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Helena Isabel Mueller
Utopia e Educação
Helena Isabel Mueller (Doutora)
Curso de História - Universidade Tuiuti do Paraná
Tuiuti: Ciência e Cultura, n. 28, FCHLA 04, p. 207-223, Curitiba, mar. 2002
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Utopia e Educação
Resumo
O poder é resultante de um processo histórico no qual se estrutura de formas diferenciadas e em espaços
diversos até se configurar naquilo que, no presente, reconhecemos como tal. No presente ensaio pensaremos
quais as possibilidades de explorarmos a relação poder/educação, no sentido de recolocar a educação como
espaço de criação, de estímulo desejante, geradora de imaginários instituentes e, portanto, vê-la plenamente como
expressão do poder: o poder da educação.
Palavras-chave: educação, poder, utopia.
Abstract
The present essay discusses the possibilities of exploring the ralation between power and education, aiming to
place her as a space for creativeness, of desire, promoter of imagination, utopy and, doing so, introduce education
as an expression of power: the power of education.
Key words: education, power, utopy.
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Helena Isabel Mueller
Em um momento em que o poder parece-nos
dúbio, aparentemente ausente de suas funções de organização na sociedade mas onipresente em nosso cotidiano, regulamentando quase todas as relações sociais,
torna-se oportuna uma discussão sobre esse que é,
enfim, ele mesmo uma relação social. Nesse sentido, e
para começar esta reflexão, pensaremos o poder
como resultante de um processo histórico no qual se
estrutura, de formas diferenciadas e em espaços diversos, até se configurar naquilo que, no presente, reconhecemos como tal. A seguir e quase como
decorrência do acima colocado, pensaremos quais as
possibilidades de explorarmos a relação poder/educação, no sentido de recolocar a educação como espaço de criação, de estímulo desejante, gerador de
imaginários instituentes e, portanto, vê-la plenamente
como expressão de um poder: o poder da educação.
Podemos dizer que o poder sempre existiu e sempre existirá, em todas as sociedades, desde que o pensemos a partir de duas vertentes. Na primeira delas
pensamos poder que existe como consenso implícito
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de uma determinada sociedade e que se manifesta das
maneiras as mais diversas e, no mais das vezes, sequer
é percebido pelos indivíduos que a compõem, perpassando a sua história. A esse poder poderíamos chamar de organizador, uma vez que a ele cabe a função de
dar ordem e coordenação às relações entre as pessoas
que constituem essa sociedade. Nesse sentido, desde
seu nascimento o ser humano é conduzido a se integrar às normas sociais, a começar pelo conhecimento
que faz do outro, sua mãe, pelo aprendizado de formas de comunicação com esse e outros outros, até seu
contato com um conjunto de instituições, em um nível mais abstrato, quais sendo os ritos, os costumes, as
leis. Essas normas que, sem dúvida, foram e são
construídas pelos indivíduos que nesse processo também se constroem a si mesmos, se expressam na linguagem, nas definições de realidade e de verdade, na
maneira de ser, de trabalhar, na ordenação da sexualidade, na definição do permitido/proibido e são perpetuadas através de sua imposição ao todo social. De
um lado, portanto, elas são consensuais; do outro são
impostas. A pergunta que podemos fazer é: como essa
imposição é feita, e mais, quem a articula?
Assim sendo, podemos definir a primeira vertente
de poder a que fizemos referência acima como a capacidade da sociedade de, através de uma ou mais
instâncias, induzir uma ou mais pessoas a fazer ou a
deixar de fazer alguma coisa que, de outra maneira,
não seria feita. Essa é uma caracterização que não se
refere a um determinado poder, exercido por um indivíduo ou mesmo por uma determinada instância
social, mas sim a qualquer forma de poder, em especial aquele do todo da instituição social. É um poder
concretamente de ninguém e sua função é a de perpetuar a sociedade que o produziu. Importante frisarmos que, se existe a necessidade da emergência de um
poder é porque existe, na sociedade que o instituiu,
uma constante ameaça ao todo do corpo social.
Olhando a instituição da sociedade desde a perspectiva das ameaças acima mencionadas podemos
diferencia-las entre si: aquelas vindas desde seu interior e aquelas externas a ela, que têm início com a
constatação de que uma sociedade isolada não existe,
de que existem outras sociedades com um corpo de
significados diferentes, ameaçadores portanto. Essas
duas ameaças se constituem em um outro, percebido e
apresentado pela sociedade instituída como o estranho, como o vazio. O sonho - desejo transformador
- será nessa ótica visto como doença posto que se
configura como ameaça vinda desde o interior de uma
sociedade. O imaginário instituente de uma sociedade, que anteriormente se configurara como sua força,
surge agora como expressão de sua fragilidade: é em
função dessa fragilidade que surge a necessidade de
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ser criada uma defesa interna mais forte e, supostamente, mais eficaz. A perspectiva de que essa defesa
não seja forte suficiente e apresente fissuras, a possibilidade de que ela venha a não funcionar, de que
possa acontecer o delito, o litígio, a calamidade natural, a guerra, etc, é uma das raízes para a estruturação
de um poder explicito que será encarregado do
restabelecimento da ordem, de proteger a vida da
sociedade contra tudo que, imediata ou potencialmente, possa colocar a instituição social em perigo.
Em relação à segunda vertente do poder, chamamos a atenção para que, desde suas origens, a construção da instituição social é um processo caracterizado
pela heteronomia que, inicialmente, aparece vinculada
ao sagrado que ajuda a explicar o inexplicável, justificar o injustificável, manter o que está sendo ameaçado. Nesse processo as sociedades primitivas que o
caracterizam, por exemplo, se instauram em um tempo mítico, arcaico, tempo esse que orienta a construção de um espaço social que busca na natureza os
símbolos que venham a orientar e dar sentido aos seus
ritos. Este será o espaço de articulação de um poder
explícito – aquele que é exercido por alguém ou alguma instituição - que se expressará através da existência
de instâncias organizadoras da estrutura das sanções
sociais ao qual podemos chamar de espaço político.
Sem dúvida, este é um termo bastante amplo que
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abrange quase que todas as relações sociais fazendo
com que praticamente todas as suas ações sejam pertinentes a esse espaço político. Por outro lado, ele permite que estabeleçamos uma diferenciação em relação
a uma outra atividade coletiva explícita, consciente,
lúcida, ponderada e deliberada cujo espaço é a instituição da sociedade como tal, que denominaremos
de ação política. Esta amplia seu espaço quanto maior seja a ameaça que sofre a instituição de uma sociedade; é a partir desse momento que se inicia o
processo de dessacralização do imaginário instituente
de uma sociedade. A heteronomia é apropriada pelos
indivíduos que, a partir de então, definirão quais as leis
que organizarão a sociedade. É, pois, a partir do momento em que são colocadas questões tais como:
“Como deveremos organizar a sociedade?”, “Que leis
deveremos fazer?” e “Quem deverá defini-las” que
nasce a política no significado acima referido.
Estamos trabalhando com um poder que, além
de organizar a sociedade em um determinado sentido, se institui com uma função de mando e, ao final,
será visto primordialmente desde esta ótica. É essa
possibilidade de mando, a possibilidade de algumas
pessoas ou instituições deterem em suas mãos o poder de definir os rumos das relações de uma determinada sociedade, que entrará no imaginário coletivo
como o campo da política. No entanto a política não
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é uma atividade que nasce como esfera de ação do
poder; ao contrário, a política nasce como atividade
pública, coletiva e autônoma. É, portanto, uma atividade a ser exercida por pessoas livres e iguais em um
espaço público de discussão, para fora do espaço
doméstico. No entanto, será com organização de um
poder explícito e excludente que a política passará a
ser vista: como o espaço de ação do poder, no qual se
articula a disputa por seu exercício: a quem caberá
definir as leis de uma sociedade.
Desde outra perspectiva, a política nasce como uma
expressão da noção de liberdade que, por sua vez,
demanda ser acompanhada por uma noção de igualdade1 . Podemos dizer que a Grécia Clássica inaugura
essa expressão da política, qual seja a que é exercida
em um espaço público onde todos aqueles tidos como
cidadãos são reconhecidos como iguais frente a uma
determinada lei; esse espaço é uma representação social que permite ser a política pensada como uma ação
que se explicita diante do todo social dando a ele uma
visibilidade que torna possível o reconhecimento da
igualdade acima referida, que é necessariamente, frisamos, uma igualdade política pois é a expressão da
permanência da desigualdade, eludida pela igualdade
simbólica. Assim, igualdade e liberdade, sempre presentes que estão na fala política, estão sempre e cada
vez mais distantes de sua plena realização. É nesse espaço que se articula definição que os pobres, os trabalhadores, as mulheres e outros excluídos não têm
tempo, nem vontade, de ocupar-se da coisa pública e,
portanto, devem entregar ao outro poderes para que
dela se ocupem por e para eles. As idéias de representação - no sentido de delegação - e de política se tornam, assim, intrinsecamente ligadas.
A história nos mostra que a política, enquanto coisa pública (res publica), deixa a cena do cotidiano durante o período medieval, quando é reintroduzida a
sacralização do espaço político. Com a hegemonia do
cristianismo, o papado elabora uma teoria teocêntrica
pela qual todo o poder deriva de Deus, soberano
onipotente, que tem como seu representante na terra
o pontífice romano. Nessa linha de raciocínio, as leis
que organizam a sociedade emanam da vontade divina e não dos homens; o pensamento político possível
está, portanto, disciplinado pela, e subordinado à ordem religiosa.
1 Em outra vertente de análise Jacques Rancière (1996) que vê a emergência da política como resultante do erro de contagem da partes, entre
os que as tem e aqueles que não as tem, ou seja, da desigualdade. A aproximação das duas abordagens se dá no fato de que em ambas a
política é o espaço de uma atividade consciente de discussão sobre os rumos que deverá tomar a sociedade, seja frente uma ameaça externa,
seja frente à desigualdade no processo de distribuição.
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O retorno à materialidade terrena e portanto, às
questões relacionadas com a vontade dos seres humanos, terá início ao redor do século XIII quando
começam a se esgarçar os fundamentos da ordem
religiosa vigente. Essa dessacralização se acelerará no
século XV abrindo caminho para a emergência de uma
nova dimensão da política. A formação dos Estados
Nacionais dará uma territorialidade ao pensamento
político e, à medida em que a ele, através de suas instituições, caberá a responsabilidade de pensar e definir as leis as quais julga sejam necessárias à sociedade,
ele se transformará no símbolo do poder em sua instância maior.
A Revolução Francesa simbolizará o apogeu da
dessacralização, com a destruição da idéia do Absolutismo de Direito Divino e a conseqüente mudança do
locus da origem do poder, que retorna à base - ao ser
humano. Esse processo de re-institucionalização do
espaço político inaugura um novo paradigma de representação no qual a delegação de poderes será feita
a delegados2 que representarão não mais indivíduos,
mas sim uma Nação - uma unidade construída na
qual todos são definidos como iguais perante a lei,
camuflando, assim e de maneira extremamente eficiente, a desigualdade. Desta forma a igualdade, e sua
2 Desculpem-me o pleonasmo.
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irmã gêmea a liberdade, permanecem em cena, essenciais que são ao jogo político. Será no entanto, uma
igualdade qualificada – não tout court - e compatível
com a estrutura da hierarquia social – da sociedade de
classes se se preferir. Nesse processo é construída a
noção de democracia representativa na qual o povo demos - que a constitui se expressa como corpo político somente no momento do voto. A soberania/autonomia do povo, do cidadão, está assim limitada ao
voto, que por um longo tempo será censitário excluindo aqueles que, por definição exterior a eles próprios, não têm interesse em participar da vida pública: os
excluídos da história tais como a mulher, o pobre, a
plebe enfim. Serão eles mesmos que, tendo-se apropriado, no processo revolucionário, da consciência de
que podem construir, de alguma maneira, mesmo que
enquanto desejo, a sua história, manterão vivo o turbilhão revolucionário ampliando sua participação na
política através do voto universal, para atermo-nos à
questão em pauta.
A política, como estamos tentando mostrar, não é
uma atividade visível, transparente; a cena política é pública como espetáculo, mas é oculta, é velada, em grande
parte e em sua essência, quase como se fosse um negócio - business - de um grupo social especializado.
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Uma revolução, e para o momento a Revolução
Francesa sem dúvida é um marco, é um processo que
desemboca na redistribuição das cartas, como que em
um jogo, que virá a modificar a história e que definirá
o significado do novo, do futuro. No seu desdobrar
desperta a consciência de que a instituição da sociedade é obra humana e, nesse processo, o imaginário radical se apropria da pulsão revolucionária e a mantém
viva através da manutenção da demanda por liberdade e igualdade, criando uma fissura que percorre clandestina à história, na qual germina um projeto
alternativo para a sociedade. Implícito nele está a noção de autonomia, isto é, a afirmação de que a liberdade só é possível quando as leis que organizam a
sociedade sejam definidas pelos indivíduos que a compõem e em plena liberdade3 .
Falar de um imaginário – e imaginação - na construção sócio-histórica demanda que reforcemos seu
sentido: é não apenas a capacidade de combinar elementos já dados para produzir um outro, como também é a capacidade de imprimir a esse outro uma
forma e um conteúdo diferentes fazendo dele algo
realmente outro. Aprofundando a reflexão na direção
de relacioná-la à criação social, a imaginação poderia
ser vista como o que nos permite criar um mundo, apresentar alguma coisa, da qual sem a imaginação não poderíamos
nada dizer e, sem a qual não poderíamos nada saber
(Castoriadis, 1992, p. 91). Para o autor em questão, é
exatamente essa capacidade de imaginar que diferencia o ser humano dos outros seres vivos e que o torna
apto a criar a historia.
Vejamos melhor essa questão. Poucos pensadores
atualmente ousariam discordar que o indivíduo4 é psíché
e mais, o é em sociedade. Ou seja, é só na e pela sociedade, e por suas instituições, que a psiché se torna apta
a emergir para a vida. Por outro lado, a sociedade é
sempre história: o presente é sempre constituído por
um passado que o habita e por um futuro que o antecipa (Castoriadis, 1992). Portanto emergem aqui duas
esferas que nos levam à formulação de um outro nível de imaginário, não aquele produzido pela psíché individual pois esta não cria o social: é a expressão do
inconsciente em termos de representações, de afetos e
desejos na esfera pessoal e singular. O que nos interessa, nesse momento, é ressaltar a existência de um imaginário social produzido pelo anônimo coletivo, que
cria linguagens, costumes, mitos, ritos, etc., e que emerge
sempre que os indivíduos se reúnem e se expressam
3 As reflexões acima foram desenvolvidas durante pesquisa que realizei sobre o conflito entre anarquistas e comunistas no Brasil entre 1920 e
1935, e apresentadas em outros simpósios.
4 Optei por utilizar aqui o termo indivíduo por considerá-lo mais amplo, sem referência a gênero mas sim aos seres humanos em geral.
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institucionalmente. Portanto cria o social, cria a
história.
Em síntese, podemos dizer que a sociedade é obra
de um imaginário social instituente e que os indivíduos que constróem esse imaginário são feitos pela,
ao mesmo tempo em que fazem e refazem a, sociedade instituída. Nesse processo, podemos, pois, identificar dois pólos (não enquanto extremos mas
enquanto lados de uma mesma moeda) que são
irredutíveis entre si: o imaginário social instituente,
que é o campo de criação sócio-histórica, e a psiché
individual. Por outro lado, esses dois pólos não se
mantém estanques mas se relacionam entre si em uma
dinâmica que vem a ser a dinâmica da sociedade
como criação social. Nesse processo ela, a sociedade, produz indivíduos que, como tais e em coletividade, passam a reproduzir a sociedade que os
produziu, como se não tivessem alternativa, uma vez
que a sociedade instituída constrói como que uma
couraça com a qual se defende de um outro imaginário social, aquele que podemos identificar como
sendo radical e que surge ameaçando o imaginário
instituído. Em uma determinada sociedade, portanto, se articulam e são articuladas uma série de instituições quais sejam: a linguagem, a definição de
realidade e também de verdade, uma maneira de ser
e de trabalhar, a ordenação da sexualidade, a relação
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do permitido/proibido, que se impõem à psiché que
em sua essência é rebelde por ser, em seu nascimento, livre. A pergunta que surge naturalmente, nesse
momento, é: como se dá essa imposição? Procurando responder a questão e tendo em mente os dois
pólos da construção sócio-histórica, acima mencionados, neste momento olhando-os desde um ponto
de vista psíquico, a construção social do indivíduo se
dá em um processo histórico através do qual ele é
coagido - suave ou brutalmente, não importa aqui
pois essa imposição será sempre uma violência à sua
natureza - a abandonar seus objetos e seu mundo e a
assumir objetos, regras, um mundo enfim, criados
socialmente, externos a ele (Castoriadis, 1989).
Feitas as considerações acima, que nos situam em
uma reflexão sobre a criação sócio-histórica, e ao
pensarmos as duas esferas de poder que salientamos
no processo de instituição da sociedade, nada mais
pertinente que nos perguntemos como pensar a educação dentro da lógica desenvolvida.
Jacques Ardoino (1998) chama a atenção para a
origem etimológica da palavra educação vinda principalmente do latim educo, as, atum, are, que significa
nutrir, ou em outra vertente, educo, ere que designa
uma ação que consiste em conduzir para fora ou sair
de. Segundo o mesmo autor duas acepções podem
daí derivar:
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1. A alimentação (nutrição) e a contribuição dos constituintes fundamentais e necessários à satisfação das
necessidades fundamentais, tanto a nível físico quanto a nível cognitivo e moral, do organismo permitem sua adaptação ao meio: assim é o processo da
criação, por exemplo.
2. A derivação, de maneira figurada e talvez mais metafórica, como a mudança de estágio marcada pelas revoluções biológica e psicológica (sair da
infância para entrar na vida adulta), desde uma perspectiva iniciática onde o “simbólico” vem, de aí
em diante, se associar ao “funcional” e onde, por
conseguinte, os determinismos sociais são mais
explícitamente apreendidos como influentes no desenvolvimento bio-psicológico.
Nessa relação, ordem biológica vinculada aos procedimentos de elaboração da experiência ou construção do saber, a educação está acima de tudo ligada ao
que Ardoino chama de “jogo dos processos” e, portanto, é inscrita em uma temporalidade – duração –
historicidade.
A partir do acima exposto, podemos pensar, como
metáfora, a educação como uma atividade de nutrição, de condução de indivíduos para sua plena formação social, alimentando-o de conteúdos, de noções
de relações sociais, de cidadania, que transcende os
limites de uma formação iniciática para a aceitação
social. Porém podemos pensar a educação também
como uma relação de estímulos para que os indivíduos em sociedade a pensem criticamente e nesse processo mais que iniciá-los para a aceitação social, criar
neles desejos, pulsões utópicas, para que venham a
contribuir significativamente para a construção social
de um imaginário instituente.
Em nosso tempo presente, as atividades de formação e de educação se constituem em um vasto
domínio cuja visão principal permanece sendo aquela
que a percebe como veículo da adaptação de um número o maior possível de membros (jovens e adultos) de uma sociedade ao seu meio imediato, em nível
de seu desenvolvimento físico, intelectual (ler, escrever, contar), psicológico e moral, que permitam a cada
um a conquista de capacidades pessoais e sociais - o
exercício partilhado de cidadania - relativamente autônomo por que provido de capacidade crítica desenvolvida. A conquista de competências necessárias a
uma profissão, a um emprego, é uma das faces desse
processo de educação.
Em um primeiro momento pensamos educação
em sua acepção mais ampla, ou seja não aquela que
diz respeito a um processo educacional formal –
escolarizado -, mas aquela que se desenvolve nas relações sociais cotidianas e que, poderíamos dizer, mostram ao indivíduo como apreender o outro social que
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se apresenta desde o nascimento. Nesse sentido ela
aparece como uma função social exercida por suas
diversas instâncias (familiares, escolares, universitárias,
culturais, economicas e políticas) e se insere naquele
poder difuso ao qual nos referimos acima, que não é
exercido por ninguém, mas que cria e fortalece os
alicerces sobre os quais se. estrutura uma determinada
sociedade. Ela é parte significativa, se não fundamental, para identificação do outro que se configura em
ameaça, e mais, é ela que informa aos indivíduos como
construir as defesas com as quais a sociedade poderá
se manter segura. Há uma outra perspectiva que poderá ampliar a dimensão da riqueza da educação: a
ela poderá se atribuir, também, a responsabilidade pelo
estimulo à emergência de um imaginário rebelde que,
por sua vez, é o portador do outro, do novo, daquilo
que virá a ser considerado como uma ameaça à permanência, introdutor da ruptura.
Nesse sentido a educação é expressão da
heterogeneidade que, por sua vez, é intrínseca à sociedade se pensarmos que o espaço para a emergência
do outro é dado pela possibilidade da diversidade. O
educador, nesse momento, se coloca como mestre,
condutor e acompanhante desse processo, no qual está
implícita mais uma noção de tempo que uma noção
de espaço (no sentido de durabilidade vivida, experimentada, inteligibilidade de uma leitura da realidade
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mais que dimensão de um objeto). Mestre na aquisição-transmissão do conhecimento, de uma cultura, de
uma língua e mesmo de determinadas relações sociais. Poderiamos dizer que uma das experiências mais
fortes e mais cruéis vivida no processo do desenvolvimento de um indivíduo, mas talvez a mais
enriquecedora, é aquela imposta pelo encontro com
o outro, este aqui pensado enquanto limite de nosso
desejo, de nosso poder e de nossa ambição de controlar “nosso mundo”. Não estamos, no momento,
fazendo referência ao conhecimento da idéia do outro
mas sim de sua existência real enquanto pluralidade,
heterogeneidade que se constitui enquanto desejos,
interesses, intencionalidades e mesmo estratégias antagônicas (Ardoino, 1998).
Pensar a heterogeneidade, a diferença, requer que
chamemos a atenção para que o movimento “normal” de uma determinada sociedade é aquele que vai
na direção da homogeneidade, que se manifesta na
resistência do imaginário instituído que se articula para
a sua permanência. Pensar a emergência de um imaginário instituente (rebelde) - através da heterogeneidade
- requer que o façamos principalmente em termos de
uma pluralidade de olhares, muitas vezes concorrentes entre si, colocados juntos através de um jogo de
articulações dialógicas; são diversos sistemas de referência que interrogam um determinado objeto a par-
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tir de suas respectivas perspectivas ao mesmo tempo
em que se questionam mutuamente, se alteram e elaboram significações mestiças5 a favor de uma determinada história. Com a heterogeneirade é o outro, fonte
de alteração (mais que de alteridade) e de frustração
(por que resiste a nós), que transforma o campo das
referências sociais (Ardoino, 1998). Esse é o núcleo
central de nossas reflexões.
O que se coloca aqui, portanto, é um jogo de tensões entre um imaginário instituído e um imaginário
instituente, espaço fértil para o surgimento da noção
de medo: o desejo de transgressão é inseparável do
imperativo de respeitar a lei. É nessa tensão que situamos a educação: ela visa, de um lado, o desenvolvimento do indivíduo, a constituição do sujeito, sua plena
autorização (capacidade construída de se tornar co-autor de si); por outro lado, porém, ela também persegue objetivos que lhe são, desde há muito, consagrados
advindos da função social que ela exerce e que vão na
direção da adaptação ao já existente, da iniciação e a
submissão às regras e ao método para que, assim, o
indivíduo se torne capaz de ser introduzido na sociedade em questão.
De um lado, portanto, a educação se coloca como
mantenedora de um presente com seu sentido dado
pelo passado; do outro, ela dá aos indivíduos a tensão
necessária para que se construa um imaginário que olha
o presente com os olhos voltados para o futuro. Essa
tensão é própria da educação e nesse sentido podemos pensá-la como sendo pertinente á esfera da utopia 6 , à medida a percebemos como ruptura com a
história não enquanto memória ou mesmo enquanto
processo de construção social mas sim enquanto
determinante de um futuro qualquer. Desta forma a
educação, no sentido em que vimos trabalhando, se
situa na esfera daquele poder difuso, que não é de ninguém: é, ao mesmo tempo, imaginário instituído e
pulsão constituinte de um imaginário radical, rebelde
que, referendados em Castoriadis, chamamos de imaginário instituente.
A tensão a que fazemos referência acima como
pertencente à esfera a educação merece ser melhor
explorada e, para tal, se torna pertinente explicitarmos
que as idéias de educação e de pedagogia são relacionadas entre si, mas não são idênticas. As relações entre
elas variam conforme o período histórico e confor-
5 Optamos pelo termo mestiças, em vez de diferenciadas, por acharmos que enfatiza o sentido de multiplicidades concomitantes.
6 A noção de utopia como ruptura com a história está desenvolvida em Helena Mueller Flores aos rebeldes que falharam: Giovanni Rossi e a
utopia anarquista: Colonia Cecília. Curitiba: Quatro Ventos, 1999.
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me a região geográfica-cultural estudados. A palavra
pedagogia tem suas origens na Antigüidade e vem de
uma função doméstica, exercida por escravo ou liberto vinculado ao domus – o espaço doméstico - qual
seja a de levar a criança à escola – espaço público. No
período moderno, e com forte influência do
positivismo, surge a noção de pedagogia vinculada a
uma metodologia, a um saber fazer como requisito
para a otimização de uma transmissão de conhecimentos; para sua melhor concretização, essa atividade
pedagógica foi dividida em disciplinas o que permitiu
a racionalização do ato de transmissão dos conhecimentos requeridos. Como desdobramento das atividades pedagógicas surgem as didáticas, que
pressupõem a transmissão de um conhecimento
estruturado em função da natureza e das características do objeto de ensino, das disciplinas ensinadas.
Pelo exposto, podemos perceber, talvez, a essência da diferença entre a pedagogia, a didática e a educação: as duas primeiras estão intimamente ligadas
às práticas de transmissão de um determinado conhecimento, ao passo que a terceira, mais complexa
e problemática, se situa em um universo filosófico
que abrange as concepções de mundo e seus valores
fundantes. Ela é a mais polissêmica das três noções
acima e que nos parece a mais rica pois mais capacitada para compreender os aspectos plurais, heteroTuiuti: Ciência e Cultura, n. 28, FCHLA 04, p. 207-223, Curitiba, mar. 2002
gêneos e, por vezes, contraditórios entre si. Ardoino
(1998, p. 2), referendado nas Réflexions sur l’education
de Kant, nos chama a atenção para que
essa perspectiva mais ampla, sem dúvida velada pela outra,
mais estreitamente utilitária e funcional, interessa relativamente pouco aos grandes do mundo, aos membros das
“intelligentsias”, notadamente aqueles que decidem as políticas, que não vêem nela [na educação]uma função maior da
aventura humana.
Dessa forma, a educação, ainda segundo o mesmo autor, permanece acima de tudo como uma atividade de preparação para a vida, centrada
primeiramente na adaptação ao meio material, econômico, social, moral e político nos quais se inscreve
a condição humana mas que, paradoxalmente, muitas vezes acaba levando a se “dar as costas” à vida.
Na mesma linha de reflexões, é atribuída à escola,
muito mais que à família e ao convívio social talvez, o
papel de matriz social por excelência. É nessa direção
que vemos slogans de políticas educacionais que a
definem como formadora do cidadão e construtora
da cidadania, ou mesmo espaço da construção da
democracia. Não nos reteremos aqui na análise dos
discursos contidos nas políticas educacionais no Brasil; chamamos a atenção somente para o conteúdo
vazio das palavras que o compõem, em especial de
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palavras tão plenas de significado social como democracia e cidadania, talvez duas faces de uma mesma moeda, o que expressa o descaso com que elas
são vistas e mais, a displicência com que é tratada a
educação, em outros momentos agente formador e
construtor da nação e da nacionalidade brasileiras. Se
observarmos as idéias educacionais que permearam
a história da educação no Brasil, veremos que pouco
ou nenhum espaço foi concedido a propostas alternativas de educação, que a questionassem em sua dimensão propriamente política, sublinhando sua
eventual contribuição à emancipação dos sujeitos sociais. Os conteúdos dos saberes, ou mesmo as competências técnicas ensinadas, a nosso ver, têm menos
influencia em nossa relação com o mundo - e com o
outro – na direção de uma vivência mais autônoma
da condição humana, do que a transformação profunda de nossa forma de pensar, ainda extremamente
vinculada aos modelos dominantes da razão herdada. Isso para não falar do fato de que por séculos, e
mesmo no presente em grande parte do mundo, o
campo educacional aparece “naturalmente” restrito
às populações privilegiadas, seja economicamente falando, seja étnicamente, seja enquanto faixa etária à
qual é destinada formalmente a educação escolarizada.
Durante séculos, e mesmo atualmente em algumas esferas do social, as diferenças entre os indiví-
duos – étnicas, culturais, aptidões e disposições pessoais - vêm sendo pensadas como naturais, resultantes de hierarquias dadas, o que tem contribuído
significativamente para que o processo de formação
básica seja reduzido a um mínimo e em benefício de
uma seleção instrumental que não escamoteie a “seleção natural” postulada. Quando se rompe, mesmo
que não completamente, com essa estrutura de pensamento a idéia de formação é ampliada, buscando
a transmissão de saberes mais complexos e relativamente mais aprofundados. Trata-se, no entanto, sempre e ainda de um saber fazer mais que de um saber
ser que está em questão.
A proposta inicial do presente trabalho é a de
pensarmos essas duas esferas da educação enquanto
poder em relação uma com a outra para não corrermos o risco de esquizofrenizarmos nossas reflexões
e com elas a própria educação. Sem dúvida, e dentro
da lógica da sociedade em que vivemos, é atribuído
a um poder centralizado nas mãos do Estado a função/poder de dar as diretrizes e as bases para que se
estabeleça um sistema educacional disciplinarizado,
que cumpra suas funções enquanto normatizador do
processo de produção e de reprodução do saber.
Sem dúvida, também, esse saber jamais é neutro; ele
é construído juntamente com a criação sócio-histórica, parte integrante de um imaginário instituído que
Tuiuti: Ciência e Cultura, n. 28, FCHLA 04, p. 207-223, Curitiba, mar. 2002
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se articula no sentido da manutenção da história enquanto presente. As diretrizes e as bases desse sistema educacional, no entanto são apropriadas por
indivíduos-educadores que, enquanto professores,
produzem e reproduzem o saber e que o fazem ou pelo menos deveriam fazê-lo - de maneira diferenciada, expressando sua autonomia frente a um
poder de mando que, assim, poderá ser matizado e
vir a ser transformado em poder de organização.
A autonomia acima referida é informada, dentre
outras coisas por questões culturais que devem sempre estar presentes em um processo educacional. Impossível se dar conta da educação se não estivermos
sempre atentos para as questões que formam/informam não só o educador como também, e talvez
principalmente, o educando enquanto indivíduo sócio-histórico. As raízes culturais, de gênero e étnicas,
como exemplo dentre outras questões que não privilegiaremos na presente reflexão, não devem jamais
ser abafadas em nome de um saber que se colocaria,
se assim acontecesse, acima e além da realidade da
sociedade presente.
Vemos, portanto, a educação como uma possível pulsão utópica que se configura na direção da
ruptura com uma história presente a qual traz consigo um projeto de educar disciplinando, de educar
mantendo. O que propomos é que pensemos uma
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educação rebelde tal qual a psiché, na qual caberá ao
educador um papel de inquietar, de estimular, de
incomodar, de fazer desejar. De utopisar, enfim. É
essa inquietação, é esse incomodo, é essa rebeldia que
farão com que as duas esferas de poder a que vimos
nos referindo se relacionem no sentido de que novas questões se ponham e reponham construindo
novas bases, novas diretrizes para a educação.
A proposta do presente trabalho não é a de definir, ou mesmo de propor quais a/as direções a ser/
serem tomadas, uma vez que, coerentemente com o
acima exposto, caberá a cada construção sócio-histórica definir os rumos que quer dar à sua pulsão
utópica, as rupturas que proporá sejam feitas, os caminhos que construirá para que o novo, o outro venham a tomar forma e conteúdo. A nossa proposta
é a de levantarmos algumas questões que nos permitam pensar uma educação que não busque a elusão
do outro mas que venha a contribuir para que as
barreiras do medo que o cercam sejam, se não
destruídas pois se reconstroem rapidamente, encaradas de frente para que possam ser superadas.
Pensemos que o futuro ainda não existe, que ele
está sendo construído pela totalidade da sociedade;
a educação, aqui não reduzida a suas formas utilitárias, participa ativamente dessa atividade de construção do futuro. Quanto mais distante ela se colocar
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Utopia e Educação
das tendências homogeneizantes, quanto mais próxima ela estiver da heterogeneidade e das
alteridades em termos epistemológicos, em termos
de conhecimentos, de sensibilidades, em termos
de imaginação, mais próxima ela estará de dar a
esse futuro uma dimensão outra que aquela de reprodução ampliada de um presente nem sempre
desejado. Mais próxima, portando, de construir e
se apropriar do seu espaço de poder na instituição
social.
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Helena Isabel Mueller
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