1 Em busca da posse cativa: o Tratado de Devolução de Escravos

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Em busca da posse cativa: o Tratado de Devolução de Escravos entre a República Oriental do
Uruguai e o Império brasileiro a partir de uma relação nominal de escravos fugidos da
Província de São Pedro do Rio Grande do Sul (1851)
Jônatas Marques Caratti
Mestrando do PPG em História da UNISINOS (Bolsista CNPq)
Resumo: É sabido da existência de cinco tratados firmados entre o Império brasileiro e a República Oriental do Uruguai
em 1851, ao fim da Guerra Grande, conflito político-militar entre blancos e colorados. Um desses tratados referia-se ao
reconhecimento pelas autoridades uruguaias da devolução de escravos que haviam fugido de senhores rio-grandenses
desde o início da Guerra Farroupilha para o além-fronteira em busca da liberdade. Essa situação levou muitos capitãesdo-mato e militares rio-grandenses a adentrar o Uruguai em busca desses cativos, através de pagamentos combinados
com os próprios senhores, caso a propriedade fosse recuperada. Minha proposta é entender os diversos elementos em
torno dessa prática – apreensão de escravos fugidos - e tentar inseri-la nos conflitos políticos entre a República Oriental
do Uruguai e o Império brasileiro, especificamente na província de São Pedro do Rio Grande do Sul. Buscar-se-á,
também, traçar um perfil dos cativos fugidos, a partir do relatório anexado ao processo, que contém cerca de 270
escravos listados, compreendendo suas diversas características, como cor, idade, altura, corpo, ofício, naturalidade e
sinais.
Palavras – Chave: Fugas – Fronteira – Capitão- do -Mato – Tratado de Devolução de Escravos.
Para início de conversa...
Se existe dentro das relações entre Escravidão e Fronteira um tema conhecido de forma
geral pela historiografia, esse tema são as fugas de escravos rio-grandenses para as terras da
República Oriental do Uruguai. Tais fugas estão no imaginário social de forma muito presente, parte
pela vinculação entre essas e as formações de quilombos, parte como forma de obtenção da
liberdade através da ultrapassagem pela fronteira. Contudo, numa região específica de fronteira,
essas fugas tomam significados muito próprios. Elas não ocorriam sem objetivos, nem eram
escolhas influenciadas somente pela violência do sistema. As fugas para o além-fronteira, conforme
demonstraram os estudos de Silmei Sant'Ana Petiz, tinham por finalidade a obtenção da liberdade,
e, por que não, dar um novo rumo à difícil vida de cativo, que dali em diante seria mediada pela
liberdade.1
Este artigo tem como objetivo abordar o tema das fugas, porém mais especificamente
analisar como os senhores escravistas buscaram seus cativos fugidos após o Tratado de Devolução
de Escravos de 1851. Esse Tratado foi assinado entre o Brasil e o Uruguai e pode ser considerado
como uma forma de o Império ingerir na economia e na política republicanas. Em outras palavras,
segundo Kuhn, foi um tratado desonesto, que apenas prejudicou o Uruguai e privilegiou os
1 PETIZ, 2006, p. 136.
1
interesses brasileiros na sua antiga província Cisplatina.2
Ao fazer uma breve revisão historiográfica sobre o tema, algumas questões ficaram sem
respostas. Diversos agentes, como por exemplo os capitães-do-mato, foram tidos como sujeitos
conhecidos, já tomados de forma, sendo que muitos desses indivíduos não foram caracterizados de
forma aprofundada pela historiografia, permanecendo a imagem do agarrador de escravos,
galopando pelas matas e estâncias, como representou Rugendas em suas pinturas.3 Mas quem era
esse indivíduo? O que o levou a essa atividade? O pagamento valia os infortúnios, as chuvas, e a
resistência dos próprios cativos?
Além dessa questão, que por si só já nos permite um bom tempo de conversa, as fugas de
que tratamos neste artigo são planejadas e realizadas em meados do século XIX, época em que o
Uruguai vive um período de instabilidade política, e o Brasil expande suas fronteiras para o lado
castelhano. As fugas, então, tomam um contexto específico, e por isso mesmo é que o Tratado de
Devolução de Escravos foi formulado. As multidões de escravos de senhores rio-grandenses que
viveram como libertos no Uruguai foram reconhecidas pelo governo uruguaio ainda como
propriedade cativa de seus senhores. Isso levou o governo republicano a permitir a recuperação da
posse perdida, deixando os senhores brasileiros de escravos à vontade para contratar capitães-domato com o fim de realizar tal empreitada.
O que queremos compreender é como funcionou essa “busca pela posse cativa”. De que
forma os senhores escravistas foram atrás de seus preciosos e valiosos cativos? Alguém os
representava? De que maneira os cativos eram encontrados no Uruguai? Qual o perfil dos cativos
fugidos? O Tratado de Devolução de Escravos foi cumprido à risca, uma vez que autorizava
somente a captura de escravos fugidos a partir de 1851? De fato, temos muito papo pela frente.
Então é melhor nos apressarmos e começarmos logo a história.
Manoel Marques Noronha: experiências de um capitão do mato na fronteira rio-grandense
Esta história poderia começar de muitas formas, mas vamos nos concentrar em apenas uma
delas. Manoel Marques Noronha, em um dos processos em que foi julgado pelo crime de
escravização ilegal de uma crioula livre, afirmou trabalhar como lavrador. Alguns meses depois,
ainda nesse processo, o inquiridor lhe fez a mesma pergunta, tendo na resposta de Manoel Noronha
2 KUHN, 2002, p. 86.
3 RUGENDAS, Johann Moritz. Viagem Pitoresca através do Brasil. São Paulo: Martins, 1976.
2
outro ofício: Capitão da Guarda Nacional. Finalmente, na última qualificação de Noronha, descrita
pelo escrivão, ele ainda disse à Justiça ser “agarrador de negros fugidos”. Manoel Marques Noronha
acabou sendo absolvido pelo Cartório Júri, mas suas variadas atividades nos deixaram um
problema.
Durante os meses em que permaneceu preso em Pelotas, Manoel, que era morador em
Jaguarão, na fronteira sul do Império brasileiro, disse estar envolvido em diversas atividades. Em
nenhum momento ele negou essas três ocupações, mas ocultou, enquanto pôde, que “agarrava
negros fugidos”. Como lavrador, Manoel Noronha não teria nenhum envolvimento no crime do qual
era acusado. Quando precisou, usou seus títulos militares para tentar se sobrepor ao Juiz. E,
finalmente, depois de inúmeras testemunhas terem afirmado que ele apreendia escravos que haviam
fugidos de seus senhores rio-grandenses, Noronha não teve saída. Foi nesse momento, frente a seu
desmascaramento, que ele apresentou ao Tribunal do Júri de Pelotas uma lista com informações a
respeito de 266 escravos fugidos: seus senhores, nomes, idades, cores, naturalidades, ofícios,
estaturas e sinais.
Essa lista extremamente interessante mostra empiricamente o interesse dos senhores de
escravos rio-grandenses em recuperar sua posse cativa perdida para o além-fronteira, dado um
pouco diferente do que a historiografia até o presente nos trouxe. Não teria sentido para um senhor
recuperar um escravo fugido, pois para trazê-lo ele despenderia mais recursos do que o mesmo
valia. Além disso, para muitos senhores, havia dúvidas quanto ao sucesso da apreensão, uma vez
que, se o capitão-do-mato não encontrasse o escravo, teriam que pagar suas despesas de igual modo.
A lista apresentada como prova por Manoel Marques Noronha à Justiça, numa tentativa de
escapulir da cadeia, vai ao encontro do que dizia explicitamente o Tratado de Devolução de
Escravos (1851), artigo 6° e seus incisos:
6° El Gobierno de la República Oriental del Uruguay reconece el principio
de la devolución respecto a los esclavos pertenecientes a súbtidos
brasileiros, que contra la voluntad de sus Señores, fueren de cualquier
manera al territorio de la dicha República, y allí se hallaren. Se observarán
em devolución las seguientes reglas:
1° - Los referidos esclavos serán reclamados o directamente por el Gobierno
Imperial, o por medio de su Representante em la República.
2° - Se admite que la reclamación pueda ser hecha por el Presidente de la
Provincia de San Pedro de Rio Grande del Sur, en el caso en que el esclavo
o esclavos pertenezcan a súbditos brasileiros residentes o establecidos en la
miesma Provincia.
3
3° - Se admite igualmente que la reclamación pueda se hecha por el Señor
del esclavo y ante la autoridad del lugar en que él estuviere, cuando el Senõr
del esclavo entrase en su seguimiento para capturarlo, al territorio Oriental,
o cuando mande también en su seguimiento un agente especialmente
autorizado para el dicho fin.
4° - La reclamación de que se trata deberá ser acompañada de título o
documento que, según las leys del Brasil, sirva para probar la propriedad
que se reclama.
5° - Los gastos que se hicieren para la aprehensión y devolución del esclavo
o esclavos reclamados, correrán por cuenta del reclamante.4
Um primeiro elemento importante desse Tratado é que o governo uruguaio só se
responsabilizaria em devolver os escravos que tivessem fugido “contra la voluntad de sus Señores”.
Isso porque havia um costume entre os senhores de escravos rio-grandenses de mandar seus cativos
para estâncias de suas propriedades do outro lado da fronteira. Isso era ilegal, já que a Republica
Oriental do Uruguai havia decretado o fim da escravidão entre os anos de 1842 e 1846.
Esse elemento fica mais claro no inciso 2° do artigo 6° do decreto, o qual afirma que a
reclamação de escravos fugidos só poderia ser feita por “súbditos brasileiros residentes o
estabelecidos en la miesma Provincia”. Assim, os gaúchos que moravam definitivamente ou
temporariamente no Uruguai não podiam reclamar ao governo uruguaio as fugas de seus escravos,
já que eles mesmos, na prática, nem deveriam morar lá. Só seriam considerados escravos fugidos
aqueles que tivessem ultrapassado a “linha demarcatória” e passado para o Uruguai.
Outro elemento importante está citado no inciso 3° do artigo 6°, no qual se autoriza que o
senhor do cativo ou “un agente especialmente autorizado” pudesse recuperar o escravo, indo até o
Uruguai buscá-lo. Aqui entra o papel do tão conhecido capitão-do-mato, que seria pago pelo senhor
do escravo para agarrá-lo e trazê-lo novamente à sua estância, charqueada, ou até mesmo a regiões
urbanas. Os incisos finais do artigo 6° explicam que todas as despesas para recuperar a posse serão
pagas pelo senhor do cativo, assim retirando a responsabilidade do governo de qualquer apoio à
propriedade privada.
Foi esse artigo 6° do Tratado de Devolução de Escravos que levou Manoel Marques
Noronha ao Uruguai. Aliás, não era a primeira vez que ia a terras orientais. Noronha, enquanto
Capitão da Guarda Nacional, esteve diversas vezes em Montevidéu e lutou a favor do apoio
4 Tivemos acesso a esta documentação por meio da dissertação de mestrado de Eliane Zabiela. Tratados celebrados
em 12 de 10 de 1851. Tratados y convenios internacionales: Secretaria del Senado, documentación y antecedentes
legislativos: registro alfabético por materias e indices. Montevideo: República Oriental del Uruguay, Cámara de
Senadores, 1993. Tomo I, p.36. Conteúdo: Suscritos por el Uruguay em el período mayo de 1830 a diciembre de
1870,
4
imperial com bravura. Talvez seja por isso que Manoel Marques Noronha recebeu tão grande
incumbência. É possível que não houvesse homem melhor do que ele, conhecedor da região,
experiente (ele contava 55 anos no ano do processo de 1854) e bem relacionado com os militares de
ambos os lados da fronteira.
Documentos mil: perfil dos escravos fugidos em duas fontes primárias
Nossa primeira preocupação referente à relação de escravos fugidos encontrada foi a de
identificar se os mesmos já haviam sido listados por Silmei Petiz. Petiz encontrou 944 registros de
fugas de escravos no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS), no Fundo Polícia, a partir
de cartas enviadas pelos senhores às delegacias. Municípios como Rio Grande, Pelotas, Rio Pardo e
São José do Norte enviaram diversas correspondências às autoridades, informando a perda de seus
escravos. Foi então que se produziram diversas listas de cativos fugidos nos anos de 1848 e 1849.
Não foi a nossa surpresa quando percebemos que, dos 266 escravos incluídos na relação que
Manoel Marques Noronha entregou à Justiça, 262 deles não estavam listados por Silmei Petiz.
Apenas quatro escravos constavam nas duas listas: Francisco, 60 anos, Cabinda, escravo de Ana
Joaquina Dutra Martins; Zeferino, 24 anos, Crioulo, escravo do Coronel Procópio Gomes de Melo;
Antônio, 30 anos, Crioulo, escravo do Visconde de Jagoari e Francisco, 60 anos, Mina, escravo de
Francisco de Paula Silveira.5
Precisamos atentar, neste momento, às duas fontes que temos em mãos. A primeira, que se
encontra no AHRS e que foi a base da dissertação de mestrado de Silmei Petiz, é um conjunto de
listas escritas entre 1848 e 1849, de diversos municípios, já citados acima. Essas listagens foram
produzidas pelos delegados de polícia, conforme tomavam conhecimento das fugas, anunciadas
pelos senhores.
A segunda fonte, “a relação de escravos fugidos da província do Rio Grande”, anexada a um
processo criminal que está subsidiado no Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul
(APERS), foi produzida em 1852 por Manoel Marques Noronha, que ao seu cargo anotou outras
fugas que ocorreram naquela época.
Algumas palavras de Noronha nos fazem compreender tal ato:
Foi este motivo porque me apresentei ao Chefe Político do Serro Largo, para ver se
dava licença para agarrar naquele departamento os escravos que encontrasse e
5
Agradecemos ao Prof. Silmei Sant'Ana Petiz pela gentileza em disponibilizar seu banco de dados.
5
estivessem naquela lista; o tal Chefe Político no que viu esta lista, me respondeu
que era muita negrada, que o melhor é que eu esperasse o Chefe Político que era o
Coronel Manoel Aleman, que tinha ido para Montevidéu entender-se com o
Governo mesmo acerca destes escravos. Esperei doze dias, vim a Jaguarão a levar
mais cartas de ordens e no que voltei fui logo a casa do tal Bresques a saber se
havia já alguma ordem para entregar os escravos dos brasileiros: ao que me
respondeu que fazia três dias que tinha chegado um decreto do Governo em que se
ordenava que só entregariam os escravos que tivessem fugidos de 4 de Setembro de
1851 em diante.6
Esse foi apenas um pedaço extraído da carta que Manoel Marques Noronha escreveu ao Júri
de Pelotas no dia 17 de Agosto de 1854. Já se haviam passado alguns anos desde o evento, mas
Noronha lembrou de detalhes importantes que podem nos sugerir algumas hipóteses. Tentando
explicar que suas atividades eram autorizadas pelos delegados de polícia das cidades em que
passava, o Capitão da Guarda Nacional revelou que estava profundamente envolvido com o resgate
dos “escravos dos brasileiros”.
A lista não impressionou somente a nós, quando tivemos o primeiro contato, no verão de
2007. Nos idos de 1851, ano do próprio Tratado de Devolução de Escravos, o Chefe Político se
surpreendeu com tamanho número de escravos brasileiros que viviam no Estado Oriental do
Uruguai. Somando os registros encontrados por Silmei a esses apresentados, o número de fugas
documentadas passa de 944 para 1206, e é possível que muitas mais tenham ocorrido.7
Mas parece que, o Tratado de Devolução não agradou muito a Noronha e a outros tantos
brasileiros. Apesar de não sabermos exatamente quantos escravos fugiram antes e depois de 1851, é
bem provável que o número de fugas anteriores a essa data fosse superior. Em alguns casos, o
escravo ficava tanto tempo fugido, que restava aos herdeiros do finado senhor irem à sua procura.
Sabemos de algumas histórias, como a do crioulo Luciano, que fugiu em 1852, dando
garantia ao seu senhor, o Coronel Tomas José de Campos, de recuperá-lo segundo o estipulado no
Tratado. Não com a mesma sorte, Faustino Correia viu seu escravo africano João fugir em 1832,
não sabendo notícias suas até 1851, quando passou seu nome a Noronha. De acordo com o Tratado,
Correia não teria direitos de buscar seu escravo no Uruguai, mesmo com pistas de seu paradeiro.
Infelizmente, as listas eram limitadas e algumas informações jamais saberemos. Por
exemplo, se a fonte apresentasse, de forma regular, o tempo da fuga dos escravos, saberíamos
quantos deles fugiram antes e depois de 1851, como falamos anteriormente. Dos 266 indivíduos
6
APERS, Processo-Crime, Cartório Júri, Pelotas, Processo 442, 1854.
7
Não contabilizamos as fugas registradas em jornais, somente nas duas fontes documentais analisadas aqui.
6
listados na relação de escravos fugidos da província do Rio Grande (APERS), apenas em 11,2% dos
casos há informação sobre o período que permaneceram desaparecidos. Esse é um índice muito
baixo para podermos inferir com alguma propriedade; no entanto, ele nos diz algo importante.
Normalmente, a Guerra dos Farrapos é considerada como um evento que permitiu a fuga de
escravos em massa. A desorganização da administração e as fronteiras mal vigiadas em tempo de
guerra são alguns dos motivos que permitiram que escravos se engajassem nesse projeto. No
entanto, o quadro abaixo mostra o seguinte:
Tabela 1
Anos que os escravos fugiram conforme a Relação de 1852
Ano
N° Escravos Ano
N° Escravos
1830
1
1843
2
1834
1
1844
3
1836
1
1845
3
1837
1
1846
2
1838
1
1848
1
1839
2
1849
1
1841
4
1851
2
1842
2
1852
3
Fonte: APERS, Processo-Crime, Cartório Júri, Pelotas, Processo 442, 1854.
Não estamos levando em conta, aqui, a lista de Silmei Petiz, pois como este trabalha com
documentos que vão até 1849, consideramos que todos os 944 registros são anteriores ao Tratado de
Devolução de Escravos Fugidos de 1851. O que nos interessa, nessa tabela, é justamente mostrar
novas evidências de fugas de escravos, que não compunham a lista de Petiz.
Cerca de 30% desses escravos não fugiram durante o período da Guerra Farroupilha. Isso
significa que havia outras motivações e interesses, que ultrapassavam as hipóteses já apresentadas.
Apesar de a maioria das fugas desse documento terem ocorrido entre 1835 e 1845 (70%), não
podemos descartar as demais, uma vez que as experiências de fugas entre os escravos foram
variadas.
Outra questão levantada são os números de escravos que cada senhor perdia em fuga.
Alguns tiveram o azar de perder praticamente todo o plantel numa fuga coletiva para o Estado
Oriental do Uruguai. Outros escravos, de maneira mais espontânea, fugiram sozinhos. De acordo
7
com a Tabela 2, a maior parte dos senhores perdeu apenas um cativo.
Tabela 2
Número de escravos fugidos de um mesmo senhor
N°
Senhores
%
Escravos
%
1
123
78,3
123
46,2
2
16
10,1
32
12
3
10
6,3
30
11,2
4
4
2,5
16
6
6
1
0,6
6
2,2
8
1
0,6
8
3
9
1
0,6
9
3,3
10
1
0,6
10
3,7
14
1
0,6
14
5,2
18
1
0,6
18
6,7
Total
157
100
266
100
Fonte: APERS, Processo-Crime, Cartório Júri, Pelotas, Processo 442, 1854.
Isso demonstra que a fuga individual foi mais freqüente que a coletiva. Silmei Petiz
verificou em seus dados que, das 944 fugas de sua pesquisa, 541 (57,3%) foram feitas de maneira
espontânea e individual e 403 (42,6%) foram acompanhados por um ou mais escravos. A soma em
percentagem das fugas coletivas em nossas pesquisas ficou em torno de 20%. É possível que
vejamos esses dados de forma complementar, pois se tratam de fugas ocorridas praticamente no
mesmo período.
No que se refere ao sexo dos senhores e dos escravos, as aproximações com os dados de
Petiz são maiores. A superioridade masculina de escravos fugidos apareceu de forma empírica nas
duas listas. Dos 157 senhores que avisaram sobre a fuga de seus escravos, 138 (87,8%) deles eram
homens e somente 19 (12,2%), mulheres. Os dados se repetem na variável sexo dos escravos, na
qual, dos 266 cativos listados, 239 (89,8) eram homens e 24 (9%), mulheres.8 Essas informações
vão ao encontro de sensos, registros paroquiais e guias de entrada de escravos, que demonstram a
predominância de escravos de sexo masculino nos plantéis9 na primeira metade do século XIX.
8 Dos 944 escravos fugidos, Silmei Petiz encontrou 894 homens (94,7%) e 50 mulheres (5,2%). PETIZ, 2006, p. 110.
9 BERUTE, 2006, p. 56.
8
Tabela 3
Sexo de senhores e escravos
Sexo
Senhores
%
Sexo
Escravos
%
M
138
87,8
M
239
89,8
F
19
12,2
F
24
9
Total
157
100
266
100
Fonte: APERS, Processo-Crime, Cartório Júri, Pelotas, Processo 442, 1854.
Na Tabela 4 é possível verificar a cor dos escravos fugidos. A maior parte deles eram negros,
o que não significa afirmar que eram somente africanos. Encontramos nos registros uma expressão
maior da cor negra para africanos, mas também identificamos crioulos designados assim. No
entanto, os pretos todos eram africanos, de nações variadas, como Benguela (África CentralAtlântica), Nagô (África Ocidental), Congo e Angola (África Central-Atlântica).10 Os pardos e
cabras foram encontrados sempre como Crioulos, ou seja, nascidos no Brasil. Alguns pardos ainda
foram apresentados mais especificamente como da “Bahia” ou “Pernambuco”.
Tabela 4
Cor dos escravos
Cor
N°
%
Negra
201
75,3
Mulata
33
12,5
Parda
12
4,5
Preta
10
3,7
Fula
5
1,8
Cabra
5
1,8
Total
266
100
Fonte: APERS, Processo-Crime, Cartório Júri, Pelotas, Processo 442, 1854.
Os mulatos, por sua vez, foram verificados de forma mista: na maioria dos casos, eles eram
crioulos, mas em três casos foram encontrados como “Nação” ou “Cabinda”. Conforme Gabriel
10
Nações Africanas consideradas conforme ALADRÉN, 2008, p. 65.
9
Aladrén, “a historiografia já observou que os designativos de cor, no Brasil escravista, estão
relacionados não apenas com o fenótipo, mas também com a condição social de quem era assim
identificado”.11 Portanto, não podemos deixar de levar em consideração esse excerto para pensar a
questão da designação de cor. No entanto, no momento em que os senhores procuravam seus
escravos fugidos, talvez tenham se valido principalmente dos próprios fenótipos, já que o objetivo
de designá-los “pretos”, “pardos”, “fulas” e “mulatos” iria ajudar de forma significativa na captura.
Tabela 5
Nacionalidade dos escravos fugidos
Nacionalidade
N°
%
Crioula
128
48,1
Bahia
25
Pernambuco
9
Rio de Janeiro
5
Ceará
2
Rio Grande do Sul
2
São Paulo
1
Santos
1
Porto Alegre
2
Pedras Altas
1
Campos
1
Pernanguá
1
Africana
127
Nação
25
Benguela
22
Cabinda
14
Mina
12
Congo
11
Moçambique
11
Nagô
7
Angola
6
Rebola
5
Cabo Verde
4
47,7
11 ALADRÉN, 2008, p. 112.
10
Monjolo
3
Cassange
2
São Tomé
2
Carabá
1
Ojá
1
Camaeuam
1
Castelhana
1
Não Informa
10
Total
266
0,3
100
Fonte: APERS, Processo-Crime, Cartório Júri, Pelotas, Processo 442, 1854.
A longa Tabela 5 mostra a nacionalidade dos escravos conforme a Relação de Cativos
Fugidos, que é a fonte base deste artigo. Nas pesquisas de Silmei Petiz, 52,5% dos escravos que
fugiram para o além-fronteira eram africanos. No entanto, 22,3% dos escravos não puderam ter sua
nacionalidade identificada, e somente 24,7% nasceram no Brasil. Em nossos dados não houve uma
diferença importante entre Africanos (47,7%) e Crioulos (48,1%). O fato é que tivemos sorte, pois
identificamos a nacionalidade de 256 escravos listados na relação, com apenas dez não informados.
Com essas evidências, talvez se possa pensar que tanto escravos crioulos como africanos tiveram
por plano, de forma aproximada, a fuga para a obtenção da liberdade em terras castelhanas.
O que se buscou nesta parte do artigo foi apresentar o perfil dos escravos fugidos,
dialogando com os resultados de pesquisa de Silmei Petiz. Muitas outras variáveis poderiam ser
possíveis de análise, como a idade, a estatura, os sinais etc. No entanto, nosso foco maior é a busca
da posse cativa, tema que pretendemos trazer de forma mais clara a partir de agora.
Em busca da posse cativa: a africana Joaquina Maria
Manoel Marques Noronha, durante suas idas e vindas pela fronteira, acabou conhecendo
Maria Duarte Nobre, moradora de Jaguarão. Essa cidade havia sido fundada para proteger as
fronteiras da Coroa portuguesa contra os espanhóis. Sua população, em 1833, era de 5.457 almas,
sendo que 2.720 desses habitantes eram brancos (homens e mulheres; estrangeiros e nacionais) e
2.531 pretos (homens e mulheres; escravos e livres).12 Maria Nobre procurava havia muitos anos
12 FRANCO, 2007, p. 115.
11
uma escrava africana de nome Joaquina, que havia fugido em 1843 para o Estado Oriental do
Uruguai.
Foi assim que se deu o negócio: Maria Duarte Nobre detalhou as características de sua
escrava fugida, com boas promessas de recompensa, e Manoel Marques Noronha se encaminhou ao
Uruguai mais uma vez. Não sabemos se essa história ocorreu no meio-tempo em que Noronha havia
voltado do Uruguai à espera de uma confirmação para agarrar os escravos dos brasileiros. De
qualquer forma, indica uma rede de contato importante entre militares e civis para a busca de
escravos fugidos.
O fato é que Joaquina Maria, escrava de Maria Duarte Nobre, havia fugido muitos anos
antes do Tratado de Devolução de Escravos, que naquela época estava a ser firmado. Mesmo assim,
Noronha foi a cavalo a Serro Largo em busca de sua “encomenda” viva. Como a fronteira era um
espaço dinâmico e cosmopolita, Manoel Noronha tratou de conseguir pistas sobre o paradeiro de
Joaquina. E encontrou. Dois indivíduos, sobre os quais sabemos apenas que eram “espanhóis”,
indicaram a Noronha um rancho nas imediações de Melo, onde vivia uma escrava fugida.
Manoel Marques Noronha, acompanhado por outros três homens fardados e armados, entrou
na dita casa, onde encontrou uma africana com as mesmas características de Joaquina. Mas segundo
os relatos do próprio Noronha, “ela não queria confessar” que era a escrava procurada. Foi por isso
que Noronha, ao ver que a mesma tinha uma cria, agarrou a menina e a trouxe consigo, para
desespero de Joaquina Maria e de Joaquim Antônio, africano com quem ela havia contraído
matrimônio dois anos antes. Frente a tal acontecimento, Joaquina resolveu confessar e explicar que
estava guardando dinheiro para oferecer à sua senhora em troca de sua alforria.
Isso, porém, não foi o bastante. Diante de uma guarda bem armada e uma coluna comandada
pelo Barão do Jacuí nos arredores de seu rancho, os africanos Joaquina e Joaquim nada puderam
fazer para evitar que sua filha Faustina fosse levada por Manoel Noronha. Ao chegar a Jaguarão,
Noronha foi ao encontro de Maria Duarte Nobre, mas não conseguindo contatar com a mesma,
soube por um sobrinho seu que não havia interesse da parte de Maria em ficar com Faustina. Foi
então que Noronha ofereceu 200 patacões em prata pela “preta menor”, e por suas despesas pela
apreensão, acabou comprando-a por 150 patacões, o equivalente a 350$ e 400$ (Moeda Nacional do
Império).
Faustina acabou sendo vendida diversas vezes entre os anos de 1852 e 1853. O Capitão
Noronha permaneceu pouco tempo com ela, o que dá a entender que o mesmo a comprou para
12
negócio. Já seus outros senhores, Henrique Hockmann (Ferreiro) e José Maria Pinheiro (Capitão) a
mantiveram por mais tempo em sua posse.
Foi somente em 1854, por meio de um bilhete anônimo vindo de Pelotas, que o africano
Joaquim Antônio soube notícias de sua filha Faustina. Ao se iniciarem as investigações, Manoel
Noronha foi indiciado como réu e, na tentativa de sair livre das punições da Justiça, ele entregou a
dita lista, que se tornou peça importante tanto para a defesa do réu, em meados do século XIX,
como para nossa defesa, no ano de 2009.
Maria Duarte Nobre não conseguiu buscar sua escrava no Estado Oriental do Uruguai. Nas
duas vezes em que tentou recuperá-la, entrou em apuros, sendo que, na segunda vez, quase parou na
cadeia por vender Faustina, filha de Joaquina, mas nascida livre no Uruguai, a Manoel Marques
Noronha. Suas tentativas se tornaram infrutíferas, e não temos conhecimento de um documento
posterior que informe se Joaquina foi recuperada.
Manoel Marques Noronha continuou com seu trabalho de “apreender escravos fugidos dos
brasileiros” e em 1856 teve novamente que dar explicações à Justiça por vender um “escravo” que
mostrava evidências de ser livre. A história se repetia: a mãe do mulatinho Fermino, vítima do
processo, era escrava no Rio Grande do Sul, mas havia vivido muitos anos no Estado Oriental do
Uruguai.13
Noronha recebia ordens expressas do subdelegado de Pelotas “para prender todos os que
desconfiasse ser escravo”. No entanto, com as leis abolicionistas uruguaias de 1842 e 1846, essa
situação se tornava delicada. Não era mais tão fácil identificar um escravo pela cor ou por parecer
fugido. Perante os tribunais, dezenas de indivíduos negros foram reconhecidos como livres pela
Justiça, apesar de muitas vezes serem perseguidos pelos delegados como escravos. Essa é a
especificidade de que falamos no início do texto.
Ser escravo ou livre no Rio Grande do Sul passava por um reconhecimento social, que
muitas vezes era definido a partir das averiguações das autoridades judiciais. Neste sentido, a busca
pela posse cativa autorizada claramente pelo Tratado de Devolução de Escravos de 1851 tornou-se
ineficiente, pois não podia ir contra o que era decidido pela Justiça Imperial do Brasil.
Compreendemos que, apesar de muitos senhores terem direito à posse de seus escravos, as
desavenças entre o Império e a República não possibilitaram que isso ocorresse de fato.
Da mesma forma que muitos senhores rio-grandenses conseguiram capturar seus escravos,
13 APERS, Pelotas, Processo-Crime, Cartório Júri, N° 500, 1856.
13
mesmo tendo eles praticado a fuga anos antes de 1851 (o que iria contra o Tratado), outros tantos
senhores também viram seus escravos serem libertados na Justiça em prol de um conflito
diplomático entre os Brasil e Uruguai, que perduraria até meados da década de 1860.
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