O feirante e o teatro - a feira do artista e o artista de feira

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LABORATÓRIO – PORTAL TEATRO SEM CORTINAS
TEATRO DE RUA MUNDIAL
Título: O feirante e o teatro: a feira do artista e o artista de feira. A permanência do
visgo que seduz
Autor: Alexandre Mate
Revisão: Kanansue Gomes
Arquivo: 06b.TRM.0002
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O feirante e o teatro: a feira do artista e o artista de feira. A permanência do vigo que seduz.
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O feirante e o teatro: a feira do artista e o artista de feira. A permanência do
visgo que seduz1
Quando o muro separa uma ponte une.
Se a vingança encara o remorso pune.
Você vem me agarra, alguém vem me solta.
Você vai na marra, ela um dia volta.
E se a força é tua ela um dia é nossa.
Olha o muro, olha a ponte, olhe o dia de ontem chegando.
Que medo você tem de nós, olha aí.
Você corta um verso, eu escrevo outro.
Você me prende vivo, eu escapo morto.
De repente, olha eu de novo.
Perturbando a paz, exigindo o troco.
Paulo César Pinheiro e Maurício Tapajós. Pesadelo.
Olha aí, ao consultar a origem histórica da palavra “Feira” pode-se levar um
imenso susto: do latim fḝrîa, a palavra refere-se, inicialmente, a dia consagrado ao
repouso, festa, férias; folga, descanso. A palavra ganha, já ao tempo de sua criação,
conotação dita vulgar, referindo-se indiretamente a mercado. Tal modificação
semântica ocorre em razão de muitos dos dias de férias ou de festas existirem como
consagração aos rituais de natureza religiosa e, por conseguinte, ao livre comércio, ou
ao comércio praticado tendo em vista data consagrada. Em boa parte desses casos,
muitas das práticas (e até hoje, também, em certos locais mais distantes do
capitalismo selvagem), o comércio concerne à troca, escambo. Importante lembrar,
nesse particular, que dia de feira ou de festa é aquele consagrado ao ócio de boa
parte da população. Ainda nesse particular, concernente ao dia de folga, muitos
desses dias eram consagrados à paz e à tranquilidade. Portanto, com o relaxamento
do corpo e distensão do espírito, homens e mulheres estariam mais dispostos a
relacionar-se com ações mais distanciadas de seu cotidiano. Até hoje é assim.
Apesar de ainda não totalmente explicado, de acordo com certa tradição cristã,
domingo é o dia de descanso, consagrado à paz, à tranquilidade, ao devaneio do
corpo e do espírito... Em oposição a este, os próximos dias àquele consagrado ao
descanso, em língua portuguesa, são cinco dias cuja designação recebe um adjetivo
1 Alexandre Mate. Texto publicado originalmente em:
http://entretenimento.r7.com/blogs/teatro/2013/08/01/coluna-do-mate-a-seducao-do-teatro-de-feira/. Acesso
em 31 de outubro de 2013.
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numeral ordinal a concordar com o substantivo feminino. Perdida a excepcionalidade
do dia de festa, tanto a feira livre como o teatro de rua, atualmente, acabam por ser
praticados em todos os dias da semana e com o mesmo sacrifício dos dois tipos de
categorias que representam no sentido de “prender” e estender certo estado de
distensão do transeunte.
De qualquer modo, a convenção do(s) dia(s) de descanso, pela permanente
desigualdade entre os que têm e os “despossuídos”, os dias de feira se estenderam
de segunda a segunda. Gente à margem dos sistemas constituídos. Gente que
precisa, literalmente, montar a cena (a raiz de lugar em que se (re)apresenta do grego
sk, correspondendo a skene). Artistas do teatro de rua e os feirantes têm muitas
semelhanças em seu trabalho, senão vejamos:
-Preparação do “cenário” ou Adequação ao cenário: 2No dia de trabalho, ambos
precisam sair muito antes de casa, com os apetrechos às costas e a super disposição
no corpo. Imaginemos que os apetrechos já estejam colocados no meio de transporte.
Ao chegar no lugar de seu trabalho, rapidamente, e por intermédio de sua força física,
artista e feirante transformam o lugar indistinto em espaço de trabalho, que
brevemente, “iniciada a função”, propiciará uma troca significativa de experiência.
- (Preparado o cenário): A função: Sob um sol (escaldante ou tépido), chuva forte
ou chuvisco, com ou sem aragem, os artistas da cena de rua, montado o cenário,
desenvolvem expedientes para chamar o passante. Durante a função, ambos
(feirantes e artistas) farão o possível para conservar e manter os sujeitos do processo
de troca atentos e propensos ao ato concreto:
- Moça bonita não paga, mas também não leva!
- Quem pode colaborar com o próximo número?
- Olhaí, olhaí... Tá fresquinho. Pode até apalpar pra sentir o gostinho da fruta...
- Tem alguém corajoso que pode colaborar?
Os bordões se seguem, permanentemente desafiando e conclamando os que
passem e os que se aproximam para intervir e dar completude à função.
Na rua, os que passam, os que compram, os que assistem etc., de modos
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diferenciados, mudam suas funções sociais: assumem novos papeis. Artistas de rua
precisam ser sedutores! Precisam ter carisma, precisam trazer para perto a gente que
passa. Desse modo, e pouco importam as condições exteriores (e tantas vezes as
interiores também), os artistas da rua “vendem seu peixe”. Desenvolvem, com o que
podem (e com o que não podem) o seu “a que viemos!”. Do mesmo modo como uma
feira ser constituída por diferentes mercadorias: frutas, peixes, bugigangas, bananas
etc., espetáculos também têm gêneros diferenciados, entretanto, os estratagemas de
conquista precisam ser reiteradamente repetidos. Trata-se, afinal de sobrevivência.
Assim, quando os feirantes vendem, quando os artistas recebem a participação
em determinada cena (cuja partitura está permanentemente aberta) ou quando
recebem o aplauso e a conversa final, para ambos, a função se cumpriu.
- (Desmontando o cenário): Completa a função: Novamente, e de modo
semelhante, feirantes e artistas guardam os apetrechos, desmontam a barraca,
carregam o meio de transporte usado e dirigem-se para suas casas. Às vezes, os
feirantes param nos entrepostos para reabastecer-se de mercadorias (mais horas de
trabalho); artistas, às vezes, param na 25 de Março para restaurar suas traquitanas de
uso.
Trabalho duro e estafante, mas que conferem alegria ao viver, e talvez, dos que
assim trabalham poucos gostariam de mudar.
Estranhos fenômenos de escolha para ser e estar no mundo.
Invariavelmente, o teatro e o comércio populares foram sempre praticados por
gente desterrada, à margem. Indispostos quanto ao prestígio e impossibilitados de
acesso ao construído e instituído pelos Estados, os expulsos do mercado,
teimosamente, criaram brechas para sobreviver e aporrinhar a paciência de quem
gostaria de ver tudo esquadrinhado (em seus respectivos quadrados...). Até onde se
conhece, de qualquer modo, isso foi assim. Antes, sobretudo, a contingência: vender o
que se produzia, o que se trocava, por uns; por outros, a expulsão da pólis, da ágora e
dos teatros... Com o fluir dos tempos, muitas vezes, a opção por estar à margem, por
querer estar mais próximo de outro estado é circunstância de aproximação. Portanto,
no mesmo (e adverso) sentido: feirantes e artistas de rua sempre estiveram fora do
mercado!
De qualquer forma, terminada a função, antes ou depois da parada para
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reabastecimento, os comentários sobre o vivido e o trocado caracterizam-se em
narrativas tão importantes quanto o futebol, a telenovela, as conquistas amorosas... A
oralidade reina antes e depois, as relações do cotidiano preenchem a vida.
Daqueles primeiros e aludidos dias de festa – que segregaram em centro e
periferia a desigualdade entre os que têm e os que, quase além de si, pouco têm –, a
feira do viver estendeu-se pelos tempos e, de resistência em resistência, permanece.
A gente, à margem dos sistemas, não conseguiu deixar tratados, compêndios, tomos
de saberes, mas, burlando tantas ordens, proibições e perseguições, legaram
episódios muito interessantes.
*
*
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Um pouco da resistência do teatro popular: o teatro de feira
De certo modo, o teatro de rua, apresentado no corpo vivo da cidade, se
caracteriza em certa distensão das atividades mais ligadas ao cotidiano dos
transeuntes, dos andarilhos, dos desmotorizados... Entretanto, a linguagem teatral, no
que concerne à recepção, é complexa, intensa, múltipla e paradoxal. A mesma cena
pode ser percebida por inúmeras, e às vezes, opostas interpretações. No teatro de
caixa, tudo é preparado para que o foco de atenção do espectador conflua para a
cena, mas no intermitente conflito de focos, tudo precisa fazer sentido maior para
prender a atenção dos sujeitos expectantes, exatamente onde tudo conflui para a
dispersão. Em razão disso, e pelo fato de múltiplas terem sido as experiências de
resistência dos artistas da rua e o desenvolvimento de expedientes para sobreviver é
que o teatro de rua, talvez de todas as modalidades à disposição, seja aquele que
mais se renova ou que mais potencializa seus achados, cujo cerne é a sempre
complexa relação, efetivamente participante do público.
De modo esquemático, parte do teatro popular, herdeiro da farsa medieval e da
commedia dell’arte (expulsa da França, no século XVII) fora substituído, nos palácios,
pelo teatro literário. Entretanto, durante o processo revolucionário (Revolução
Francesa), certos tipos de espetáculos populares3 receberam novo impulso e, ao se
3 Particularmente com relação ao teatro popular podem ser citados os fabliaux (expressões típicas de certo
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desenvolverem, permitiram o acesso a grande maioria da população. Dessa forma,
apareceram teatros para o mais puro entretenimento, conhecidos então como teatro
de boulevard (Gymnase, Ambigu-Comique, Gaieté, Variétés e Nouveautés). Nesses
espaços, as peças iam ao encontro do padrão de gosto da massa, caracterizada por
uma produção artística dominada por espetáculos fáceis e agradáveis. O novo público
burguês lotava as casas que apresentavam espetáculos populares, mas, ao contrário,
os teatros consagrados aos textos clássicos (como Odéon e a Comédie Française)
apresentavam seus espetáculos para casas vazias. Junte-se a isso também o fato de
a farsa, a comédia musical e o melodrama serem considerados gêneros menores, por
parte dos governos, e por isso não foram censurados. Assim, ao novo público
formado, o que parecia interessar era, fundamentalmente a distração e o riso das
situações e das personagens, que muitas vezes faziam alusões às personalidades no
poder e àquelas destacadas na vida social.
Arnold Hauser (s/d) afirma que durante o período que vai do Primeiro Império
(passando pela Restauração) até a Monarquia de Julho, os repertórios dos teatros de
Paris estavam divididos entre: Comédia em cinco atos e em versos (gênero literário
apresentado pela Comédie Française); Comédia de costumes em prosa (herdeira do
drama doméstico); Drama em prosa (drama sentimental); Comédia histórica (que já
não trata de personagens históricas, mas reapresenta-as como revistas de cenas
espetaculares); Vaudeville (comédia musicada ou mais precisamente comédia
entremeada com canções, gênero que antecede o aparecimento da burleta e da
opereta – nesta categoria estão autores como Scribe); Melodrama (forma mista que
mistura diferentes categorias dos gêneros apresentados acima).
As duas formas de maior interesse do público, neste momento histórico, foram o
melodrama e o vaudeville, na medida em que irão corresponder a gêneros que
tipo de fabulação medieval, repleto de obscenidades e escatologias e, normalmente, apresentado com
caráter libertatório) e os funâmbulos (do latim funambulus, em francês funambule, aludindo a certo
dançarino de cordas) que reaparecem em Paris adotando o mesmo espírito dos velhos teatros de feira, do
período medieval e, também, a tradição deixada pela commedia dell’arte. Segundo Léon Moussinac (s/d), o
ator ou mimo mais célebre entre os funambulers foi Jean-Gaspard Debureau (1796-1846), que se iniciara no
teatro como palhaço e acrobata, durante a Restauração. Debureau, mímico francês, ficou famoso em muitas
pantomimas, principalmente pela criação de Pierrot. Apesar de não reconhecido pelo próprio ator-mímico
Marcel Marceau, que aparece como renovador da pantomima de estilo, sua personagem mais famosa BipBip, “assez proche du Pierrot traditionnel” (bastante próximo do Pierrô tradicional) provavelmente deve ter
sido inspirada na de seus antecessores. Como influenciadores de Marceau, ele mesmo cita, dentre outros,
os nomes de Étienne Decroux (1898-1991), ator francês, professor e considerado renovador da mímica
contemporânea, que criou uma escola de improvisação corporal, ligada a mímica.
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efetuaram a transição entre o teatro clássico e o romântico e cujo objetivo caracterizase na distração, buscando reduzir os sentimentos e as fraquezas.
De qualquer forma, mesmo sem teorias e tratados a seu respeito, o teatro de rua
tem se renovado. Se hoje teorias da atoralidade, do “artista total”, referindo-se ao
intérprete que interpreta, canta, dança, narra etc. é moda; artistas de rua, pelas mais
diferenciadas necessidades, tiveram de proceder dessa forma. Afinal, para ganhar o
público, era preciso cativá-lo, se possível por todos os mais diferenciados sentidos. A
rua exige essa expansão e pluralidade.
Dentre os momentos em que a sofisticação, na condição de filigrana, teve de
atingir sua instância máxima, em relação à interpretação (priorizando gesto, fala,
canto, dança, narração) e ao espetáculo (desenho de cena, invenções, traquitanas
ressignificadas, cumplicidade com o público), antes do período em que os gêneros
acima foram desenvolvidos, pode-se evocar o chamado teatro de feira francês,
sobretudo aquele praticado no século XVIII.
Assim como a commedia dell’arte do século XVI correspondeu a uma síntese das
tradições cômico-populares desde a Antiguidade clássica grega, o teatro de feira
francês abrigou expedientes da commedia dell’arte, do vaudeville (do século XVII) e
de todas as outras formas em uso no século de seu auge (século XVIII) para
conseguir existir e sobreviver. De certa forma, por injunções que serão apresentadas,
a forma teve de ser rigorosamente tática; trata-se, portanto, de um teatro tático e
popular.
Depois do “despotismo pouco esclarecido” do cardeal Richelieu (1624 até 1642,
como conselheiro de Luís XIII), por meio de decreto, Luís XIV cria a Comédie
Française, em 24 de agosto de 1680. Por ingerência direta do Estado, certo tipo de
teatro – afinado aos interesses da dinastia dos luíses –, o Estado adota um companhia
teatral para, também e sobretudo, proteger obras clássicas que louvassem as glórias
da nobreza, seus valores e territórios, em todos os sentidos. Como em qualquer outro
contexto e lugar, evidentemente, talento e favoritismo se reuniram para selecionar os
profissionais que comporiam a companhia estatal. Portanto, se o critério “de seleção”
fundamenta-se em favoritismos obtusos, evidentemente, toda vez que se sentir
ameaçado, o bichinho protegido tende a ronronar aos pés de seu padrinho para, ao se
sentir protegido, rosnar ante a ameaça de seus concorrentes.
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No século XVII a produção teatral era apresentada dentro dos palácios e fora
desses, em todos os espaços públicos imaginados e possíveis. Afinal, o artista
precisava de moedas para sobreviver: viessem elas dos poderosos ou dos
desprotegidos. Como “os desprotegidos” precisavam, de fato, seduzir pela beleza,
capacidade de sedução, pela graça, pelos expedientes efetivos de participação etc.,
evidentemente, por questão tática e de sobrevivência, os procedimentos e repertório
dos populares sempre foram mais amplos e mais sofisticados (não era ou continua
não sendo possível lançar mão de expedientes mais realistas ou entrópicos com
relação à criação de cenas). Pelo fato de estarem mergulhados na cultura oral, a
gestualidade amplificada e alegórica nas apresentações dos artistas de rua, de certa
forma, e de modo a agradar na imediaticidade do gesto, explicita a universalidade e o
prazer do público em acompanhar o teatro de rua: mesmo que se perdessem as
palavras, lá estava o corpo a traduzir o (inter)dito. Desse modo, ao lançar mão de
propostas mais universais e amplas pode, também, explicar a suposta sofisticação do
teatro de rua: era preciso atrair e agradar às gentes de todas as idades, com
necessidades diferenciadas; gente que não sai de casa para ir ao teatro e que, se
apanhada (as gentes) a cena tem de ser maior do que a inquietude permanente da
cidade. Enfim, certo tipo de briga de Davi contra Golias.
Nesse tipo de contenda permanente, por entre o comércio das feiras, havia
companhias de artistas dedicados ao teatro de rua, e que, evidentemente, não
gozavam de nenhum tipo de subvenção, e dependiam exclusivamente da venda de
ingressos. Algumas dessas companhias apresentavam-se em duas famosas feiras de
Paris, a de Saint-Germain e a de Saint-Laurent. A primeira dela ficava montada do
início do mês de fevereiro à Páscoa (fim de março ou começo de abril), a de SaintLaurent ficava montada durante o verão europeu (de junho a outubro), em ambas
apresentavam-se os mais diferenciados tipos de artistas, com atrações em teatro,
mímica, pantomima, bonecos; números de dança e de canto (sozinhos ou
articulados); prestidigitação; acrobacias e malabarismos; diversas modalidades de
charlatanismo. As trupes de artistas populares, em suas barracas, e de modos
diferenciados a outros tipos de organização, apresentavam, basicamente, uma
mesma peça, que era repetida até não haver mais ninguém a assisti-las. Exatamente
por essa contingência, os donos ou principais responsáveis pelas companhias
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realizavam pesquisas quanto ao gosto popular e investiam, exatamente, naquilo que,
em princípio, tinham certeza, iria agradar ao público que ia às feiras com os mais
diferenciados interesses. Por questões de sobrevivência, era preciso investir – posto
que fora do mercado das mercadorias legitimantes do corpo alimentado – no mercado
das ilusões, dos arrebatamentos, da alegria, das novidades, da inversão social...
Cultura da derrisão e da inversão da estrutura social, como tão bem já comentou
Mikhail Bakhtin (1993).
As duas primeiras categorias, citadas anteriormente: a de atores e atrizes e a de
cantoras/es tiveram, além das imposições mais características de defrontarem-se, nas
aludidas feiras com os artistas da Comédie Française e aqueles da L’Opera (que
detinham a concessão exclusiva da palavra e do canto em Paris, respectivamente).
Pelas contingências persecutórias, os artistas de feira foram impedidos, em
determinado momento de suas trajetórias – tantos pelos artistas da primeira quanto da
segundo instituição, amparadas pelo Estado monárquico –, de dialogar e de cantar em
seus espetáculos, tiveram de inventar todo tipo de expediente para enfrentar as
proibições e conseguir sobreviver. Quanto à fala ou diálogo, diversos estratagemas
foram criados: cenas inteiras sem fala; cenas em que se apresentava o texto da
personagem e a réplica sendo repetida, de modo indireto, pela mesma personagem;
fala e réplica escrita (na forma de rolos ou na de cartazes ou por crianças vestidas de
anjos etc.); quanto às canções, elas apareciam também escritas, tocadas e o público é
quem cantava, sendo ou não regido pela/os atrizes/atores; com o canto acontecendo
muito fora da cena.
Segundo Robson Camargo Corrêa, concernente aos processos de driblagem da
autoridade constituída:
Se os elencos reais subvencionados caminhavam para uma forma estruturada e
totalmente regulada de manifestação, o teatro das feiras, por outro lado, iria
gerar um modo mutante mais de acordo com as leis de “livre comércio”, o que
permitiu sua acomodação a diversos tipos de intervenção, um teatro em devir.
[...].
O elemento visual desses espetáculos era dominado pelo pitoresco da
decoração, dos truques cênicos e pela mise-en-scène, no qual a alusão ao
escatológico, em todos os seus sentidos, era uma constante. Este tipo de
espetáculo originado nas feiras, [...] não buscava uma forma pura; ao contrário,
propunha a mistura de gêneros ou um gênero das misturas, de épocas, de tons,
com audácia de linguagem, transgressão calculada, utilizando a irreverência
cotidiana, os lazzi, as acrobacias, o jogo de palavras, a sátira, os sarcasmos, as
ironias e piadas a granel.
Nesse tipo de teatro, a assimilação explícita das estruturas dos outros gêneros
existentes, como as músicas repetidas de operetas ou das comédias musicais,
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ou da paródia contínua, traz não apenas a introdução dessas estruturas ou dos
elementos destes outros estilos dramáticos, mas também implicitamente uma
crítica aos limites preestabelecidos dos gêneros ou formas teatrais
contemporâneos. Assim, instala-se uma relação dinâmica entre o enunciado
citado e o citante, o que torna esta operação de diálogo com outros textos parte
fundamental da pantomima dialogada. O teatro da pantomima, mesmo
emudecido ou gestual, estará sempre em diálogo. Nessa forma, o que está em
questão não é a citação, mas a glosa, o discurso paralelo, a forma na qual ela é
realizada, sujeito e objeto do discurso cênico; um gênero que não se estabelece
como tal, pois o que tem em comum é um procedimento matriz e não
características particulares de estilo, que podem mesmo ser contraditórias entre
uma peça e outra (2012: 71).
No processo de luta entre os artistas, e múltiplas foram as contendas e lutas
enfrentadas contra todo tipo de detrator ou agressor, os artistas populares sempre
tiveram de criar todo tipo de estratagema tático para sobrevier, lutar e resistir. Até hoje,
não é raro assistir a muitas das invenções criadas e apresentadas por artistas das
cenas da rua (tendo em vista a dinâmica nervosa da cidade e dos constantes
“atravessamentos” à obra teatral) aparecerem no chamado teatro de caixa.
Evidentemente, o criador do teatro em caixa passa a ser saudado como genial,
inventivo... Pelo fato de haver raros documentos sobre a prática nas ruas, dificilmente
se sabe a “origem” quanto aos expedientes geniais criados. Mesmo não saudando a
forma teatral “barraqueira”, pela importância conferida aos documentos, os franceses
conseguiram registrar muitas das criações dos artistas de feira. Muitas dessas
criações influenciaram diversos criadores da cena teatral, ao longo da história. Os
poucos expedientes citados anteriormente, ao que hoje se chama de dramaturgia da
cena, ajudaram a epicizar, no concernente à teatralidade, sobremaneira a encenação
contemporânea.
Bertolt Brecht (1898-1956), um dos mais geniais e originais criadores teatrais do
século XX, em inúmeros de seus escritos reconheceu a influência da gente do teatro
de feira. Textos escritos nos corpos, no chão, nas superfícies lisas; monologias
próximas ao confessional; a busca pelas paisagens inusitadas e pelas cenas
fantásticas; as falas com assovios, com instrumentos, com bonecos (tomando a forma
e a vez dos humanos); na dinâmica da ausência documental sobre o teatro de rua;
“traduções” e interpretações de supostos hieróglifos, leituras de bolas de cristal; textos
corais polifônicos, partilhados com o público; a mistura de todos os gêneros e estilos e
dos aparentemente díspares recursos foram usados para contar e apresentar histórias
no aqui-agora do fenômeno teatral; fogos de artifício, brinquedos, bonecos,
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miniaturas... Tudo já foi experimentado na cena dos populares e têm chegado,
contemporaneamente ao teatro de caixa... Muito (e muito mais) disso, desses tipos de
estratagemas foram experimentados pelos populares e pelos “feirantes do teatro”.
Para concluir temporariamente, legado se amplia e se diversifica. Sobre a
influência do teatro de feira, Robson Corrêa Camargo assim se manifesta:
O melodrama do século XIX, e depois o drama do século XX, retira do teatro
realizado nas feiras parisinas nos séculos XVII e XVIII, elementos de sua
elaborada técnica de interpretação do ator, a composição de sua gestualidade
e, sobretudo, o procedimento de construção de seu espetáculo. Reelaborando
esta prática teatral, estabelece no palco a relação explícita de cumplicidade com
a plateia e, como parte central desse processo, o uso deliberado e sem
cerimônia de todos os estilos e a reelaboração permanente em nova chave, era
um teatro em que não se impunha fronteiras ou fidelidades estilísticas, ao
contrário, buscava-se rompê-las, renová-las, ocupá-las e, talvez, subtraí-las
(2012: 66).
Porque estamos em um tempo de retomada e de luta, porque muitos antes de
nós insistiram na necessidade de que “é preciso cantar e acordar a cidade”, porque é
preciso estar pelos salões para arrebentá-los por dentro, aqui estamos: montando
nossas barracas, apresentando nossos pregões e tomando pela mão outras mãos de
galos que insistem no canto de outros tantos galos...
- Cocóricóó: olhaí! Olhaí!
Bibliografia:
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto
de François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi. São Paulo: Hucitec; Brasília:
Edunb; 1993.
CAMARGO, Robson Corrêa de, in: Rebento – Revista de Artes do Espetáculo, nº 3.
São Paulo: Instituto de Artes da Unesp / Departamento de Artes Cênicas, Educação e
Fundamentos da Comunicação, maio/2012.
HAUSER, Arnold. Historia social da literatura e da arte. São Paulo: Mestre Jou, s/d.
MOUSSINAC, Leon. Le théâtre: des origines a nos jours. Paris: Le Livre
Contemporain. Amiot/ Dumont, s/d.
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