Freud e o Judaísmo – Inserçao do judaismo nas ideias

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Matilde Groisman Gus
Matilde Groisman Gus*
Antes de abordar o tema a que me propus, quero tentar
sintetizar a história de nosso povo – a “Nação”, como fomos
chamados no tempo da Inquisição. Antes da Era Comum,
nós, os judeus, tínhamos em Canaã, uma terra que, segundo
a Bíblia, nos foi destinada por Deus, como recompensa pelo
pacto de devoção monoteísta de Abraão e de respeito aos 10
Mandamentos de Moisés. Então, vivíamos como as demais
nações da região, eventualmente lutando em defesa da independência, e do direito à prática de nossos costumes e religião, na Terra Prometida.
A partir da Grande Diáspora, com a destruição do 2º
Templo pelos romanos, no ano 70 da Era Comum, espalhados pelo mundo, parte ainda na própria Terra de Israel e no
Oriente Médio, outros na África e a maioria na Europa, iniciou-se a sofrida saga do povo judeu.
Estigmatizados, discriminados, perseguidos e com freqüência expulsos de suas casas, vilas ou cidades, os judeus
eram proibidos de freqüentar colégios, universidades e de
exercer profissões mais rentáveis ou dignas. Para sobreviver, somente podiam realizar atividades de ganho miserável
ou aceitar tipos de trabalho como, por exemplo, servindo os poderosos senhores feudais, na cobrança de dívidas e tributos dos seus súditos – trabalho que era então considerado vil, o que lhes granjeou a fama de ávaros, e
rapidamente se transformou num estereótipo muito negativo, que se manteve até bem pouco tempo atrás.
Além do horror que viveram na Idade Média, trucidados em pogroms,
acusados de assassinatos rituais, de espalharem a peste e vilanias do gênero, de sofrerem os judeus o genocídio das Cruzadas, da Inquisição, na
Modernidade, o que parecia impossível, partindo da Alemanha de Hitler,
com um povo considerado de alto nível cultural, aconteceu o Holocausto –
o assassinato de 6 milhões de judeus em sua maioria do centro e leste europeus – sob um olhar indiferente, senão complacente, do resto do mundo,
mundo este dito civilizado.
Pelo exposto, não seria de admirar que o povo judeu, diante de tão
terríveis adversidades, desaparecesse como tal, declarando sua descrença
num pacto que, pelo menos fisicamente, só lhe trouxe morte e suplício, em
lugar da terra do leite e do mel que lhe fora prometida por Deus.
Porém, o que, quase inexplicavelmente, aconteceu?
O povo manteve seu compromisso divino, aprofundando-se no estudo
do Tanach – nossa Bíblia, e do Talmud, que reúne a sabedoria de nossos
sábios, na análise dos valores éticos e na interpretação das leis judaicas.
Além disso, os judeus acompanharam, através dos tempos, o progresso das nações e sociedades onde vivem. É difícil ignorar as contribuições
do povo judeu para a ciência, a literatura, as artes, a tecnologia, a filosofia
e a medicina em especial. Também é difícil, eu diria até impossível, comprovar agressões e violência de nosso povo, cuja luta foi e será sempre em
defesa da vida e do direito de existir como Nação e como Estado.
E assim chegamos aos dias de hoje, com um Estado dos judeus que,
em menos de 60 anos, já atingiu um desenvolvimento incrível em praticamente todas as áreas do conhecimento humano e, também, com comunidades judaicas espalhadas pelo mundo democrático, onde vivem pacifica-
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mente integradas na sociedade maior, contribuindo, sem dúvida, para o
engrandecimento dos países em que se inserem.
Após essa tentativa de síntese da saga que os judeus viveram nesses
quase 2000 anos, voltemos nossos olhos para a época e a vida judaica de
Freud (que nasceu em 6 de maio de 1856 em Fraiberg, (hoje Pribor) República Tcheca – e morreu aos 83 anos, em Londres, em 23 de setembro de
1939). Falamos de Schlomo Sigismund Freud, cujas qualidades de inteligência, criatividade, lucidez e coragem intelectual comemoramos todos, e
o qual, a Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre homenageia
no sesquicentenário de seu nascimento, através deste inspirado evento – A
Psicanálise (Freud) e o Judaísmo.
O anti-semitismo que, pouco antes do nazismo, já não era tão gritante
na Europa, talvez como uma herança cultural e filosófica do Iluminismo do
século XVIII, começa a se revelar, no século XX, a partir da década de 30,
de forma sistemática e organizada principalmente na Alemanha, Áustria e
Polônia; embora mais silencioso, era porém muito perceptível ainda no
restante da Europa, com respingos em nossa quase sempre democrática
América. Como exemplo, cito a famosa escritora americana Lílian Elman
que, em um de seus livros, comentando sobre o anti-semitismo em seu
país, relata ter visto, na entrada de um hotel de campo próximo a Nova
Iorque, uma placa com um aviso: “Proibida a entrada de cães e judeus”.
Foi, talvez, o clima antijudaico que Freud enfrentou, o que o fez declarar, inúmeras vezes, sua origem e sua inserção como membro da Nação,
embora negando sempre qualquer adesão à religião propriamente dita.
Como todos sabemos, Freud atribuía, à sua origem judaica, algumas das
qualidades que o projetaram como analista da mente e da alma.
Sua criação da Psicanálise revolucionou o mundo moderno, trazendo
em seu bojo a descoberta de um espaço, o inconsciente, e construindo a
teoria da dinâmica que se desenvolve neste espaço, para assim buscar desvendar a complexidade da alma humana.
Ocorreu-me, ao organizar este texto que talvez fosse interessante estabelecer uma analogia dessa teoria com a de Albert Einstein, outro judeu,
não menos famoso. Pois Einstein (1879-1955, Prêmio Nobel em 1921)
também, na mesma época (1913-1916), em seu estudo da Relatividade,
descobriu um novo espaço variável, o Tempo, incluindo-o, juntamente com
o espaço tri-dimensional, numa nova e revolucionária Teoria, explicando
assim grande parte da complexidade dos espaços que nos cercam.
Um explicou a complexidade da alma humana e o outro a complexidade do Universo.
Como conseqüência, temos dois grandes cientistas desvendando o
desconhecido, conduzindo, ambos, o ser humano a caminhos nunca antes
sequer sonhados!
Porém, voltando a Freud, foi através de sua genial teoria que um enorme contingente de problemas do corpo e da alma puderam e podem ser
resolvidos, com um incalculável ganho para o ser humano, tanto individual
como socialmente.
Desde então, expressões como “Freud explica, ato falho, complexo de
Édipo e complexo de inferioridade” passaram a fazer parte do nosso cotidiano.
Podemos constatar que, muitas vezes, a discriminação, o ódio étnico
ou racial, a judeofobia, e inclusive o auto-ódio judaico, eram realmente
preconceitos que conduziam à caracterização de um complexo de inferioridade atribuído ao judeu, explicando talvez, pelo menos em parte, o fácil
domínio do nazi-fascismo, que lhes roubou a dignidade e o respeito próprio.
Devo agora falar um pouco sobre como Freud via e sentia o judaísmo,
intuindo daí a importância deste judaísmo no desenvolvimento da genial
Teoria Psicanalítica Freudiana.
Como todos aqui sabemos, Freud declarava que não era religioso. No
prólogo de seu importante livro Totem e Tabu, para a edição em língua
hebraica, ele escreve: “[. . .] o autor está tão afastado da religião judaica
como das demais religiões; no entanto, nunca renegou sua pertinência a
seu povo; ele se sente judeu e não deseja outra coisa para si”. E mais adiante, aqui numa tradução livre: “Se alguém me perguntasse – mas então o que
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há em ti de judeu, se renunciaste a tantos elementos comuns com teu povo?
Eu responderia – ainda muitas coisas, quase todo o principal”.
E, na conclusão desse mesmo prólogo, afirma sua convicção de que “a
ciência, livre de preconceitos, de nenhum modo pode ficar alheia ao espírito do novo judaísmo”.
Certamente é também muito conhecida a carta que Freud escreveu
quando da inauguração da Universidade Hebraica de Jerusalém, em abril
de 1925, justificando sua ausência por motivo de saúde, em resposta ao
convite para comparecer às festividades.
Dela retirei os trechos que, julgo eu, nos auxiliam a conhecê–lo melhor como judeu, sob a perspectiva que estamos abordando– “[. . .] nossa
pequena nação somente resistiu à aniquilação de sua sobrevivência como
Estado graças a sua escala de valores estimativos, elevando ao mais alto
grau seus bens espirituais, sua religião e sua literatura”. E, adiante – “Uma
Universidade é um lugar onde se ensina a ciência, sem valorizar as diferenças religiosas e nacionais; onde se realiza pesquisa e onde se tenta mostrar
aos homens até que limite conseguem compreender o mundo que os rodeia, e até que ponto podem submetê-lo a sua ação. Tal empreendimento é
um nobre testemunho do desenvolvimento que alcançou nosso povo em
seus dois mil anos de infortúnio.”
Em uma carta, enviada em 1925, ao editor de um periódico judeu de
Munique, reafirma seu desligamento da religião, porém mantendo um poderoso sentimento de ligação com seu povo, sentimento que também transmitiu a seus filhos. “Todos de minha família e eu seguimos pertencendo ao
povo judeu” diz Freud.
E, para finalizar, ainda ressaltando sua vinculação com o judaísmo,
relato partes do discurso que proferiu durante a homenagem por seus setenta anos, em seis de maio de 1926; foi um tributo da B´nai B´rith, uma
sociedade judaica dedicada especialmente à proteção dos Direitos Humanos, além de beneficência e cultura. A BB foi fundada em 1843, em New
York, e espalhou-se por um grande número de países, sempre atuando dentro de seus objetivos. Sua sede central é atualmente em Washington.
Nesse discurso, além de enfatizar firmemente sua forte ligação com o
judaísmo, declara que, ao sentimento de sentir-se tão judeu, juntou-se a
certeza de que somente à sua natureza judia deve as duas qualidades que
lhe foram indispensáveis no difícil caminho de sua vida: precisamente por
ser judeu estava livre de muitos preconceitos que limitam a outros no exercício de seu intelecto; e precisamente, como judeu, estava preparado para
colocar-se na oposição e renunciar à concordância com a sólida maioria.
O que podemos realçar, portanto, é que a disposição que acompanha o
povo judeu através dos séculos de propor a si mesmo e aos outros seus
questionamentos existenciais, incluindo os religiosos, repousa em nossa
herança cultural, e talvez também genética, de aproximadamente quatro
mil anos.
Daí encontrarmos no Talmud tantas dúvidas, discussões, digressões,
testemunhando o respeito pela opinião do próximo e admitindo o direito à
discordância, evidenciados, esse respeito e esse direito, nas múltiplas interpretações de nossos sábios a cada lei, julgamento ou relato contidos nesse
livro da suprema sabedoria judaica.
Tudo é sempre questionado e raramente há uma única resposta, ou
uma única verdade. A propósito, essa curiosa disposição do judeu pode ser
lembrada através da anedota de que, em geral, a resposta de um judeu a
uma pergunta é sempre outra pergunta.
Ao encerrar, ressaltamos que podemos encontrar em Freud e em outros benfeitores da humanidade que tanto dignificaram o judaísmo, exemplos de vida a reafirmar que os condenáveis preconceitos contra as minorias são uma das grandes vergonhas da raça humana.
HUTCHINS, Roberto Maynard (Ed.). Great Books of the western world. [S. L.]:
Britannica.
Matilde Groisman Gus
FREUD, Sigmund. Obras Completas. V. 3, p. 3227-3229. Compilador: Dr. Jacobo Numhauser Tognola.
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