer impurezas
que se pergunte do que o morto irá viver, já que não beberá urina nem comerá fezes.
Observamos, também, que estas respostas podem mudar de acordo com a posição social do
morto, podendo o mesmo gozar de alimentos melhores ou piores. Algumas pessoas poderiam
esperar contar com um repasto abundante no outro mundo, o que por si só era mais que
suficiente, enquanto outras poderiam ir mais além, vivendo daquilo que viviam os deuses:
O que eu detesto, eu não comerei. Fezes são a minha abominação e eu
não as comerei; impurezas não entrarão em minha barriga, eu não irei a elas com
as minhas mãos, eu não pisarei nelas com as minhas sandálias. Eu estou
protegido de vós que estais curvados, eu não andarei de ponta-cabeça. Ele que
me serve é o servo de Hórus, pois eu sou um de vós.
‘Do que viverás tu?’ dizem os senhores de Pe.
Eu viverei do que eles vivem, eu comerei o que eles comem; eu
viverei do que eles vivem, eu viverei naquela árvore agradável que está no
santuário, no qual vivem os seguidores de Rá, porque eu habito neste santuário,
por ser puro; eu entrarei nele e o salvarei331.
[...] ‘Que tu bebas’, dizem os moradores do horizonte para mim. ‘Que tu
vivas do que nós vivemos, que tu comas do que nós comemos, que tu bebas do
que nós bebemos’332.
Preocupações com a alimentação, embora façam parte da crença dos egípcios sobre a vida
pós a morte, provavelmente não estavam por acaso nos Textos dos Sarcófagos. A existência de
alguns encantamentos ligados ao problema da fome, da necessidade de abundância no outro
mundo podem ter relação a momentos difíceis, como aqueles relatados por Ipu-Ur e no restante
da Literatura Pessimista. Documentos da época se referem a períodos de fome, até mesmo na XII
dinastia. A partir do texto de um nomarca egípcio, Simpson analisa a existência de anos de fome
no início da XII dinastia. Diz o texto:
331
332
TS 202.
TS 187.
168
Agora, anos de fome vieram. Eu plantei em todos os campos do nomo
Oryx, de sua fronteira sudeste a sua fronteira nordeste, alimentando seus
habitantes, provendo sua comida. Não houve ninguém com fome aqui. Eu dei à
viúva da mesma forma que dei àquela que tem marido. Eu não fiz distinção entre
o grande e o pequeno e dei de tudo. Então altos Nilos passaram, tendo cevada e
trigo e tendo tudo, e eu não fixei taxas para os tributos333.
Simpson acredita que o “ano da fome” pode ser o ano vinte e cinco do reinado de
Senuosret I, baseado na inscrição de uma estela: “Um baixo Nilo passou durante o ano régio vinte
e cinco, e eu não permiti fome no meu nomo. Eu dei ao Alto Egito cevada e trigo. Eu não permiti
que a miséria tomasse lugar – até que altos Nilos passassem novamente”334
Dentre os animais que, acreditava-se, causariam mais perigos ao falecido estavam as
cobras e serpentes. Boa parte desta crença está ligada a uma tradição arcaica, na qual os corpos
eram enterrados no deserto, sujeitos às “visitas” constantes desses animais, em sua maioria
peçonhentos, e que eram também perigo para os vivos. De outro lado, há uma relação estreita das
serpentes com a mitologia, pois foi uma serpente que revelou a Isis o verdadeiro nome de Rá,
adquirindo, portanto, poder sobre ele.
Em alguns encantamentos, a cobra é chamada de “Destruidora de kas”, e a função do
falecido é “destruir a Destruidora”. Os meios para tanto poderiam variar desde pauladas na
cabeça (“[...] pedaços de pau me foram apresentados pelo grande Ocidente, e o corações dos
deuses ficam felizes quando me vêem no dia de esmagar as cabeças das serpentes manchadas
com estes pedaços de pau que me pertencem[...]”335), até mesmo comê-las, para que elas não
comessem os homens e se pudesse adquirir as suas faculdades mágicas (como na fórmula 370,
que diz que “o homem deve recitar este encantamento sobre isto, não permitindo que as estas
cobras o comam, mas ele comerá todas estas cobras”) . O falecido deveria dar conta, também, de
destruir o veneno das cobras, como apontado no encantamento 436:
Para afastar uma cobra e destruir seu veneno. O tu que cortas as cabeças e
separas os pescoços dos inimigos de Osíris; ó cobra-kenebaa, que não possui
333
SIMPSON, William Kelly. Studies in the Twelfth Egyptian Dynasty III: Year 25 in the Era of the Oryx Nome and
the Famine Years in Early Dynasty 12. JARCE. XXXVIII, 2001. p.08. O texto do nomarca analisado por Simpson
também traz à luz novos elementos da problemática do poder provincial, tão caro a esta dissertação. Observando a
forma com a qual o nomarca faz a datação da inscrição, percebe-se que a mesma é dupla: consta o ano de reinado do
faraó, e o ano de “reinado” no nomo o que segundo Simpson, representa a usurpação de um privilégio régio por um
nomarca.
334
ibid, p. 08.
335
TS 686.
169
nem braços nem pernas, estás orgulhosa do que está em tua boca [veneno], que
te foi dado pela tua mãe? Tua mãe sobe contigo, vá para ela que te tens como
fraca.336
As cobras são também consideradas animais impuros, em razão dos alimentos que
ingerem, sendo outro motivo pelo qual representam perigo ao morto: “Sai, ó cobra, nos
movimentos de Shu. Tu comestes um rato, o que Rá abomina; tu mastigastes os ossos de uma
gata putrefata”337.
Vemos na serpente Apófis, um novo inimigo contemplado nos Textos dos Sarcófagos, um
outro exemplo da aversão que os egípcios tinham a estes répteis. Leonard Lesko, ao analisar a
composição do Livro dos Dois Caminhos, verifica que o mesmo é composto de nove sessões e
comporta ao menos três versões diferentes338. Infelizmente, não dispomos aqui das ilustrações
que compõe este corpus documental, o que certamente seria bastante elucidador e de grande
valia. Os encantamentos do Livro dos Dois Caminhos aparecem agrupados em compartimentos, a
maioria deles cercados por portas de fogo, portões, paredes pretas, demônios etc, que são também
nomeados para que o morto pudesse conhecê-los e, assim, passar por todos eles. Esta é uma
tentativa inédita e deliberada de sistematização das características do outro mundo, especialmente
de sua topografia, visando a conciliação de diferentes tradições. Hornung afirma que o Livro dos
Dois Caminhos é fruto de um “fundo governamental” de pesquisas sobre o outro mundo a fim de
fornecer todo o conhecimento necessário ao morto – guiando-o ou advertindo-o dos perigos –
para que ele não perecesse339.
Cada sessão do Livro dos Dois Caminhos enfatiza um ou outro destino a ser alcançado
pelo morto, muito embora Lesko observe que, mesmo acolhendo tradições distintas, há uma
tentativa de conciliá-las. Para atingir seus objetivos no outro mundo, havia muitos percalços ao
longo do caminho, e é justamente a intenção de superá-los a mais explícita nesta compilação.
Dezenas de encantamentos têm por única função nomear os demônios que amedrontavam
os habitantes do outro mundo para que, conhecendo seus nomes, o falecido tivesse poder sobre
eles e continuasse sua jornada pelos caminhos do céu e da terra a salvo. No entorno do
encantamento 1144, por exemplo, aparecem os nomes de alguns demônios (“Afiado de raiva.
Guardião revelador”), assim como no encantamento 1039 (“Saltador. O Agressivo. Ladrão.
336
TS 436.
TS 370.
338
LESKO, LDC.
339
HORNUNG, op. cit., p.11.
337
170
Blasfemo”). Os demônios e guardiões dos portões dos distritos do outro mundo possuíam
geralmente forma animal, como o “Cabeça de Hipopótamo”, um touro com cabeça humana e um
crocodilo também com cabeça humana. Os demônios eram certamente o maior perigo a ser
enfrentado, que poderiam fazer obstáculos com o intuito de impedir o prosseguimento do morto,
a exemplo do “Fazedor de Armadilhas”.
A ajuda dos deuses não é tão proeminente quanto em outras partes dos Textos dos
Sarcófagos, mas exerce também sua função como no encantamento 1142, que são invocados para
oferecerem proteção:
Aquela cujo nome foi apresentado no meio de seu fogo. Eles, ‘Os
Miseráveis’, guardam esta casa e seu fogo. Cuidado, ó deuses ctônicos do barco.
Ficai de pé! Protegei! Rá, Atum, Nun, ancião, Shu, Iku, Nemu, e Hetep. A
mulher opôs o doente. Aqueles cujos nomes foram apresentados fizeram as
paredes dela. Eu sou aquele que Rá construiu, quem Shu construiu. Maat
pertence a este deus que está no meio do fogo, que não pôs os justos nele com
outro comando que saiu de sua boca no dia da proteção, sua alma a qual tu
comandastes me protegeu. Ele é retirado de seus ferimentos enquanto os
serviçais são minhocas sobre você. Eu sou Maat que está na narina. Se vós
vierdes me opor, então O Terrível será expulso dos deuses da terra e O Afiado
do Agressor, até eu afaste idas e vindas340.
O Livro dos Dois Caminhos relata, também, os perigos que rondavam a viagem na barca
celeste, um dos destinos principais a ser atingido pelo morto:
Eu vim aqui para ser içado ao horizonte para que eu possa mostrar Rá
nos portões do céu, e que os deuses regozijem ao me ver. O perfume de um deus
está em mim, e os destruidores não me atacarão, nem os guardiões dos portões
me excluirão. Eu sou o que está escondido no altar, encarregado da capela
daquele que está curvado, pois é este altar que eu alcanço na terra das tumbas341.
Um dos inimigos da viagem solar, como dito, era a serpente Apófis – também destruidora.
A fórmula 1126 nomeia Apófis e também apresenta figuras suas, bem como de seus oponentes.
No encantamento 1127 é possível ter uma idéia do que os oponentes da serpente fazem a ela:
“Palavras ditas pelo mágico ancião. Tu irás viajar? Ela será vista caindo diante de ti. O arqueiro
atirou nela. O homem do arpão a fará cair”. O encantamento 414 dos Textos dos Sarcófagos se
340
341
LDC 1042.
LDC 1060.
171
trata de uma fórmula com o intuito exclusivamente de afastar Apófis da barca de Rá. O falecido,
na condição de condutor da barca, deve afastar todos os perigos que ameacem a viagem – desta
forma, ele teria a sua participação fundamental na manutenção do equilíbrio cósmico:
Afastando Apófis da Barca de Rá. Tristezas para ti, ‘Imy-nhd.f, ó tu de
quem o Leão Duplo tem medo; vê, fogo saiu do céu para o interior da Caverna
do Rebelde. Ela fez sua rebelião contra Rá, ela cometeu roubo contra ele e sua
cabeça é guardada pelo Grande Demolidor. Uma luz foi acesa contra ele na
mansão de Sepa, suas algemas foram feitas firmes pelos deuses ... Que tu estejas
protegido!
Eu caí e rastejei, porque eu sou aquele do cetro w3, o grande poder no
pescoço de Geb. Ó séquito de Rá, a mão direita e a mão esquerda, tenha-me
como um completamente único, porque Rá falou comigo, eu afastei o rebelde,
eu tornei Apófis impotente, eu a removi, e o fogo sai do céu para o interior da
Caverna do Rebelde. Ela fez a rebelião contra Rá, ela cometeu roubo contra ele;
que Rá possa descer na Barca da Deusa, que ele viaje ao lado da Deusa do Fogo,
que aqueles que estão nos tronos do Ociedente regozijem. Que eu viaje em
segurança, Ó Rá, que tu possas me encontrar342.
Além das cobras, outros animais como porcos e crocodilos eram considerados perigosos.
Sobre os crocodilos, viu-se que o principal temor concernente a eles era o fato de os mesmos
serem considerados “devoradores de mágica”, prontos a engolir a magia possuída pelo falecido,
sem a qual seria impossível vencer no outro mundo.
Outra preocupação sincera dos egípcios era com não morrer uma segunda vez, que
significaria uma morte dentro da morte, conforme mencionado anteriormente, e implicaria na
total aniquilação do ser, representando um dos piores temores para os egípcios. A preocupação
com este fato liga-se estreitamente a uma insegurança constante em relação à morte, esta
desconhecida, e da qual nunca ninguém voltou para contar como era, como relatado na Canção
do Harpista. Vejamos um exemplo de encantamento “para não morrer uma segunda vez”:
Eu sou Atum, eu tenho poder como o Leão Duplo, eu sou ajudado pelo
deus mais velho, minha face foi feita de brilho pelo mais velho dos deuses. eu
como vida, eu vivo de ar, eu farei oferendas para a barca-hnhnw, eu serei
levantado da barca hnhnw para a barca de Khepri, ele me deixará entrar para ver
o que está lá, eu recitarei estas palavras aos juízes, e ele me deixará converter
nestes quatro poderosos espíritos quese movem para frente e para trás e vivem
depois de terem morrido. Que eu viva após a morte com Rá todos os dias, que
vive após a morte. E quanto a qualquer deus ou deusa, qualquer espírito ou
pessoa morta, ou qualquer cobra no céu ou na terra que vão para frente e para
342
TS 414.
172
trás, minha magia os afastará. O fogo subirá, a chama irá para as barrigas
daqueles que assustam, e o raivoso será contra eles como o Olho de Rá. Eu abati
e comi rebanhos pretos e brancos, e eu vivo em seus cascos; na verdade eu não
vou morrer, e na verdade eu não vou morrer uma segunda vez na terra.343
Havia um temor de que o coração “pesasse” ou “falasse contra” a pessoa falecida em sua
odisséia extraterrena, como podemos perceber através do caput de alguns dos encantamentos –
“não deixar o coração ficar pesado no mundo dos mortos”, “não deixar o coração de um homem
sentar contra ele no mundo dos mortos”. É constatando estas preocupações que podemos arriscar
dizer que o elemento individual aos poucos vai conquistando espaço nas compilações funerárias
acompanhando o movimento da sociedade em direção a uma “emergência do indivíduo”, já que
coração era, para os egípcios, sede do pensamento e da inteligência. Do estudo de “O diálogo de
um homem com seu ba”, por exemplo, foi possível encontrar elementos que apontam nesta
mesma direção. O ba, conforme explicitado no capítulo dois, é um conceito que pode ser
genericamente traduzido como “personalidade”, e a importância adquirida por este elemento em
um texto egípcio faz com que o foco da atenção se dirija justamente para o foro íntimo e
discussões de caráter pessoal. Isto não é exclusivo do “Diálogo de um homem com seu ba”. Nas
“Lamentações de Kha-kheper-Rá-seneb” vemos o coração como interlocutor do diálogo344.
Os egípcios também deveriam se precaver contra “O Pescador” e sua rede, já que uma
serie de encantamentos visa oferecer proteção mágica para escapar deste perigo:
Ó tu que olhas para trás, pescador dos canais, o agressivo, filho de Geb e
dela, que abriu a terra; ó vós, pescadores de mortos, ó vós, crianças de pais que
pegam os mortos, vós podereis enganar aqueles que estão por toda a terra, mas
não me pegareis nestas suas redes, com as quais pegais os mortos; engane
somente aqueles que estão pela terra, porque eu sei vossos nomes, a rede dos
deuses é uma rede-bolsa345.
Este medo liga-se ao receio de não conseguir atravessar o firmamento líquido do céu e,
conseqüentemente, de morrer nestas águas. Acontecendo isto, o pescador iria com a sua rede
“pescar” os mortos que ali se encontrassem. Como um gênio mau do outro mundo, o pescador
muitas vezes não esperava pacientemente pelos mortos, e construía armadilhas para que eles
343
TS 423.
Para as relações entre indivíduo e sociedade no contexto literário do Reino Médio ver: PARKINSON, Richard.
Individual and society in Middle Kingdom Literature. In.: LOPRIENO, Antonio. Ancient Egyptian Literature.
History and forms. Leiden, New York, London: E.J. Brill, 1996. pp. 137-155.
345
TS 473.
344
173
caíssem nelas. A fim de que a travessia corresse segura, sem a possibilidade de cair na rede do
pescador, encantamentos com pedidos de uma barca resolveriam o problema (“[...]que Aquen, o
desperto, traga-te uma balsa na qual ele equipa os espíritos para navegar”). Pela leitura dos
encantamentos referentes ao pescador, sabe-se que o morto deveria evitar um certo “Local de
Execução”, pois é lá que o mesmo se encontraria com uma armadilha, pronto para pegar os
mortos em sua rede.
As criaturas más do outro mundo eram os principais obstáculos à jornada pelo outro
mundo, sempre tentando enganar os mortos, obstar seu prosseguimento, matá-los, roubar sua
magia e uma série de outros males que os egípcios minuciosamente cuidaram de descrever a fim
de que nenhuma surpresa desagradável ocorresse no meio do caminho. Dentre estas criaturas más
os barqueiros do outro mundo são sempre desagradáveis, e é preciso um longo processo de
convencimento para persuadi-los a agir em favor do morto. Em alguns casos, o melhor seria
evitá-los, como consta nos encantamentos intitulados pelos egípcios “para reunir os dois rios”.
Estes textos permitiriam ao morto atravessar de uma margem do Nilo à outra, sem serem
obrigados a passar pelo barqueiro, o qual poderia ser recalcitrante. Assim, Isis e Néftis,
transformariam o rio em seus cabelos, unindo-o e facilitando a passagem do falecido:
Unindo as margens do rio. O cabelo de Isis está unido ao cabelo de
Néftis – e vice versa – a putrefação é deixada sem barco, os rios estão secos,
Geb engoliu as águas, as mãos de Shesmu estão unidas aos pulmões das Duas
Senhoras346.
Com estas considerações sobre alguns dos perigos existentes no outro mundo, procurou-se
apresentar alguns elementos referentes ao imaginário religioso egípcio, e atentar para o fato de
que houve uma preocupação crescente dos egípcios com a caracterização dos aspectos do outro
mundo. Há um empenho em esgotar todo e qualquer mal que poderia acometer o morto em sua
nova vida, justamente para assegura-la. O Livro dos Dois Caminhos se torna um bom exemplo
relativo às preocupações que rondavam as mentes egípcias, na medida que foram encomendados
com o intuito de oferecer uma proteção a mais ao morto no outro mundo, havendo um
detalhamento maior, por exemplo, os inimigos neste guia.
346
TS 168.
174
Podemos concluir não só por um desenvolvimento das concepções de outrora, mas por um
desenvolvimento pautado na insegurança em relação à vida após a morte e na preocupação cada
vez maior em assegurá-la.
Nos Textos das Pirâmides, a preocupação central é com a ascensão do rei para os céus,
suas formas de transfiguração e a conquista de sua soberania no outro mundo, havendo
encantamentos destinados à proteção quase que majoritariamente contra cobras e outras criaturas
venenosas. Percebe-se que estes encantamentos aparecem de forma isolada e fluida no texto,
geralmente sem conexão com o destino do morto, provavelmente colocados ali como uma
“garantia”. Já nos Textos dos Sarcófagos, embora não tão bem sistematizados, os perigos
nomeados são infinitamente maiores, e aparecem quase sempre contextualizados tendo em vista o
destino e objetivos do falecido.
O que gostaríamos de frisar é o fato de que o desenvolvimento de aspectos ligados ao
imaginário do pós-morte egípcio, que aparecem na literatura funerária, não é algo natural, muito
menos linear. É preciso que nos questionemos acerca destes desenvolvimentos, suas causas, suas
relações com o contexto do momento de produção para tentarmos entender um pouco mais da
lógica que permeava o pensamento dos egípcios antigos. Obviamente não conseguiremos
encontrar respostas a todas as perguntas, até mesmo em virtude de escassez de fontes do período
e da dificuldade em se compreender vários aspectos da mitologia egípcia, mas isto não significa
que o esforço em obtê-las deva ser deixado de lado. Buscando compreender qualitativamente os
encantamentos presentes nos Textos dos Sarcófagos, especialmente a partir das novas
preocupações inseridas na literatura funerária, poderemos adquirir elementos que nos permitam
vislumbrar de maneira mais completa as interferências presentes no processo de
“democratização” da imortalidade e entender um pouco mais sobre a sociedade da época
175
CONCLUSÃO
De todos os elementos apresentados nesta dissertação, não se pode deixar de concluir, em
primeiro lugar, a carga ideológica presente no sistema religioso egípcio. Quando se buscou
analisar a literatura funerária e o processo de “democratização” da imortalidade sob uma
perspectiva mais ampla, enfatizando seu perfil sócio-político, estava implícita, também, a análise
da função ideológica destes documentos, a qual estava presente, também, em todo este processo
de “democratização”.
Ora de maneira mais fluida, ora de maneira mais sistemática, o que se pretendeu neste
estudo foi avaliar, por assim dizer, a função social existente em um sistema simbólico como a
religião, tendo em vista a sua caracterização dentro de uma situação e de relações específicas.
Tentou-se analisar o contexto da produção dos Textos dos Sarcófagos associando-o às
relações de poder nele envolvidas, que vão desde o enfraquecimento da monarquia à construção
de nichos de poder nas províncias por parte dos nomarcas. Percebeu-se que a literatura funerária
e seus novos desenvolvimentos comportam também hierarquias sociais e valores próprios da
visão de mundo daqueles que os produziram e de seus beneficiários diretos.
Bourdieu assinala que as ideologias são duplamente determinadas, no sentido de que
[...] elas devem suas características mais especificas não só aos
interesses das classes ou das frações de classe que elas exprimem (função de
sociodiceia), mas também aos interesses específicos daqueles que as produzem e
à lógica especifica do campo de produção (comumente transfigurado em
ideologia da ‘criação’ e do ‘criador’) [...] 347
Por isto devemos ter em mente a existência de uma luta dos especialistas da produção
simbólica (no caso, os sacerdotes produtores dos encantamentos) pela imposição de um
determinado campo de tomada de posição ideológica, como fica claro, por exemplo, no Livro dos
dois Caminhos.
Isto não significa que devamos ignorar o elemento psicológico presente na composição da
nova literatura funerária, conforme se procurou demonstrar a partir da análise do
desenvolvimento da idéia de “paraísos” no outro mudo e da morte como um horizonte utópico.
347
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. p. 13.
176
Mas o fato de estes destinos estarem reservados somente a uma pequena parcela da população (e
não “democratizados” em um sentido amplo) indica que outros fatores atuavam e eram decisivos
neste jogo348.
Segundo Pierre Bourdieu, “os sistemas simbólicos cumprem uma função política de
instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação, que contribuem para assegurar a
dominação de uma classe sobre a outra”349. Para ele, os sistemas simbólicos reproduzem, de
forma transfigurada, o campo das posições sociais.
Vimos, por exemplo, que, nos Textos das Pirâmides, a imortalidade estava sujeita a regras
de decoro que excluíam a humanidade como um todo, à exceção do rei, das relações com o
divino no âmbito do pós-morte. Esta situação era aceita porque havia uma crença na divindade do
soberano, na qual repousava a sua distinção em relação aos demais seres humanos, e de que as
coisas deviam ser assim porque era natural que fossem. É interessante observar que algumas
hierarquias sociais eram também comportadas neste contexto, na medida que se abria a pessoas
pertencentes a um círculo mais restrito a obtenção da imortalidade por intermédio de uma
associação direta com o rei, proporcionando a elas status. No caso, ser enterrado ao pé da
pirâmide régia atestava a dependência do monarca não só na vida após a morte, mas também na
vida terrena, já que o faraó era em grande parte responsável por equipar e construir uma tumba
para estes funcionários.
A imortalidade do faraó, sua associação aos deuses e a restituição de sua posição como
governante supremo também no outro mundo reforçavam a idéia de que aquilo era necessário à
continuidade da ordem, e que a manutenção do bem-estar do povo egípcio estava centrada na
eficácia da instituição monárquica, dispensadora de benesses – como a própria imortalidade – e
de seu representante, escolhido pelos deuses. Neste sentido, vale a opinião de Bourdieu:
Os símbolos são os instrumentos por excelência da ‘integração social’:
enquanto instrumentos de conhecimento e comunicação (cf. a análise
durkheimiana da festa), eles tornam possível o consensus acerca do sentido do
348
É por isto que Bourdieu, inspirado nas idéias de Weber, diz que “se há funções sociais da religião e, em
conseqüência, a religião é passível de análise sociológica, é porque os leigos não esperam dela (ou somente dela)
justificativas de existir capazes de livrá-los da angústia existencial da contingência e do sentimento de abandono, ou
mesmo da miséria biológica, da doença, do sofrimento ou da morte, mas também, e sobretudo, justificativas sociais
de existir enquanto ocupantes de uma determinada posição na estrutura social” (BOURDIEU, Pierre. A economia das
trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2004. p. 86.).
349
BOURDIEU, O poder ... ,, p.11..
177
mundo social que contribui fundamentalmente para a reprodução da ordem
social: a integração ‘lógica’ é condição da ‘integração moral’350.
Os símbolos, ou os sistemas simbólicos, como é o caso da religião, têm a característica,
portanto, de propiciarem solidariedade social. No caso egípcio particular, vemos que a estrutura
estava voltada à manutenção da distinção do monarca e da sua posição na escala social351, sem
que isto parecesse algo imposto, mas natural – condição que, para Bourdieu, é sine qua non à
eficácia do chamado poder simbólico – propiciando, nas palavras de Traunecker, a coesão social
sob o cajado do faraó352.
Em havendo uma diminuição, ou melhor, um enfraquecimento do poder monárquico e a
participação de novos protagonistas pelo monopólio da violência simbólica legítima – nas
palavras de Weber – são postas em xeque outras expectativas próprias destes novos atores sociais
que, por meio da utilização de sistemas simbólicos como o religioso, visam legitimar a sua
posição na sociedade, bem como das hierarquias que ali se encontram. Lembre-se, apenas, como
apontado por Bourdieu, que as relações de poder dependem, em sua forma e conteúdo, do poder
material ou simbólico acumulado pelos agentes ou pelas instituições envolvidas nestas
relações353. Ao haver, por exemplo, destinos mais e menos privilegiados relacionados às
concepções sobre o pós-morte egípcias, percebe-se que há a manutenção de distinções dentro
deste esquema, ligadas em grande parte aos recursos que determinada pessoa dispunha para
confeccionar sua tumba – sem o risco de esta afirmação soar reducionista - o que determinaria
um tipo ou outro de conquista da imortalidade. Isto permitia, a estas pessoas, acumular poder
simbólico.
A ideologia de Estado presente nos Textos das pirâmides não atendia em sua totalidade às
necessidades de uma nova classe que se desenvolvia354, e que buscava justamente acesso a
“fatias” de poder e uma inserção significativa na sociedade, a qual a ideologia monárquica do
Reino Antigo repelia em nome de uma centralização na figura régia.
350
ibid., p. 10.
Distinção marcada, por exemplo, por uma imortalidade diferenciada que proporcionaria um destino prestigioso no
outro mundo, junto aos deuses.
352
TRAUNECKER, Claude. Os deuses do Egito. Brasília: UnB, 1995.
353
BOURDIEU, O poder ..., p.11.
354
Ver, p.e., RICHARDS, Janet. Society and death in Ancient Egypt: Mortuary landscapes of Middle Kingdom, em
que a autora faz um estudo acerca do surgimento de uma “classe média” no Egito.
351
178
A existência de novos destinos no pós-morte e suas novas caracterizações estão mais
voltadas, agora, às necessidades próprias de uma elite e diretamente relacionadas à realidade
social por ela vivenciada. A usurpação de prerrogativas régias, neste sentido, e a manutenção de
muitos elementos próprios do rei serviram como uma espécie de capital simbólico acumulado que
os permitiria afirmar a sua posição dentro da sociedade. Não só o faraó poderia participar e
colaborar ativamente na manutenção do mundo ordenado ao associar-se, após a morte, aos ciclos
regenerativos naturais, mas também agora os membros dessa nova elite reivindicavam este papel
em detrimento do exclusivismo monárquico
179
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