Relato de caso: infestação da cânula de traqueostomia por miíase

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96 Arquivos Catarinenses de Medicina Vol. 38, no. 3, de 2009
0004-2773/09/38 - 03/96
Arquivos Catarinenses de Medicina
RELATO DE CASO
Relato de caso: infestação da cânula de traqueostomia por miíase
Diélly Cunha de Carvalho1, Renata Patrícia Moreira Camargo1, Talita Thizon Menegali1, Daniele Gehlen
Klaus2, Maria Zélia Baldessar3
Resumo
Abstract
Miíase é uma afecção causada pela presença de
larvas de moscas em órgãos e tecidos. A incidência desta
parasitose é comum no meio rural entre animais de
criação e, baixa na espécie humana. Ocorre
normalmente em pessoas debilitadas, mas pode ocorrer
em pacientes tróficos e saudáveis. As larvas de
Cochliomyia hominivorax e Dermatobia hominis, são os
agentes causais mais comuns das miíases humanas na
América. O quadro clínico é variável, pois dependendo
da localização, podem ser cutâneas, subcutâneas ou
cavitárias. O principal objetivo desse trabalho foi
apresentar um relato de caso de infestação por miíase
em sítio de traqueostomia em um paciente com carcinoma
de laringe. A metodologia utilizado foi o relato de caso
associado à revisão de artigos científicos de bases de
dados (Scielo e Pubmed). O diagnóstico de miíase humana
é clínico, porém para que se possa detectar algumas de
suas complicações, pode ser necessário exames
complementares. O tratamento convencional da miíase
inclui na remoção das larvas com uso de substâncias
químicas, o que promove a asfixia das larvas e induz sua
saída da lesão. Em lesões maiores ou quando há celulite
adjacente é indicada a debridação do local com retirada
do tecido necrótico.
Myiasis is a disease caused by larvae of flies in organ
and tissues. The incidence of this parasitic disease is
common on the agriculture living, for example on animals
creation and uncommon in human being. It occurs
normally in weak people, but might occur in healthful
patients. The larvae of Cochliomyia hominivorax e
Dermatobia hominis are the more common agents of
myiasis in American human beings. The symptoms are
variable, therefore depending on the localization, can be
cutaneous, subcutaneous or in cavities. The main objective
of this work was to present a case report of infestation
by myiasis in the place of tracheostomy in a patient with
larynx carcinoma. The used methodology was case
report associated with scientific article revision of
databases (Scielo and Pubmed). The diagnosis of human
being myiasis is made by the physical examination,
however to detect some of its complications, it can be
necessary complementary examinations. The
conventional treatment for myiasis includes the removal
of the larvae with chemical substance, which promotes
the larvae’s asphyxia and induces its exit of the injury. In
bigger injuries or when there is adjacent cellulitis it is
indicated the surgical hygiene and the necrotic tissue’s
withdrawal.
1 - Acadêmicas do Curso de Medicina da UNISUL – Universidade do Sul de
Santa Catarina
2 - Acadêmica do Curso de Medicina da UPF – Universidade de Passo
Fundo
3 - Médica/Mestre em Ciências da Saúde, Professora do Curso de Medicina
da UNISUL e Coordenadora da Residência de Clínica Médica do HNSC –
Hospital Nossa Senhora da Conceição
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Relato de caso – Infestação da cânula de traqueostomia por miíase
Descrição do caso
COG, masculino, negro, 49 anos, procedente de
Florianópolis, residente em Capivari de Baixo. História
prévia de etilismo e tabagismo pesados. Em final de 2006
foi diagnosticada neoplasia maligna de laringe/glote
avançada (em tratamento quimioterápico desde março
de 2007), procedendo-se à traqueostomia e à sondagem
naso-entérica. Em novembro de 2007, verificou-se
infestação das adjacências da cânula da traqueostomia
por miíase com presença de orifícios ao redor da mesma,
além de grande quantidade de secreção purulenta e odor
fétido no local. Foram retiradas aproximadamente 20
larvas da região cervical anterior, sendo que não se
conseguiu retirar todas. Paciente reside em casa de
madeira, juntamente com dois irmãos e encontrava-se
em más condições de higiene. À hospitalização, instituise tratamento com clindamicina; ivermectina; dipirona;
cetoprofeno; curativos 2 vezes/dia com remoção da
miíase e lavação do pescoço com povidine; troca da
cânula da traqueostomia diariamente. Paciente vivo, em
tratamento paliativo para o carcinoma de laringe.
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localização, podem ser cutâneas, subcutâneas ou
cavitárias (nariz, seios da face, ouvido, boca, ânus, vagina
etc.), porém, quando em área cutâneo-mucosa,
geralmente, há queixa de prurido intenso e dor local2.
Em geral, os pacientes acometidos apresentam fatores
predisponentes tais como debilidade física e mental,
desidratação, higiene corporal inadequada, diabetes,
desnutrição, elefantíase, esquizofrenia, alcoolismo,
anemia, infestação por piolhos e, fundamentalmente,
feridas acidentais, respiração bucal durante o sono,
hemiplegia, traumatismos3,7,8,9,12,14,15. O mais comum é
o aparecimento de miíases em pacientes com lesões
necróticas cavitárias, como colesteatomas no ouvido
médio, tumores ou doenças úlcero-granulomatosas nasais
(leishmaniose, hanseníase etc.) tumores orais, anais ou
vaginais e oftálmicos, assim como lesões da pele4.
Objetivo
Apresentar um relato de caso de infestação por miíase
em sítio de traqueostomia em um paciente com carcinoma
de laringe.
Metodologia
Introdução
Miíase é uma afecção causada pela presença de
larvas de moscas em órgãos e tecidos do homem ou de
outros animais vertebrados, onde se nutrem dos tecidos
vivos ou mortos do hospedeiro (substâncias corporais
líquidas ou do alimento por ele ingerido) e evoluem como
parasitos1. A incidência desta parasitose é comum no
meio rural entre animais de criação e, baixa na espécie
humana1,2,7. Ocorre normalmente em pessoas idosas e
debilitadas1, mas pode ocorrer em pacientes tróficos e
saudáveis, tendo sido descrita em pessoas que lidam com
animais que habitualmente atraem moscas, ou em
indivíduos de baixa classe socioeconômica, com
comprometimento de seu estado de saúde5.
As espécies de moscas causadoras desta patologia
são as denominadas Cochliomyia hominivorax,
Dermatobia hominis e Cordylobia anthropophaga,
vulgarmente conhecidas como “mosca varejeira”,
“mosca berneira” e “mosca tumbu”, respectivamente2.
Sendo as larvas de Cochliomyia hominivorax e
Dermatobia hominis, os agentes causais mais comuns
das miíases humanas na América3. Embora consideradas
raras, as miíases humanas têm sido descritas no norte,
no centro e no sul da América6.
O quadro clínico é variável, pois dependendo da
Relato de caso associado à revisão de artigos
científicos de bases de dados (Scielo e Pubmed)
Resultados/Discussão
A miíase é uma afecção que ocorre mais em países
subdesenvolvidos e em regiões quentes9,12, estando
associada a pouca higiene, lesões supuradas, alcoolismo,
senilidade e imunodeficiência9.
Durante o desenvolvimento das larvas, o tecido
adjacente sofre processo inflamatório, com ou sem
ulceração ou necrose9. Muitas complicações sérias
podem ocorrer devido à míiase: erosão de ossos e dentes,
celulite, bacteremia e morte8.
O diagnóstico de miíase humana é clínico, porém para
que se possa detectar algumas de suas complicações,
pode ser necessário ultrassonografia, tomografia
computadorizada ou ressonância nuclear magnética10.
Alguns autores preconizam que após a remoção das
larvas, pelo menos uma delas seja colocada em álcool
ou formaldeído para análise laboratorial e outra seja
enviada viva para facilitar a caracterização da espécie11.
O tratamento convencional da miíase inclui na
remoção das larvas com uso de substâncias químicas, o
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Relato de caso – Infestação da cânula de traqueostomia por miíase
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que promove a asfixia das larvas e induz sua saída da
lesão 9. Em lesões maiores ou quando há celulite
adjacente é indicada a debridação do local com retirada
do tecido necrótico.9 Já Ofordeme et al10 defendem como
ideal, o tratamento cirúrgico, que possibilita a remoção
total de larvas aliada à debridação.
Gopalakrishnan et al13 descrevem um caso de miíase
em sítio de traqueostomia de paciente com carcinoma
de laringe, no qual o paciente era de classe
socioeconômica desfavorecida, tinha higiene precária e
morava na Índia (país tropical). O tratamento instituído
foi a remoção manual das larvas, debridamento, higiene
do local da traqueostomia e o uso de antibiótico para
prevenir infecção secundária13.
Josephson et al15 relatam um caso de miíase em sítio
de traqueostomia em paciente idosa, com infarto do
miocárdio, debilitada, com nível de consciência alterado,
intubada e depois traqueostomizada. Foi realizada cirurgia
com debridamento e drenagem de secreção purulenta
no local por contaminação bacteriana secundária15.
Szakacs TA et al8 descrevem um caso de miíase
nosocomial, que é rara, na qual o paciente acometido
apresentava muitos dos fatores de risco para o
desenvolvimento dessa afecção: debilitação, desatenção
por parte da enfermagem, alteração do nível de
consciência, hipoestesia, diabetes, doença vascular
periférica, doença arterial coronariana, dentre outros.
Assim, percebe-se relação clara entre miíase e esses
fatores de risco8.
Predy et al11 citam quatro fatores de risco marcantes:
debilitação, sangramento ou odor de decomposição
presentes, negligência nos cuidados da enfermagem e
verão como estação do ano.
Segundo Szakacs et al8 e Carvalho et al9 o uso de
invermectina na miíase humana é restrito.
Para Carvalho et al9 a prevenção da miíase humana
engloba o controle da população de moscas. Oferdeme
et al10 citam o uso de repelente de insetos e de roupas
protetoras para o caso de viagens a áreas endêmicas.
Gabriel et al12 descrevem a profilaxia de miíase humana
englobando cuidados básicos de saúde, higiene, acesso
a serviços primários de saúde e água potável e encanada.
Estudos sobre a ocorrência das miíases humanas são
escassos, merecendo destaque um estudo
epidemiológico3. A doença atinge geralmente as áreas
mais expostas do corpo humano, devido à facilidade de
oviposição da mosca8. Registra-se que as miíases
predominam em adultos do sexo masculino, com idade
variando entre 30 a 70 anos e que a maioria dos
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diagnósticos não são registrados por razões culturais,
sociais e médico-políticas2. Pode-se também constatar
que, em raras oportunidades, os profissionais de saúde
adotam como conduta a retirada das larvas das lesões e
o envio destas a laboratórios de referência para que as
mesmas sejam identificadas, sendo a conduta de rotina
a retirada das larvas e seu imediato descarte,
procedimento acompanhado por expressões de nojo e
reprovação com relação à situação dos pacientes3. De
acordo com a literatura, a melhor técnica para retirá-la
é por asfixia, e podem ser utilizadas substâncias que
proporcionem oclusão do orifício, como gordura suína
(bacon), esparadrapo, óleo mineral, manteiga e
cosméticos, dentre outros 2. Pode-se ainda realizar
compressão local associada. Outros autores sugerem a
introdução de até 2 ml de lidocaína dentro do orifício
com o auxílio de uma seringa, o que proporciona aumento
da pressão no local e expulsão da larva7. Esta deve ser
retirada íntegra para evitar a formação de abscessos e
facilitar a cicatrização doença7.
Percebe-se que o paciente desse relato apresentava
vários dos fatores predisponentes para a ocorrência de
infestação por miíase: alcoolismo, tabagismo,
imunodepressão (devido à neoplasia e à quimioterapia),
exposição de tecidos pela abertura da traqueostomia,
debilidade física e mental, higiene inadequada, exposto
ao clima tropical brasileiro, baixas condições econômicas.
O tratamento instituído corresponde ao preconizado na
literatura pesquisada, visto que incluiu remoção manual
das larvas, higienização, troca diária da cânula da
traqueostomia, invermectina e antibioticoterapia para
prevenção de infecção secundária, com o qual se obteve
sucesso terapêutico.
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