biotica, pessoa e direito - Universidade Católica Portuguesa

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BIOÉTICA, PESSOA E DIREITO
(Para uma recapitulação do estatuto do embrião humano)
Mário Emílio Forte Bigotte Chorão
§1
(A questão do estatuto do embrião)
O actual debate bioético e biojurídico provocado pelos desafios da “revolução
biotecnológica” tem dispensado particular atenção às situações-limite (stati di
confine) da vida humana, designadamente ao estatuto do embrião, por outras
palavras, ao status do indivíduo concebido (conceptus), mas ainda não nascido
(nasciturus).
É notório o contraste de opiniões a este respeito, sob a influência de diferentes
concepções éticas e jurídicas e de variados pressupostos filosóficos. Não raro, o
tratamento daquela crucial e vexata quaestio aparece inquinada por vícios de
método, debilidades doutrinais e preconceitos ideológicos, que podem tornar-se
causa de graves custos humanos.
Pareceu oportuno rever aqui os termos essenciais do problema, embora,
forçosamente, de modo muito sumário e esquemático.
§2
(A via do realismo e do personalismo)
Na abordagem desta questão – e, em geral, no estudo da temática bioética e
biojurídica –, temos seguido uma orientação baseada no realismo como atitude
originária ou ponto de partida (Anfangspunkt) do espírito, com alcance, não apenas
intelectual e teorético, mas existencial e prático. E temos adoptado como modelo
ou paradigma de reflexão o personalismo metafísico ou ontologicamente fundado.
Esta opção reconhece o primado do ser sobre o cogito e o conhecimento (“ipsae
res sunt causa et mensura scientiae nostrae”), da teoria (theoria) sobre a prática
(praxis), do ser (Sein) sobre o dever ser (Sollen). Em consequência, antepõe o
estatuto ontológico do conceptus ao estatuto deontológico (ético e jurídico). E,
coeremente, recomenda, na esteira, ente outros, de V. Possenti 1 , uma metodologia
que, perante o “mistério” da génese da vida, privilegie a atitude meditante e
contemplativa e evite incorrer no precipitado prescritivismo ou normativismo moral
e jurídico.
1
Cf: Bioetica, embrione, persona. Picola premessa metodologica, in “O Direito”, Lisboa, 125º (1993/I-II), pp.
39-59; Bioetica: per difendere l’uomo non basta fargli la morale. Sganciare il dibattito sull’embrione dalla
questione dell’”essere” para spostarlo solo sul piano etico è una soluzione falsa e illusoria, in “Avvenire”,
Roma, 1.XII.2004; Cambiare la natura umana? Biotecnologie e questione antropologica [manuscrito,
2004].
§3
(Perspectiva científica e filosófica do embrião)
Nesta ordem de ideias, impõe-se tentar captar a verdadeira realidade do
conceptus na sua expressão empírica e fenoménica e na radicalidade última do seu
ser, atendendo à lição das ciências biológicas e da filosofia.
Ora, o saber científico atesta, segundo opinião amplamente sufragada e muito
autorizada, que, com a fusão dos gâmetas, se inicia a vida de um novo organismo
biológico, um indivíduo da espécie humana, autónomo e com identidade genética
própria. Essa conclusão não parece prejudicada pela situação desse organismo na
fase anterior à nidação (designada, por vezes, ambiguamente, “pré-embrionária”),
nem pela hipótese gemelar monozigótica.
Por sua vez, a reflexão apoiada na filosofia da natureza e na metafísica permite
considerar – conforme a melhor doutrina – que o ser humano embrionário é uma
pessoa, ou seja: “rationalis naturae individua substantia (Boécio); “individuum
rationalis naturae” ou “subsistens in natura rationali vel intellectuali (Tomás de
Aquino); uma unidade substancial corpóreo-espiritual.
Em suma, no momento auroral da fecundação, não é uma coisa, mas alguém –
um ser pessoal –, que surge na terra dos vivos.
§4
(A concepção ontológico-substancialista da pessoa)
Esta tese de identidade pessoal do ser humano embrionário apoia-se no correcto
entendimento metafísico da concepção ontológico-substancialista da pessoa.
Para o efeito, é indispensável precisar alguns conceitos centrais, como:
substância (ousia) – “substância primeira” (sujeito ou substrato, indivíduo
subsistente, existente in se e per se, ente dotado do seu próprio actus essendi) e
“substância segunda” (essência ou quididade); natureza (não apenas como
sinónimo de essência, mas também no sentido de essência de uma coisa enquanto
princípio das suas operações).
A aquisição do acto de ser em ligação com a essência ou natureza humana
ocorre no momento da concepção (constituindo, propriamente, um “facto
instantâneo”, e não um “processo”), quando, por obra dos progenitores, é gerado o
corpo, e a alma espiritual, sua forma substancial, é directamente criada e infundida
por Deus.
Com esta animação, logo no estádio zigótico, o corpo é verdadeiro corpo
humano, e o conceptusI, ontologicamente, pessoa em acto, cujas faculdades e
operações são susceptíveis de ulterior desenvolvimento perfectivo (operatio
sequitur esse). A condição ontológica de pessoa não é uma qualidade mensurável,
isto é, que se pode ter em maior ou menor medida; pessoa, ou se é por natureza,
ou não se é (to be or not to be). Mas as capacidades da pessoa e o seu exercício,
isso sim, são variáveis ao longo do ciclo vital. Em suma, desde o início ao termo da
vida, mantém-se o status pessoal do ser humano vivo, independentemente dos
acidentes e vicissitudes de ordem somática, psíquica e espiritual.
§5
(A animação do ser humano embrionário)
Admitimos, como se viu, a hipótese da animação imediata, segundo a qual a
alma espiritual está presente no embrião desde o primeiro instante da concepção
biológica.
Mas a questão tem sido objecto de intensa polémica, com remotos antecedentes
históricos e variadas e complexas incidências de natureza científica, filosófica e
teológica, em que se enfrentam as teses da animação imediata e mediata. Uma
interessante e competente síntese interdisciplinar desse debate é proporcionada
pelo livro de Philippe Caspar, Penser l’embryon d’Hippocrate à nos jours 2 .
Anotemos, de passagem, que a primeira das referidas teses, objecto de ampla e
qualificada aceitação no passado e no presente, não foi acolhida por alguns
reputados autores, entre eles, Tomás de Aquino.
Pretendendo integrar o dado científico aristotélico na reflexão filosófica e
teológica, o Aquinense optou pela explicação da animação mediata: o embrião só
receberia a alma espiritual num certo estádio de desenvolvimento e após ter sido
animado, sucessivamente, por uma alma vegetativa e por uma alma sensitiva. Esta
posição tomasiana suscita algumas dificuldades, designadamente no tocante à
articulação entre ordem moral e ordem ontológica e entre as causalidades natural e
divina.
Não faltam hoje autorizadas versões favoráveis à animação imediata, que se
apoiam em renovadas bases embriológicas e usam uma argumentação que se
serve de contributos essenciais do magistério filosófico e teológico de S. Tomás. É o
caso, por exemplo, dos importantes estudos do mencionado Philippe Caspar e do
ensaio de Louise-Marie Antoniotti, O. P., La vérité de la personne humaine.
Animation différée ou animation immédiate 3 .
Enfim, a alma espiritual ou intelectual, forma do corpo, não é, nem pode ser,
eduzida da matéria pela potência generativa dos pais, mas é criada e infundida por
Deus, no momento da concepção, e independentemente da exigência de um certo
grau de complexidade do organismo biológico. Ou seja, a alma racional não é
produzida por transmutação da matéria, mas por directa criação divina. Ela está
presente, desde o início da vida, no organismo embrionário, embora não sejam
ainda aparentes os seus actos próprios, como o exercício do pensamento ou da
vontade. A alma humana é, então, como “un faible feu […] impuissant à user pour
l’instant de ses forces” (Erasmo), ou “un feu qui ne brille pas encore de son plein
éclat” 4 .
§6
(Corpo humano – ser humano – indivíduo humano – pessoa)
Editions Universitaires, Paris, 1991.
In “Revue Thomiste”, Toulouse, 111º (2003), t. CIII, nº 4, pp. 547-576.
4 PHILIPPE CASPAR, Le statut ontologique de l’embryon humain. Les découvertes de la biologie moderne
renouvellent-elles le débat ?, in “Revue des Questions Scientifiques”, 1993, 164 (3), p. 246.
2
3
Em resumo, à luz da concepção ontológico-substancialista, parece legítimo
enunciar as seguintes asserções: onde está o corpo humano (vivo), aí está a alma
espiritual; onde está o produto da concepção, está o indivíduo humano; onde está
o indivíduo humano, está a pessoa.
Podemos considerar como equivalentes os termos ser humano, indivíduo humano
e pessoa humana, e devemos reconhecer a coextensividade entre ser humano e
pessoa (todos os seres humanos são pessoas).
Para o personalismo metafisicamente fundado, a pessoa está presente ab
ovo / ab origine – logo desde a concepção –, por certo em gérmen, mas já
substancialmente (como sujeito existente in se e per se, de natureza corpóreoespiritual).
§7
(O embrião humano à luz da Revelação divina e do Magistério da Igreja)
A percepção da identidade pessoal do embrião humano, a que pode chegar-se
pela via da pura racionalidade natural, é significativamente confirmada pelas fontes
da Revelação divina, pelo Magistério e pela prática da Igreja católica e pelos
ensinamentos da teologia cristã 5 . Faremos, a este respeito algumas brevíssimas
referências.
O dogma da Imaculada Conceição mostra que a Virgem Maria foi preservada de
toda a mancha do pecado original “no primeiro instante da sua concepção”, isto é,
quando foi constituída como pessoa humana, único sujeito capaz de contrair o
pecado e de receber a Graça. Naquele momento foi gerado o corpo de Maria no
ventre materno, e criada e infundida por Deus a sua alma espiritual (animação
imediata).
Por sua vez, no mistério da Encarnação, com a fecundação virginal – a concepção
de Cristo com a intervenção do Espírito Santo – coincide a assunção, pelo Filho de
Deus, da natureza humana. Permanecendo verdadeiro Deus, Ele torna-se
verdadeiro homem – o que supõe a concepção de um corpo humano e a sua
animação racional (imediata).
Estes dogmas (também o da Trindade) têm dado azo a uma frutuosa cooperação
entre a fé e a razão, a teologia e a filosofia, com vantagem simultânea para o
discernimento da verdade natural acerca da pessoa humana e para o
aprofundamento dos grandes mistérios cristãos.
São relevantes outras indicações no sentido de que o homem / a pessoa humana
chega à existência no momento da concepção e que é contemporânea desta a
criação e infusão divina da alma espiritual.
Assim, certas referências evangélicas a João Baptista: “ele será cheio do Espírito
Santo já desde o ventre da sua mãe” (Lc. 1, 15); no seio materno, o Baptista
estremeceu (LC 1, 42) e “exultavit in gaudio” (Lc 1, 44), quando Isabel ouviu a
saudação de Maria. Embora concebido em pecado – o pecado original –, o
5
Cf., v.g.: PH. CASPAR, Penser l’embryon…; LOUISE-MARIE ANTONIOTTI, loc. cit..
Precursor foi santificado, ainda antes de nascer, pela presença de Jesus, que sua
Mãe, quando da visita a Isabel, também trazia no ventre.
É igualmente favorável ao reconhecimento do status pessoal do conceptus a
prática, seguida na Igreja católica e regulada pelo direito canónico (cf. cân. 871 do
C.D.C.), do baptismo dos fetos abortados, se estiverem vivos. O sujeito idóneo do
sacramento do baptismo é apenas o homem, devendo, pois considerar-se como ser
humano o feto, em qualquer fase, a partir da concepção. Entende-se que o feto
contraiu o pecado enquanto pessoa, isto é, sujeito dotado de corpo e de alma
racional, criada no início da sua vida biológica.
A ideia de que o nascituro será verdadeira pessoa é ainda apoiada por vários
documentos recentes do Magistério eclesiástico, como a Instrução Donum vitae
(22.2.1987) da Congregação para a Doutrina da Fé, o Catecismo da Igreja Católica
(11.10.1992) e a Encíclica Evangelium vitae (25.3.1995) de João Paulo II.
§8
(A dignidade da pessoa humana)
A condição pessoal do ser humano implica uma eminente dignidade, a qual se
pode justificar racionalmente, a partir do estatuto ontológico da pessoa, e reforçar,
de modo singular, à luz da fé, com base na Palavra de Deus 6 .
S. Tomás, ao definir metafisicamente e pessoa, considera que ela é o que há de
mais perfeito (perfectissimum) e digno (dignissimum) em toda a natureza, porque
é um ser subsistente (subsistens, per se existens), dotado de uma alma espiritual e
imortal, que torna o homem mais semelhante a Deus do que às outras criaturas 7 .
Em suma, cada pessoa em concreto é um sujeito único e irrepetível, fim em si
mesmo, com uma dignidade incompatível com a sua instrumentalização e
coisificação.
As razões desta superior nobreza, consideradas, não apenas no plano natural,
mas na perspectiva da fé, merecem um desenvolvido tratamento por parte do
Catecismo da Igreja Católica. Além de muitas outras referências dispersas ao longo
do texto, consagra-lhes expressamente todo um capítulo (“A dignidade da pessoa
humana”): nºs 1700-1876.
O homem – cada homem singular – é um ser criado por Deus à Sua imagem
(imago Dei), redimido por Cristo e destinado à bem-aventurança eterna
(beatitudo), plenitude da felicidade.
Já a simples razão natural está em condições de por si descobrir a dimensão
religiosa como elemento constitutivo essencial da pessoa, que a põe em relação
com Deus. Inclinado por natureza à verdade, o homem tem o “desejo natural de
ver Deus” (desiderium naturale videndi Deum”), Fonte de todo o ser, Fim último de
toda a realidade, e Pessoa Primeira. Mas só o Logos divino pode revelar a verdade
Cf.: TOMAS MELENDO e LOURDES MILLAN-PUELLES, Dignidad: una palabra vacía?, EUNSA,
Pamplona, 1996; TOMAS MELENDO, Metafisica del concreto tra filosofia e vita, Leonardo da Vinci,
Roma, pp. 145-164.
7 Cf., v.g.: Summa theologiae, I, q. 29, a. 3 resp., e III, q. 2, a. 2, ad 2; In Symbolum Apostolorum, a. 1.
6
integral acerca do homem, do seu destino supratemporal e dos meios necessários
para entrar em comunhão com Deus.
Enfim, o personalismo, se adoptar, realisticamente, este dilatado horizonte
gnosiológico, apoiando-se na razão e na fé, na filosofia e na teologia, fica habilitado
a um conhecimento mais perfeito da realidade da pessoa humana. “Quem vê mais
ampla e profundamente tem mais razão”. A essa luz, “brillano valori e profondità
che resterebbero altrimenti nel buio o nella penombra”, para usar palavras de H. U.
von Balthasar, em comentário ao magistério de Romano Guardini sobre a
“katholische Weltanschauung” 8 .
§9
(O estatuto ético do embrião: agir “secundum naturam”)
Posta agora a questão do estatuto ético do embrião humano (qual o
comportamento que moralmente lhe é devido?), diremos, na lógica dos
pressupostos realistas e personalistas assumidos, que o dever ser tem de pautar-se
pelo ser.
Quer isto dizer, antes de mais, que o sujeito moral deverá agir neste caso, como
na generalidade das situações da vida, segundo a sua natureza (secundum
naturam), ou seja, de modo a ordenar as suas acções para o fim do homem
enquanto homem (in quantum est homo), e, portanto, para a sua perfeição,
condição da felicidade. Aí reside o bem moral.
Condensa-se, por vezes, esta normatividade moral em fórmulas como: “homem,
torna-te naquilo que és”, ou “age para te realizares plenamente como homem”.
O primeiro princípio universal da razão prática, que pertence à experiência do
senso comum 9 , expressa-se no dever de fazer o bem e evitar o mal (bonum
faciendum, malum vitandum) e coincide, no fim de contas, com a apontada
exigência de caminhar na direcção da perfeição humana.
Fundada na verdade ontológica do ser humano, a ordem moral manifesta-se na
razão que regula o agir em função do seu fim natural (recta ratio). O dever ser, por
isso, radica no ser (das Sollen gründet im Sein), a ontologia projecta-se, por assim
dizer, na deontologia. Será moralmente bom o acto ordenado ao fim (telos)
correspondente à natureza e dignidade pessoais do agente. Ao contrário, será ilícito
o comportamento antinatural ou desnaturado (contra naturam), como o do pai que
maltrata o filho, ou do médico que provoca intencionalmente a morte do paciente a
seu cargo. Que dizer, à luz deste critério, da manipulação experimental e da
destruição de embriões vivos?
Convém advertir que, em última instância, a natureza humana com a sua
intrínseca teologicidade, e, consequentemente, a ordem moral, remetem para
Deus, criador do homem e seu fim e bem supremo e absoluto. À margem da
existência de Deus (etsi Deus non daretur) não parece possível dar uma verdadeira
Fede e Pensiero. T. 2. Romano Guardini. Riforma dalle origini. Jaca Book, Milão, 2000, p. 43.
9 Cf. ANTÓNIO LIVI, Filosofia del senso comune (Logica della scienza e della fede), Ares, Milão, 1990, Il senso
comune tra razionalismo e scetticismo (Vico, Reid, Jacobi, Moore), Massimo, Milão, 1992, La ricerca della
verità (Dal senso comune alla dialletica), Leonardo da Vinci, Roma, 2001, Verità del pensiero.
Fondamenti di logica aletica, Lateran University Press, Roma, 2002.
8
fundamentação e garantir a eficácia da moral. Será assim, por exemplo, no
existencialismo ateu sartriano: “il n’ya pas de nature humaine, puisqu’il n’y a pas
de Dieu pour la concevoir”; logo, o homem “est non seulement tel qu’il se conçoit,
mais tel qu’il se veut”, ele “sera d’abord ce qu’il aura projeté d’être ” 10 .
§ 10
(O estatuto ético do embrião: reconhecimento da identidade pessoal)
A definição do estatuto ético do embrião impõe outra consideração, aliás,
estreitamente ligada à do parágrafo anterior.
De um modo geral, como se referiu, é exigido ao homem, se quer proceder
rectamente na esfera moral, que aja de um modo racional, em conformidade com
os imperativos decorrentes da sua natureza. Ora, desta exigência fundamental
deriva, como forçoso corolário, que o sujeito moral deve ter em conta os seres com
que se relaciona e tratá-los segundo a respectiva natureza e os fins ínsitos nela.
Rosmini, discorrendo sobre a fundação da ética, alude à necessidade de
“riconoscere l’essere nell’ordine suo” e formula, a propósito, o seguinte incisivo
princípio: “Ama l’essere dovunque lo conosci, in quell’ordine ch’egli presenta alla
tua intelligenza” 11 .
Pois bem, aplicando esta doutrina ao nosso problema, resulta o dever de advertir
a presença do ser embrionário e de o respeitar como pessoa humana (mesmo no
caso de eventual dúvida acerca da sua identidade pessoal).
Esse respeito tem de entender-se num sentido forte, que inclui, não apenas o
dever de não causar dano (neminem laedere), mas também o de dispensar,
positivamente, ao conceptus, a atenção e os cuidados que ele merece, atentas a
sua natureza e dignidade, bem com as circunstâncias particulares da sua extrema
fragilidade e vulnerabilidade. Cabem aqui, os imperativos da justiça (suum cuique
tribuere) e do amor de benevolência.
A natureza humana tem, assim, como se vê, uma dúplice relevância como
critério de normatividade, ao referir-se ao próprio sujeito da acção e, também, no
nosso caso, ao ser embrionário. A conduta ilícita (p. ex., a occisão de embriões)
será contrária à natureza de um e de outro.
§ 11
(A fundamentação realista do estatuto ético do embrião: o personalismo
ontológico)
Assentamos, pois, o estatuto ético do embrião humano em pressupostos
realistas, de que faz parte o reconhecimento da cognoscibilidade de princípios
morais objectivos e dos respectivos fundamentos metafísicos (cognitivismo ético e
metafísico).
10
11
L’existentialisme est un humanisme, Nagel, Paris, 1951, pp. 22-23.
Principi della scienza morale, cap. IV, art. 7, apud A. POPPI, Per una fondazione razionale dell’etica.
Introduzione al corso di filosofia morale, Ed. Paoline, Cinisello Balsamo (Milão), 1989, p. 32.
O cerne ou “núcleo duro” ontológico desta concepção, fundante da ordem moral,
reside, precisamente, na natureza humana (como essência e princípio operativo da
pessoa). Com esta se liga, íntima e necessariamente, o primeiro princípio prático –
“bonum faciendum, malum vitandum” –, consistindo o bem moral na perfeição da
pessoa, enquanto seu fim natural ou essencial.
Homem, pessoa e natureza humana, tais como aqui se entendem, não exprimem
simples factos empíricos e dados sensíveis, mas realidades com um denso conteúdo
ontológico e teleológico, que trazem já em si uma mensagem moral (“vive como
homem”). Por isso, esta fundamentação do dever moral no ser finalístico da pessoa
não pode ser confundido com uma explicação de tipo naturalístico e biologístico. E
não a atingem os argumentos da chamada “lei de Hume” (Hume’s law) ou da
“falácia naturalista” (naturalistic fallacy), frutos do separatismo – a “Grande
Divisão” – entre mundo fenoménico e mundo numénico, entre ser (Sein, is) e dever
ser (Sollen, ought). A fundação da moral na realidade ontológica da pessoa
humana não representa, na verdade, nenhum indevido salto lógico, mas reflecte,
tão-só, a dimensão normativa ínsita na natureza do homem 12 .
Esta versão do realismo ético clássico inclui, assim, como componente essencial,
o reconhecimento da existência, da lei moral natural, que ordena o agir numa
direcção perfectiva, segundo as inclinações e finalidades inscritas na natura
hominis.
A formulação primordial dessa lei, por assim dizer, o seu “preâmbulo”, é a do
referido princípio prático – “deves fazer o bem…”. Este desdobra-se depois, noutros
princípios com maior grau de determinação conforme as tendências e bens
concretos inerentes à natureza humana e ao desenvolvimento da pessoa no sentido
da sua perfeição.
Tomás de Aquino 13 e os seus seguidores explicitam essas inclinationes naturales
do homem: à conservação da vida; à união sexual e educação dos filhos; ao
conhecimento da verdade; à vida social.
Por sua vez, a Bíblia transcreve no Decálogo – como deveres universais –
exigências básicas da lei natural. O Decálogo – convém notar – “não é propriedade
privada dos cristãos ou hebreus”, mas “uma altíssima expressão da razão natural
que, como tal, coincide também largamente com a sabedoria das outras grandes
culturas”. Por isso, “tomar novamente como referência o decálogo poderia ser
essencial para a purificação da razão, para um novo relançamento da recta ratio” 14 .
O conhecimento destes deveres morais é acessível à razão natural
(conhecimento por conaturalidade ou congenialidade, vivencial, conceptual…).
Arrancando da experiência primária do senso comum (sensus communis), de que
fazem parte as certezas básicas e universais do homem, esses deveres
fundamentais, são objecto, também, obviamente, de aprofundamento reflexivo por
parte do saber filosófico. A sua cognoscibilidade natural não significa, porém, que a
sua apreensão seja isenta de dificuldades e erros. Por isso, é conveniente que
venha a luz da Revelação em auxílio da razão humana para ajudar o homem na
senda do bem e da salvação.
Cf. MASSIMILIANA BETTIOL, “Metafisica debole” e razionalismo politico (e bibl. aí cit.), Ed. Scientifiche
Italiane, Nápoles, 2002, passim.
13 Cf. S. th., I-II, q. 94, a. 2.
14 JOSEPH RATZINGER, Europa. Os seus Fundamentos Hoje e Amanhã, trad. de A. Maia da Rocha,
Paulus Ed., Apelação, 2005,, p. 74.
12
Em suma, a orientação ética anteriormente esboçada a propósito do estatuto do
embrião humano inscreve-se, plenamente, no quadro do modelo ético (ou bioético)
presonalista, baseado na consideração ontológica da pessoa humana, e identificado
como personalismo ontológico ou ontologicamente fundado. Supõe, este, a
justificação racional dos juízos de valor moral com base na dimensão ontológica, na
realidade essencial e natural, da pessoa, Esse modelo é hoje proposto por um
conjunto significativo de autorizados especialistas da bioética e do biodireito 15 .
Tal como o entendemos, ele baseia-se no reconhecimento da legitimidade da
ética racional, rejeita a indevida “confessionalização” do debate bioético e afasta
toda a tentação fideísta. Mas, do mesmo passo, refuta as pretensões do
racionalismo e do laicismo – que impregnam propostas apresentadas sob o rótulo
de “bioética laica” – e admite as vantagens da abertura da razão natural à fé, e da
colaboração entre a ética filosófica e a teologia moral, na linha da orientação
preconizada por João Paulo II nas encíclicas Veritatis splendor (6.8.1993) e Fides et
ratio (14.9.1998).
Uma coisa se deve ter como adquirida e segura: a ética cristã não recusa as
verdades da moral natural, antes assume, reforça e sublima as suas exigências
normativas (gratia non tollit naturam, sed perficit). Assim teria de ser, ao ver em
Cristo o verdadeiro fundamento e regra do agir, e ao fazer do “mandamento novo”
(“amai-vos uns aos outros como Eu vos amei”) e da “regra de ouro” (“fazei aos
outros o que quereis que eles vos façam”) a chave do seu “código moral”. Por isso,
não é despiciendo, do ponto de vista cristão, que a ética, em geral, e a bioética, em
particular, procurem escutar a Palavra de Deus. Que terá esta para nos dizer a
propósito do respeito devido à frágil criatura que é o ser embrionário, fruto
singularíssimo da cooperação divino-humana?
§ 12
(O estatuto jurídico do embrião: o reconhecimento da personalidade
e da capacidade como exigência do direito natural)
Segundo a lógica do personalismo ontológico e da concepção realista do direito
(o ius é id quod iustum est, a começar pelo iustum naturale) 16 , o estatuto jurídico
do embrião humano terá de reflectir os imperativos da justiça (suum cuique
tribuere), primordialmente, os que decorrem da própria natureza pessoal do
conceptus (ex ipsa naturae conceptus / nasciturus). Ou seja, no ser humano
concebido reside o fundamento do dever ser jurídico, do seu estatuto perante o
direito.
Assim, antes de mais, deverá ser reconhecido ao nascituro, como primeiro
atributo, a personalidade jurídica, por conseguinte, a condição de sujeito de direito.
Para a concepção realista do direito – de base personalista e jusnaturalista –, a
personalidade jurídica (singular, ou do indivíduo humano) acompanha a
Cf., v. g.: E. SGRECCIA, Manuale di bioetica. Fondamenti ed etica biomedica, vol. I, Vita e Pensiero,
Milão, 1993; D. TETTAMANZI, Bioetica. Nuove frontiere per l’uomo, Piemme, Casale Monferrato,
1990; L. PALAZZANI, Introduzione alla biogiuridica, Giappichelli, Turim, 2002.
16 Cf. M. E. BIGOTTE CHORÃO, Aproximação ao Realismo Jurídico, sep. de AA.VV. / P. FERREIRA DA
CUNHA (org.), Direito Natural, Religiões e Culturas, I Congresso Internacional de Direito Natural.
Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Coimbra, Editora, Coimbra, pp. 21-45.
15
personalidade humana em sentido natural ou ontológico. Ubi persona naturalis, ibi
persona iuridica. Assim, todos os indivíduos humanos, desde o início ao termo do
seu ciclo vital, portanto, também o conceptus, são (ex natura rerum), além de
pessoas em sentido ontológico, pessoas jurídicas.
Em defesa deste fundamento realista e metafísico da personalidade jurídica
singular, são de referir, entre outros, os valiosos contributos do espanhol Javier
Hervada, da colombiana Ilva Myriam Hoyos Castañeda e da italiana Laura
Palazzani 17 .
Estreitamente conexionado com esse fundamento da personalidade jurídica, está
a tese concepcionista, segundo a qual o indivíduo humano adquire a qualidade de
sujeito de direito no momento da concepção, e não apenas, como pretende a tese
natalista, com o nascimento.
Assegurada ao ser humano embrionário a personalidade jurídica – como
dimensão inerente à personalidade natural –, dela decorre automaticamente o
reconhecimento da capacidade de ser titular de direitos (capacidade jurídica do
gozo). Só que, enquanto a personalidade jurídica é um atributo inquantificável (não
se é, mais ou menos, mas, ou se é, ou não, sujeito de direito), a referida
capacidade pode ser maior ou menor, consoante as circunstâncias. Ainda assim,
não pode deixar de abranger, no caso de conceptus, aqueles direitos fundamentais
exigidos pela própria natureza do sujeito (direitos naturais), a começar pelo direito
à vida. Mas vários outros direitos, com título natural ou positivo, cabem naquela
capacidade (como os relativos à integridade física, à identidade genética, à honra,
ao estabelecimento da filiação e à representação jurídica, a alimentos, à aquisição
de bens por doação e sucessão “mortis causa”, ao ressarcimento de danos).
Deve dizer-se que o actual debate biojurídico proporciona uma excelente
oportunidade para rever, em termos realistas, a questão do fundamento e da
aquisição da personalidade jurídica, vencendo o “sono dogmático” do formalismo e
do legalismo. Bem assim, esse debate constitui um feliz ensejo para aproximar –
de modo inovador, dinâmico e progressivo – o ius do bios e para abrir promissoras
e humanizadoras perspectivas ao “retorno do direito natural”.
§ 13
(Nótula sobre a experiência jurídica histórica a respeito do embrião humano)
A equiparação, não só ontológica, mas também, em certos termos, jurídica,
entre nascido e nascituro, o reconhecimento a este da personalidade jurídica e, em
maior ou menor medida, da capacidade do gozo de direitos, a tutela pré-natal do
direito à vida – tudo isso tem raízes consideráveis na experiência jurídica do
passado. Assim, desde o direito romano até à codificação moderna civil (que, de
modo não isento de ambiguidade, apesar da sua opção natalista quanto à aquisição
da personalidade, reconhece a titularidade de certos direitos ao conceptus) e,
obviamente, penal (ao punir o aborto como crime contra o direito à vida das
pessoas).
17
Cf.: J. HERVADA, Introducción crítica al Derecho Natural, 10ª ed., EUNSA, Pamplona, 2001, e
Lecciones Propedéuticas de Filosofía del Derecho, 3ª ed., EUNSA, Pamplona, 2000; I. M. HOYOS
CASTAÑEDA, El concepto jurídico de persona, EUNSA, Pamplona, 1989; L. PALAZZANI, Il concetto
di persona tra bioetica e diritto, Giappichelli, Turim, 1996.
Esses antecedentes e testemunhos históricos adquirem hoje renovado interesse
no âmbito bioético e biojurídico e dão azo a interessantes e instrutivas pesquisas.
É o caso, por exemplo, das empreendidas directamente pelo romanista
Pierangelo Catalano, da Universidade de Roma “La Sapienza”, ou sob seu impulso,
e centradas no tema do estatuto do nasciturus no direito romano e na codificação
moderna, particularmente, nos ordenamentos da área latino-americana 18 . Neste
âmbito, tem merecido especial e justificada atenção o tratamento jurídico do
conceptus como “pessoa por nascer”, adoptado pelo brasileiro Teixeira de Freitas e,
na sua peugada, pelo argentino Vélez Sarsfield.
Vêm-se sucedendo, nas últimas duas décadas, elaboradas e fundamentadas
propostas no sentido do reconhecimento da personalidade e capacidade jurídica do
nascituro e da formulação da sua “carta de direitos” 19 , propostas que põem em
causa disposições dos códigos civis, como as dos artigos 1º (Itália) e 66º
(Portugal).
Num contexto amplamente adverso à personalidade jurídica do nascituro e aos
seus direitos fundamentais, incluído o direito à vida, afloram, por vezes, esparsas
notas positivas. Assim, o art. 1º da vigente lei italiana sobre procriação artificial,
que se refere expressamente aos “diritti di tutti i soggetti coinvolti, compreso il
concepito”, sugerindo, portanto, a equiparação dos direitos do embrião aos das
pessoas já nascidas. Em nome de ideologias bioéticas e biojurídicas permissivas,
pretendeu-se questionar essa e outras disposições da lei através de um recente
referendo (Junho/2005), malogrado por falta de quorum.
Cf., v.g.: PIERANGELO CATALANO, Osservazioni sulla “persona” dei nascituri alla luce del diritto romano
(da Giuliano a Teixeira de Freitas), sep. de “Rassegna di Diritto Civile”, Nápoles, 1988/1, pp. 4565; ID., Diritto e persone. Studi su origine e attualità del sistema romano, I, Giappichelli, 1990; ID.,
Vigenza dei principi del diritto romano riguardo ai “diritti dei nascituri”, in AA.VV. / A. TARANTINO
(dir.), Per una dichiarazione dei diritti del nascituri”, Giuffrè, Milão, 1996, pp. 131-136; ID., Il
nascituro tra diritti romano e diritti statali, in AA.VV. / A. TARANTINO (dir.), Culture giuridiche e
diritti del nascituro, Giuffrè, Milão, 1997, pp. 87-91; AA.VV., L’inizio della persona nel sistema
giuridico romanista. Seminario di studi [da iniciativa de P. Catalano], Università di Roma “La
Sapienza” – Consiglio Nazionale delle Ricerche, Rome, 1997; M. E. BIGOTTE CHORÃO, O
Nascituro e a Questão do Estatuto do Embrião Humano no Direito Português [participação no referido
Seminário], sep. de Estudos em Homenagem do Prof. Doutor Soares Martínez, I, Almedina, Coimbra,
2000, pp. 635-644.
19 V.g.: AA.VV. /A. TARANTINO (dir.), Per una dichiarazione cit.; AA.VV. / A. TARANTINO (dir.),
Culture giuridiche cit.; E. GIACOBBE, Il concepito come persona in senso giuridico, Giappichelli, Turim,
2003.
Entre os importantes contributos da doutrina brasileira, salientam-se os numerosos
trabalhos da professora da Fac. de Direito da Univ. de São Paulo SILMARA CHINELATO E
ALMEIDA, v.g.: Tutela Civil do Nascituro, Saraiva, São Paulo, 2000.
18
§ 14
(Influência do “pensamento fraco” no estatuto do embrião)
É muito diferente do anteriormente proposto o estatuto do embrião humano aos
olhos dos que caminham pela via do pensiero debole, do relativismo ético e do
positivismo jurídico.
A atitude ontofóbica e antimetafísica característica do “pensamento fraco” não
permite ver o embrião à luz percuciente do personalismo ontologicamente fundado
e, portanto, da concepção metafísica substancialista. Fica-se por abordagens de
tipo empirista e funcionalista, que fazem depender a condição pessoal do indivíduo
humano da verificação de certas manifestações de desenvolvimento biológico e/ou
do exercício de determinadas operações – manifestações e operações escolhidas
segundo critérios variáveis e discutíveis. O irrealismo e subjectivismo que
caracteriza esta opção pode atingir o seu extremo se, porventura, se entender
deixar o reconhecimento da identidade pessoal do nascituro à decisão arbitrária e
aleatória dos progenitores ou de outras entidades.
Enfim, o agnosticismo metafísico e o cientificismo (que têm uma conhecida
versão materialista em Jean-Pierre Changeux, autor de L’Homme neuronal e expresidente da Comissão francesa de ética para as ciências da vida e da saúde) 20 ,
incapazes de captar a dimensão integral e radical do ser humano, a sua unidade
substancial corpóreo-espiritual (não têm olhos para ver o essencial!), recusam o
status da pessoa a certos homens – por nascer (nondum nati) ou já nascidos (nati,
nondum mortui).
Acresce que o empirismo antropológico, embora possa proclamar o respeito da
dignidade humana – convertido, no dizer de V. Possenti, num princípio “ecuménico”
–, faz dele um mero tópico retórico, insubstancial e debilitado na sua eficácia
prática.
Por tudo isso, é necessário e urgente ultrapassar a “leitura” meramente
científico-positiva do homem (limitada ao comment do “fenómeno humano”), e
procurar atingir, na radicalidade da perspectiva metafísica (extensiva ao pourquoi
último), a substância (primeira e segunda) da pessoa, e, por conseguinte, a alma
espiritual, raiz do acto de ser, forma do corpo orgânico e princípio das operações
humanas.
Tem razão o filósofo Marie-Dominique Philippe, ao escrever: “seule la
redécouverte d’une authentique philosophie première de ce qui est, découvrant la
substance (l’ousia) et l’être-en-acte (l’energeia) et, grâce à ses deux principes,
découvrant le problème de la personne humaine au niveau de l’être et de l’esprit,
peut nous aider à dépasser ce positivisme et redonner à l’intelligence humaine
toute sa dimension” 21 .
Esta linguagem será certamente inaudível para a cultura dominante, impregnada
de cientismo, tecnicismo e pragmatismo. Os arautos dessa cultura tenderão a
considerar ingénuas as pretensões do realismo da filosofia do ser e estarão mais
prontos a dar prioridade ao “choque tecnológico” do que aos apelos da sabedoria
(sophia) e da prudência (phronesis).
Cf. L’Homme neuronal, Hachette, Paris, 1983, e J.- P. CHANGEUX e PAUL RICOUER, Ce qui nous fait
penser. La Nature et la Règle, Odile Jacob, Paris, 2000.
21 Retour à la source. Tome I. Pour une philosophie sapientiale. Fayard, Paris, 2005, p. 9.
20
§ 15
(Relativismo ético e estatuto moral do embrião)
Se se desliga o estatuto moral do embrião de fundamentos objectivos alicerçados
no ser da pessoa humana, esse estatuto fica à mercê de opções éticas várias, que
põem em causa a integridade física e a dignidade do conceptus.
Estas opções correspondem, de um modo geral, nos dias de hoje, às tendências
do não-cognitivismo ou agnosticismo ético, do decisionismo e do relativismo moral
(“à chacun sa vérité, selon sa volonté”), imperantes na cultura contemporânea e
amplamente responsáveis da sua deriva niilista.
Tais tendências reflectem-se, como é natural, em diversos “modelos bioéticos”,
assumidos por certa “bioética laica” e contrastantes com a proposta do
personalismo ontologicamente fundado, v.g.: o liberal-radical (absolutiza a
“liberdade”, entendida sobretudo em sentido negativo); o utilitarista (baseado no
cálculo custo-benefício); o do sociologismo historicista (propugnador de uma moral
descritiva e evolutiva, determinada pela práxis social); o inspirado pelo cientismo e
o tecnicismo (tende a considerar moralmente lícito o que é científica e
tecnicamente possível, segundo critérios de “progresso” e de eficácia).
À sombra desses “paradigmas bioéticos” têm sido justificadas práticas de
congelamento, manipulação experimental e destruição de embriões, de procriação
artificial heteróloga, de eutanásia activa e passiva, de aborto, em termos mais ou
menos permissivos, etc..
O mesmo decisionismo e relativismo ético vem favorecendo, por outro lado, uma
nociva deformação da ideia de objecção (e liberdade) de consciência: em vez de
interpretada à luz de critérios morais objectivos (“objecção da consciência”), é
entendida em termos de “consciencialismo” subjectivista e decisionista (“objecção
de consciência”), com a consequente desvalorização da sua função como dever de
salvaguarda da ordem moral 22 .
Compreende-se que autores de diversos quadrantes intelectuais, inquietos com
as debilidades e os custos humanos do relativismo, se interroguem sobre a
hipótese de a “natureza” servir como medida e norma do agir. Assim, por exemplo,
J.- P. Changeux e P. Ricoeur 23 , e, mais recentemente, Habermas 24 e Francis
Fukuyama 25 . Obviamente, os termos em que a questão é equacionada e as
respostas que recebe dependam muitos dos pressupostos filosóficos de que se
Cf.: AA.VV., L’obiezione di coscienza tra tutela della libertà e disgregazione della Stato democratico, Milão,
1991; D. CASTELLANO, Obiezione di coscienza e pensiero cattolico, in “O Direito”, Lisboa, 123º
(1991), pp. 553-557 ; ID., Razionalismo e diritti umani. Dell’antifilosofia politico-giuridica della
“modernità”, Giappichelli, Turim, 2003, passim ; M. E. BIGOTTE CHORÃO, Opções decisivas para a
configuração jurídica da União Europeia: de “religio vera” ao “verum ius” (Sobre alguns contributos de Joseph
Ratzinger), AA.VV. Costituzione europea, diritti umani, libertà religiosa, dir. de D. CASTELLANO e F.
COSTANTINI, Edizioni Scientifiche Italiane, Nápoles, 2005, pp. 89-125.
23 Cf. Ce qui nous fait penser. La Nature et la Règle cit.
24 Cf. Die Zukunft der menschlichen Natur. Auf dem Weg zu einer liberalen Eugenik, Suhrcamp Verlag,
Frankfurt am Main, 2001.
25 Cf. Our Posthuman Future. Consequences of the Biotecnology Revolution, Farrar, Strauss & Giroux, Nova
Iorque, 2002.
22
parte, do conceito de “natureza” adoptado, enfim, do reconhecimento, ou não, de
uma “ordem natural das coisas”.
§ 16
(Legalismo positivista e estatuto jurídico do embrião)
O deficit personalista – isto é, do realismo personalista e jusnaturalista –
projecta-se também, negativamente, no estatuto jurídico do nascituro, quanto ao
reconhecimento da personalidade e da capacidade. Será o legislador que decidirá
da sua atribuição. E poderá acontecer – e acontece, de facto – que as negue ao ser
humano nondum natus, decretando que este nullum caput habet, mas, ao mesmo
tempo, as confira aos animais, às árvores, etc..
Se não se atender ao fundamento natural e metafísico da subjectividade e
capacidade jurídicas do conceptus, acabarão por prevalecer, a seu respeito,
soluções ditadas por critérios positivistas, formalistas e utilitaristas. A lei poderá
deixar à margem verdadeiros direitos humanos ou naturais básicos do nascituro –
como os direitos à vida e à integridade física –, ainda que, porventura, tutele, de
algum modo, interesses ou bens a ele respeitantes.
A evolução jurídica recente, nomeadamente no âmbito do ordenamento
português, levou a essa situação. É certo que o direito à vida está consagrado
como direito fundamental na Constituição (art. 24º), que declara, solenemente, a
inviolabilidade da vida humana. Apesar disso, e da proclamação constitucional dos
princípios da dignidade da pessoa humana (art. 1º) e da igualdade perante a lei
(art. 13º), tem-se entendido que a vida pré-natal não é, necessariamente, um
direito na titularidade do conceptus, mas tão-só um “bem” ou “valor”, que, por
determinação do legislador ordinário – como no caso da chamada “interrupção
voluntária da gravidez” – poderá ser sacrificado a interesses reputados prevalentes
(a vida, a saúde, a honra da mãe, etc.).
Ignora-se, assim, a personalidade natural do nascituro, como se pudesse haver
“vida humana” sem sujeito humano vivente. E põe-se em causa a sua
personalidade jurídica, tanto mais, alega-se, que a lei civil (ordinária) faz depender
esse atributo do nascimento com vida (art. 66º do C. Civil) – como se a
interpretação das normas e dos princípios fundamentais da Constituição houvesse
de fazer-se à luz da lei ordinária… É evidente que, por esse ínvio caminho,
pretendeu-se, sobretudo, abrir as portas à legalização do aborto, que, uma vez
acolhido intramuros da cidadela jurídica, tende a ganhar, progressivamente, maior
espaço.
Em suma, este processo denota, precisamente, a falta de uma correcta e sólida
fundamentação do direito fundamental à vida. Partindo de uma perspectiva jurídica
relativista e positivista, Norberto Bobbio opina que “ciò che importa non è fondare i
diritto dell’uomo, ma proteggerli” 26 . Mas a isto podemos replicar que, ao contrário,
“a questão fundamental dos direitos fundamentais é a do seu fundamento”. À
míngua de um bom fundamento, há o risco sério de que não seja boa a protecção
dos direitos naturais do homem, como os factos demonstram exuberantemente.
26
L’età dei diritti, Einaudi, Turim, p. 33.
§ 17
(Antipersonalismo e crise do Estado de Direito e da democracia)
Pode agora afirmar-se que o agnosticismo metafísico, o relativismo ético e o
positivismo jurídico se congregam para dar ao homem concebido, mas não nascido
(e, também, ao natus nondum mortuus), um trato desumano, antipersonalista,
contrário às exigências elementares da natureza e dignidade da pessoa. Não se lhe
reconhece a personalidade jurídica, nem se tutelam devidamente os seus direitos
básicos, desde logo, os direitos à vida e à integridade física.
Esta situação contribui para a actual crise do Estado de Direito e da
democracia 27 . A aprovação de leis permissivas, clamorosamente imorais e injustas
(“auctoritas non veritas facit legem”, segundo a fórmula hobbesiana), desvaloriza o
Estado de Direito entendido como Estado de bem comum (“ordinatio rationis ad
bonum comune” é a lei, na versão tomasiana), de justiça e de legitimidade. E faz
com que a democracia, sob o império absoluto do princípio maioritário, se reduza a
pura forma ou técnica (democracia formal, processual ou técnica) axiologicamente
neutra ou vazia (“democrazia vuota”). Neste sentido apontam, cada qual a seu
modo, por exemplo, os “modelos democráticos” propostos por Kelsen e Rorty e, o
que é mais preocupante, os factos da experiência política contemporânea das
democracia liberais.
Ora, essa experiência traz consigo a ameaça de degenerescência do Estado
democrático numa nova forma de totalitarismo, enquanto a ordem (melhor, a
desordem) político-jurídica homologa, e, mesmo, incentiva, práticas de coisificação
e, em última instância, de aniquilamento do homem (a lembrar o título, The
Abolition of Man, de um pequeno-grande ensaio de C. S. Lewis).
Lisboa
Junho/2005
MÁRIO EMÍLIO FORTE BIGOTTE CHORÃO
27
Cf.: M. BIGOTTE CHORÃO, Secolarizzazione e crisi della democrazia (appunti sull’attualità del legato politico
delnociano), em AA.VV. / F. MERCADANTE e V. LATTANZ, (dir.), Augusto Del Noce. Essenze
filosofiche e attualità storica, I, Ed. Spes, Roma – Fondazione Del Noce, Savigliano, 2000, pp. 185198; ID., Sociedade secularizada, crise da democracia e projecto político de inspiração católica (à luz do
pensamento delnociano), em AA.VV., Estudos dedicados ao Prof. Doutor Mário Júlio de Almeida Costa,
Univ. Católica Portuguesa, Lisboa, 2002, pp. 1097-1120; ID., Democracia, relativismo e ameaça
totalitária, em AA.VV. / L. F. COLAÇO ANTUNES (coord.), Colóquio Internacional “Autoridade e
Consenso no Estado de Direito”, Almedina, Coimbra, 2002, pp. 83-131; ID., Crisi dell’ordine giuridicopolitico e proposta giusnaturalistica, em AA.VV. / D. CASTELLANO (dir.), Diritto, Diritto Naturale,
Ordinamento Giuridico, Cedam, Pádua, 2002, pp. 45-91; ID., Opções decisivas cit..
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