1 O meu avô Quirino não confiava nos deuses. Às vezes

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O meu avô Quirino não confiava nos deuses. Às vezes parecia-me não crer
mesmo neles. Durante uma grande parte da sua vida foi influenciado pelos
velhos estóicos; mas como a vida lhe foi sempre muito favorável e lhe poupara
sofrimentos, nunca soube aceitar a velhice e rebelou-se conscientemente
contra a Providência. Mesmo assim nunca adoptou manias de desesperado;
era simplesmente um céptico e ocasionalmente irónico para com os assuntos
religiosos.
Amava os livros. Vivia entre eles. O meu pai costumava dizer que era um
homem aborrecido, por não demonstrar qualquer interesse por negócios ou
outras ocupações mundanas. A verdade era que perdera o desejo à força de
pensar que os seus objectivos eram caducos, passageiros. Para além da
leitura, só havia uma coisa que o parecia entreter: a criação de pombas, à qual
se entregava absortamente num belo pombal erigido nos jardins do seu domus,
do outro lado do rio. Passava horas a olhá-las. Tinha dado um nome próprio a
cada uma, e gostava de as emparelhar por cores para que se multiplicasse a
variedade do bando. Como durante o dia viviam soltas, esperava pelo cair da
tarde para as ver regressar e as recontar. Uma vez, enquanto contemplávamos
aqueles voos de retorno, disse-me:
— Olha para elas. Faço os casais à minha vontade, ajuntando-as numa
caixa. Aos borrachos que me interessam, deixo-os viver, e desfaço-me de
todos aqueles que estão a mais de uma cor. Quanto me apetece, ofereço-as
em troca de outras. Se alguma é belicosa e aborrece as outras em demasia,
peço a um servo que a golpeie contra o chão e que a depene. E depois faço
dela um pasto com uma salada de amêndoas. Mesmo assim voltam sempre a
cada tarde, para alegrar este jardim com revolteios e arrulhos.
Depois de dizer isto, deixou-se como que abstraído durante um instante,
olhando o céu límpido da tarde. E prosseguiu:
— Não seremos nós, homens, como elas? Não obstante as provas a que nos
submete a vida, não retornamos sempre aos deuses?
Apesar da forma como o fez, entendi ser aquela pergunta antes uma
afirmação: os homens são fiéis aos deuses nas dificuldades da vida.
Ainda assim, essa era uma daquelas interpretações que só caberiam na
cabeça duma criança cujas ideias não tinham espaço para a dúvida. Só
passado tempo é que vim a compreender qual a pergunta que se anichava
mais fundo no espírito do meu avô Quirino: “Porque temos de ser fiéis aos
deuses e viver amarrados a eles?” Porque se existem tribulações e desditas
nesta nossa vida, serão todas frutos da sorte. Os deuses, ou não existem ou,
se existem, pouco caso fazem dos assuntos dos homens.
Como disse, a estes pensamentos apenas os deduzi após largo tempo, pois
ele não mostrava nem impiedade nem contida amargura; era bem pelo
contrário um homem impassível, aparentemente, e francamente digno, nunca
dando a impressão de estar encolerizado ou de ser transportado por outras
paixões. Apesar de ser rico, levava uma vida frugal, discreta, afastada de toda
a estridência e ansiedade de uma vida de fausto. Julgo ter sido este estilo de
vida o que o levou a abandonar a sua casa na via Lautitia para se retirar
definitivamente para a domus na outra banda do rio Anas. Era toda esta
moradia um símbolo do seu desapego e indiferença ante a vanglória das
honras e aparências. A cancela discreta que abria caminho aos jardins em
frente da austera casa campestre era como que um prolongamento dos
pombais e das tumbas de mármore que se espalhavam ao largo de toda a
calçada. Dava a impressão que sempre quisera habitar chegado à morte.
A vida política passada do meu avô Quirino era um mistério. Sabia, da sua
vida em Tárraco, que era descendente de uma estirpe ininterrupta de
senadores, à qual ele também pertenceu. Chegou mesmo a ser considerado
um grande jurista, membro do antigo colégio a que Ulpiano, de cujo
assassinato teve notícia ainda era eu uma criança, havia pertencido. Terá
desfrutado, portanto, das benesses da mais elevada ordem de cidadãos
romanos e terá tido amigos entre os maiores da sua época. Porém, algo terá
ocorrido durante os tempos de Caracala, aquando da publicação d a
constituição que pôs a um mesmo nível os provincianos e os cidadãos
romanos. Relegado desde então, optou, conjuntamente com outros
magistrados das províncias, afastar-se dos poucos círculos onde estaria,
mesmo assim, em perigo. Desde que se exilou em Emérita que deixou de uma
vez por todas a vida pública e evitou qualquer contacto com os ambientes
municipais. Jamais, fosse para bem ou para mal, falava do passado. O pouco
que aprendi sobre a sua vida, fi-lo através da minha mãe ou do meu tio Silvano,
que gostavam de fantasiar e conjecturar sobre os tempos em que viveram em
Roma, no seio dos círculos nobres. Mas suspeito que nem mesmo eles alguma
vez se inteiraram das razões que o haviam feito cair em desgraça.
Agora que se passou tanto tempo, imagino a amarga nostalgia pelo velho
Império que consumiria o meu avô. Algo havia-se rebelado abertamente contra
os antigos beneficiários da ordem social e política. Sobretudo o terror que se
abateu sobre a classe senatorial, durante os primeiros imperadores Severos, e
a inúmeras condenações à morte e confiscações, as medidas políticas e
administrativas que limitaram o papel do Senado e dos seus membros, as que
impuseram pesadíssimas cargas fiscais e económicas sobre os elementos
mais acomodados das classes urbanas. Foi certa a preferência que se reflectiu
na eleição de chefes e autoridades: chefes militares, sem dúvida, mas
chegados por outros caminhos que não a carreira senatorial que havia
garantido o comando de Vespasiano ou de Trajano.
O meu avô vira aqueles novos poderosos a entregaram-se a jogos
sangrentos de marionetas irrisórias, com desconcertantes mudanças,
contradições e sobressaltos, nas quais a libertação dos instintos teve o seu
papel e explicava muitos dos caprichos.
Era impossível negar o desprezo que estas novas classes sentiam pelas
hierarquias do passado, a ignorância pelos encantos de uma civilização
refinada, cuja última geração fora a do meu avô. Foi por isso que se sentia fora
do sítio, rejeitado pela mera ordem das coisas.
Após o assassinato de Cómodo surgiram soberanos do baixo povo italiano
ou provinciano, de origens modestas e de uma educação intelectual muito
pobre. A latinidade rústica implantou-se então profundamente. Homens que
jamais haviam feito outra carreira senão a do exército, que saíam das últimas
fileiras e que se elevavam a postos de confiança apenas pelos seus méritos,
acabavam por se sentar em assentos de honra acima da antiga ordem
senatorial e por se relacionarem facilmente com o círculo da nobreza.
Suspeitei algumas vezes que o meu pai, militar de profissão, apenas havia
escolhido a minha mãe por puro afã de reafirmar a sua ascensão social
fulminante, e essa dúvida fez-me sofrer durante a juventude.
Ao desencanto do meu avô, somou-se a proliferação escandalosa de seitas
e cultos orientais, que surgiram para se prender como lapas aos antigos
deuses, até os converter em figuras exóticas irreconhecíveis e de significação
ambígua e unidade sincrética.
Amava também a filosofia, mas queixava-se amargamente de que estava
contaminada nestes últimos tempos. “O velho fantasma do platonismo é
culpado de tudo”, disse-me uma vez, “porque com a sua idealização de um
mundo num outro local, fez com os homens desdenhassem o presente e
procurassem garantias e consolos noutras paragens. É ele a porta por onde se
imiscuiu o cristianismo separatista e esses infectos cultos de mistérios que
devoram o âmago da nossa cultura.
Quando dizia estas coisas, ou outras semelhantes, parecia estar a ser fiel
à antiga religião. Mas nunca o vi sacrificar nada aos deuses nem cuidar do fogo
sagrado do seu domicílio. Tampouco o vi levar as oferendas ao lararium depois
de cada refeição diária nem o vi invocar a protecção dos lares e dos penates,
nem ainda mostrar desejo de contentar os lémures. Sem sombra de dúvida, o
meu avô Quirino não cria nos deuses.
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