A matemática e a lógica formal no capitalismo

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A matemática e a lógica
formal no capitalismo
Jéssica Milaré
Para se desenvolver, o sistema capitalista precisou criar
transformações cada vez mais profundas sobre a matéria. A
criação de máquinas cada vez mais complexas, capazes de
realizar tarefas cada vez mais precisas, requer, por sua vez,
um avançado conhecimento em física. Esta, para se desenvolver,
apoiou-se na matemática, uma ciência que sempre se desenvolveu
a partir do raciocínio lógico. Entretanto, até o final do
século XIX, a lógica formal padrão era a aristotélica, um
sistema lógico incapaz de desenvolver o raciocínio matemático
em todo seu potencial.
Tanto Hegel quanto Marx fizeram duras críticas à lógica formal
aristotélica. Entretanto, as pressões sociais causaram uma
revolução nas bases da matemática e da lógica formal que
começou pouco antes da morte de Marx e se estendeu ao longo de
várias décadas. A maior revolução da lógica formal até hoje,
assim como a da matemática, foi a formalização da matemática.
Vamos discutir como se deu esse processo
O sistema euclidiano
Se tivéssemos uma máquina do tempo e voltássemos à Grécia
Antiga, encontraríamos uma matemática totalmente diferente da
que vemos hoje. Não havia fórmulas, símbolos estranhos,
equações e nem números. Os gregos não inventaram a matemática,
nem foram os primeiros a descobrirem como realizar operações
aritméticas, mas foi na Grécia que nasceu o primeiro método
axiomático, introduzido por Euclides em Elementos.
A palavra grega axioma significa “aquilo que se apresenta como
evidente”. Euclides formulou um conjunto de axiomas a partir
dos quais seria possível demonstrar os resultados em geometria
que eram conhecidos na época utilizando apenas passos lógicos
bem definidos. Esses resultados são chamados de teoremas.
Os três primeiros postulados (axiomas) de Euclides afirmam,
respectivamente, que é possível ligar quaisquer dois pontos
por uma reta, estender indefinidamente uma reta e construir um
círculo com qualquer ponto como centro e com qualquer raio. Ou
seja, esses postulados são apenas descrições abstratas sobre o
que é possível realizar com uma régua (sem escala) e um
compasso. Assim, a geometria euclidiana não era um estudo
completo sobre o plano, mas apenas sobre o que é possível
construir com régua e compasso neste plano. Por exemplo, não é
possível construir uma elipse nem uma parábola diretamente com
régua e compasso.
Aqui é preciso notar que esses axiomas não são “evidentes por
si mesmos”, mas são evidentes para quem tem familiaridade com
uma régua e um compasso. Já o quinto postulado, por não ser
elementar nem evidente, foi alvo de polêmica na Grécia antiga.
Muitos acreditavam que, por não ser óbvio, deveria ser
possível demonstrá-lo a partir dos demais postulados. Hoje,
sabemos que isso não é verdade, pois conhecemos a existência
da geometria hiperbólica, que satisfaz os quatro primeiros
postulados mas não satisfaz o quinto. Se houvesse uma
demonstração lógica do quinto postulado a partir dos quatro
primeiros, essa mesma demonstração valeria para a geometria
hiperbólica, mostrando que o quinto postulado seria satisfeito
também nessa geometria, o que não é verdade.
Além dos cinco postulados, Euclides também enunciou algumas
“noções comuns” (que dizem respeito à noção de igualdade) e
que hoje também são classificadas como axiomas.
O sistema axiomático construído por Euclides demonstra que é
possível sistematizar o estudo da geometria (e também da
aritmética) de forma separada da atividade humana concreta. O
sistema de Euclides corresponde à atividade humana e ao mesmo
tempo é independente dela.
Na Grécia Antiga, a matemática se desenvolveu tendo o trabalho
de Euclides como base. Nesse trabalho, até mesmo a aritmética
era vista sob a ótica da construção com régua e compasso.
Entretanto, existem números que não podem ser construídos com
régua e compasso, como, por exemplo, o número pi e a raiz
cúbica de 2. Esta era a maior contradição da matemática grega:
ela pressupunha implicitamente que todos os números são
construtíveis, o que não é verdade. Isso deu origem aos três
problemas clássicos gregos que (embora não soubessem na época)
não podem ser resolvidos a partir da matemática grega. Essa
contradição gerou a necessidade de um novo sistema axiomático
para os números reais. Foi só no século XIX que foi a
compreensão da matemática se aprofundou ao ponto de demonstrar
que nem todos os números são construtíveis. A contradição da
matemática grega foi resolvida.
A lógica aristotélica
A lógica formal é uma ciência que estuda as regras que
permitem alguém chegar a uma conclusão a partir de um conjunto
fixo de premissas (hoje também chamadas de axiomas) e uma
sequência de passos lógicos. A lógica formal não pode
estipular quais premissas devem ser aceitas, mas apenas
avaliar se a conexão entre essas premissas e a conclusão
seguem as regras da lógica. O trabalho de Aristóteles em
Metafísicas serviu como base para a lógica clássica que até
hoje é a lógica padrão. Apesar de existirem outros sistemas
lógicos formais, é a partir dessa lógica que as pessoas são
ensinadas a pensar ao longo do sistema de ensino,
principalmente nas disciplinas de exatas.
Na lógica aristotélica, uma proposição assume um e apenas um
entre dois valores de verdade: verdadeiro ou falso. É isso
que, essencialmente, está por trás dos três princípios
aristotélicos (princípio da identidade, da não-contradição e
do terceiro excluído). Por causa disso, a lógica formal
aristotélica é incapaz de lidar com algumas sentenças
matemáticas. Nem mesmo alguns resultados mais complexos que
Euclides obteve poderiam ser formalizados na lógica
aristotélica. Como seria possível estudar proposições sobre
objetos desconhecidos (ou seja, variáveis) se o próprio valor
de verdade dessas proposições não são variáveis? Para poder
resolver essa contradição, a lógica formal também precisou
aprofundar sua compreensão sobre proposições e o pensamento
lógico.
O programa de Hilbert e a matemática do século XX
No início do século XX, havia uma crise na matemática:
faltava-lhe um fundamento. As teorias matemáticas estavam
dispersas, cada uma era desenvolvida a partir de suas próprias
regras. Hilbert lançou um programa para resolver essa crise:
criar um fundamento para toda a matemática. Isso significaria
criar um sistema axiomático a partir dos quais seria possível
construir e demonstrar logicamente toda a matemática que
existia até então.
Isso, evidentemente, era muito mais difícil do que na época de
Euclides, mas as ferramentas necessárias para concretizar essa
tarefa já haviam sido criadas.
Gottlob Frege desenvolveu em 1879 a lógica de predicados.
Frege foi responsável por criar técnicas dentro da lógica
formal que fossem capazes de lidar com variáveis, em especial
pela criação do conceito de quantificador. É com esse conceito
que a lógica de Frege foi finalmente capaz de formalizar um
velho teorema de Euclides: “existem infinitos números primos”.
Vale aqui uma observação: Frege não estendeu a lógica
aristotélica, mas a negou. Para Aristóteles, uma proposição só
pode ser verdadeira ou falsa, nada mais. Cada predicado, pelo
contrário, ora assume um valor verdadeiro, ora assume um valor
falso, dependendo de qual é o valor de cada variável nele
contido. Ao contrário das proposições de Aristóteles, o
predicado “x é branco” encerra em si as duas possibilidades,
verdadeiro e falso, ou seja, sua veracidade é relativa ao
valor de “x”. Frege incorporou na lógica formal um conceito
matemático e, sem perceber, deu um salto em direção à
dialética. Essa é uma verdade que os matemáticos de hoje não
admitem. A lógica fregeana desenvolveu e negou a lógica
aristotélica da mesma forma que a atual estrutura dos números
reais de hoje desenvolveu e negou os números construtíveis da
matemática grega.
O trabalho de Frege ficou desconhecido internacionalmente por
várias décadas. Em 1893, Frege lançou a primeira edição do
livro “Leis Básicas da Aritmética”, criando, a partir de sua
lógica, um sistema axiomático para a aritmética. Em 1903,
quando a segunda edição do seu livro estava para ser impressa,
Bertrand Russel mostrou que era possível chegar a um paradoxo
a partir de seu sistema axiomático, o conhecido Paradoxo de
Russel.
Na década de 1910, Bertrand Russel e Alfred Whitehead lançaram
três volumes de Principia Mathematica, que continham um
extenso trabalho (mais de 1900 páginas!) para construir toda a
matemática conhecida até então a partir de algumas dezenas de
axiomas. Este trabalho foi baseado na obra de inúmeros
matemáticos. Seu sistema lógico era fregeano. Os objetos
matemáticos eram construídos a partir da teoria de conjuntos
que Georg Cantor desenvolvera no século anterior utilizando a
teoria dos números reais. Após mais de dois mil anos, o
trabalho de Aristóteles e o de Euclides finalmente encontraram
uma síntese.
O programa de Hilbert buscava outros resultados. Algumas
décadas depois, Kurt Gödel e Alan Turing demonstraram que era
impossível alcançar a maioria dos objetivos que o programa
buscava.
A matemática e a lógica formal na atualidade
A matemática de uma época é a matemática da classe dominante.
Na Grécia Antiga, a matemática era uma ferramenta utilizada,
por exemplo, para administrar a propriedade privada, estudar a
música e as obras de arte. O que as escravas e os escravos
ganhavam com a matemática? Nada. Pelo contrário: a classe
dominante, que detinha a propriedade privada, encontraria na
matemática uma forma de quantificar e administrar seus
escravos, pois eles eram propriedades.
Hoje em dia, as universidades, as revistas acadêmicas e as
pesquisas científicas estão cada vez mais sob o controle das
empresas e dos bancos, direta ou indiretamente. As áreas que
servem diretamente ao lucro das empresas (como as engenharias)
recebem volumes consideráveis de dinheiro para que possam
desenvolver suas pesquisas. Cada vez mais laboratórios são
comprados e controlados diretamente pelas empresas. Áreas que
não servem para o lucro da burguesia ainda são financiadas
pelo Estado, seja por tradição ou por serem necessárias ao
desenvolvimento geral da universidade, mas recebem
financiamentos e incentivos bem menores e às vezes entram em
crise.
Esta lógica fez com que a matemática da atualidade se
dividisse em duas partes. Uma parte, conhecida como matemática
aplicada, diz respeito às pesquisas que estudam a matemática
ligada à atividade humana e que, por isso, podem ser
apropriadas e direcionadas pelas empresas. A matemática
aplicada é utilizada, por exemplo, para estudar e otimizar o
processo de produção e de transporte das mercadorias, evitando
desperdício e economizando tempo de trabalho. A outra parte, a
matemática pura, diz respeito ao estudo da matemática em sua
abstração, incluindo axiomas e teoremas, mas que não busca e
nem sequer conhece sua aplicação prática.
A academia ensina que a matemática só pode ser desenvolvida a
partir de axiomas, cuja veracidade é tomada como pressuposto e
como fundamento para o raciocínio lógico. Esses axiomas
geralmente incluem uma concepção fregeana da lógica. Isso tudo
cria a ilusão de que a matemática se desenvolve a partir do
“pensamento puro”, desvencilhado da materialidade, que
independe de qualquer subjetividade ou contexto histórico no
qual o ser humano que a estuda está inserido.
A História, entretanto, mostra que a matemática, na verdade,
se desenvolveu historicamente a partir da abstração da
atividade humana concreta sobre a natureza e que sempre esteve
ligada ao seu contexto histórico e social. A lógica também se
desenvolveu historicamente a partir do conhecimento humano
sobre a própria natureza. Descobertas recentes na Física, por
exemplo, levaram à criação de outros sistemas lógicos formais,
como a lógica quântica e a lógica fuzzy, que desobedecem às
regras da lógica aristotélica.
Enquanto o fundamento para a matemática grega eram os
postulados de Euclides, o fundamento para a matemática de hoje
é o sistema axiomático de Zermelo-Fraenkel. Esse sistema não
tem como base a atividade humana nem características da
natureza, seus axiomas não podem ser verificados empiricamente
e não são nem um pouco evidentes.
Muitas pessoas julgam que eles são intuitivos. Essas pessoas
passaram a infância brincando com bolinhas, aprendendo a
contar maçãs e laranjas, a desenhar círculos ao redor delas
para representar conjuntos, estudaram matemática durante os
ensinos fundamental, médio e superior e só então puderam
estudar e entender o significado de cada um dos axiomas.
Outras pessoas defendem que a matemática é uma invenção
humana, que o universo matemático é uma abstração humana que
não existe. Entretanto, não só a matemática é produto da
abstração humana do mundo real, como também, através do
trabalho humano, se mostra capaz de entender, prever e
modificar o mundo ao nosso redor.
Alan Turing desafiou essa lógica. Turing cresceu em um mundo
onde as máquinas se desenvolviam e adquiriam cada vez mais
importância. Isso o inspirou a conceber teoricamente uma
máquina capaz de executar qualquer algoritmo. A partir de sua
teoria matemática, não só ele demonstrou que alguns dos
objetivos do Programa de Hilbert não poderiam ser atingidos
quanto também foi capaz de criar sua máquina, a máquina de
Turing, hoje conhecida como computador. Turing mostrou que é
possível desenvolver a matemática não em sua pura abstração,
nem em sua aplicação empirista, mas sim relacionando a teoria
e a prática, o abstrato e o concreto.
Na verdade, a separação da matemática entre pura e aplicada
serve apenas para que as empresas consigam melhor se apropriar
de sua aplicação e manter a matemática pura sob controle,
longe do mundo real. A matemática, ao contrário do que a
lógica formal prega, não é um conjunto de resultados lógicos
obtidos de axiomas que foram entregues aos seres humanos pelos
Céus. A compartimentação do conhecimento impede o
desenvolvimento da matemática porque seu fundamento não está
nos axiomas, mas sim no seu desenvolvimento histórico que teve
como base o desenvolvimento da sociedade e de suas relações
socioeconômicas, assim como o desenvolvimento da lógica e de
todo o conhecimento humano. Apenas o materialismo históricodialético pode fazer com que a matemática supere os limites da
lógica formal.
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