Escravatura Brasil

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lusofonias
nº 13 | 16 de Setembro de 2013
125
anos
A moderna história
do Brasil (e a sua
impressionante modernização ao longo
do século XIX…)
começa com um
fim: a abolição da
escravatura em
1888, cumprem-se
agora 125 anos revisitados em muitas
conferências, exposições e debates mobilizando as mais diversas instituições
públicas e privadas
brasileiras. Um rápido ano depois, em
1889, a monarquia que se queria
Império seria definitivamente dissolvida para dar lugar
a uma República
cujas causas muitos
historiadores continuam a descobrir no
muito profundo impacto económico
e social do fim legal
de quase quatro séculos da sociedade
colonial que mais
escravos africanos
tinha recebido no
mundo. No entanto,
a recompensa imediata para os cerca
de 720.000 escravos libertos com
a famosa Lei Aúrea
de 1888 estendeu-se entre a completa
marginalização
da sociedade brasileira, como aconteceu demoradamente nas regiões
açucareiras do
Nordeste, à sua maçica reincorporação
numa muito desigual
divisão racial do
trabalho que, principalmente nas áreas
cafezeiras de São Paulo, se multiplicou
em continuada e profunda exploração laboral e social. A abolição legal da
escravatura emancipou muito mais o
capital brasileiro e os seus ricos detentores do que as centenas de milhares
Este suplemento é parte integrante
do Jornal Tribuna de Macau e não
pode ser vendido separadamente
COORDENAÇÃO:
Ivo Carneiro de Sousa
TEXTOS:
• O Brasil Colonial:
uma Demorada Sociedade
Escravocrata
• Um Século
de Transformações
• O Movimento Abolicionista
• O Herói do Abolicionismo:
Joaquim Nabuco
Dia 23 de Setembro:
Raul Rego: o Centenário
do Resistente, Jornalista
e Historiador
APOIO:
da
da
Abolição
Escravatura Brasil
no
125 Anos da Abolição
da Escravatura no Brasil
Ivo Carneiro de Sousa
A
moderna história do Brasil (e a sua impressionante modernização ao longo do século XIX…) começa com um fim: a abolição da
escravatura em 1888, cumprem-se agora 125
anos revisitados em muitas conferências, exposições e debates mobilizando as mais diversas instituições públicas e privadas brasileiras.
Um rápido ano depois, em 1889, a monarquia
que se queria Império seria definitivamente dissolvida para dar lugar a uma República
cujas causas muitos historiadores continuam
a descobrir no muito profundo impacto económico e social do fim legal de quase quatro
séculos da sociedade colonial que mais escravos africanos tinha recebido no mundo. No entanto, a recompensa imediata para os cerca
de 720.000 escravos libertos com a famosa Lei
Aúrea de 1888 estendeu-se entre a completa
marginalização da sociedade brasileira, como
aconteceu demoradamente nas regiões açucareiras do Nordeste, à sua maçica reincorporação numa muito desigual divisão racial do
trabalho que, principalmente nas áreas cafezeiras
de São Paulo, se multiplicou
em continuada e profunda
exploração laboral e social. A
abolição legal da escravatura emancipou muito mais o
capital brasileiro e os seus
ricos detentores do que
as centenas de milhares
de antigos escravos colocados sem protecção
perante um capitalismo que continuava a ver
na raça factor de opressão e divisão sociais.
Normalmente, os processos de desmantelamento económico e dissolução pelo direito da
escravatura são encarados com um iluminista
progresso da civilização ocidental representando a transição de sociedades pré-capitalistas e escravocratas, dominadas por economias
e poderes feudais hostis à liberdade do mercado e do trabalho, para verdadeiras sociedades capitalistas centradas na racionalidade
das livres forças de mercado. Assim, a primeira metade do século XIX na Europa ocidental
terá assistido a sucessivas vagas de abolição
da escravatura (Grã-Bretanha, em 1834 , e
França, em 1848) para abrirem o caminho a
uma industrialização que requeria a produção
intensiva de capital em detrimento de uma produção sobretudo
rural baseada na exploração intensiva da servidão: o
nosso capitalismo
industrial, agora cada
vez mais global, seria
completamente incompatível com o trabalho servil,
demandando uma complexa
divisão do trabalho e uma ampla proletarização. Nesta ordem
de ideias, a reconhecer na famosa
interpretação de Karl Marx dos estádios
de evolução histórica em que o capitalismo
sucederia inevitavelmente ao feudalismo,
transformando completamente o seu modo de
produção, a abolição da escravatura tem sido
interpretada como uma vitória da liberdade e,
mais materialisticamente, como uma evolução
para sociedades capitalistas de livre mercado.
Acontece, porém, que a história da abolição
da escravatura no Brasil (e, se calhar, noutros
horizontes geográficos...) tem muito pouco a
ver com as pressões do mercado e muito mais
com factores em que se descobre um sistemático racismo, mesmo entre as iluminadas e positivistas novas elites intelectuais, a confiança
em novas formas de intensa exploração laboral, sobretudo nos grandes latifúndios agrícolas produtores de açúcar, café e gados, e um
estreito monopólio das forças produtivas e do
Estado para o qual não entraram mesmo durante muitas décadas os escravos libertados e os
seus
descendentes. Apesar do
fim legal da escravatura,
como explicava a Lei Áurea
de 1888, permitir aos antigos escravos passarem de propriedade a proprietários, nas
centenas de milhares de libertos
identificam-se casos mais do que raros
de pessoas que, quando muito, puderam
abrir uma pequena venda comercial, quase nenhuns conseguindo tornar-se decentes
proprietários rurais, muito menos modernos
industriais.
O Brasil foi, significativamente, o último
país americano a abolir a escravatura, um
processo que começa no Haiti, ainda em
1791, para chegar sucessivamente à República Dominicana, em 1822, Chile, em 1823,
México, em 1830, Uruguai, em 1842, Colômbia, Equador e Bolívia, em 1851, Argentina,
em 1853, Venezuela e Peru, em 1854, Porto
Rico, em 1873, e Cuba, em 1886. Cento e
vinte e cinco anos depois, parece importante não apenas rememorar o fim legal da escravidão no Brasil, como também destacar
uma constelação de heranças, cruzamentos
e transformações culturais sem a qual parece difícil pensar a policromia brasileira
e, com ela, a pluralidade dessas lusofonias
encruzilhadas em diferentes histórias e contrastivos destinos das mais variadas gentes,
territórios e sociedades tantas vezes transformados em mercadorias, forçados trabalhos e opressões muitas.
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II
Segunda-feira, 16 de Setembro de 2013 • LUSOFONIAS
lusofonias
O Brasil Colonial:
uma demorada sociedade escravocrata
Sessão
A
s estimativas sobre o número total de africanos raptados e comprados antes dos diferentes processos de abolição da escravatura varia
entre 10 e 15 milhões, mas existe
acordo em sublinhar que mais de
70% eram jovens de sexo masculino,
normalmente entre 12 e 35 anos de
idade. Neste dramático número é
preciso descontar os 1,5 a 2 milhões
de escravos que morreram devido às
condições miseráveis de transporte
marítimo. Excluindo os futuros Estados Unidos da América e as chamadas Índias Ocidentais Britânicas,
entre 7 a 8 milhões de escravos foram instalados nos outros diferentes
espaços americanos. A grande maioria destes escravos, provavelmente
75%, chegou ao continente americano ao longo do século XVIII e na primeira metade do século XIX. Antes
de 1700, não devem ter arribado às
Américas mais do que 2 a 3 milhões
de escravos africanos, recebendo as
colónias espanholas e o Brasil dois
terços do total. O Brasil albergou
entre 1600 e 1650 uma média anual
de 4.000 escravos africanos, cifra
subindo para 7.000 entre 1650 e
1700, aumentando ainda mais para
32.000 na década da independência brasileira, em 1820, atingindo
o seu pico pelos anos de 1840 com
médias anuais de 34.000 escravos.
Em termos panorâmicos, entre 3,6
a 4,5 milhões de escravos africanos
chegaram ao Brasil, primeiro colonial e, depois, independente, enformando cerca de 40% do total da sua
população. Números expressivos enredados em economias e comércios
que requisitaram um indesculpável
tráfico escravista de que a África
padece ainda hoje as terríveis consequências.
Grande parte das histórias económicas do Brasil continua a ler o seu
período colonial como uma sucessão
esquemática de ciclos comerciais
lusofonias
de exportação assentando originalmente no açúcar, passando depois
para o ouro, a seguir, para o café,
mais tarde ainda para a borracha,
produções intensivas que exigiam
um enorme volume de mão-de-obra
barata e juvenil que se alimentava
com o gigantesco e infamante tráfico negreiro no continente africano.
Se esta história dos grandes ciclos
económicos do Brasil pré-industrial
ajuda, pelo menos pedagogicamente, a dilucidar a sua integração na
economia e comércio mundiais,
colhe bastante menos para ajudar
a perceber a complexidade de factores económicos, políticos e sociais que se foram especializando
nas vêsperas da abolição oficial da
escravatura, em 1888. Recorde-se
que, enquanto açúcar, ouro, café e
borracha se expandiam, contraíam
e até combinavam na longa duração, o Brasil político do século XIX
passava em menos de noventa anos
de colónia a reino, império independente e república. Em termos económicos, a sociedade brasileira foi-se especializando regionalmente,
assim diminuindo o peso hegemónico do açúcar, ouro e café, completando ainda em meados de Oitocentos a preferência comercial externa
pelos mercados dos Estados Unidos
em detrimento dos britânicos. Paralelamente, as grandes plantações
mais do que latifundiárias multiplicaram-se, mobilizando muito mais
emigração europeia e absorvendo
parte dos escravos libertos pela Lei
Áurea, enquanto as cidades tradicionais cresciam e novas urbes surgiam nos itinerários dos emigrantes.
Tratemos de sumariar para a matizar esta ainda atractiva história
do Brasil colonial excessivamente
apertada entre a sucessão linear de
grandes ciclos comerciais.
Entre 1500, data do muito debatido achamento ocasional ou estraté-
no
Senado
do
Brasilem
gico das então baptizadas Terras de
Vera Cruz, e 1532, o comércio português realizado por três a cinco navios anuais não conseguiu desenvolver os tratos do pau-Brasil, pelo que
não se vislumbra mesmo o mais modesto dos ciclos. Em 1534, copiando
o modelo dos Açores e da Madeira,
o território é divido por D. João III
em capitanias que, com a nomeação de um governador-geral, Tomé
de Sousa, em 1549, sediado em São
Salvador da Bahia, se distribuíram
por quinze larga faixas territoriais
perpendiculares dentro dos limites
que se julgavam ser os do Tratado
de Tordesilhas. Privilégios régios
permitiram o uso de 20% das terras
brasileiras a proprietários privados
autorizados a reter 50% do valor das
suas produções. As capitanias receberam, porém, limitados poderes
civis e comerciais, mais generosos
em matérias criminais e de defesa,
enquanto o comércio com Portugal
foi declarado totalmente livre em
contraste com os 15% de impostos
incidindo sobre todas as mercadorias exportadas para outros mercados europeus. Inicialmente, a Coroa
não permitiu direitos hereditários
sobre as terras, interditando também a sua venda e transferência,
mas estas medidas foram rapidamente abandonadas face à falta de
interesse de potenciais investidores e colonos. Décadas mais tarde,
a Revolução da Restauração que,
em 1640, acabou com os sessenta
anos de espanhola e filipina monarquia dual, o reino de Portugal viu-se
mais do que obrigado a procurar a
protecção política e militar britânica que foi trocada nos tratados de
1642, 1654 e 1661 por amplas concessões económicas e comerciais. O
primeiro tratado luso-britânico de
1642, reconhecendo o novo Portugal Restaurado sob D. João IV, esclarece imediatamente o modelo dos
que foi abolida a escravatura em
1888
seguintes: o acordo concedia à Grã-Bretanha o estatuto de nação mais
favorecida, importante jurisdição
extra-territorial, incluindo imunidade dos súbditos britânicos face à
lei portuguesa e tolerância religiosa para os seus residentes em Portugal. O tratado de 1654 alargava
estes privilégios e direitos britânicos ao Brasil, enquanto o acordo de
1661 acrescentava uma cláusula secreta de defesa de Portugal em caso
de agressão externa, o que queria
dizer à época a arqui-inimiga Espanha. Pouco mais de quatro décadas
depois, em 1703, o célebre Tratado
de Methuen abria mais do que generosamente os mercados portugueses e brasileiros aos produtos
britânicos, sobretudo manufacturas
têxteis, contra a importação do luso
vinho que, principalmente dito do
Porto, em controlo de empresários
e intermediários ingleses haveria
prontamente de cair. A muita deficitária balança comercial extremamente favorável à Grã-Bretanha
gerada por este processo obrigou
os capitais acumulados na exploração mineira de ouro e diamantes
no Brasil setecentista a reverterem
para os cofres do crescente império
britânico, não deixando mesmo, entre várias outras fontes, de proporcionar os capitais que suportaram o
arranque da Revolução Industrial.
Queixava-se com razão o nosso famoso Sebastião de Carvalho e Mello
(que Marquês de Pombal também
era) da escandalosa evidência de se
assistir à passagem do ouro do Brasil quase inteiramente para bolsos
britânicos, acrescentando até que
com ele se pagavam as roupas importadas da Grã-Breanha com que
se vestiam os milhares de escravos
africanos mobilizados para as minas
brasileiras. Nesta segunda metade
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LUSOFONIAS • Segunda-feira, 16 de Setembro de 2013
III
< CONTINUADO DA PÁGINA ANTERIOR
tina. Os escravos africanos
asseguravam a maior parte
das actividades produtivas,
plantando, sachando, transportando a cana e, no final,
o açúcar.
Os ciclos de apogeu e declínio da produção açucareira do Nordeste sucederam-se: no seu auge, por volta
de 1650, o Brasil exportava
no valor de 3 milhões de
libras, mais do que toda a
exportação britânica reunida. No final do século XVII,
este crescimento tinha já
parado até porque os holandeses, expulsos de Pernambuco em 1654, promoveram
o arranque da produção
açucareira nas Caraíbas,
redesenhando o mercado
mundial. De qualquer forma, para evitar a simplista
linearidade da teoria dos
ciclos comerciais, o açúcar brasileiro permaneceu
como importante produção
interna e exportação ex-
ções agrícolas ou nos mais
duros trabalhos urbanos.
Mas eram as dezenas de milhares de escravos raptados
do século XVIII, contudo, a
e traficados no continente
escravatura africana tinha
africano que constituíam a
deixado de ser novidade há
mão-de-obra sem a qual semuito tempo, sendo antes
riam impensáveis os valores
recurso mais do que estabemais do que impressionanlecido na economia e societes da produção mineira do
dade do Brasil colonial.
Brasil: entre 1700 e 1770, o
Na verdade, quando pelos
ouro brasileiro valia tanto
meados do século XVI se cocomo o conjunto da sua exmeçam a descobrir investiploração em todas as minas
mentos sérios no desenvoldas Américas e metade da
vimento da produção açuprodução aurífera asiática.
careira da colónia, foi natuAssim, desde as descobertas
ralmente preciso esclarecer
iniciais das primeiras minas
quem iria rigorosamente
de ouro, entre 1693 e 1695,
assegurar o trabalho nas
até 1828, as exportações
plantações que engenhos
brasileiras acumularam vase começaram a chamar. As
lores que chegaram a 130
tentativas iniciais de convomilhões de libras. Procurancar mão-de-obra indígena
do, por issso, impedir a gi(talvez seja mesmo errado
gantesca drenagem destes
dizer brasileira...) foram
capitais gigantescos para
frustradas pela sistemática
os mercados britânicos, o
estratégia portuguesa de dinosso iluminado Marquês
vidir para reinar, mobilizande Pombal promoveu vado populações ameríndias
riadas acções
umas contra
proteccionisas
outras
tas de que as
que,
para
além de se- O século XVIII do ouro do Brasil assistiu, de facto, mais imporrem conside- a um crescimento brutal das importações de es- tantes foram
a criação da
radas improp r i a m e n t e cravos africanos, mas também à multiplicação do C o m p a n h i a
imp r od u t i número de escravos alforriados. Estes, todavia, do Grão-Pará
vas,
eram
apesar de libertos viram-se perseguidos por re- eno Maranhão,
trágico
amiúde def e n d i d a s correntes leis anti-vadiagem que os obrigavam a ano de 1755,
da Compapor missiotrabalhar como pobres assalariados tanto na pro- enhia
Geral
nários, nodução mineira quanto nas grandes plantações de Pernammeadamente jesuítas, agrícolas ou nos mais duros trabalhos urbanos. buco e Paraíba, em 1759,
contrários
assim tentanà
redução
escravista dos naturais. À terna muito depois do seu do limitar (mas sem grande
semelhança do modelo das declínio, tendo agora sido sucesso...) o monopólio de
capitanias, a inspiração foi redescoberto nestas últi- crédito externo em mãos
encontrada na colonização mas décadas como lucrativo britânicas e desenvolver
portuguesa das ilhas atlân- biocombustível. Mais ainda, o comércio brasileiro sob
ticas que tinha já recruta- em 1760, setenta anos de- controlo do Estado portudo abundante escravatura pois da descoberta de ouro guês (que, ontem como
africana, especialmente do em Minas Gerais, as expor- hoje, não tinha finanças
golfo da Guiné, para o duro tações de açúcar continua- para tanto...). Em paraletrabalho da produção açu- vam a ultrapassar os valores lo, matizando a hegemonia
careira. Em consequência, das exportações mineiras. de um dominante ciclo do
nas capitanias do Nordes- Não admira, por isso, que ouro, o século XVIII brasite, Pernambuco e Bahia, as o conjunto das vendas aos leiro foi também marcado
principais regiões produto- mercados externos de açú- por uma muito maior esperas de açúcar, encontravam- car ao longo do século XIX cialização económica regio-se à roda de 1570 mais de valessem 500% mais do que nal: do porto do Recife saía
60 grandes engenhos alber- durante o apogeu produtivo açúcar e madeira, a Bahia
aumentava as exportações
gando uns 13.000 escravos seiscentista.
O que não impede dever de ouro, prata e diamantes
africanos que, por 1600,
chegaram a uns 20.000. Os identificar-se a formidável de Minas Gerais, Mato Grosengenhos eram na altura transferência de recursos, so e Goiás, mas também de
grandes plantações de cana capitais e escravos para a cacau e algodão, enquanto
com um moinho de açúcar, produção mineira. O século o Rio de Janeiro se especiacasa dos donatários (a casa- XVIII do ouro do Brasil assis- lizava nos tratos de manu-grande de Gilberto Freyre), tiu, de facto, a um cresci- facturas em ouro, prata e
armazéns, várias instala- mento brutal das importa- couros. Complementaridações de apoio, uma capela ções de escravos africanos, des, especializações e deou oratório e abundantes mas também à multiplica- senvolvimentos económicos
tugúrios para os escravos. ção do número de escravos que, sobrepujando qualEram razoavelmente auto- alforriados. Estes, todavia, quer exclusiva teoria de do-suficentes,
exceptuando apesar de libertos viram-se minantes ciclos comerciais
a importação de madeira e perseguidos por recorren- lineares, se expressam em
carne, pelo que a produção tes leis anti-vadiagem que crescimento e complexidade gado se tornou em acti- os obrigavam a trabalhar de nessa centúria das granvidade complementar, mas como pobres assalariados des transformações que é
que valia apenas 5% da pro- tanto na produção mineira o extraordinário século XIX
dução açucareira nordes- quanto nas grandes planta- brasileiro.
IV
Segunda-feira, 16 de Setembro de 2013 • LUSOFONIAS
Um
de
N
Século
Transformaçõe
ão existe provavelmente em toda a história do Brasil um período marcado por
tão espectaculares transformações políticas,
económicas e sociais como o século XIX. Em
breves 82 anos, a colónia que o Brasil era formalmente desde 1534 transforma-se em reino
entre 1807 e 1822 (graças, como se sabe, à
refugiada família real portuguesa), ano em
que declara a sua independência para se erguer até 1889 em Império, substituído a 15
de Novembro por uma República que, com a
Revolução de 1930, ficou conhecida por velha
vá lá saber-se porquê. O Brasil independente foi também capaz em pouco mais de uma
década de transformar significativamente as
suas relações comerciais externas, rompendo
com o peso dominante da Grã-Bretanha. O
conjunto das políticas proteccionistas vazado, em 1844, na pauta aduaneira do ministro da Fazenda Alves Branco permitiu que, ao
aumentar os impostos sobre as importações
de manufacturas britânicas, os Estados Unidos se tornassem demoradamente o principal parceiro comercial do Brasil (posição que
actualmente é disputada pela China). O que
concorreu para a progressiva industrialização
do Brasil a partir de meados do século, especialmente com a revolução da ferrovia – passando dos 14 primeiros quilómetros inaugurados em 1854 para mais de 15.000 em 1900 – e
o grande desenvolvimento das indústrias têxteis que cresceram continuadamente a uma
média de 10% ao ano até 1914. Uma economia vibrante espalhou-se extensiva e intensivamente pelas diferentes regiões brasileiras,
enquanto a produção de café e borracha substituía em quantidades de produção e volumes
de exportação o açúcar e a mineração que,
mesmo assim, se foram industrialmente desenvolvendo e especializando.
As transformações económicas e comerciais
consolidaram as “nativas” classes dominantes
que emergiram com a independência, divididas ao longo do século XIX em três grupos com
interesses distintos: os grandes latifundiários,
os empresários e comerciantes do café, os antigos agentes comerciais portugueses e britânicos. Os proprietários fundiários situavam-se
sobretudo no Nordeste, originados pela expansão da produção açucareira para exportação, defendiam a liberdade do comércio e
confrontaram-se constantemente ao longo do
século com as facções e políticas proteccionistas. A crescente classe de empresários e
negociantes desenvolvida com o sucesso comercial do café organizava uma segunda franja que, ao mesmo tempo exigindo liberdade
de acesso
se batia p
Um tercei
reunia, ma
antigos age
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diação e c
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cravidão:
movimento
lusofo
es
à terra e ao mercado do trabalho,
por fortes medidas proteccionistas.
iro grupo com algum poder social
as sem grande coesão política, os
entes comerciais portugueses e briue haviam monopolizado a intermecomercialização externa inicialmencar depois estendida à maior parte
tações brasileiras. As lutas políticas
olo do Estado, da produção, dos carecrutamento de trabalhadores, dos
internos e das relações comerciais
tornaram-se especialmente violencadas de 1830 e 1840 que assistiram
s no Maranhão, Bahia, Minas Gerais,
e Mato Grosso, algumas estendenlongo de vários anos no Pará, Ceaambuco, enquanto uma verdadeira
il persistiu durante décadas no Rio
Sul.
mações económicas e sociais obriprofundas mudanças demográficas
muito maior mobilização de mãoexterna. Antes da abolição oficial
atura, o modelo de recrutamento
ersistiu em continuar a explorar os
cravistas africanos: de uma média
cerca de 27.000 escravos entraortos brasileiros ao longo do século
ou-se no século XIX para mais de
abolição foi, por isso, quantitatiépica: dos cerca de 500.000 escraiados em 1800 chega-se em 1900 a
lação de antigos escravos livres de
. O que não explica o forte crespopulacional do Brasil oitocentista:
opulação total estimada à roda de
ões em 1800 atinge-se em 1900 os
s. Muito mais do que com os antigos
ibertados, o incremento demográe nas décadas finais do século XIX
s milhões de emigrantes europeus
Portugal, Espanha, Itália, Alemamo do leste. Um crescimento popuue, atraindo os pobres camponeses
era sustentado e promovido pelo
as políticas comerciais protecciocididas desde 1844, permitindo um
de 240% das exportações entre 1840
m um incremento médio de preços
dos 46%, contrastando com a queda
preços das importações. Um Brasil
pero, mais populoso e mais agitado
ria continuar a conviver tão demoe como o fez com a infâmia da estinha chegado a hora das ideias e
os abolicionistas.
onias
O Movimento Abolicionista
É
no contexto das muitas transformações políticas, económicas e sociais do século XIX brasileiro que importa situar e perceber
a abolição legal da escravatura,
finalmente promulgada tarde em
1888. Descobre-se curiosamente
um processo gradualista em que se
cruza a um progressivo movimento
abolicionista interno, intelectual e
político, várias pressões externas
combinando liberalismo doutrinário e muita concorrência comercial.
A este ultimo domínio pertencem
inteiramente as pressões britânicas
que, logo em 1810, exigiram a limitação do comércio escravista para
o Brasil apenas aos domínios portugueses em África (que a Grã-Bretanha já disputava...). Em 1815, os
britânicos impõem a Portugal e ao
Brasil um acordo político-comercial restringindo o tráfico atlântico
de escravos ao sul do equador. Mais
tarde, a lei Palmerston autorizou
as embarcações britânicas a perseguir, atacar e apresar navios portugueses que fossem encontrados
no Atlântico a transportar escravos
africanos. Em 1845, a lei Aberdeen
alargava estas medidas a barcos
brasileiros, o que chegou até a
originar encerramento de portos
e incursões punitivas em território
do Brasil. Acossado na frente interna pelas necessidades enormes de
mão-de-obra e na frente externa
pelas exigências britânicas, o governo brasileiro proibiu legalmente
o comércio de escravos africanos
em 1850 através de lei conhecida
com o nome do ministro da Justiça Eusébio de Queirós. No entanto,
esta colecção de constrangimentos
em vez de diminuir tinha mesmo
aumentado exponencialmente o
tráfico escravista, registando-se
entre 1836 e 1850 a chegada de
619.000 escravos africanos, diminuindo depois da proibição, entre
1851 e 1855, para 6.100 entradas
ilegais, mas relativamente toleradas. Identifica-se também nestas
datas um rápido crescimento do
comércio escravista interno em
movimento das áreas mais empobrecidas do Nordeste para alimentarem o rápido crescimento das regiões centrais e do sul, particularmente as grandes áreas produtoras
de café. Estima-se que, entre 1850
e 1888, cerca de 209.000 escravos foram vendidos internamente
sobretudo aos grandes produtores
de café, o que suscitaria a oposição dos proprietários nordestinos
do (um pouco mais decadente ...)
açúcar, muitos deles optando por
passar imediatamente a apoiar as
teses abolicionistas.
É a combinação disfuncional das
pressões demográficas, económicas
e sociais internas e externas que
divide as águas brasileiras sobre o
tempo e o modo da inexorável abolição da escravatura que se sucedia por todos os países americanos:
os conservadores que saquaremas
se chamavam, no poder desde 1848,
representavam os interesses dos
grandes fazendeiros para exigirem
um processo gradualista, soberano
e nacional, capaz de preservar a
estabilidade social e o crescimento económico sem cedências às
exigências estrangeiras britânicas;
as facções mais liberais, conhecidas por luzias, sobretudo urbanas,
reunindo apoios generosos entre
advogados, jornalistas, funcionários e professores, encontraram no
imenso tráfico interno de escravos
motivos suficientes para denunciar
a incivilidade arcana da escravatura
e disseminar os ideários abolicionistas. Na segunda metade do século
XIX, principalmente nas décadas de
1870 e 1880, um forte movimento
político e social abolicionista vai-se
espalhando pelas principais cidades do Brasil, associando renovadas
ideias intelectuais, agitação política, interesses económicos muitos e uma larga multiplicação das
revoltas e fugas de escravos. Com
efeito, desde a célebre revolta dos
Malês, em São Salvador, ainda em
1835, rebeliões e fugas maçicas de
escravos foram-se sucedendo nas
duas décadas anteriores à abolição legal da escravatura, obrigando mesmo o exército brasileiro, já
tarde em 1887, a requerer oficialmente ao governo a sua desobrigação de capturar escravos fugitivos,
considerada tarefa tão descomunal
como impossível. Um ano antes, em
1886, face ao êxodo de dezenas de
milhar de escravos dos grande latifúndios cafezeiros, os proprietários
de Santos decidiram mesmo libertar
todos os seus escravos. Neste mesmo ano, apoiados na ajuda militante dos muito milhares de escravos
progressivamente alforriados, os
trabalhadores servis de Santos paralizaram também completamente
o grande porto vital da cidade, assim obrigando as autoridades locais
a declarar o município livre de escravatura.
O movimento abolicionista organiza-se definitivamente quando, em
1880, sob a direcção de Joaquim Nabuco e José do Patrocínio se inaugura no Rio de Janeiro a primeira Sociedade Brasileira Contra a Escravidão, logo depois replicada em muitas outras cidades brasileiras. O jornal O Abolicionista, sob a direcção
de Nabuco, serve de modelo para
uma constelação variada de outros
jornais, revistas, boletins, panfletos. Os muitos advogados, artistas,
intelectuais, jornalistas e políticos
que passam a escrever duramente
contra a escravatura nestas muitas
tribunas do novo capitalismo tipográfico não escondem a sua comum
filiação na activa e muito influente
Maçonaria brasileira: de Eusébio de
Queirós, autor, como se sublinhou
da lei de proibição do tráfico de escravos em 1850, a José Bonifácio,
passando pelo Visconde do Rio Branco (responsável, como veremos,
pela Lei do Ventre-Livre, em 1871),
Luís Gama, António Bento, José do
Patrocínio, Rui Barbosa, entre muitos outros, descobre-se uma plêiade
excepcional de intelectuais maçons
que tem talvez o seu expoente político maior na figura fundamental de
Joaquim Nabuco. No Recife, mobilizam-se os estudantes da Faculdade de Direito, em São Paulo nasce a
Sociedade Emancipadora, reunindo
fundos para comprar a alforria de
milhares de escravos: o movimento
abolicionista instala-se firmemente
na paisagem política urbana, mas
não impediu a política gradualista
dominante e um desfecho tardio da
definitiva dissolução legal da escravatura.
Procurando acautelar a inevitável abolição da escravatura, os
sucessivos governos brasileiros,
muitas vezes controlados pelos interesses dos grandes proprietários
fundiários, preferiram responder
à pressão política e social através
da publicação de medidas marcadas pelo gradualismo. Assim, em
1854, era aprovada a Lei Nabuco
de Araújo, ministro da Justiça, estabelecendo sanções contra as autoridades que encobrissem o contrabando de escravos, pelo que o
último desembarque documentado
ocorreu em 1856. Anos mais tarde,
em 1871, concretiza-se a chamada Lei do Ventre-Livre que libertava os descendentes de escravos
nascidos após a sua aprovação. Na
Câmara dos Deputados, o projecto
de lei reuniu 65 votos favoráveis
e 45 contrários, neste último lado
destacando-se os 30 deputados das
três províncias cafeeiras: Minas
Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro. No Senado do Império, a lei foi
acolhida mais favoravelmente com
33 votos a favor e 7 contra, mas lá
aparecendo os votos negativos dos
cinco senadores das províncias produtoras de café. Seguindo a lei, os
filhos dos escravos, designados por
ingênuos, tinham duas opções após
a sua automática libertação: permanecer na residência dos senhores das suas mães até à maioridade
de 21 anos ou ser entregues à protecção do governo. Em 1885, dos
cerca de 400.000 ingênuos cadastrados, somente 118 foram entregues ao governo, quase todos doentes, cegos e deficientes físicos. A
partir de um projecto do deputado
baiano Rui Barbosa, foi promulgada em 1885 a lei Saraiva-Cotegipe,
mais conhecida por Lei dos Sexagenários, libertando imediatamente
todos os escravos com mais de 65
anos, conquanto as condições económicas e sociais epocais não permitissem à esmagadora maioria dos
escravos chegar a tão bonita idade.
Finalmente, a 13 de maio de 1888,
a Lei Áurea, assinada pela princesa
Isabel, filha do imperador D. Pedro
II, abolia definitivamente a escravatura, libertando os restantes cerca de 720.000 escravos.
LUSOFONIAS • Segunda-feira, 16 de Setembro de 2013
V
125
anos
Abolição
Escravatura
Brasil
VI
Segunda-feira, 16 de Setembro de 2013 • LUSOFONIAS
O Herói do Abolicionismo:
Joaquim Nabuco
O
movimento abolicionista no Brasil tem um herói: Joaquim Nabuco. Trata-se, naturalmente,
de um herói político e intelectual, já que os verdadeiros heróis de toda esta história foram mesmo
os escravos que, depois de legalmente libertados,
levariam muitas décadas a obter reconhecimento
da sua dignidade, igualdade e promoção social.
Nascido no Recife, em 1849, e falecido na capital
dos Estados Unidos, Washington, em 1910, Joaquim
Aurélio Barreto Nabuco de Araújo era filho de um
Senador do Império, José Tomás Nabuco de Araújo,
e de Ana Benigna Barreto Nabuco de Araújo. Optou
por estudar Humanidades no Colégio D. Pedro II, no
Rio de Janeiro, obtendo um bacharelato em Letras
entretecido com a escrita de poesias de ocasião recitadas em estudantis saraus. Em 1865, instalou-se
em São Paulo para fazer os três primeiros anos do
Curso de Direito, concluído em 1870 na Faculdade do Recife. Passou, de imediato, para a carreira diplomática como adido de primeira classe em
Londres. Na viagem marítima demorada para a Europa, em 1873, apaixonou-se para os catorze anos
seguintes por Eufrásia Teixeira Leite, detentora de
uma das maiores fortunas do mundo, na altura estimada em 5% do valor total das exportações brasileiras. Em 1887, Eufrásia enviou a sua última carta
a Joaquim Nabuco que, dois anos decorridos, aos 38
anos, se casou com Evelina Torres Soares Ribeiro.
Antes ainda, tinha sido colocado em Washington,
entre 1876 e 1879, mas convidado a participar mais
activamente na política interna brasileira, consegue ser eleito deputado, fixando residência no
Rio de Janeiro. Na Câmara dos Deputados passou
a liderar os debates e projectos abolicionistas que
prepararam a publicação da sua obra maior sobre o
tema, O Abolicionismo, livro estampado em 1883.
Com a proclamação da República, em 1889, firme
adepto da monarquia constitucional, Joaquim Nabuco decide retirar-se da vida política para se dedicar à produção intelectual organizada em torno
da “Revista Brasileira”. Datam dos anos seguintes,
as relações estreitas com outros intelectuais importantes que, como Machado de Assis, José Veríssimo
e Lúcio de Mendonça, estariam na origem da fundação, em 1897, da Academia Brasileira de Letras.
A seguir, em 1901, aceitou voltar à carreira diplomática, primeiro como embaixador do Brasil em
Londres e, a partir de 1905, enquanto embaixador
em Washington. Em 1906, regressa ao Rio de Janeiro para presidir à III Conferência Pan-Americana,
ideário de estreitamento político e cultural das
Américas de que foi um dos principais promotores.
Morreria quatro anos mais tarde na sua derradeira
posição diplomática, não sem antes ter proferido
em várias universidades norte-americanas conferências marcantes sobre Os Lusíadas de que era
grande estudioso e ainda maior apreciador.
A obra de Joaquim Nabuco é vasta, importante
e influente: os seus textos completos, reunidos e
publicados pela primeira vez entre 1947 e 1949,
estendem-se por 14 volumes. Aí se encontram
os seus estudos sobre Camões e os Lusíadas, de
1872, as suas poesias líricas escritas em impecável francês (1874) ao lado dos poemas heróicos
que, em 1886, intitulou Escravos, mais o seu volumoso Um Estadista do Império (1887-1889) e
muitos textos políticos, alguma crítica literária
e abundantes discursos parlamentares. Como
esses vários em que defendeu as vantagens da
emigração europeia para o Brasil, fundamental, a seu ver, para evitar a miscigenação racial
que constituía obstáculo à construção de uma
moderna civilização. Combateu, por isso, com
sucesso as tentativas de mobilização de emigração
chinesa na década de 1870, sempre privilegiando
uma política governamental de decidido fomento
exclusivamente de emigrantes europeus, o que foi
limitando os espaços sociais das centenas de milhares de escravos libertados empurrados por uma divisão muito racial do trabalho para as margens da
sociedade brasileira. Não existe, porém, em toda a
oceânica obra de Joaquim Nabuco um livro que se
compare pela qualidade da escrita e muito mais ainda pela densidade intelectual e psicológica a essa
obra maior que continua a ser A Minha Formação,
um dos maiores clássicos de sempre da literatura e
cultura brasileiras, editado em 1900. Neste livro de
memórias, Nabuco recorda toda a sua luta abolicionista entre campanhas parlamentares, agitação política, acesos debates e muitos escritos. E, no entanto, num intimismo quase psicanalítico, um estranho,
mas sincero, paternalismo, quase contraditoriamente infantil, sublinha a sua “saudade do escravo”, relembrando a sua profunda generosidade em contraste com o velhaco egoísmo do senhor. Com toda a
razão, Joaquim Nabuco concluiu que “a escravidão
permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”. Estava certo. Os milhões
de escravos africanos traficados para o Brasil foram
contribuindo para essa produção outra de uma eclética e muito colorida colecção de manifestações
que, apresentadas hoje como afro-brasileiras, soergueram-se em elemento fundamental da plural policramia com que representamos a identidade brasileira: capoeiras, congadas e lundus, o próprio samba
que oficializados desfiles passou a ter desde 1934,
batuques e candomblés, quimbandas e macumbas,
umbandas, xambás e xangós, pratos gostosos como
a moqueca, caruru, vatapá, muita música e dança,
festas, revoltas e tudo o mais que se foi misturando,
transformando e mudando em brasileiras culturas in
memoriam dos milhões de escravos africanos que
ajudaram a construir este Brasil sem o qual é mesmo
muito difícil pensar em lusofonias...
lusofonias
Economias...
Reúne
estudos e análises sobre o desenvolvimento económico dos
ANGOLA | Sonangol
grupo norte-americano Marathon Oil acordou a venda de
uma participação de 10% no Bloco 32 do mar de Angola à estatal
Sociedade Nacional de Combustíveis de Angola (Sonangol) por
590 milhões de dólares, informou
o grupo em comunicado divulgado em Houston. Com a venda
desta participação em Angola,
“concluímos o nosso programa
de desinvestimento que permitiu
um encaixe de 3,5 mil milhões de
dólares, mais 500 milhões de dólares do que o previsto”, disse o presidente executivo do grupo Lee M. Tillman. O grupo anunciou ainda a recompra de acções
próprias até ao montante de mil milhões de dólares e informou que a segunda
fase deste programa de compras ficará terminada quando ficar encerrado o processo de venda da participação igualmente de 10% no Bloco 31 do mar de Angola.
“Esta transacção, com o valor de cerca de 1,5 mil milhões de dólares, deverá ficar
concluída no quarto trimestre do ano, com data a 1 de Janeiro de 2013″, pode
ainda ler-se no comunicado. De acordo com a imprensa norte-americana, desde
que o grupo Marathon Oil Corp separou toda a actividade a jusante da prospecção
e exploração petrolífera na Marathon Petroleum Corp. tem concentrado a sua
actividade nos Estados Unidos da América. O grupo petrolífero francês Total anunciou, por outro lado que vai vender à angolana Sonangol Pesquisa e Produção uma
participação num bloco petrolífero no mar de Angola ao abrigo de um programa de
alienação de activos. De acordo com a agência financeira Bloomberg que a Total
alienará 15% da participação que detém no bloco 15-06 operado pelo grupo italiano ENI no mar angolano, citando a porta-voz do grupo, Anastasia Zhivulina, que
confirmou o processo de negociações mas que se escusou a mencionar qualquer
valor. De acordo com a agência, o grupo francês pretende obter um encaixe entre
15 mil milhões e 20 mil milhões de dólares até 2014 com a venda de activos, tendo
já vendido em Angola 10% da participação no Bloco 14 à Inpex Corp. do Japão. A
Sonangol, que já controla 15% do bloco, localizado a 120 quilómetros da costa,
tem a primeira opção de compra caso haja uma oferta de venda por parte de um
dos parceiros, que incluem o grupo ENI e a Sonangol Sinopec International Angola Lda, ambos com 25% cada, Statoil ASA da Noruega e
Falcon Oil Holding Angola com 5% cada.
JTM/Macauhub
A
agência norte-americana de apoio ao desenvolvimento Millennium Challenge Corporation (MCC) vai contribuir com 7,5 milhões para projectos em Cabo Verde, anunciou na Praia o director
residente da Millennium Challenge Account (MCA) Cabo Verde. Kenneth Miller disse que 2,5 milhões de dólares destinam-se aos projectos Água, Saneamento e Higiene (Wash) e Gestão da Propriedade
para a Promoção do Investimento (Land) e vão ser desembolsados
no âmbito de contractos específicos a serem celebrados, de acordo
com a agência noticiosa cabo-verdiana Inforpress. O director residente referiu esperar que, ainda este mês, sejam desembolsados
mais cinco milhões de dólares para o Fundo de Água e Saneamento
(Fasa) na sequência da criação da Agência Nacional de Água e Saneamento (ANAS) e do Conselho Nacional de Água e Saneamento
(CNAS). Esta primeira parcela de cinco milhões de dólares poderá beneficiar todas as ilhas que têm serviços autónomos de água,
disse Miller, salientando que os Serviços de Água e Saneamento
ficam de fora porque devem ser “transformados” em empresas de
água e de saneamento. No caso da ilha de Santiago, Kenneth Miller
acredita que, dentro de quatro a seis meses, vai estar criada a
empresa Águas de
Santiago, que deverá ser contemplada por uma segunda parcela que
será de 10 milhões
de dólares.
lusofonias
Praia
e a sua cooperação com a
República Popular
da
China
na ilha de
O
governo de Moçambique encomendou à empresa
Constructions
Mécaniques de Normandie,
de Cherburgo, França,
a construção de 30 navios com um custo de
300 milhões de euros,
anunciou o empresário
libanês Iskandar Safa,
proprietário do estaleiro naval. A encomenda
engloba a construção
de 24 traineiras, três
barcos-patrulha de 32
metros e outros três de 42 metros, precisou Iskandar Safa ao anunciar a
encomenda, numa sessão que contou com a presença de três ministros,
incluindo Arnaud Montebourg, responsável pela reconversão industrial.
De acordo com o proprietário do estaleiro naval, a CMN regista anualmente uma facturação entre 50 e 100 milhões de euros. Iskandar Safa
adiantou ser esta encomenda parte de um contrato que o grupo Safa
assinou com Moçambique, que inclui mais um número igual de navios a
serem construídos nos estaleiros da Alemanha e do Abu Dabi, nos Emirados Árabes Unidos. Entretanto, seis navios oceânicos construídos no
Bangladesh foram recentemente entregues ao governo de Moçambique,
um investimento com um custo de 8 milhões de dólares, afirmou em
Daca o presidente da empresa construtora Ananda Shipyard and Slipways Ltd (ASSL), Abdullahel Bari. O Bangladesh foi reconhecido internacionalmente como um país produtor de navios quando em 15 de Maio
passado entregou o seu primeiro navio oceânico e a empresa recebeu
até à data encomendas no valor de 373 milhões de dólares para a construção de 22 navios.
JTM/Macauhub
Associações
GUINÉ-BISSAU
tentam resolver
carências alimentares
CABO VERDE
EUA apoiam desenvolvimento
da
Língua Portuguesa
Governo aposta em novos barcos
O
A cidade
de
MOÇAMBIQUE
assume parte de blocos petrolíferos
JTM/Macauhub
Países
A
s associações da sociedade civil guineense vão tentar reforçar o trabalho em rede para fazer chegar alimentos aos locais onde haja carências, anunciou a organização de um fórum que esteve reunido na última semana em Bissau. O Fórum Sociedade Civil, Soberania e Segurança
Alimentar e Nutricional pretendeu sensibilizar entidades e público “para
a importância das redes em sociedade na promoção da soberana alimentar”. Durante dois dias estiveram em debate aspectos relacionados com
a produção e organização, mercados, políticas do sector e educação
do consumidor. Foram oradores diversos técnicos e especialistas com
intervenção na Guiné-Bissau, assim como representantes de redes congéneres ao nível da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP).
A iniciativa decorreu no Centro Cultural Franco-Guineense tendo sido
cofinanciada pela União Europeia, Instituto Camões e organizações da
Rede de Sociedade Civil para a Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional da Guiné-Bissau (RESSAN-GB). A Organização das Nações Unidas
para a Agricultura e Alimentação (FAO) e o Programa Alimentar Mundial
(PAM) têm em curso um inquérito aprofundado à situação alimentar na
Guiné-Bissau. Em declarações à Lusa, a representação da FAO estimava
a meio de Agosto que existissem no país, pelo menos, 260 mil pessoas a
sofrer de “carência alimentar severa”, isto é com uma redução drástica
de refeições e adequação de ementas àquilo que a natureza oferece.
Entretanto, o PAM avançou no início do mês de Setembro com uma operação de urgência de distribuição de arroz na Guiné-Bissau.
JTM/Lusa
Santiago
LUSOFONIAS • Segunda-feira, 16 de Setembro de 2013
VII
A Arte da Diplomacia
Publica
textos de estudo e opinião
sobre a diversidade cultural
das Lusofonias
Ideias
Pepetela*
“Eis senão quando
toca o telefone e um
de nós foi atender.
Ouviu o que disseram
do outro lado do
fio, voltou para o
grupo tremendo. ‘A
Tina telefonou do
aeroporto, vem a
caminho’. Ficámos
literalmente em
pânico. A Tina é uma
namorada do Tiago,
mulata benguelense,
com quem ele dá
T
iago dos Santos existe realmente, não é personagem de ficção, embora aqui pudicamente se abrigue debaixo de outro nome. Se lerem o que segue
compreenderão a prudência de arranjar um pseudónimo para uma pessoa que vive eternamente na corda
bamba, cheio de segredos que poderiam, se revelados
publicamente, criar-lhe sérios problemas. Cuanza-suíno de gema (como nós aqui chamamos carinhosamente
aos originários da bela província situada logo a sul do
mítico Kuanza), tem tudo para ser kaluanda. Ou será
que os kalús foram buscar lá mais abaixo a sua tão
célebre idiossincrasia? Pouco importa, passemos aos
factos.
Um dia o Tiago festejou aniversário. Antes de entrar
na crise da meia idade de que falam os psicólogos,
resolveu convidar amigos para a sua casa, mesmo em
tempo de apertos financeiros e outros em que vivemos
eternamente atascados. Não seriam mais que trinta
pessoas, sequiosas como nós somos, capazes de esvaziar qualquer contentor cheio de uísque. (Aproveito
a passagem para repudiar a frase assassina dum ianque que disse publicamente que os angolanos são tão
incompetentes que nem seriam capazes de organizar
uma bebedeira numa fábrica de cerveja. Vê-se que ele
nunca esteve en nenhuma farra de óbito cá na banda.)
Estávamos nós na animada festa, onde também se
encontrava a ex-esposa e a actual do Tiago dos Santos,
quando entrou a futura, isto é, aquela que já está na
mira para substituir a actual, com avançados preparativos de que conhecemos os detalhes mas não vamos revelar. Um grupo íntimo de amigos e familiares
ficou nervoso, adivinhando borrasca. Concertámo-nos
rapidamente, combinando estratégias no caso de... e
de... Chamado ao grupo, o Tiago riu das nossas preocupações e disse que estava tudo sob controlo, não havia que estabelecer mediações ou preparar pontos de
recuo, ele sempre soubera se safar de situações mais
melindrosas. Francamente, não acreditei. E, prevendo
o pior, antecipei logo duas cervejas seguidas para no
caso de a coisa dar para o torto, ser diplomaticamente
expulso dali, mas já suficientemente aviado para resistir ao assalto dos mosquitos nocturnos.
Oito pares de olhos não faziam mais que seguir as
movimentações da sala, em particular as do nosso
amigo e das três donas em causa. Nada acontecia de
mal, ele multiplicando-se em atenções relativamente
a cada uma, enchendo copos, servindo pastelinhos,
tirando uma ou outra para dançar. Nós só bebíamos,
nem nos atrevíamos a qualquer distracção que poderia
ser fatal no caso de ser necessária a nossa intervenção urgente para apaziguar ciúmes mais exaltados. Até
porque conhecemos as fúrias repentinas que assaltam
as nossas donas quando se sentem espoliadas, onde se
parte o verniz da contenção e tudo salta cá para fora.
Com inteira razão, teremos de compungidamente reconhecer. Mas até ali tudo corria bem, com o Tiago dos
Santos a controlar perfeitamente a situação, fazendo
de impecável anfitrião.
Eis senão quando toca o telefone e um de nós foi
atender. Ouviu o que disseram do outro lado do fio,
voltou para o grupo tremendo. “A Tina telefonou do
aeroporto, vem a caminho“. Ficámos literalmente em
pânico. A Tina é uma namorada do Tiago, mulata benguelense, com quem ele dá umas escapadelas quando
vai à terra das acácias rubras, o que, diga-se de passagem, é muito frequente. Particularmente eu, que conheço as fúrias das mulatas da minha terra, pressenti
desgraça. Agora é que ia acontecer o inevitável. Aproveitei adiantar a cerveja em dois tragos largos, para
ir buscar mais uma. Talvez desse tempo para a engolir
antes de estalar a bronca. Avisei a minha garina para
ficar já com o saco na mão, pois a retirada teria de ser
rápida, estilo filme americano, pois com garrafas e pratos a voar, ia sobrar uma lasca para algum de nós. Ela
só me disse, mas esse kota não se enxerga mesmo, com
os filhos todos a assistir, vai levar uma surra de quatro
mulheres. Avisámos o Tiago que a Tina vinha também
festejar o aniversário. Por defeito de profissão, fiquei
atento à reacção do meu amigo. Pestanejou, mas foi
tudo. Logo disse, fixe, é uma miúda porreira mesmo, a
festa ainda vai ficar melhor. E se postou mais perto da
porta, já cheio de saudades.
A Tina veio com um bolo que tinha feito em Benguela, com quarenta velas e tudo. Tiago beijou-a nas
faces, antes que a outra se antecipasse, gritou minha
grande amiga, vem, quero te apresentar, e lá correu a
sala inteira com ela pela mão dizendo veio de Benguela
de propósito para o meu aniversário e com bolo e tudo,
digam lá se não tenho amigos de verdade. O Tiago dos
Santos, radiante da vida, um senhor, um príncipe, e
nós transidos, bebendo o mais rápido que podíamos,
também não íamos deixar as grades e grades ainda
cheias, em riscos de se esvaziarem pelas paredes quando rebentasse a tempestade.
Pois a festa continuou, as quatro sem perceber a ligação tão íntima que tinham, todas bebendo e comendo
e dançando, pois achamos que devíamos ajudar o Tiago
a distraí-las e tirávamos agora as donas para a kizomba
e o semba constantemente, enquanto outros ficavam
de prevenção combativa. As grades foram se esvaziando, a mesa foi ficando limpa de rissóis, quitaba, doces
de coco, jinguba e outras iguarias, foi servido o calulú
e a feijoada, as conversas e gargalhadas soltas pelo ar.
E fui acalmando e começnado acreditar em milagres.
Só que tinha bebido depressa demais e tudo ia ficando
naquela quietude anunciadora das grandes bebedeiras.
A festa terminou da melhor maneira, as quatro senhoras bem bebidas, agarradas ao Tiago que só ria,
nunca fora tão acarinhado em aniversários anteriores.
Quando saí disse para ele: “ Meu, tu merecias ser embaixador num país importante. Ou mediador da guerra
da Bósnia. Mas deixa de brincar com o fogo, pois hoje
tiveste sorte.” O meu amigo Tiago dos Santos, feliz
como só um cuanza-suíno pode ficar em tais circunstâncias, respondeu: “Mano, se a vida não tiver algum
risco não tem piada.”
Como terminou a noite não sei, nem vocês têm nada
com isso. Mas dois dias depois encontrei o Tiago dos
Santos e ele não tinha nenhuma cicratiz, antes apresentava ar tranquilo de felicidade revisitada.
*Escritor angolano, Prémio Camões em 1997
(in: Portal da Literatura)
umas escapadelas
quando vai à terra
das acácias rubras,
o que, diga-se de
passagem, é muito
frequente.”
VIII
Segunda-feira, 16 de Setembro de 2013 • LUSOFONIAS
lusofonias
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