Entre o calo e a nuvem: o Direito e uma filosofia do menos

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Entre o calo e a nuvem:
o Direito e uma filosofia do menos
Ramon Mapa da Silva1, [email protected]
1. Professor na Faculdade de Minas (FAMINAS), Muriaé, MG, e na Faculdade de
Estudos Administrativos (FEAD), Belo Horizonte, MG.
Este texto é dedicado ao Estrangeiro, menos de lugar que do
momento, esteja onde estiver, seja quando for.
RESUMO: O presente trabalho propõe um novo
caminho para uma discussão crítica do direito, estudando o discurso jurídico de uma forma não
dogmática e lançando um olhar sobre seus problemas e contradições. A visão dogmática do direito é
a maior responsável por seu afastamento da realidade social uma vez que afasta o olhar do estudioso
do mundo e o coloca na norma e nas relações lógicas do ordenamento. Por tudo isso, o presente trabalho propõe uma pequena visada sobre algumas
questões referentes ao saber jurídico contemporâneo.
Palavras-chave: crítica, dogmática, discurso jurídico, direito.
RESUMEN: Entre el callo y la nube: el derecho a
una filosofía de lo menor. El presente trabajo
propone un nuevo camino para una discusión crítica del derecho, estudiando el discurso jurídico de
una forma no dogmática y lanzando una mirada sobre los problemas y contradicciones. La visión
dogmática del derecho es la mayor responsable por
su distancia de la realidad social una vez que aleja la
mirada del estudioso del mundo y lo coloca en la
norma y en las relaciones lógicas del ordenamiento.
Por todo eso, l presente trabajo propone una pequeña
visión sobre algunas cuestiones referentes al saber
jurídico contemporáneo.
Palabras llaves: crítica, dogmática, discurso jurídico, derecho.
ABSTRACT: Between the callus and the cloud: the
Right and a philosophy of the least. The present
work tries to propose a new way for a critical
discussion of the right, studying the legal speech in
a non-dogmatic form and looking over its problems
and contradictions. The dogmatic view of right is
the greatest responsible for its distance of the social
reality, because it takes the look of the student away
from the world and put him in the norm and in the
logical relationships of ordainment. Because of this,
the present work proposes a short view over some
questions about the juridical knowledge in the
present times.
Keywords: critical, dogmatic, legal speech, right.
Introdução
Este texto pretende fugir do rigorismo que caracteriza os textos ditos
científicos. Talvez o que o direito (propositalmente minúsculo) menos precise
hoje seja de ciência. As tentativas de reduzir o direito a um saber científico
redundaram em seu afastamento do social e de discussões fundamentais para
sua existência, como o conceito de justiça, por exemplo.
Para o dogmatismo que permeia o direito, há tanto tempo, nada mais
conveniente que a autoridade que o status de ciência trouxe ao saber jurídico.
A partir daí, os doutrinadores puderam construir seus mandos teóricos como
verdades científicas inafastáveis. Envolvidos pelo manto da racionalidade, os
argumentos jurídicos passaram a usufruir um estatuto compartilhado outrora
somente pelas ditas ciências naturais: o de descobrir verdades através do uso da
razão. Essas verdades se caracterizavam por determinar qual a melhor conduta,
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qual escolha seria a mais moral, qual forma de organização estatal ou tipo de
sentença seriam as ideais.
E nem se argumente que com a pretensa superação do paradigma
positivista a postura dogmática restou enfraquecida. Grande parte das tentativas
teóricas de se superar o positivismo tropeçam na mesma fé na ciência, no
mesmo fetichismo rigorista, no mesmo apego à forma e ao procedimento. E
pior, essas críticas não tiveram a profundidade que o próprio positivismo conseguiu ter ao enxergar os males de sua conduta reducionista. Cercadas da mesma
pretensão de verdade, se perderam novamente em métodos e sistemas.
Essas formas de pensamento representacional do direito, que projetam as mesmas categorias jurídicas para diversos casos considerados iguais pelos juristas, trazem a perniciosa ilusão de que existem realmente casos iguais,
fatos iguais no mundo, e que, portanto, o estudo do direito deve se focar nos
procedimentos e nas leis, uma vez que esses são únicos e se aplicam a um
universo de casos muito semelhantes.
Tal ilusão gera uma perspectiva alienante nos doutrinadores e
aplicadores do direito. Gera a perspectiva de que basta o direito agir para que o
mundo se modifique, que as pessoas irão necessariamente adotar determinado
tipo de conduta a partir do momento de sua positivação legal. A partir daí os
jurisdicionados não são mais importantes. O procedimento se torna mais importante do que aquele que ele afeta, a subsunção do fato na norma se torna
mais importante que o fato em si.
O indivíduo, ou o sujeito (ou o agente, ou seja lá como o direito o
chame) e a sociedade se tornam objetos periféricos dentro do arcabouço teórico normativo do direito. Orbitam uma zona indefinida, sujeita a outros poderes
e forças disciplinares legitimados pelo aparato normativo.
Tais problemas se mostram mais enfaticamente na educação jurídica.
A formação dos novos juristas passa pela assimilação sistemática de conceitos
dogmáticos e da percepção das relações pretensamente lógicas dentro do
ordenamento jurídico. O estudo jurídico se realiza de uma perspectiva a-histórica e totalizante, em que os contextos de aplicação e criação das normas não
são considerados em sua importância. Importante é saber os prazos e procedimentos, os sujeitos são somente assujeitados.
As revoluções filosóficas que preconizam um mundo mais complexo
do que nossa razão pode apreender parecem não ter chegado ao direito. A
maneira reducionista e dogmática de perceber o fenômeno jurídico ainda permanece. E ainda temos que aturar as centenas de prefácios e apresentações de
obras dogmáticas que elogiam a preterição de formas filosóficas de pensar o
direito em relação a uma postura mais prática.
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Convertido em um saber impositivo e alienante, o direito se fechou aos
seus próprios problemas e contradições, encarando de maneira fetichista sua forma de produção bem como sua aplicação. A figura do operador do direito, acrítico
e acéfalo, que pratica os procedimentos sem saber porque, que não discute, que
não pergunta, tem sido o produto final da maioria dos cursos de direito.
A seriedade dessa afirmação se mostra em toda sua dimensão quando consideramos que a perspectiva totalizante do direito faz com que todas as
esferas de ação do homem ocidental ou se submetam, ou reflitam no direito.
Ou seja, em algum momento de suas vidas, as pessoas terão que se relacionar
diretamente com o fenômeno jurídico, e estarão à mercê de meros técnicos,
incapazes de questionar o dogma do procedimento, ou mesmo de realizar um
julgamento contextual de algum caso.
A subsunção cega de um fato à lei gera os mesmos resultados da
aplicação da mera vontade do julgador. Se não se vincula o julgamento ao
sentido de jurídico ou de justo esse mesmo julgamento se torna um mero ato
de vontade, uma vontade preguiçosa é verdade, incapaz de entender a
multiplicidade de faces do fenômeno jurídico e da unicidade de cada fato no
mundo, mas ainda um ato de vontade. Presos às mais tacanhas interpretações
derivadas de um mau entendimento da filosofia da consciência, nossos
doutrinadores insistem ainda na preterição da diferença em prol da igualdade,
na separação entre sujeito e objeto do conhecimento, entre e prática e teoria,
na letra clara da lei, na vontade do legislador.
Como livros para quem não sabe ler, todos esses mitos jurídicos escondem, sobre a casca de sua mezzo sacralidade, a conveniência e a coragem
que a distância do campo social concede ao campo jurídico, bem como, a falsa
impressão de que no reino do direito tudo está bem e que se problemas existem são por culpa dos aplicadores do direito, não iniciados totalmente na
dogmática jurídica.
Os problemas e as contradições constitutivas do jurídico passam ao
largo das discussões dogmáticas, mesmo porque a forma de investigação
dogmática é limitada demais para abarcar esses problemas. Impossível se realizar uma pesquisa jurídica séria hoje, sem recorrer a outros saberes e outros
elementos sociais, da mesma forma que é impossível continuarmos adotando a
postura do direito como parte de um processo de pretensa evolução da humanidade, argumento esse criado para justificar a ordem hegemônica das coisas,
bem como para lhe conferir um status de inevitabilidade. Em verdade, o que
deve ser dito é que a forma dogmática de se ver o direito, enquanto máscara de
seus problemas e contradições sempre se mostrou fundamental para a constituição de governos totalitários. A sacralização da lei é o primeiro passo para a
sacralização do Estado.
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De tal forma não é de se admirar que, sobretudo o Brasil, careça de
uma verdadeira teoria crítica do direito. Crítica na elaboração de um estudo não
dogmático, que aceite a insofismável verdade de que pouco adianta reduzir o
estudo do direito ao estudo da lei ou do procedimento. É preocupante notar
que teorias críticas como o marxismo ou a genealogia nietzscheana não chegaram a penetrar a armadura dogmática do pensamento jurídico nacional (MELO,
2004). Isso se considerarmos que talvez essas formas críticas de pensamento
tenham conseguido ao menos arranhar o pensamento dogmático, e que fazemos direito hoje da mesma forma que fazíamos quando da ditadura militar.
Na análise do direito, não podemos prescindir da análise do Estado e
da sociedade, não podemos prescindir da relação do direito com outros saberes, nem nos atermos ao reducionismo dogmático que enxerga a norma como
objeto único do estudo jurídico. A norma não explica nada, muito menos o
ordenamento, um saber jurídico sério deve tentar explicar o porquê do
ordenamento, o porquê da norma, não simplesmente esperar que ela diga o
que é certo ou errado.
I–
Contra a tradição a contradição
O Estado de inspiração liberal construiu seu arcabouço jurídico baseado em uma série de contradições. Todas essas punham em xeque a própria
validade do projeto jurídico liberal e carregavam em si o próprio germe da
destruição do liberalismo, enquanto forma de vivência social. Para aplacar essas
contradições, o liberalismo adotou uma postura pragmática diante dos problemas jurídicos, mas revestindo esse pragmatismo com um verniz de lógica e
precisão racional.
Na verdade, toda a tentativa de se racionalizar ao extremo o direito,
buscando resolver as contradições internas dos ordenamentos, encerrar as
antinomias ou mesmo impor uma hermenêutica infalível dos dispositivos
normativos, não passa de uma tentativa de esconder a contradição fundamental
existente dentro do paradigma jurídico liberal. Essa contradição é sentida por
todos, e talvez autores leigos ao direito, como Dostoiévisk e Kafka tenham tido
mais sucesso em falar dela do que autores propriamente jurídicos (LIMA, 1993).
Essa contradição fundamental é a existente entre comunidade e autonomia, pois diferentemente dos gregos, não mais podemos dizer que existe
uma relação reflexa entre a constituição do cidadão e da ordem jurídica. No
paradigma liberal, o sujeito nasce inserido numa ordem alienante, em que as
estruturas produtivas e as relações de poder constituídas determinam sua posição na comunidade e prometem coação imediata caso essa posição seja desrespeitada. Para que um direito seu seja servido, outras pessoas precisam ou ser
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coagidas ou ameaçadas de uma coerção, e essa relação entre liberdade e coerção configura a contradição fundamental do direito no paradigma liberal.
Duncan Kennedy, em seu The Structures of Blackstones
Commentaries, destaca, através da estrutura dos comentários de Blackstone,
essa contradição entre comunidade e autonomia:
A maioria dos participantes da cultura jurídica norteamericana acredita que o objetivo da liberdade individual
é ao mesmo tempo dependente e incompatível com a
ação comunitária coerciva que se faz necessária para obtêlo. Outros (família, amigos, burocratas, o Estado) são
necessários se pretendemos nos tornar pessoas integrais
(...). Mas ao mesmo tempo que nos forma e protege, o
universo dos outros (...) ameaça-nos com a aniquilação (...).
Infinitas conformidades, grandes e pequenos abandonos
em nome dos outros – eis o preço da liberdade que
experimentamos na sociedade (1979, p. 211-212).
Saber se essa contradição é inerente à sociedade humana ou se ela
nasce com o liberalismo pode ser objeto de nossa análise posteriormente, o
que nos importa agora é enxergar como o discurso jurídico tradicional esconde
essa contradição, conferindo um caráter de necessidade a construtos teóricos
artificiais que legitimam as práticas sociais existentes, práticas essas que determinam as diferenças econômicas e jurídicas entre as pessoas.
A onipresença da contradição é tal que a liberdade individual depende da coerção coletiva, de forma que, ao mesmo tempo que necessitamos dos
outros, precisamos igualmente nos opor a eles. Mesmo as relações contratuais,
vistas no direito liberal como exemplo da liberdade individual, só possuem
validade porque o ordenamento as legitima e o Estado está pronto para ser
evocado e garantir seu cumprimento. Portanto, só existe o direito individual
como uma tentativa de se esconder a contradição, uma vez que o direito mistifica a idéia de indivíduo, opondo sua condição solitária à comunidade, como
se o primeiro precisasse se proteger da segunda, e afirma certas liberdades
abstraindo as mesmas das condições sociais, de maneira que nunca saberemos
qual a real natureza dessas liberdades.
Independente de que a modalidade de oposição seja erga omnes ou
inter pars, a contradição da validade do direito como liberdade que se opõe a
outras liberdades levanta sérios questionamentos a respeito da forma e se o
direito auxilia ou não a constituição de uma verdadeira ordem comunitária. A
lógica da diferença que é potencializada por essa contradição é ignorada pela
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dogmática tradicional, como prova a insistência no ensino dos tipos de oposição
acima citados, sem que se questione a natureza dessa oposição.
Os direitos, desta feita, nos limitam ao invés de nos humanizar, uma
vez que nos constituem como indivíduos separados, alienados, não como seres
sociais. Talvez revelar a contradição seja a única forma de encontrarmos uma
maneira de conviver com ela minimizando os problemas que ela acarreta. Mas
o que vemos é o ensino dogmático e acrítico do direito do consumidor, por
exemplo, provavelmente a tentativa liberal mais bem sucedida de promover o
individualismo. Talvez seja necessário lembrar que o termo idiota foi cunhado
pelos gregos para se referir àquele que não participava da ordem social e se
fechava em sua própria individualidade.
Eis, portanto, o problema que temos em mãos: a postura dogmática
ante o direito esconde a contradição fundamental entre autonomia individual e
vida em comunidade. Essa postura vende às pessoas a idéia de que não estão
sujeitas às conformações e contingências sociais, e que na guerra de todos
contra todos, somente cultivando o individualismo, ela pode se proteger. As
marcas deixadas pelo social são ignoradas em nome de uma liberdade ilusória,
legitimada pela quantidade enorme de direitos individuais que o Estado liberal
promete garantir. Cercado de artificialidades, o indivíduo não percebe que é
ele mesmo construído, formado, determinado por forças que o atravessam e o
moldam a todo o momento.
II –
O direito e o socius
A concepção liberal prega a idéia de um indivíduo que se forma
independente do social, numa separação radical do mesmo e a comunidade,
defendendo o pressuposto de que a formação do sujeito e a projeção de suas
relações familiares influenciam diretamente o social. Lê-se nas obras dos filósofos liberais como a constituição do indivíduo é um ponto de partida para a
formação do social. De Rosseau a Kant, temos o mesmo caminho, o indivíduo,
a família e o social. Equipole dizer que a organização do social não é nada mais
do que uma projeção da organização familiar. Nossa submissão à autoridade
seria um reflexo da nossa submissão ao pai. As idéias freudianas condensaram
de forma sistemática tal paradigma político-filosófico, criando o construto teórico do complexo de Édipo. Universal e inevitável, Édipo estaria presente em
todos, independente das conjunturas sociais em que o indivíduo estivesse inserido. Mais ainda, nossa relação com Édipo determinaria, em uma escala macro,
as próprias conjunturas sociais.
Deleuze e Guattari (1976), no seminal Anti-Édipo, contrariam tal postura teórica, propondo que existem formações sociais que são o objeto da
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projeção libidinal do sujeito antes das relações familiares. Os autores franceses
propõem uma lógica da multiplicidade, segundo a qual há uma multiplicidade
de relações que se cruzam e se chocam, cujo resultado forma termos que
podem ser sentidos na inserção do indivíduo no social. Édipo seria, portanto, o
termo de uma multiplicidade de relações, em que os desejos se dirigem antes
a certas posições ou figuras do socius do que ao triângulo familiar. As posições
ocupadas na família são, em essência, também termos determinados por relações múltiplas dentro da organização do social. Dessa forma, ao invés de enxergarmos, numa perspectiva freudiana, o chefe como uma projeção do papel do
pai, devemos enxergar o pai como ele mesmo uma projeção de inúmeras relações dentro do socius.
Curioso notar, por exemplo, que o nascimento da família nuclear,
como a conhecemos, composta pelas figuras do pai, da mãe e dos filhos, coincide com o surgimento dos Estados Nacionais, com sua estrutura tripartíte, em
que a autoridade da lei, o acolhimento da terra e a subserviência dos súditos,
influenciam, em um recorte de relações a família composta pela autoridade do
pai, o acolhimento da mãe e a subserviência dos filhos.
Dessa forma, se pudéssemos representar a lógica da esquizoanálise
como um circuito, o input não seria Édipo e a família e o output a sociedade,
mas o contrário, em que a entrada seria a projeção de forças libidinais no social,
e a saída a formação de certa estrutura familiar (sujeita obviamente as contingências da época) e, como resultado de relações específicas, o Édipo. Portanto,
não existe, na obra de Deleuze e Guattari, uma negação do complexo de
Édipo, mas o argumento de que a família não é o repositório iniciático das
forças que compõem o desejo da criança, e sim aspectos do social. “Édipo é
um conjunto de chegada para um conjunto de partida constituído por uma
formação social. No conjunto de partida há a formação social ou formações
sociais: raças, classes, continentes, povos, reinos” (DELEUZE; GUATTARI, 1976).
Dessa forma, a independência da formação do sujeito em relação ao
social, preconizada pelo modelo liberal é uma falácia. As forças constitutivas do
social atravessam o sujeito, marcando-o e determinando-o, dentro de um raciocínio propriamente foucaultiano. É extremamente conveniente, sobretudo para
o direito, a idéia de um sujeito a-histórico e livre das contingências. Incapaz de
lidar com a multiplicidade de relações que caracteriza o social utilizando-se de
seu arcabouço dogmático, o direito prefere ignorar essa multiplicidade, se atendo ao insosso e ineficaz estudo das normas e dos procedimentos.
Isso impede uma consciência jurídica que consiga lidar com o constante devir dos sujeitos inseridos em um contexto social contingente. Impede
também que os fatos jurídicos sejam vistos em sua particularidade e analisados
dentro da teia de múltiplas forças que se cruzam e se chocam para formá-lo. A
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tentativa de reduzir o esforço hermenêutico para lidar com essas forças gerou,
entre outras coisas, a famigerada súmula vinculante, que traz, desde sua gênese, a contradição de também ser um texto e de também estar sujeita a um
trabalho interpretativo.
O mutismo, diante da multiplicidade das forças sociais que determinam e condicionam o sujeito, traz a ilusão de que a forma individualista de ver
o mundo, própria do paradigma capitalista burguês é, em sua essência, necessária e normal. O condicionamento e a instituição do sujeito foram maquiados
pelas doutrinas jurídicas através de um verniz humanista, que disfarçavam as
formas de controle burguês e o desenvolvimento de uma tecnocracia capitalista
voltada para o controle das subjetividades.
Sob o pálio da cultura humanista, o direito se posiciona como uma
ciência antropológica, construindo e determinando individuações, atuando no
nível mais íntimo da formação dos assujeitados. Preso a práticas alienantes e
reificantes o direito legitima, dentro da lógica da diferença tão bem sucedida na
forma de produção capitalista, a criação de verdadeiros abismos sociais.
Não é de se admirar que o direito não consiga lidar com atos que,
apesar de gerarem conseqüências jurídicas, ou carecerem da atuação do Estado, não se inscrevem em sua linguagem simbólica. Prova disso é a impossibilidade do direito em lidar com os feminicídios que ocorrem há mais de uma
década em Ciudad Juarez, no México, em que o estupro coletivo, seguido de
mutilações e do brutal assassinato das vítimas é visto pela tradicional linguagem
dos crimes contra os costumes, incapaz de abarcar a complexidade dos horríveis fatos que ali ocorrem. A dogmática jurídica impede que se enxergue, nos
mais de trezentos feminicídios de Ciudade Juarez, a manifestação de uma linguagem de inclusão simbólica de um indivíduo em uma ordem patriarcal, em
que a posição artificial da masculinidade é investida de uma forte carga de
desejo e precisa ser conquistada através da aceitação do novo membro em um
fratria criminosa:
Se o ato violento é entendido como mensagem e os crimes
se percebem orquestrados em claro estilo responsorial,
encontramos-nos com uma cena onde os atos de violência
comportam-se como uma língua capaz de funcionar
eficazmente para os entendidos, os avisados, os que a falam,
ainda quando não participem diretamente na ação
enunciativa. É por isso que, quando um sistema de
comunicação com um alfabeto violento instala-se, é muito
difícil desinstalá-lo, eliminá-lo. A violência constituída e
cristalizada em forma de sistema de comunicação
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transforma-se em uma linguagem estável e passa a se
comportar com o quase-automatismo de qualquer idioma.
Perguntar-se, nestes casos, por que se mata em um
determinado lugar é semelhante a perguntar-se por que se
fala uma determinada língua – o italiano na Itália, o português
no Brasil. Um dia, cada uma dessas línguas estabeleceu-se
por processos históricos como conquista, colonização,
unificação de territórios sob um mesmo Estado nacional ou
migrações. Nesse sentido, as razões pelas quais falamos
uma língua são arbitrárias e não podem ser explicadas por
uma lógica necessária. São, portanto, também históricos
os processos pelos quais uma língua é abolida, erradicada
de um território. O problema do estupro como linguagem
agrava-se ainda mais se considerarmos que existem certas
línguas que, em determinadas condições históricas, tendem
a converter-se em língua franca e generalizar-se além das
fronteiras étnicas ou nacionais que lhe serviram de nicho
originário (SEGATO, 2005).
Encarar os horrores de Ciudad Juarez como simples crimes contra os
costumes ou contra a sexualidade é promover a impunidade dos criminosos,
uma vez que todo o aparato simbólico do direito não está preparado para lidar
com a complexidade desse tipo de crime. São crimes de corporação, voltados
para a relação do criminoso com sua fatria criminosa, que garante sua impunidade ao mesmo tempo em que gera uma espécie nova de crime, um crime sem
agentes determinados, que dividem o corpo da mulher como se dividissem um
território por eles dominado, um crime sem vítima determinada, pois basta ser
mulher para que a inscrição do domínio corporativo, desse segundo Estado,
possa ser feito em seu corpo:
Porém, que Estado é esse?; que liderança é essa que produz
o efeito de um totalitarismo regional? É um segundo Estado
que necessita de um nome. Um nome que sirva de base
para a categoria jurídica capaz de enquadrar na lei seus
donos e a rede de cumplicidade que controlam. Os
feminicídios de Ciudad Juárez não são crimes comuns de
gênero e sim crimes corporativos e, mais especificamente,
são crimes de segundo Estado, de Estado paralelo.
Assemelham-se mais, por sua fenomenologia, aos rituais
que cimentam a unidade de sociedades secretas e regimes
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totalitários. Compartilham uma característica idiossincrática
com os abusos do poder político: apresentam-se como
crimes sem sujeito personalizado realizados sobre uma vítima
também não personalizada: um poder secreto abduz um
tipo de mulher, victimizando-a para reafirmar e revitalizar
sua capacidade de controle. Portanto, são mais próximos a
crimes de Estado, crimes de lesa humanidade, onde o Estado
paralelo que os produz não pode ser enquadrado porque
carecemos de categorias e procedimentos jurídicos eficientes
para enfrentá-lo (SEGATO, 2005).
A dogmática jurídica tradicional não oferece aparato algum que possa
auxiliar na solução dos feminicídios de Ciudad Juarez. Ao contrário, seu sistema
técno-logicista fomenta a impunidade uma vez que promove uma insensibilidade brutal do jurídico contra um mundo que ele não pode entender, mas no qual
atua e marca a todo o momento. O Estado paralelo que se forma em Ciudad
Juarez reproduz as mesmas categorias organizacionais dos Estados totalitários,
em que a soberania em termos essencialmente schimmtianos se apóia em uma
linguagem do poder que se inscreve em diversas esferas do social, inclusive no
jurídico.
E é justamente aí que a interpretação tradicional do direito se mostra
porosa e caduca. E é justamente aí que a dogmática e a lógica jurídica são mais
evocados. Para não ter que lidar com suas rachaduras, o direito reveste sua
morada com cal e tinta e adorna suas paredes com um novo vocabulário, carrega seu discurso com uma solenidade e nobreza que tentam inspirar nos ouvintes uma idéia de neutralidade e racionalidade do saber/poder jurídico. E, sobretudo, afasta sua responsabilidade perante sua atuação no mundo social. Em
nível simbólico, nossa forma de fazer o direito é tão responsável pelas mortas
de Ciudade Juárez quanto os próprios assassinos.
III –
Por um direito enquanto práxis
A dogmática jurídica tradicional, nascida do paradigma do conhecimento na modernidade, se constrói através de pares de oposições pretensamente
excludentes (teoria/prática, sujeito/objeto, pensamento/ação). Oposições essas
nascidas para legitimar e justificar o domínio da natureza pela técnica humana.
A separação entre sujeito e objeto e a pretensa neutralidade que essa oposição
tornaria possível fundamenta no direito a oposição entre teoria e prática do
direito. Oposição essa que a dogmática tradicional tenta enfatizar com toda a
força com que enfatizamos uma mentira muito bem contada.
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Limitando o papel e a importância da hermenêutica no fazer o direto,
a dogmática tradicional separa a prática do direito de uma consciência
problematizante do mesmo, impondo uma interpretação de inevitabilidade e
necessidade do atual contexto jurídico. O positivismo jurídico, nesse sentido,
não passa de uma limitação à capacidade do jurista de interpretar a realidade de
seu saber.
Quando propomos um direito enquanto práxis, sugerimos que essa
separação entre teoria e prática do direito é essencialmente artificial, e, mais
que isso, daninha. O pensar e o fazer o direito não são categorias autônomas
que precisam ser unificadas através da práxis. Ao contrário, a ação é condição
do conhecimento e o conhecimento é condição da ação. Isso modifica inclusive a relação do corpo com o mundo: o olho aprendendo a ver vendo, a mão
aprendendo a manipular manipulando. Não é simplesmente uma forma empírica
de aprendizado, mas a própria condição prévia de tudo o que podemos conhecer:
La praxis no es simplesmente,como suele decirse, la
“unidad”de la “teoría”y la práctica:dicho así, esto supondría
que “teoría” y “práctica” son dos entidades originarias y
autónomas, preexistentes, que luego la praxis (inspirada
por el genio de Marx, por ejemplo) vendría a “juntar”de
alguna manera y con ciertos propósitos. Pero su lógica es
exactamente la inversa: es porque ya siempre hay praxis porque la acción es la condición del conocimiento y
viceversa, porque ambos polos están constitutivamente coimplicados – que podemos diferenciar distintos
“momentos” (lógicos, y no cronológicos ni ontológicos),
con su própria especifidad y “autonomía relativa”, pero
ambos al interior de un mismo movimiento. Y este
movimiento (la más de la veces “inconsciente”) de la
“realidad” (social e histórica) misma, no el movimiento ni
del puro pensamiento “teórico” (aunque fuera en la cabeza
de un Marx), ni de la pura acción “prática” (aunque fuera
la de los más radicales “transformadores del mundo”)
(GRÜNER, 2006, p. 108).
Da mesma forma que, em Marx, vemos a separação entre teoria e
prática legitimar o mando capitalista, uma vez que caberia ao senhor (dono do
meio de produção) o monopólio do pensamento, do planejamento e da interpretação e ao trabalhador o universo prático da ação, no direito, vemos tal
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separação legitimar a alienação dos técnicos do direito de sua produção, em
que o universo da criação e interpretação normativas acabam sendo vistos como
monopólio dos legisladores e doutrinadores, e a prática e aplicação desse universo sendo própria dos técnicos, ou na famigerada expressão da moda, dos
operadores do direito. Essa visão de mundo se torna discurso freqüentemente
quando o judiciário emite uma interpretação legal politicamente contrária a
posição hegemônica. Para conter tais práticas sempre se evoca a separação de
poderes e a vedação do judiciário de legislar.
Dessa forma, reproduzimos o discurso hegemônico da separação
moderna entre teoria e prática, mantendo a alienação para, convenientemente, não precisarmos lidar com os problemas do nosso saber. Talvez a melhor
metáfora para descrever esse processo seja a proposta por Adorno e Hokheimer
em sua Dialética do Iluminismo, em que o canto das sereias na Odisséia é
colocado como o próprio conhecimento do mundo. Ulisses amarrado ao mastro de seu navio ouve o canto, mas não pode ir até as sereias e conhecer
realmente aquele fenômeno. Da mesma forma, os tripulantes da nau, com
seus ouvidos tapados podem ver as sereias, podem inclusive se aproximar delas, mas não podem ouvir sua música, dedicados que devem estar em manter
o navio em seu rumo. Pelo monopólio do pensamento e da contemplação,
Ulisses não pode chegar ao conhecimento, pelo uso da técnica e da prática
também não o podem fazer os tripulantes. Ambas as posições afastam do real,
ambas as posições alienam.
Como uma carroça tirando chinfra de carruagem, o saber jurídico
tradicional se mostra aos olhos do mundo como estritamente racional estritamente lógico e estritamente científico. Apegando-se às formalidades, o direito
evita ver que no fundo é somente mais um sistema de significação, que alimenta e é alimentado pelas visões de mundo das pessoas e acaba vendendo para
elas a idéia de que todas as relações hierárquicas sob as quais vivem são normais e necessárias. Uma vez problematizado, o direito permite que discursos
não hegemônicos lhe atinjam e tragam consigo possibilidades de mudança para
a atual ordem das coisas. Se aprendemos alguma coisa com Marx é que, na
dialética do materialismo, negar o mundo como ele se apresenta hoje já é uma
forma de construir um outro mundo. Afinal, o que se modifica não é o mundo,
mas a interpretação que fazemos dele. Mas enquanto a dogmática tradicional
tentar se distanciar da violência, da tristeza e do vômito do real, o direito estará
condenado a ser somente um véu para discursos subjetivos que precisam se
mascarar com a face da objetividade para impor sua autoridade:
A consciência de que a vida é complexa é um fato de
grande importância analítica. O direito freqüentemente
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procura evitar essa verdade, criando sua própria linhagem
de verdades estreitas, simples, porém hipnoticamente
poderosas em sua retórica. Reconhecer, desafiar e jogar
com essas verdades enquanto gestos retóricos é algo que
me parece necessário quando se tem em vista qualquer
concepção de justiça. Esse reconhecimento complica a
suposta pureza de gênero, raça, voz, limite; permite que
reconheçamos a utilidade de tais categorizações para certos
fins, bem como a necessidade de sua eliminação em outras
ocasiões. A definição também se vê dificultada em sua
mudança, em sua expansão e contração ao sabor das
circunstâncias, em seu espaço para a possibilidade de
taxonomias criativamente unidas e seus resultados
extremamente imprevisíveis (WILLIAMS, apud
MORRISON, 2006, p. 548).
Cercado pelas noções da naturalidade da autoridade do direito e de
sua necessidade que garantiria a segurança e a ordem das coisas, o indivíduo
acaba enxergando o outro através do prisma da oposição e do conflito. O discurso hegemônico encontra, no direito, um importante elemento legitimador,
uma vez que confere um sentido de racionalidade e autoridade a qualquer
imperativo de ordem política que esse discurso queira implantar:
O direito contribui poderosamente para a hegemonia das
idéias; fornece um reservatório de idéias que constituem a
noção de propriedade privada, liberdade de contrato,
autoridade e coerção legítima, responsabilidade individual,
etc. Acima de tudo, cria a idéia de direitos que
subseqüentemente ergue barreiras nocionais ao redor dos
indivíduos e vê a relação natural com os outros como
questão de confronto e defesa. Os direitos são armas, e o
direito assegura que as pessoas se sintam bem armadas
umas contra as outras (MORRISON, 2006, p. 552).
Transformando idéias em coisas, concedendo a elas uma autoridade
quase sacra, como se estivessem escritas nas pedras da lei, o discurso jurídico é
todo montado sobre uma lógica reificante, em que a lei, os direitos e os argumentos não são mais vistos como idéias, mas como realidades autônomas atribuídas a determinadas pessoas. Por isso, a contradição de tentar se estabelecer
a paz social através da instauração de conflitos individuais, uma vez que a atri86
MURIAÉ – MG
buição dessas idéias a alguém concede a ele o poder de evocar o Estado contra
qualquer outro que discuta essa atribuição.
IV –
Considerações finais
Demonstramos que a necessidade de inclusão de diversas outras perspectivas na discussão do direito é necessária. Se permanecermos professando a
perspectiva dogmática tradicional, permaneceremos fechados a formas de se
responder aos questionamentos aqui levantados. O caminho para uma teoria
verdadeiramente crítica do direito ainda está todo por se percorrer e, por menos convidativo que ele se mostre em comparação ao caminho tradicional, uma
vez que mais escuro e menos seguro, ele deve ser percorrido se ainda possuímos alguma concepção de justiça pela qual achamos que ainda vale a pena
lutar. Por isso, uma concepção do jurídico que privilegie a diferença em detrimento da repetição, a problematização em desfavor das certezas, o julgamento
contextual em preterição do sumular, a aceitação da complexidade e da
multiplicidade do fenômeno jurídico em preterição a verdades retas e simples,
pode trazer maneiras mais efetivas e menos reificantes de lidar com a carga
simbólica de nosso saber. Logo, uma filosofia do menos.
Somente ao enxergarmos a trajetória do direito como uma série
de ascensões e declínios, de idas e vindas e de construções e ruínas, podemos buscar um discurso jurídico que transcenda a mera legitimação de uma
estrutura de poder e saber hegemônica. Somente encarando o direito como
um grande enigma, poderemos encontrar nele algumas respostas para os
nossos próprios mistérios.
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