parecer - Ministério Público

Propaganda
ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
MINISTÉRIO PÚBLICO
ASSESSORIA JURÍDICA
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE N.º 70026610493 – TRIBUNAL PLENO
PROPONENTE: SENHORA PREFEITA MUNICIPAL DE ESTEIO
REQUERIDA: CÂMARA MUNICIPAL DE VEREADORES DE ESTEIO
INTERESSADA: PROCURADORA-GERAL DO ESTADO
RELATOR: DES. ALZIR FELIPPE SCHMITZ
PARECER
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. PRINCÍPIO DA
INDEPENDÊNCIA DOS PODERES. É inconstitucional, por vício de
iniciativa, lei municipal oriunda do Poder Legislativo Municipal que
dispõe sobre os direitos básicos dos portadores do HIV. Matéria de
iniciativa
privativa
do
Poder
Executivo.
PARECER
PELA
PROCEDÊNCIA DA AÇÃO.
1. Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, com pedido liminar,
proposta pela SENHORA PREFEITA MUNICIPAL DE ESTEIO, objetivando a retirada do
ordenamento jurídico da Lei Municipal n.º 4.301, de 12 de fevereiro de 2007, que “Dispõe
sobre os direitos básicos dos portadores do HIV e dá outras providências”, por ofensa aos
artigos 8º, 10, 60, II, “b” e “d”, 61, I, 82, VII e XXII, 149, e 154, I, X, “a” e “b”, e § 1º, da
Constituição Estadual, aos artigos 2º, 61, § 1º, II, “c” e “e”, 165, 167, I, e §1º, da Constituição
Federal e aos artigos 48, § 2º, II, III e IV, 138, e 144, I, X, “a” e “b”, e § 1º, da Lei Orgânica
do Município de Esteio.
A liminar foi deferida (fls. 33-4).
A Procuradora-Geral do Estado, citada, pugnou pela manutenção da lei
questionada, face ao princípio que presume a constitucionalidade das leis (fl. 47).
Notificada, a Câmara Municipal de Vereadores de Esteio alegou que a
Constituição Federal disciplina, no artigo 30, inciso I, que o Município tem competência para
legislar sobre assuntos de interesse local, caracterizando competência concorrente,
especialmente quando se trata de saúde pública. Referiu, ainda, que o artigo 13 da Lei
Orgânica do Município legitima a iniciativa legislativa em tela (fls. 50-2).
Vieram os autos.
É o relatório.
SUBJUR N.º 2286/2008
ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
MINISTÉRIO PÚBLICO
ASSESSORIA JURÍDICA
2. A Lei impugnada tem a seguinte redação:
Art. 1º. Os indivíduos portadores do Vírus da Imunodeficiência Humana
(HIV) e os indivíduos doentes com AIDS têm, entre outros, os seguintes
direitos básicos no Município de Esteio:
I – tratamento adequado;
II – educação e aconselhamento;
III – permanecer em seu ambiente social de origem;
IV – sigilo absoluto das informações sobre sua situação;
V – não ser exposto ao vexame ou ridículo pela sua situação;
VI – não ser discriminado no acesso e no local de trabalho, na habitação,
no transporte, na educação e na prestação de serviços públicos, de qualquer
natureza.
Parágrafo único. O sigilo absoluto mencionado no item IV deste artigo, a
critério do profissional de saúde, poderá ser rompido nos seguintes casos:
1 – a eventuais parceiros sexuais;
2 – aos pais ou tutores;
3 – a outros profissionais de saúde envolvidos diretamente com prestação
de assistência ao doente em questão.
Art. 2º. Os hospitais públicos e privados reservarão números mínimos de
leitos para atendimento de indivíduos doentes com AIDS:
I – números mínimos de leitos em cada hospital será fixado pelo Conselho
Municipal de Saúde, sendo revisto periodicamente;
II – o atendimento, diagnóstico e tratamento do indivíduo portador do Vírus
da Imunodeficiência Humana (HIV) e os indivíduos doentes com AIDS
independem de filiação ao Sistema Previdenciário, sendo obrigatório o
fornecimento de medicamentos, de acordo com as recomendações do
Ministério da Saúde;
III – o Município se encarregará de forma complementar de manter leitos
em regime de hospital dia ou Programa de internação Domiciliar (PDI) para os
doentes de AIDS;
IV – os exames laboratoriais subsidiários, necessários ao monitoramento
da evolução clínica dos doentes da AIDS, serão providos pelo serviço público.
Art. 3º. Qualquer indivíduo poderá fazer, gratuitamente e de forma
voluntária, em hospitais públicos, centros de saúde e unidades de saúde 24
horas pertencentes à Administração Direta, Indireta ou Fundacional, exame de
verificação de Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV), independente de
identificação pessoal.
Parágrafo único. Em caso da impossibilidade de atendimentos na unidade
procurada, o indivíduo será remetido, por escrito, à unidade que realizará o
exame, nas condições previstas no “caput” deste artigo.
Art. 4º. Os registros e resultados dos exames de verificação de Vírus da
Imunodeficiência Humana (HIV) são confidenciais não podendo ser divulgado,
salvo nas condições previstas no Parágrafo único do Artigo 1º ou com
permissão expressa do interessado.
Art. 5º. É autorizado em todas as escolas municipais e privadas,
estabelecidas no Município de Esteio, a educação sobre a AIDS através de
profissionais adequadamente treinados, sendo de responsabilidade da
Secretaria Municipal competente a metodologia, o conteúdo, a respeito do
assunto.
Art. 6º. A Prefeitura Municipal de Esteio distribuirá informações, material e
equipamentos que previnam a disseminação do Vírus da Imunodeficiência
Humana (HIV).
SUBJUR N.º 2286/2008
2
ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
MINISTÉRIO PÚBLICO
ASSESSORIA JURÍDICA
Parágrafo único. As entidades privadas ou não governamentais poderão,
através de convênios firmados com a Prefeitura Municipal de Esteio contribuir
com o referido no “caput” deste artigo.
Art. 7º. A Prefeitura Municipal de Esteio através da lei específica, poderá
conceder incentivos a pessoas físicas ou jurídicas que contribuam para
entidades sem fins lucrativos que realizam pesquisas, prevenção e tratamento
dos indivíduos infectados pelo Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV).
Art. 8º. Os empregadores e os fornecedores de produtos e serviços não
poderão exigir ou solicitar exames de verificação de Vírus da Imunodeficiência
Humana (HIV) do candidato a emprego ou consumidor, salvo de interesse da
saúde pública ou previsão expressa no Ministério da Saúde.
Parágrafo único. Nos serviços da saúde a compulsoriedade somente será
admitida por indicação médica coerente com o quadro clínico do paciente e
justificativa devidamente anotada no prontuário, sendo a confidencialidade
enquadrada nas condições previstas no Parágrafo único ao Artigo 1º.
Art. 9º. É proibido a veiculação publicitária da imagem do indivíduo
infectado pelo Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) e os indivíduos
doentes de AIDS, sem sua expressa autorização.
Art. 10. A violação dos direitos básicos previstos nesta lei dos indivíduos
infectados pelo Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) e os indivíduos
doentes de AIDS, sujeitará aos infratores as seguintes punições:
I – multa de até 1000 Unidades Fiscais;
II – suspensão temporária do fornecimento do serviço;
III – suspensão de benefícios ou incentivos econômicos, diretos ou
indiretos.
Art. 11. A Prefeitura Municipal de Esteio regulamentará esta lei em 60
(sessenta) dias, a partir da data de sua publicação.
Art. 12. Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as
disposições em contrário.
Em que pese se vislumbre alcance social na lei transcrita, restou
vulnerado o princípio da independência e harmonia dos poderes. Referida norma versa
sobre matéria restrita à iniciativa legislativa do Prefeito Municipal, intrometendo-se
indevidamente nas atividades próprias do Poder Executivo do Município, especificamente no
que atine a própria organização e funcionamento da Administração Pública, consoante art.
82, VII, da Constituição Estadual.
Conforme bem observado pelo em. Desembargador-Relator Alzir
Felippe Schmitz, quando da concessão da medida liminar (fls. 33-4):
Prima facie, o referido diploma legal contraria o modelo constitucional no
que tange à atribuição de competência privativa do Chefe do Poder Executivo,
violando os princípios da separação, independência e harmonia entre os
poderes estatais.
Afinal, inegável que a Lei em exame dará causa a despesas a serem
absorvidas pelo Executivo municipal e, nos termos dos artigos 60, II, e 82, VII,
da Constituição Estadual – aplicáveis aos municípios por força do artigo 8º da
Constituição Estadual – tal legislação reclama iniciativa exclusiva do Poder
Público Executivo local.
SUBJUR N.º 2286/2008
3
ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
MINISTÉRIO PÚBLICO
ASSESSORIA JURÍDICA
Sobre o tema, ensina Hely Lopes Meirelles, em obra atualizada por
Márcio Scheider Reis e Edgard Neves da Silva (Direito Municipal Brasileiro. 15.ed. São
Paulo: Malheiros, 2006, p. 605):
A atribuição típica e predominante da Câmara é a normativa, isto é, a de
regular a administração do Município e a conduta dos munícipes, no que afeta
aos interesses locais. A Câmara não administra o Município; estabelece,
apenas, normas de administração. Não executa obras e serviços públicos;
dispõe, unicamente, sobre a sua execução. Não compõe nem dirige o
funcionalismo da Prefeitura; edita, tão-somente, preceitos para sua
organização e direção. Não arrecada nem aplica as rendas locais; apenas
institui ou altera tributos e autoriza sua arrecadação e aplicação. Não governa
o Município; mas regula e controla a atuação governamental do Executivo,
personalizado no Prefeito.
De tal sorte, o Poder Legislativo delibera e atua com caráter regulatório,
genérico e abstrato, e o Poder Executivo consubstancia os mandamentos da norma
legislativa em atos específicos e concretos de administração.
À vista de que a lei impugnada versa sobre os direitos básicos dos
portadores do HIV, verifica-se que, para sua consecução, exigirá não só a reorganização
dos serviços públicos municipais nesta seara, mas a própria criação dos encargos
respectivos, geradores de aumento na despesa prevista ou, no mínimo, provocadores de
realocações dos recursos orçamentários.
Desta forma, a norma questionada violou o princípio da autonomia e
independência dos Poderes Municipais, tendo em vista que a Câmara de Vereadores de
Esteio extrapolou as suas atribuições, caracterizando ingerência do Legislativo Municipal em
matéria privativa do Executivo.
José Afonso da Silva (Curso de Direito Constitucional Positivo. 29.ed.
São Paulo: Malheiros, 2007, p. 110) assim comenta a cláusula constitucional
“independentes e harmônicos entre si”, relativa aos poderes:
A independência dos poderes significa: a) que a investidura e a
permanência das pessoas num dos órgãos do governo não dependem da
confiança nem da vontade dos outros; b) que, no exercício das atribuições que
lhes sejam próprias, não precisam os titulares consultar os outros nem
necessitam de sua autorização; c) que, na organização dos respectivos
serviços, cada um é livre, observadas apenas as disposições constitucionais e
legais; assim é que cabe ao Presidente da República prover e extinguir cargos
públicos da Administração federal, bem como exonerar ou demitir seus
ocupantes, enquanto é da competência do Congresso Nacional ou dos
SUBJUR N.º 2286/2008
4
ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
MINISTÉRIO PÚBLICO
ASSESSORIA JURÍDICA
Tribunais prover os cargos dos respectivos serviços administrativos, exonerar
ou demitir seus ocupantes.
Assim, a norma legal ora analisada contém vício insanável de
inconstitucionalidade, porquanto viola o regime de separação e independência dos poderes.
Nestes termos, o e. Tribunal de Justiça do Estado já julgou casos análogos:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI ESTADUAL Nº
11.664/01. ISENÇÃO DE TARIFA NO TRANSPORTE COLETIVO
INTERMUNICIPAL A PASSAGEIROS PORTADORES DE DEFICIÊNCIA.
INICIATIVA DO PODER LEGISLATIVO. VÍCIO FORMAL. É inconstitucional a
Lei Estadual n.º 11.664/01, de iniciativa do Poder Legislativo, que estabelece
isenção de tarifa no transporte coletivo intermunicipal a passageiros portadores
de deficiência física por vício de origem, e, assim, com afronta aos artigos 8º,
10 e 82, VII, da Constituição Estadual, uma vez dispondo sobre atribuições da
administração pública, ferindo a harmonia e independência dos Poderes e
atropelando a iniciativa privativa do Executivo. AÇÃO JULGADA
PROCEDENTE. POR MAIORIA. (TJ/RS, Tribunal Pleno, Ação Direta de
Inconstitucionalidade Nº 70022466023, rel. Des. Arno Werlang, j. 09-06-2008)
ADIN. LEI MUNICIPAL. VÍCIO DE INICIATIVA. MATÉRIA DE NATUREZA
ADMINISTRATIVA. INCIATIVA PRIVATIVA DO PREFEITO. VIOLAÇÃO AO
PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES. Padece de inconstitucionalidade
formal, por vício de iniciativa, a Lei Municipal que torna obrigatório o uso e
fornecimento preferencial de medicamentos genéricos no âmbito da saúde
pública, determinando condutas administrativas próprias do Executivo, em
afronta ao princípio da independência entre os poderes. JULGARAM
PROCEDENTE. UNÂNIME. (TJ/RS, Tribunal Pleno, Ação Direta de
Inconstitucionalidade Nº 70019105667, rel. Des. Luiz Felipe Brasil Santos, j.
13-08-2007)
3. Ante o exposto, manifesta-se o Ministério Público pela procedência
da presente ação.
Porto Alegre, 3 de dezembro 2008.
ISABEL DIAS ALMEIDA,
Procuradora-Geral de Justiça, em exercício.
ACCP/MCX/MPM
SUBJUR N.º 2286/2008
5
Download