PDF Português - Revista Adolescência e Saúde

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RELATO DE CASO
Luísa de
Vasconcelos Alves1
Adriana Menucci
Bachur da Silva1
Ana Christina
Lamosa da Fonseca2
Mauro Sayão de
Miranda3
59
Problemas relacionados com o uso de
piercing na língua – relato de caso
Problems related to tongue piercing: case report
> RESUMO
Objetivo: O uso de piercings pelos jovens vem sendo adotado como uma nova abordagem de estilo e inclusão social. Muitas
são as áreas de aplicação na boca: língua, lábios, bochechas, dentes e úvula. Inúmeros problemas têm sido relatados associados ao uso de piercing na língua, como: cálculo, halitose, recessão gengival, trauma na mucosa, hipersalivação, hemorragia e
até tromboflebite do seio sigmoide e endocardite estreptocócica. Este relato de caso clínico mostra uma técnica restauradora, minimamente invasiva, de dentes traumatizados e a importância do profissional quanto à orientação das consequências
do uso indiscriminado dos piercings. Descrição do caso: Paciente do sexo feminino, 15 anos de idade, chegou à clínica da
Disciplina de Saúde Oral do Adolescente, da UERJ, relatando ter “quebrado” o dente. Ao exame, observou uma fratura no
elemento dentário 24 e uso de piercing lingual, o provável causador. O tratamento consistiu no esclarecimento quanto aos
riscos do uso de piercings e confecção de uma restauração conservadora indireta de cerâmica. Após o tratamento e orientação, a paciente resolveu remover o piercing. A paciente vem sendo acompanhada e a restauração continua em perfeitas
condições. Comentários: O clínico deve estar preparado tecnicamente para proceder a restauração dentária e atender o
paciente atuando no físico e no psicossocial.
> PALAVRAS-CHAVE
Piercing corporal, doenças da língua, serviços de saúde para adolescentes.
> ABSTRACT
Objective: Body piercing is viewed by young people as a new approach to style and social inclusion, applied in many different
parts of the mouth: tongue, lips, cheeks, teeth and uvula. Countless problems associated with tongue piercing have been
reported, such as calculus, halitosis, gingival recession, mucosal trauma, excessive salivation, bleeding, thrombophlebitis of
the sigmoid sinus and streptococcal endocarditis. This case report presents a minimally invasive restoration technique for
damaged teeth, while stressing the importance of healthcare practitioners explaining the problems caused by indiscriminate
body piercing. Case description: A female patient, 15 years old, went to the Adolescent Oral Health Department Clinic at
the Rio de Janeiro State University (UERJ), complaining that she had ‘broken’ her tooth. An examination showed a fracture in
Tooth 24, probably caused by the tongue piercing. The treatment consisted of advice on piercing risks and the fabrication of
an indirect conservatory ceramic repair. After guidance and treatment, the patient decided to remove the piercing. She has
been monitored since then and the repair is still in good condition. Comments: It is thus vital that the clinician is technically
well prepared to repair teeth and also able to assist patients in physical and psychosocial terms.
> KEY WORDS
Body piercing, tongue diseases, adolescent healthcare.
Aluna de graduação da Faculdade de Odontologia da UERJ
Professora orientadora; Professora Dra. Adjunta da Faculdade de Odontologia da UERJ; Mestre em Odontologia/Dentística pela UERJ ; Doutora em
Odontologia/Dentística pela UERJ; Coordenadora do Projeto de Extensão. Reabilitação social do sorriso de adolescentes de baixa renda
3
Professor orientador; Professor Dr. Associado da Faculdade de Odontologia da UFRJ; Professor Dr. Adjunto da Faculdade de Odontologia da UERJ; Doutor
em Odontologia/Clínica pela UFRJ; Pós-Doutorado pela PUC-Rio – DCMM; Chefe do Departamento de Dentística da FO da UERJ; Coordenador do Curso de
Doutorado em Odontologia/Dentística da FO da UERJ; Coordenador do Projeto de Extensão e da Disciplina Clínica de Saúde Oral do Adolescente FO da UERJ
1
2
Mauro Sayão de Miranda ([email protected]) - Faculdade de Odontologia da UERJ - Departamento de Dentística
Av. Boulevard 28 de setembro 157 - Vila Isabel - Rio de Janeiro, RJ - Brasil
Recebido em 31/07/2010 - Aprovado em 23/11/2010
Adolescência & Saúde
Adolesc. Saude, Rio de Janeiro, v. 8, n. 1, p. 59-62, jan/mar 2011
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PROBLEMAS RELACIONADOS COM O USO DE
PIERCING NA LÍNGUA – RELATO DE CASO CLÍNICO
> INTRODUÇÃO
O uso de piercings no rosto, especialmente
na região da boca, está registrado na História
como parte de hábitos religiosos, tribais, culturais e símbolo sexual. O primeiro registro foi encontrado na figura de um cão no Egito Antigo,
aproximadamente, 1500 a.C. Para os maias representava espiritualidade, virilidade e coragem.
Esquimós, hindus, chineses e índios americanos
também o utilizavam como manifestações culturais. No sul da Índia, o voto de silêncio era
acompanhado de colocação de piercing na língua. Há algumas décadas essa prática ressurgiu
junto à moda do movimento punk e vem sendo
utilizada principalmente por jovens, independentemente da classe social, preocupados como
uma abordagem de estilo “arte no corpo”. É representado como um sinal de individualidade,
marginalidade, adorno ou aceitação dentro de
um grupo ou tribo. As joias são confeccionadas de materiais hipoalergênicos e não tóxicos,
como: ouro de 14 e 18K, titânio, aço inoxidável,
acrílico, pedras, madeira e osso1,2,3.
Durante os últimos 30 anos, o número de
etiologias relacionadas com o traumatismo dental tem aumentado significativamente na literatura e inclui um amplo espectro de variáveis,
como fatores orais, ambientais e de comportamento humano.
São inúmeras as áreas de aplicação dos piercings, incluindo língua, lábios, bochechas, dente
e até mesmo úvula. As complicações imediatas
podem ser edema, hemorragia e infecção. Outras reações são trauma no tecido gengival e na
mucosa, alterações gustativas, hipersalivação,
acúmulo de cálculo, halitose, fraturas dentais, e
interferência na fala, na mastigação e na deglutição. Foram relatados também na literatura casos
como: endocardite estreptocócica e tromboflebite do seio sigmóide, ambas após aplicação de
piercing na língua. Além disso, outro grande risco é a contaminação por uso de instrumentais
infectados pelo vírus da hepatite, de HIV e de
outras doenças sexualmente transmissíveis1,2,3,4.
O objetivo deste trabalho é relatar o caso
clínico de uma paciente com parte de um dente
Adolesc. Saude, Rio de Janeiro, v. 8, n. 1, p. 59-62, jan/mar 2011
Alves et al.
fraturado devido ao adorno na língua e comparar com dados estatísticos.
APRESENTAÇÃO DO CASO >
A menor C.V.O., do gênero feminino, com
15 anos de idade, procurou a clínica da Disciplina de Saúde Oral do Adolescente da Universidade do Estado do Rio de Janeiro queixando-se
de que “quebrou o dente quando comia”. Ao
exame clínico percebeu-se uma fratura da cúspide palatina (parte coronária mais próxima ao palato) do segundo pré-molar superior esquerdo,
elemento 24 (Figura 1). A paciente relatava sensibilidade dentária no local, uma vez que havia
exposição da dentina. Ao exame clínico percebeu-se que a mesma apresentava um piercing na
língua, em metal, com a forma de esfera, provável causador do trauma dentário (Figura 2). Algumas características da paciente são importantes ressaltar: fisicamente parecia ser mais jovem,
baixa estatura, utilizava roupas que expunham o
corpo e era extrovertida. Primeiramente, foram
abordadas durante uma conversa as desvantagens daquele adorno, como acúmulo de placa
bacteriana, lesão dos tecidos gengivais adjacentes, possibilidade de infecção e fratura de outro
dente, na tentativa de estimular a remoção da
joia. O tratamento dentário proposto foi reabilitador não invasivo, preservando a estrutura
remanescente, utilizando um reparo de cerâmica à base de dissilicato de lítio (E-max Press)
cimentado com Variolink II, cimentação Dual,
utilizando o sistema adesivo Adper Scotchbond
Multi-uso (3M ESPE, Seefeld, Germany) técnica
de 3 passos (Figura 3). Optou-se por este trabalho porque a extensão da lesão não foi tão
profunda que necessitasse de um tratamento
endodôntico (tratamento de canal) e consequentemente uma coroa total, restauração que
recobre todo o dente. A opção terapêutica foi
baseada na idade e na possibilidade financeira
da paciente. Na consulta seguinte, uma semana depois, a jovem percebeu que as desvantagens pesavam mais que o simples status que
aquele objeto causava e apareceu na clínica
Adolescência & Saúde
Alves et al.
PROBLEMAS RELACIONADOS COM O USO DE
PIERCING NA LÍNGUA – RELATO DE CASO CLÍNICO
sem o piercing (Figura 4). A paciente vem sendo
acompanhada e a restauração encontra-se em
FIGURA 1.
Elemento 24
com fratura
da cúspide
palatina
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perfeitas condições estéticas e funcionais após
6 meses (Figura 5 A e B).
FIGURA 4.
Paciente após
orientação e
já sem a joia
FIGURA 2.
Piercing na
língua da
paciente
FIGURA 3.
Restauração
cerâmica
cimentada
> DISCUSSÃO
Uma pesquisa realizada na cidade de São
José dos Campos (SP) acompanhou 927 estudantes entre 14 e 18 anos através de exames
clínicos e um questionário com os seguintes
itens: idade, local do piercing, complicações e/
ou alterações orais e frequência da higiene. Trinta e três estudantes apresentavam piercing oral
(3,6%); 69,7% de escolas estaduais e 30,3% de
particulares; a língua foi o local mais frequente
(66,6%). Houve uma suave predominância masculina (54,55%). Além disso, foi observado alteração/complicação em 74.3% dos casos. Portanto, mesmo tendo-se observado baixa incidência
do uso, as complicações foram proporcionalAdolescência & Saúde
FIGURA
5A e B.
Controle da
restauração
6 meses após
cimentação
mente significantes2. O caso da jovem visto na
clínica da FO-UERJ, embora isolado, confirmou
alguns dados relevantes desse estudo: a língua
como o local mais adornado e a complicação
subsequente representada pela fratura dental.
Uma revisão de literatura buscou a prevalência das complicações de piercing na cavidade oral. Foi utilizada a fonte Medline através
do PubMed Bibliographic Index de janeiro de
1992 a agosto de 2007. Em 11 artigos analisados, 3 apresentavam a prevalência (que variou
de 3,4% a 20,3%). Nos outros, encontrou-se
que as complicações pós-operatórias imediatas
foram: inchaço e/ou infecção (24% - 98%), dor
ou sensibilidade (14% - 71%), e sangramento ou
hematoma; as complicações relacionadas com a
Adolesc. Saude, Rio de Janeiro, v. 8, n. 1, p. 59-62, jan/mar 2011
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PROBLEMAS RELACIONADOS COM O USO DE
PIERCING NA LÍNGUA – RELATO DE CASO CLÍNICO
joia foram, principalmente, em fratura ou desgaste dental (14% - 41%) e recessão gengival
(19% - 68%). Especula-se que a fratura e desgaste dental sejam menos frequentes que a recessão
gengival, visto que a gengiva geralmente sofre
um estímulo constante, por exemplo, o piercing
no lábio inferior, na maior parte do tempo, está
em contato com o tecido gengival dos dentes
anteriores, enquanto com relação aos dentes, a
fratura ou desgaste depende mais da intensidade
do impacto. Além disso, a gengiva é um tecido
mole quando comparado ao tecido mais rígido
do corpo humano, o esmalte dental.
Uma pesquisa com 966 membros entre 18
e 21 anos da Instituição Dunedin Multidisciplinary Health and Development Study, na Nova
Zelândia (NZ), associou o uso de piercing corporal às características sociais, personalidade
e comportamento sexual que consideravam a
perfuração do corpo uma expressão corporal de
si próprio. No total, 183 participantes (9% homens e 29% mulheres) apresentaram piercing
em outro local além do lóbulo da orelha. Foi
maior a incidência em pessoas que não moravam na NZ ou descendentes Maori. A renda e
a taxa de desemprego não mostraram relação
com o uso do piercing. As mulheres avaliadas
mostraram-se emocionalmente mais negativas
e com maior baixa autoestima; apresentaram
atividade sexual no ano anterior com 5 ou mais
parceiros ou algum envolvimento homossexual
incluindo contato genital, quando comparadas
às que não apresentavam piercing. Nos homens,
Alves et al.
a associação com o comportamento sexual não
foi significativo. A teoria do comportamento sexual relacionado ao uso do piercing foi comprovada pelas mulheres nesse estudo5.
A paciente apresentou naquele momento
apenas a fratura dentária, não se queixando de
infecções ou hemorragias na área da lesão, e
descreveu edema e dor após a perfuração. Ao
realizar o exame clínico percebemos que a paciente aparentava ter menos idade que a real,
devido ao físico e à voz infantilizada. Tais características nos mostraram que a intenção dela ao
utilizar o piercing era parecer mais velha e “descolada”, mostrando possível baixa autoestima,
relacionando assim ao estudo realizado na NZ.
CONCLUSÃO >
O uso de piercing na língua, assim como em
outros sítios bucais, leva a complicações imediatas e posteriores.
A utilização de piercing corporal serve
como expressão da personalidade, buscando
aceitação do grupo e demonstração de atitude
descompromissada.
O tratamento restaurador, minimamente
invasivo, com cerâmica, se mostrou eficaz, estético e funcional, de custo acessível e com aceitável longevidade.
O profissional de saúde, no geral, deve
orientar e apresentar as possíveis complicações
e intervindo quando necessário.
> REFERÊNCIAS
1. Escudero-Castaño N, Perea-García MA, Campo-Trapero J, Cano-Sánchez, Bascones-Martínez A. Oral and
perioral piercing complications. Open Dent J. 2008; 4(2):133-6.
2. Firoozmand LM, Paschotto DR, Almeida JD Oral piercing complications among teenage students Oral
Health Prev Dent. 2009;7(1):77-81.
3. Levin L, Zadik Y. Oral piercing: complications and side effects. Am J Dent. 2007; 20(5):340-4.
4. Kloppenburg G e Maessen JG. Streptococcus endocarditis after tongue piercing. J Heart Valve Dis. 2007
May; 16(3):328-30.
5. Skegg K, Nada-Raja S, Paul C, Skegg DC. Body piercing, personality and sexual behavior. Arch Sex Behav.
2007; 36(1):47-54.
Adolesc. Saude, Rio de Janeiro, v. 8, n. 1, p. 59-62, jan/mar 2011
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