1. quando me propus a dissertar algumas linhas sobre o atendimento fonoaudiológico no Centro de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil (CAPSi) Água Viva, iniciei mais que um relato, mas o caminho de descobertas de um fazer profissional sob um ponto de vista da saúde mental. 2. a visão sob essa perspectiva apontou-me para um hiato entre a formação acadêmica do fonoaudiólogo e a sua possível prática em um CAPSi, local este tantas vezes lembrado não como um centro de saúde, mas de doença psíquica; 3. ter plena consciência de que o fazer fonoaudiológico ultrapassa a aplicação de técnicas para aspectos psicológicos e sociais do paciente é saber que a dialética não nos permite dicotomizar o homem como se ele fosse um conjunto de partes que podem ser facilmente separadas. 4. partindo deste princípio dialético então, fica mais fácil percebermos que, enquanto fonoaudiólogos, estamos lidando permanentemente com a saúde mental de nossos pacientes. 5. saúde mental esta que se manifesta na voz, na fala e na linguagem, ou seja, na comunicação humana que é, por excelência, nosso objeto de estudo. 6. para tanto, precisamos rever nosso conceito de saúde mental. Até porque nós, nem mesmo nós, profissionais de saúde, nos preocupamos com a nossa (vide estudo do SUS). Desta forma o termo nos soa distante, como que assunto da Psicologia e da Psiquiatria. 7. Sim, para nós que atuamos com a característica distintiva entre o homem e todo outro ser vivente, que é a linguagem, nós que falamos em qualidade de vida, nós que defendemos a prevenção de distúrbios auditivos, nós, nós que às vezes ignoramos a atenção mental, a saúde mental... 8. mas trabalhando em um CAPSi, senti-me privilegiada por poder participar de um processo nacional de Reforma Psiquiátrica e, como fonoaudióloga, contribuir com os conhecimentos de que esta área dispõe. Mas acima de tudo é maravilhoso ter a oportunidade de lançar-me para além dos limites de meu modesto conhecimento técnico. 9. especificamente, o CAPSi Água Viva passou por uma fase de transição do modelo ambulatorial para o modelo CAPSi, ao qual não estávamos habituados. 10. parece ser mais fácil abrir a porta do consultório para um paciente, atendê-lo por alguns minutos e então despedir-se até a próxima terapia. 11. Esta visão do atendimento individual sofreu drásticas transformações. Compreender que o paciente é, antes de tudo, uma pessoa que está inserida em um contexto, que traz consigo uma história que é única, pessoal, intransferível, insubstituível, definitiva, mas construída dia a dia, é assumir o papel de profissional da saúde colaborador e não o centro do tratamento. 12. transcender ao entendimento do Ser como agente ativo de sua vida, com potencial a ser estimulado para que atinja autonomia e se coloque com autonomia na sociedade que transforma mas que também é transformada por ele. 13. tomar posse deste pensamento marcou profundamente minha conduta fonoaudiológica ao estabelecer uma permanente atitude de mudança. E quando isso acontece, algo muito mais instigante, fascinante e enriquecedor acontece: a formação de um novo paradigma. 14. uma de suas principais características é a atitude da escuta. 15. estar aberto para perceber o que a pessoa traz a partir de suas próprias necessidades. 16. a partir daí, entendemos que os serviços podem se organizar em função das necessidades do indivíduo, pautando o atendimento não apenas na delimitação de perfil. 17. isto porque, em geral, nos propomos a atender a partir de nossos esquemas referenciais, desenhando o que podemos oferecer, com limitada habilidade de ouvir a fala do indivíduo que pensamos atender. 18. podemos nos pegar, até, criando nossa demanda, quando na verdade, a demanda é de quem chega, de quem nos procura. 19. simultaneamente e não desdizendo o que antes é afirmado, precisamos re-significar a queixa de nosso paciente. 20. partir da fala do indivíduo isentando-nos de nossos pressupostos1 para que possamos manter uma escuta clara acerca da queixa principal. 21. estes dois pontos tornam-se essenciais em uma fase primordial de todo o tratamento que se seguirá: o ACOLHIMENTO. 22. sim, percebi que este é o ponto estratégico do serviço. Especialmente nos serviços públicos, nos quais se vêem filas de espera intermináveis, o acolhimento do paciente se torna um delimitador, um facilitador do processo de resignificação de sua queixa. 23. daí a necessidade fundamental de se investir tempo (às vezes muito tempo) neste momento. 24. é óbvio também que a essência do tratamento diário é o cuidado responsável com o indivíduo e não somente a promoção de um espaço de passagem para ele, onde o elo primordial paciente - unidade de saúde seja apenas a consulta. 25. ser fonoaudiólogo agora é deixar para trás a atitude de pactuar com a continuidade de um modelo fragmentado de atendimento. É ultrapassar este modelo e promover o acolhimento permanente, auxiliando no estabelecimento de um novo modo de vida vinculado ao seu contexto. É contextualizar a fala deste paciente. 26. passamos a perceber, então, que nós, profissionais de um CAPSi precisamos redescobrir os nosso próprios recursos, deixando aflorar as nossas potencialidades pessoais e não somente clínicas. Precisamos ser pessoas integrais e integradas e não somente profissionais especializados em uma área do conhecimento. 27. é claro que o mercado hoje absorve profissionais técnicos e nem sempre hábeis no manejo de suas emoções. 28. talvez até como resultado de um modelo tecnicista neo-liberal que marcou profundamente nossas universidades no decorrer das últimas 4 décadas. 29. mas além de analisarmos nosso contexto social e mercadológico, precisamos mapear nossas atribuições dentro de uma prática inclusiva, questionadora e compromissada com a integralidade do homem e, no caso do CAPSi, da criança e do adolescente em suas relações de cuidado, de família, de escola... 30. podemos pensar que seja fácil escrever sobre isto e difícil elaborar e colocar em prática, especialmente quando nos deparamos com tanta carência de recursos humanos, de infra-estrutura, de disponibilidade pessoal e tantos outros. 31. Mas na impossibilidade da estrutura, precisamos voltar o nosso pensamento e nossa ação para o que é possível a partir da comunidade na qual se insere a criança ou o adolescente em questão. 32. Precisamos extrapolar os limites geográficos de nossas unidades de saúde e buscarmos parceiros, como faculdades, secretarias municipais e estaduais, ONGs, órgãos de atenção e de proteção à infância e adolescência, ou seja, instigar a formação e o fortalecimento do serviço em rede. Precisamos investir tempo nestas situações. 33. pois que a déia de território no CAPSi é a de espaço de relações e não de região. Vínculo não é estar aqui, mas saber que se pode contar com a unidade. É quase uma visão de caminhar na contramão da história onde o modelo tradicional burocratiza e fragmenta. 1 Não que eu acredite que somos isentos de opiniões quando atendemos os nossos pacientes, pois sempre teremos uma prática permeada por uma filosofia, uma crença, uma teoria. A idéia aqui é enfatizar a necessidade de uma escuta real de nosso paciente em um primeiro momento, evitando qualquer interferência pessoal sobre a mesma. 34. “Uma das essências de cuidar da vida é cuidar das banalidades.”, afirmou Patrícia Amorim2. E uma destas pode ser resumida na necessidade de divulgarmos que Saúde mental não é doença mental. 35. Talvez porque aprendemos o que é saúde a partir da doença, talvez porque explicamos e teorizamos muito sobre o que é doença e tão pouco sobre o que é saúde, nossos conceitos estejam tão voltados às mazelas humanas e tão pouco às suas virtudes. 36. precisamos tornar nossas crianças e adolescentes protagonistas de sua história. Protagonistas, então, de seu tratamento, de sua reabilitação, de sua inserção ou reinserção social e assim recuperar sua auto-estima e sua autoconfiança. 37. a partir de então, precisamos entender que vamos trabalhar não com um transtorno, mas com alguém que é portador de um determinado transtorno. 38. ou então cairemos em nossa própria armadilha. O paciente chega até nós com uma demanda que nós ajudamos a criar. E, portanto, nós temos que resolver. E o paciente acredita nisto e se distancia de seu compromisso com a própria recuperação. 39. No caso do CAPSi Água Viva, nós trabalhamos não com um indivíduo isolado de seu meio, mas com a pessoa na sua rede de relacionamentos. E é sobre esta relação que os grupos de família, por exemplo, tentam atuar. Chamando à participação do processo de tratamento, aqueles que compõem o núcleo familiar da criança e do adolescente, ajudamos os mesmos a se perceberem dentro do processo de atendimento não como ouvintes ou vítimas do mesmo mas como agentes deste processo. 40. esta adesão familiar faz toda a diferença, até porque, sem esta, tudo soaria como exclusão, pois em geral são aqueles que não têm adesão familiar que mais necessitam de atendimento. Entre as pessoas que chegam, precisamos ver qual a prioridade que motiva a sua busca, a sua queixa. Um dos desafios do CAPSi é como gerenciar as diferentes demandas. Priorizar não significa abandonar uns, mas responsabilizar-se por aqueles que não podem ser atendidos aqui: acessar outras pessoas, encaminhar para órgãos de responsabilidade, incluir na comunidade. 41. Em relação ao profissional, é fundamental entender que participar de um fórum, por exemplo, é tão importante quanto atender na unidade. Estratégias como fomentar projetos de extensão, organizar simpósios, desenvolver pesquisas, são exemplos de que o modelo socrático da dúvida para alcançar conclusões temporárias para após voltar a questionar e acender novas idéias pode colaborar para tirar o serviço público da acomodação, da mesmice, da seca e dura repetição de ações protocolares para a ascensão de um serviço de qualidade e de verdadeira promoção de saúde mental. 42. e na essência de tudo, o cerne do vir a ser permanente que nos eleva na certeza de que na temporalidade de nossa vida, vale a pena a construção de relações permeadas pelo respeito e dignidade pessoal, pela possibilidade do alcance da autonomia e da cidadania, no protagonismo de nossa história pessoal e na liberdade de sermos completos na medida da existência do Outro. 43. pois é na partilha e na comunhão de vivências e experiências de vida, que os saberes se constroem em uma mútua reciprocidade na qual a identidade técnica isolada evidencia capacidades não mais limitadas ou limitantes mas a emergência do potencial da pessoa, com todos os desafios e conflitos que dele podem advir. Na qual a valorização de uma rede social solidária de co-responsabilidade combinem o conhecimento científico individual com o 2 Amorim afirmou esta frase em uma de suas supervisões realizada no CAPSi Água Viva, em 16-07-04. Registro de reunião. conhecimento coletivo- cultural no qual o rompimento de um modelo tradicional seja apenas o passo inicial para uma perspectiva mais abrangente da Atuação Profissional no Contexto da Saúde Mental. Kelem Darc de Santana é fonoaudióloga há 15 anos, pós graduada em Distúrbios da Comunicação Humana, Especialista em Audiologia e Motricidade Oro-facial, Mestre em Ciências da Educação Superior, trabalha em um clínica particular há 15 anos e no CAPSi Água Viva há 10 anos e 8 meses.